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c a p í t u l o 4 transtornos do Humor Capítulo 4 – transtornos do humor 21 ttranstornos do humor Capítulo 4 Introdução Do ponto de vista psicopatológico, humor é a síntese de todos os sentimentos na consciência em um determi- nado momento. Alegria, tristeza, indiferença, irritabilidade, podem existir em todos nós, mas de forma transitória e controlada. Na doença do humor o indivíduo perde o con- trole de seus sentimentos e a persistência de um estado afetivo qualitativamente diferente. Há polarização do humor para a depressão ou para a excitação, fazendo com que o transtorno depressivo ou maníaco se manifeste. ConsIderações nosológICas Como não se sabe a causa dos transtornos do humor, há várias tentativas de classificar estas doenças, todas baseadas em dicotomias etiológicas. Assim: bipolar x uni- polar, reativa x endógena, neurótica x psicótica, primária x secundária e típica x atípica. Depressão reativa x endógena: a depressão endó- gena é mais grave, acompanhada de sintoma somáticos (anorexia, perda de peso), insônia terminal, pior pela manhã e melhor à noite. Nesta depressão não há fatores desen- cadeantes. Por outro lado a depressão reativa é aquela que surge de fatores desencadeantes, sendo por muito tempo considerada menos grave. Hoje em dia sabe-se que a gravidade da depressão independe da presença ou ausência de fatores precipitantes. Neurótica x psicóticas: a depressão neurótica é aquela ligada ao caráter, menos grave, com maior tempo de dura- ção. Na depressão psicótica há delírios e alucinações. Atualmente a depressão neurótica foi substituída pelo termo distimia, que é um quadro depressivo crônico (mais de 2 anos) que compromete menos a personalidade do que o transtorno depressivo. Primária x secundária: a depressão primária não é precedida cronologicamente por qualquer distúrbio psi- quiátrico ou doença orgânica. Já a depressão secundária é precedida por doenças mentais, como o alcoolismo; ou por doenças orgânicas, como o hipotireoidismo, AVC e câncer da cabeça do pâncreas. Depressão típica x atípica: na depressão típica ocorre perda de peso, insônia e apatia, enquanto na atípica o indivíduo tem ganho de peso, hipersonia e ansiedade. epIdemIologIa A depressão é a quarta causa mais importante de incapacidade funcional e a quarta doença médica mais cara. Os deprimidos passam mais tempo no leito que os diabéticos, hipertensos e portadores de DPOC. O risco de suicídio entre os indivíduos com transtorno de humor é de 10 a 15% e o risco da tentativa de suicídio é 41 vezes maior entre os pacientes deprimidos que entre os com outros diagnósticos psiquiátricos. tabela 1. Depressão unipolar x bipolar. transtorno unipolar (depressão maior) transtorno bipolar (maníaco depressivo) É mais freqüente (cerca de 90%) Cerca de 10% Início mais tardio e gradual Início mais precoce e agudo Número de episódios ou crises menor Maior número de episódios 3 mulheres para 1 homem 1 mulher para 1 homem História familiar de depressão História familiar de psicose maníaco-depressiva Fatores desencadeantes presentes na maioria dos casos Ausência de fatores desencadeantes Concordância monozigótica em cerca de 50% Concordância monozigótica em cerca de 80% Menor risco de suicídio Maior risco de suicídio (na fase depressiva) Uso de antidepressivos é mais eficiente que de lítio Lítio mais eficiente na fase depressiva e maníaca psiquiatria 22 A prevalência dos transtornos afetivos é bastante ele- vada; 15% nos homens e 25% nas mulheres. A incidência também é alta, situando-se em torno de 10% da população geral e 15% entre pacientes hospitalizados. A incidência do transtorno bipolar é menor que o quadro unipolar, está entre 1 e 2,5%. dIagnóstICo do epIsódIo depressIvo CID-10: os episódios depressivos típicos, nos 3 níveis de gravidade (leve, moderada e grave) caracterizam-se pelos seguintes sintomas: humor deprimido; perda de interesse e prazer; energia reduzida levando a uma fatiga- bilidade aumentada; atividade diminuída; visões desoladas e pessimistas do futuro; idéias de culpa e inultilidade; sono alterado; apetite diminuido. DSM-IV-TR: se no mínimo 5 dos seguintes sintomas estiveram presentes durante um período de 2 semanas e representaram uma alteração no funcionamento anterior; pelo menos um dos sintomas é humor deprimido ou perda do interesse ou prazer: • humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias, indicado por relato subjetivo (por ex., sente- se triste ou vazio), ou observação feita por terceiros (por ex., chora muito); • acentuada diminuição do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia, quase todos os dias; • perda ou ganho significativo do peso, sem estar em dieta; ou diminuição ou aumento do apetite, quase todos os dias; • insônia ou hipersonia quase todos os dias; • agitação ou retardo psicomotor; • fadiga ou perda de energia; • sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada; • capacidade diminuida de pensar ou se concentrar; ou indecisão; • pensamento de morte recorrente, idéia suicída recor- rente e tentativa de suicídio ou plano específico para cometer suicídio. Os sintomas não satisfazem os critérios para um episó- dio misto. Causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (por ex., abuso de droga ou medicamento) ou de uma condição médica geral (por ex., hipotireoidismo). Os sintomas não são mais bem explicados por luto, ou seja, após a perda de um ente querido, os sintomas persistem por mais de 2 meses ou são caracterizados por acentuado prejuízo funcional, preocupação mórbida com desvalia, idéia suicída, sintomas psicóticos ou retardo psicomotor. do epIsódIo maníaCo CID-10: o humor está desproporcionalmente elevado em relação às circunstâncias do indivíduo e pode variar de uma jovialidade despreocupada a uma excitação quase incontrolável; há aumento de energia com hiperatividade, logorréia e diminuição da necessidade de sono; inibições sociais normais são perdidas; a atenção não pode ser mantida; a auto-estima está inflada e grandiosidade ou idéias super otimistas são livremente expressas; podem ocorrer sintomas psicóticos. DSM- IV- TR: um período distinto de humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável, com duração mínima de 1 semana (ou qualquer duração se a hospitalização for necessária); durante o período de perturbação do humor, 3 ou mais dos seguintes sintomas persistirão e estarão presentes em um grau significativo: • auto-estima inflada ou grandiosidade; • redução da necessidade de sono; • mais falante que o habitual ou pressão por falar; • fuga de idéias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão correndo; • distração (a atenção é desviada com excessiva faci- lidade por estímulos externos insignificantes); • aumento da atividade dirigida a objetivos (social- mente, no trabalho, na escola ou sexualmente) ou agitação psicomotora; • envolvimento excessivo em atividades prazerosas com um auto-potencial para conseqüências desas- trosas (surtos incontroláveis de compras ou investi- mentos financeiros insensatos); Os sintomas não satisfazem os critérios para episódio misto. A alteração do humor é suficientemente grave, a ponto de causar prejuízo acentuado no funcionamento ocupacio- nal, nas atividades sociais, ou de exigir hospitalização como meio de evitar danos a si mesmo e a terceiros. Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos dire- tos de uma substância (por ex., droga ou medicamento) ou de uma condiçãomédica (por ex., hipertireoidismo). dIagnóstICo dIferenCIal Do transtorno depressivo: os episódios depressivos devem ser diferenciados do transtorno de humor devido a uma condição médica geral (AVC, hipotireoidismo, escle- rose múltipla, doença de Wilson). A depressão pode ser Capítulo 4 – transtornos do humor 23 causada por abuso ou abstinência de drogas, como ocorre no alcoolismo, na dependência aos benzodiazepínicos e na abstinência à cocaína e à anfetamina. Para isso se utiliza a história clínica, o exame físico e os achados laboratoriais. O transtorno distímico difere do transtorno depressivo pelo tempo dos sintomas e pela gravidade do quadro. No quadro esquizoafetivo o transtorno de humor é antecedido ou precedido por 2 semanas de delírios e alucinações na ausência de depressão. A demência deve ser diferenciada da depressão pela história patológica pregressa, pela sintomatologia (o com- prometimento cognitivo no deprimido é abrupto, enquanto na demência ele se dá de forma progressiva). O paciente com demência tende a disfarçar a sintomatologia, enquanto o deprimido valoriza as suas queixas. As alterações de humor na depressão respondem de forma eficaz aos anti- depressivos, enquanto as alterações do humor do paciente com demência não respondem satisfatoriamente. Da mania: o episódio maníaco deve ser diferenciado do transtorno de humor devido à condição médica geral (hipertireoidismo, tumores cerebrais) e transtorno de humor induzido por substâncias psicoativas. A história clínica, o exame físico e os exames laboratoriais serão usados para esta diferenciação. Muitas vezes um paciente idoso sem história patológica pregressa de transtorno de humor, apresenta quadro maníaco que antecede à alteração cognitiva. A história e a evolução do caso nos indicarão o diagnóstico correto. O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade pode mimetizar um quadro maníaco, porém, o início precoce, em geral na infância, o curso crônico, a ausência de períodos de remissão (como ocorre na mania) e de crises de humor expansivo falarão a favor de um déficit de atenção. A mania algumas vezes cursa com sintomas psicóticos, idéias deliróides, alucinações pouco sistematizadas, pen- samento desagregado pela rapidez do fluxo das idéias, o que leva à confusão diagnóstica com esquizofrenia. A diferença será estabelecida no curso da doença, uma vez que, em geral, na mania não há comprometimento da personalidade ou do desempenho social quando cessada a crise e na esquizofrenia, cerca de 75% dos pacientes evoluem com defeito de personalidade. tratamento Da depressão unipolar: os antidepressivos são drogas usadas com sucesso para vários transtornos psiquiátricos (depressão, distimia, ansiedade, dependência de drogas) e transtornos físicos (dor crônica, polineuropatia diabética, TPM). Na depressão deve-se iniciar o tratamento com do- ses baixas e aumentar gradativamente, até atingir a dose terapêutica. A resposta nunca é imediata, levando muitas vezes 2 a 4 semanas para se manifestar. Em pacientes com risco de suicídio o médico deve tomar cuidado, uma vez que a ativação do comportamento pode preceder a melhora do humor, fornecendo a energia que faltava para a tentativa de suicídio. O tratamento medicamentoso não deve ser interrompido antes de 6 meses a 1 ano, porque o índice de recaída é maior quando se interrompe a medicação no período logo após a melhora. O uso da medicação deve ser feito por tempo indeterminado se o indivíduo tem 3 episódios ante- riores ou se tem o primeiro episódio após os 50 anos. Todos os antidepressivos disponíveis têm efeitos tera- pêuticos semelhantes. A escolha do medicamento é base- ada na experiência de tratamento anterior e na tolerância do paciente aos efeitos colaterais. Deve-se levar em conta também a comorbidade psiquiátrica e clínica. As principais drogas disponíveis são: • tricíclicos – foram os medicamentos-padrão por várias décadas e ainda são usados por muitos pacien- tes. Todos os tricíclicos são metabo-lizados no fígado e excretados pelo rim, têm o índice terapêutico próxi- mo, meia-vida longa, o que permite dose única diária. O efeito cardiotóxico dessas drogas leva à letalidade em tentativas de suicídio. Os tricíclicos mais usados no Brasil são a imipramina e a amitriptilina, que têm como fator limitante seus efeitos colaterais anticolinér- gicos, sedativos e cardíacos. A nortriptilina, que é um metabólito da amitriptilina, tem se mostrado bastante eficaz na depressão do idoso, sendo o tricíclico de menor perfil de efeitos colaterais. A cloimipramina, cuja característica de ação é de uma droga serotoni- nérgica, é usada com grande sucesso no tratamento do transtorno obsessivo compulsivo; • IMAO – droga descoberta na década de 50, nunca foi muito prescrita devido ao seu perfil de interação medicamentosa com substâncias simpati-comimé- ticas e alimentos ricos em tiramina, precipitando crises hipertensivas. Outros efeitos colaterais são a insônia, ganho de peso e hipotensão postural. Mais recentemente foram lançadas drogas inibidoras da MAO reversível, como a moclobemida, com perfil de uso mais seguro. Hoje em dia, essas drogas são usadas para o tratamento de depressão atípica, quando os inibidores da recaptação da serotonina não forem eficazes; • inibidores da recaptação de serotonina – são drogas que foram introduzidas na década de 80, e têm como vantagem menos efeitos colaterais que as drogas mais antigas (não possuem efeito antico- linérgico, não causam hipotensão ortostática e não são cardiotóxicas). Fluoxetina, paroxetina, sertralina, citalopram e fluvoxamina, são alguns exemplos des- sas drogas. As limitações de seu uso são náuseas, vômitos, ansiedade e disfunção sexual; • bupropiona – bloqueia a recaptação de dopamina e tem como limitação seus efeitos colaterais, como inquietação, tremores, náuseas e convulsões. É a psiquiatria 24 droga indicada para o tratamento do tabagismo e o único antidepressivo que não altera a libido; • venlafaxina – essa droga bloqueia a recaptação de serotonina e noradrenalina sem os efeitos anticolinér- gicos dos tricíclicos; tem efeito sedativo. Os efeitos colaterais são semelhantes aos dos inibidores da recaptação de serotonina. Do transtorno bipolar: o manuseio clínico da doença bipolar envolve o tratamento do episódio agudo e da ma- nutenção. O tratamento do episódio maníaco é feito com antipsicóticos (como a olanzapina, por ex.) e estabiliza- dores do humor. Já nas crises depressivas devemos usar inibidores da recaptação de serotonina ou bupropiona, pois essas drogas provocam menos episódios maníacos ou hipomaníacos que os tricíclicos e os inibidores da MAO. Deve-se usar também estabilizadores do humor, que per- manecerão no período de manutenção. Os estabilizadores do humor são as drogas que têm ação tanto na fase aguda como na prevenção de novas crises. O lítio é o estabilizador usado há mais tempo e cerca de 80% dos pacientes maníacos respondem bem à monoterapia com esta droga. O efeito antidepressivo do lítio é incompleto, por isso na fase depressiva da doença bipolar devemos associá-lo a antidepressivos. O tratamento deve ser continuado na primeira crise maníaca por, pelo menos, 12 meses, já que, se retirado antes desse tempo, o risco de recaída é maior. A maioria dos pacientes mantêm- se assintomáticos na concentração sangüínea de 0,8 a 1,2 meq/l. Esta droga é bem tolerada pela maioria dos pacien- tes, porém alguns, mesmo em níveis plasmáticos normais, têm polidpsia, poliúria, tremores finos, ganho de peso e distúrbios gastrintestinais (diarréia e vômito). Acima do nível terapêutico os tremores se tornam grosseiros, existe sonolência, ataxia, disartria e confusão mental, podendo em níveis mais altos de intoxicaçãoaparecer delirium, convul- sões, coma e morte. O tratamento do quadro de intoxicação é feito através de diálise. O uso crônico do lítio pode levar à leucocitose, hipotireoidismo e alterações renais. Posteriormente usou-se, como estabilizador do humor, drogas anticomiciais, como a carbamazepina, o ácido val- próico, o topiramato e a lamotrigina. O ácido valpróico tem se mostrado eficaz no tratamento da mania, na manutenção dos quadros bipolares e especialmente nos cicladores rá- pidos (mais de 4 crises em 1 ano) e nos episódios mistos de mania e depressão. Vale a pena citar que o uso da eletrocon-vulsoterapia nos transtornos do humor é indicado para pacientes com grande risco de suicídio, depressão psicótica, depressão grave do idoso e falta de tolerância ou refratariedade à medicação. Nos episódios maníacos agudos, a eletrocon- vulsoterapia é também indicada; em 80% dos casos de maníacos que não respondem à medicação, há grande melhora com este tratamento. Curso e prognóstICo Da depressão: o transtorno depressivo pode iniciar em qualquer idade, sendo mais comum por volta dos 30 anos. Hoje em dia observa-se que a idade de início está cada vez mais precoce, tendo, inclusive, havido aumento da taxa de suicídio na adolescência, constituindo a terceira causa de morte nesta idade. Os sintomas se desenvolvem em dias ou semanas, pode haver sintomas prodrômicos como crises de ansiedade e fobias, embora alguns pa- cientes tenham apenas um episódio simples, com retorno completo à personalidade pré-mórbida; 50% podem ter outros episódios, constituindo o diagnóstico de depressão recorrente. O curso desta depressão é variável, alguns pacientes têm episódios isolados, separados por longos intervalos estáveis de funcionamento normal e outros têm episódios próximos com pequenos intervalos intercríticos, o que caracteriza maior gravidade. Quase 25% dos pacien- tes têm recaída nos primeiros 6 meses após a remissão, especialmente se eles descontinuaram o antidepressivo. Trinta a 50% recaem dentro dos 2 primeiros anos e 50 a 75% recaem dentro dos 5 anos após a primeira crise. O epi- sódio depressivo freqüen-temente surge após estressores agudos, tais como uma perda amorosa, divórcio ou doença médica subjacente. Observou-se que os estressores são mais importantes nas duas primeiras crises, não tendo tanta importância nos episódios subseqüentes. Os fatores de bom prognóstico da depressão unipo- lar são os seguintes – ausência de sintomas psicóticos; hospitalização de curta duração; crises de duração menor, intervalos intercríticos mais longos e funcionamento familiar adequado. Os fatores de mau prognóstico são – início em idade precoce; comorbidade com outras doenças psiquiátricas; abuso de drogas; episódios longos; intervalos intercrí- ticos menores; hospitalização freqüente e tentativas de suicídio. Da doença bipolar: em geral, a primeira crise do transtorno bipolar é uma crise maníaca, que começa an- tes dos 20 anos. Embora as medicações sejam efetivas no tratamento do episódio agudo e na manuntenção dos pacientes, elas não são completamente efetivas para pre- venir episódios futuros. Observou-se que a manutenção dos níveis séricos do lítio próximos a 1 mEq/l, são mais eficazes para evitar a recaída. A combinação do lítio com anticonvulsivantes são promissoras. A doença que se inicia precocemente, a presença de comorbidade com distúrbio de personalidade e o abuso de drogas, são fatores de mau prognóstico.
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