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O movimento modernista e a construção de uma identidade nacional sob a égide do Estado Novo 
 
LUCIANO MONTEIRO1 
 
 
não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. 
Mário de Andrade, O Movimento Modernista (1942) 
 
1. O movimento modernista 
O acelerado processo de industrialização e urbanização da capital do estado de São Paulo no início 
do século XX, promovido pelas fortunas de uma oligarquia cafeeira subsidiada pelo Estado, teve na 
Semana de Arte Moderna seu correspondente artístico e intelectual mais significativo. Uma inusitada 
profusão de experimentos estéticos em diálogo com as transformações repentinas na vida provinciana 
da capital paulista compunham o polêmico repertório (para a época) da mostra. 
Em sua crônica da chamada “fase heroica” do Movimento Modernista, Raul Bopp atribui realização 
da Semana a um anseio por renovação estética expresso pelos membros de uma elite culta, crescida à 
sombra tranquila dos latifúndios, e acostumada a ir e vir da Europa todos os anos (BOPP, 1966). A 
aproximação de indivíduos dessa elite com intelectuais e artistas franceses proporcionaria a estes suas 
primeiras “lições de Brasil” desdobradas em propostas estéticas de vanguarda. 
Narrava-se um Brasil imaginário, cheio de paisagens coloridas, como um país de utopia. “A terra é de tal 
maneira graciosa”. Trenzinhos subindo o Corcovado. Lá em cima, os paredões de rocha viva, com esculturas 
monolíticas. E a cidade imensa se estendendo, em sínteses geométricas, pela beira do mar. Sambas por toda 
parte. Essas digressões iam se repetindo, com acréscimos individuais. Espalharam-se por outros grupos. Os 
próprios brasileiros, que faziam as suas férias em Paris, começaram a gostar desse “Brasil” cordial, narrado 
na sua frescura primitiva. (BOPP, 1966: 15) 
 
A ideia de reunir as obras de brasileiros sintonizados com as vanguardas artísticas europeias teria 
surgido, segundo Raul Bopp, a partir dos planos de Di Cavalcante para realizar, no salão da livraria 
Jacinto Silva, uma pequena exposição acompanhada de palestras didáticas. Nas mãos de Paulo 
Prado2, o plano ganharia envergadura e passaria do pequeno salão da livraria ao Teatro Municipal de 
São Paulo, financiado por doações oferecidas por simpatizantes milionários da oligarquia rural. 
A ampla cobertura jornalística e as reações dos críticos conservadores celebrizaram os modernistas e 
os conduziram de imediato ao objetivo imediato do movimento: a disputa pela definição dos critérios 
de representação do Brasil, até então monopolizados pelo academicismo beletrista. 
 
1
 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Casa de Oswaldo Cruz (Bolsista Fiocruz) 
2
 “Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais 
da nossa aristocracia tradicional. Não da aristocracia improvisada do Império, mas de outra mais antiga, justificada no 
trabalho secular da terra e oriunda de qualquer salteador europeu” (ANDRADE, 1978: 236) 
 
 
Este propósito, que podemos considerar como princípio orientador do movimento, aparecerá de 
maneiras diferentes em dois momentos: o primeiro com ênfase em questões de natureza estética e o 
segundo marcado pelo debate ideológico. A comparação entre as periodizações propostas por João 
Luiz Lafettá e Eduardo Jardim de Moraes poderá nos ajudar a compreender melhor as concepções, 
motivações e atitudes compartilhadas pelos integrantes do movimento. 
Lafettá (2000) foi o primeiro a propor uma divisão do modernismo em duas fases distintas. Na 
primeira (de 1922 a 1930), conhecida como “fase heroica” do movimento, a ênfase no projeto 
estético se traduziu na ruptura com o tradicionalismo nas artes e na atualização dos meios de 
expressão. Na segunda fase (década de 1930), a ênfase no projeto ideológico, expresso na urgência de 
conhecer e reconhecer o país e pela incorporação crítica da realidade social, revigorou o projeto 
estético ao mesmo tempo em que o diluiu e estabilizou. 
Moraes (1983) também dividiu o movimento em duas fases, porém atendo a outros aspectos. Em sua 
abordagem, ele analisa o modo como a filiação do modernismo brasileiro a teorias evolucionistas se 
traduziu na conceituação de modernidade como télos universal e conduziu a um raciocínio 
comparativo entre cada aspecto da vida nacional e seu análogo nas nações “civilizadas”. 
Nesta chave de leitura, o primeiro tempo do Modernismo, entre 1917 e 1924, corresponde à 
perspectiva imediatista que afirma a urgência e mesmo a fatalidade do processo modernizador e 
acredita poder promovê-lo no âmbito da cultura pela importação de recursos expressivos capazes de 
dar conta da realidade contemporânea – o que, por insuficiência, conduziria à frustração e ao 
pessimismo diante da permanente escassez de elementos modernizadores na vida nacional. O 
segundo tempo, de 1924 a 1929, se distingue pela inversão dos juízos de valor negativos a respeito da 
situação brasileira e pela afirmação da nacionalidade através de um raciocínio bastante elaborado que 
articula a proposta modernizadora com a necessidade de definição da brasilidade. 
Em síntese, Lafettá se ocupa da produção artística e intelectual do movimento enquanto Moraes 
procura compreender suas bases conceituais. Apesar de não haver uma homologia perfeita entre as 
duas abordagens, podemos conjugá-las para conferir maior amplitude à discussão. 
 
2. Fundamentos filosóficos da identidade nacional 
O modernismo brasileiro pode ser descrito como um conjunto heterogêneo de estratégias encontradas 
por intelectuais e artistas brasileiros da primeira metade do século XX, convictos da modernidade 
como ordem universal inexorável, para produzir novas representações da nacionalidade. A reflexão 
proposta pelo movimento sobre o ingresso do país na modernidade e suas implicações culturais teve 
em Mário de Andrade seu maior expoente (FONSECA, 2009; GEIGER, 1999; MORAES, 1983 e 
2012). Sua contribuição como escritor, crítico e pesquisador consagrou uma concepção de 
 
 
modernidade que expressa não apenas as suas afinidades teóricas, mas os fundamentos conceituais do 
próprio movimento. 
Depositário da ortodoxia modernista (MARTINS, 1978) e formulador da doutrina do movimento, 
quando entre modernistas amigos seus, Mário de Andrade chegava a assumir uma posição dogmática 
– como demonstra o seu debate com Sérgio Milliet nas páginas da Revista Terra Roxa e Outras 
Terras (MORAES, 1983: 103). 
Em sua análise das concepções de modernidade que informaram o modernismo em diferentes fases, 
Eduardo Jardim de Moraes associa o primeiro tempo do movimento (1917-1924) a uma perspectiva 
imediatista – e poderíamos acrescentar: superficial – que pretendia inserir o país no “concerto 
internacional das nações” (expressão de Mário de Andrade) pela incorporação de meios de expressão 
adequados à modernidade na produção artística brasileira. 
Contra o academicismo hegemônico nas artes, os modernistas reivindicam “o direito à pesquisa 
estética permanente, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma 
consciência criadora nacional” (ANDRADE, 1978: 242). Foi a época da exposição de Anita Malfatti 
(1917), da Semana de Arte Moderna (1922) e da criação da revista Klaxon (1922), em cujas páginas 
costumava-se romper as regras estabelecidas pela gramática portuguesa e impostas pelo 
academicismo opressivo. 
A insuficiência destes esforços para aproximar a vida intelectual brasileira à das nações “cultas” 
agravou o sentimento de frustração dos modernistas diante do que se costuma designar como 
“atraso” brasileiro. Essa impressão ecoa no trecho de uma carta para Dina Dreyfus3, incluída em O 
Turista Aprendiz, em que Mário de Andrade se refere aos estrangeiros que encontrou no caminho 
para a cidade peruana de Iquitos durantesua viagem à Amazônia em 1927: 
Se sente que eles têm uma tradição multimilenar por detrás que os leva a agir “sem dar” diante da irresolução 
moral das meninas e da minha. Os próprios norte-americanos de Iquitos que segurança por terem uma 
“civilização” por detrás. Nós é esta irresolução, esta incapacidade, que uma “capacidade adotada”, uma 
religião que seja, não evita. D’aí uma dor permanente, a infelicidade do acaso pela frente. Dizer então que me 
lembrei de uma amiga judia francesa comunista que me crible de lettres sobre a infelicidade social dela, dos 
operários etc. Me lembrei de escrever pra ela esta carta amazônica, contando esta ‘dor’ sulamericana do 
indivíduo. Sim eles têm a dor teórica, social, mas ninguém não imagina o que é esta dor miúda, de incapacidade 
realizadora do ser moral [...] 
Os vossos operários europeus? Eles não sofrem não, eles teorizam sobre o sofrimento. A dor, a imensa e 
sagrada dor do irreconciliável humano, sempre imaginei que ela viajara na primeira vela de Colombo e vive 
aqui. Essa dor que não é de ser operário, de ser intelectual, que independe de classes e de políticas, de 
aventureiros Hitlers e de covardes Chamberlains, a dor dos irreconciliáveis vive aqui. (ANDRADE, 2002: 149) 
 
 
3
 Referida por Mário de Andrade como a “amiga judia francesa comunista”. 
 
 
O pessimismo provocado pela impossibilidade da inclusão imediata do país no conjunto das nações 
desenvolvidas conduziria à redefinição das concepções que informavam o movimento. Na cronologia 
proposta por Moraes, esta mudança marca a passagem do primeiro para o segundo tempo do 
Modernismo. 
A partir de 1924, a concepção imediatista do processo modernizador – que se resumia à implantação 
progressiva de uma ordem moderna universal em todos os países de forma indistinta (apenas mais 
lenta ou acelerada em cada caso) – será substituída por um conceito igualmente universalista, porém 
mais complexo e estruturado. 
Compreende-se, então, que inserção do país no “concerto internacional” exige a construção de uma 
entidade nacional nos moldes das demais nações que integram o conjunto. Na relação entre a parte 
(Brasil) e o todo (“concerto internacional”), a entidade nacional deve ser constituída pela conjugação 
das qualidades próprias que singularizam o país diante dos demais. Portanto, conforme as regras do 
jogo decorrentes do “concerto internacional das nações”, a construção da entidade nacional 
pressupõe a estabilização de uma singularidade nacional e uma unidade nacional (MORAES, 1983). 
Com base neste princípio, Mário de Andrade dedica sua obra como escritor, crítico e pesquisador a 
reunir elementos que comprovem a existência de uma entidade nacional dotada de singularidade e 
unidade intrínsecas. No entanto, para alcançar este propósito, teria que enfrentar a questão de como 
propor uma entidade singular e unitária a partir da desconcertante heterogeneidade cultural brasileira. 
A solução para este impasse apareceria pela primeira vez na composição de Macunaíma, como 
desdobramento criativo do antiregionalismo defendido tanto como postura estética quanto política 
pelo autor. Inspirada na pesquisa etnográfica de Theodor Koch-Grünberg4, essa narrativa de 
assumido caráter programático recorre a uma profusão de referências mais ou menos explícitas a 
episódios históricos, circunstâncias sociais, aspectos culturais e elementos da fauna e da flora de 
diversas partes do país para misturá-las e homogeneizá-las ostensivamente. Em um prefácio inédito 
para Macunaíma, Mário de Andrade esclarece: “Um dos meus interesses foi desrespeitar 
lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a 
criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade 
homogênea um conceito étnico nacional e geográfico” (ANDRADE, 2008: 220). 
Por meio deste procedimento de “desgeografização”, se constitui uma nacionalidade coerente acima 
das peculiaridades locais que viabiliza a entidade nacional. Portanto, a heteogeneidade antes 
percebida como obstáculo é neutralizada e convertida em fundamento da nacionalidade, entendida 
como realidade mais profunda diante da qual a diversidade constituiria apenas um aspecto superficial 
 
4
 Vom Roroima zum Orinoco – Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuná Indianern, publicado na Alemanha em 
1924. 
 
 
(MORAES, 1983: 73). Com base na análise de Moraes, podemos dizer que a consequência mais 
importante desta concepção da unidade como propriedade intrínseca da nacionalidade reside na sua 
capacidade neutralizar até mesmo as evidentes descontinuidades entre elementos culturais arcaicos e 
modernos, a ponto de anular os conflitos decorrentes de sua coexistência no presente histórico. 
Contrariamente ao que ocorre com outros modernismos, no caso brasileiro a modernização não 
implicaria a negação do passado, mas antes sua integração segundo uma dinâmica concebida como 
evolutiva e fundada na continuidade com relação à tradição. Este aspecto sugere a existência de um 
compromisso conservador por parte do movimento com a preservação da ordem estabelecida 
(MORAES, 1983: 28; NAVES, 1998: 45). 
 
3. Unidade racial e nacionalismo musical 
Poucos textos assumem com tanta clareza o caráter dogmático do projeto modernista quanto o 
Ensaio sobre a Música Brasileira (1928). Nele Mário de Andrade procura identificar os elementos 
característicos da musicalidade brasileira e a partir disso estabelecer os critérios que considera 
imprescindíveis para a construção de uma arte moderna de caráter nacional, capaz de representar o 
Brasil em meio às ao “concerto internacional”. 
José Miguel Wisnik (2004) propõe uma aproximação muito oportuna entre as teses de Mário de 
Andrade sobre a construção da nacionalidade e as convicções de Platão sobre a constituição da 
República. Uma comparação que soa inusitada e – talvez por isso mesmo – coloca em evidência o 
caráter cívico-pedagógico das posições assumidas por ambos. Mário de Andrade emite seu parecer 
sobre os elementos e as manifestações culturais existentes em sua época: expurga o que considera 
nocivo e prescreve o que lhe parece compatível com seu projeto de nação. Sua argumentação no 
Ensaio sobre a Música Brasileira condena expressamente toda música que, composta por autor 
brasileiro, utilize linguagem e motivos estrangeiros: 
 
Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é antinacional. E socialmente o autor dela deixa 
de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra seja, devemos repudiá-la, que nem faz a Rússia com 
Strawinsky e Kandinsky. [...] 
Ora numa fase primitivista, o indivíduo que não siga o ritmo dela é pedregulho na botina. Si a gente principia 
matutando sobre o valor intrínseco do pedregulho e o conceito filosófico de justiça, a pedra fica no sapato e a 
gente manqueja. "A pedra tem de ser jogada fora". (ANDRADE, 1972: 4) 
 
Além das obras eruditas consideradas antinacionais, a cultura popular urbana emergente – que por 
insubordinação à ordem civilizatória não poderia ser incorporada ao projeto nacional – também seria 
alvo de censura e interdição. Wisnik (2004: 133) argumenta que, dado o caráter centralizador e 
 
 
paternalista do nacionalismo musical, o elemento popular só poderia ser admitido em sua vertente 
mais tradicional e estável, passível de documentação e classificação: o folclore. 
Para Mário de Andrade, a música mais plenamente brasileira seria aquela que se utiliza de elementos 
e motivos folclóricos, entendidos como fonte da nacionalidade pura, e os transforma em música 
artística, ou seja, os reestrutura na linguagem erudita para convertê-los em música “civilizada”. 
A manutenção desta divisão hierárquica entre a produção musical folclórica (mais rudimentar)e a 
erudita (mais elaborada) evidencia o compromisso da doutrina modernista com a preservação da 
ordem estabelecida (NAVES, 1998: 45) e torna claros os limites da inovação preconizada pelo 
movimento. 
Moraes (1983) esclarece que a proposta de construção da nacionalidade pelo aproveitamento do 
elemento folclórico baseia-se em pressupostos das teorias evolucionistas do século XIX. Desta 
perspectiva, o folclore seria um elemento constitutivo das culturas humanas primitivas, uma 
sobrevivência do passado em meio ao mundo moderno e “civilizado”. Na hierarquia dos estágios 
progressivos de “evolução cultural”, a civilização resultaria do progresso acumulativo e do 
aperfeiçoamento da cultura “primitiva” ancestral. “Por mais distintos que sejam os documentos 
regionais, eles manifestam aquele imperativo étnico pelo qual são facilmente reconhecidos por nós. 
Isso me comove bem. Além de possuírem pois a originalidade que os diferença dos estranhos, 
possuem a totalidade racial e são todos patrícios” (ANDRADE, 1972: 8). 
Como esclarece Moraes (1983), Mário de Andrade utiliza os conceitos de raça e nação como termos 
de um binômio: enquanto a raça se refere a uma dimensão cultural constitutiva da vida nacional, o 
conceito de nação remete à necessidade de construção de uma entidade nacional para viabilizar o 
ingresso do país no contexto internacional. Portanto, fundada no modelo das nações modernas e 
“civilizadas”, a distinção entre raça e nação sistematiza uma relação necessária de 
complementaridade entre a dimensão interna (local) e outra externa (universal) da vida nacional. 
 
4. Viagens de inspiração etnográfica 
Na década de 1920, momento em que a Antropologia ainda não havia se institucionalizado como 
disciplina no Brasil, os modernistas já levantavam questões de interesse antropológico a partir de 
observações de natureza etnográfica, flagrantes na utilização de categorias como primitivismo, 
exotismo, civilização, cultura, caráter nacional e mesmo pela reinterpretação de conceitos formulados 
no âmbito da disciplina (GEIGER, 1999; RIBEIRO, 2005). 
As viagens pelo Brasil realizadas por modernistas da primeira fase ilustram este fato de maneira 
exemplar. Neste particular, a comparação entre as experiências de Mário de Andrade e Oswald de 
 
 
Andrade, ambos formuladores de orientações fundamentais para o movimento (GEIGER, 1999; 
MORAES, 1983; RIBEIRO, 2005), pode nos ajudar a esclarecer alguns pontos importantes. 
Enquanto Mário procurava em território nacional – através do contato com modos de existência 
considerados à época exteriores à ideia de nação – redimensionar a concepção vigente de identidade 
brasileira, Oswald alimentava sua própria noção de nacionalidade, análoga ao que propunham as 
vanguardas artísticas europeias, em contato tanto com realidades culturais de outros países quanto 
com a brasileira5. 
Trata-se, em ambos os casos, de uma tentativa de compreender a si mesmo pela interação com o 
outro – experiência própria da antropologia – a partir de dois percursos distintos: o contato de Mário 
com a alteridade interna, que o conduz à descoberta da brasilidade no folclore, considerado por ele 
como a expressão mais “pura” e “autêntica” da nacionalidade, e o contato de Oswald com a 
alteridade externa, que o leva a identificar a nacionalidade com o “primitivo”, percebido como sua 
expressão mais “exótica” e “pitoresca”. 
No início de 1924, o poeta suíço Blaise Cendrars6 foi recebido por Oswald de Andrade, Tarsila do 
Amaral e D. Olívia Guedes Penteado que o levaram ao Rio de Janeiro7 para conhecer o Carnaval. 
Durante a viagem, apenas quinze dias após o Carnaval, o Manifesto Poesia Pau-Brasil foi publicado 
por Oswald de Andrade nas páginas do Correio da Manhã. 
Mário de Andrade se uniria ao grupo na segunda parte do itinerário – que ficou conhecida como 
“viagem de redescoberta do Brasil pelos modernistas, em especial por Tarsila e Oswald de Andrade” 
(RIBEIRO, 2005: 77), quando percorreram juntos as cidades históricas mineiras durante a Semana 
Santa. Como já havia visitado Ouro Preto e Mariana em 1919 e desde então nutria profundo interesse 
pela arquitetura colonial, pela arte sacra e o barroco de Aleijadinho, Mário se encarregaria de guiar o 
grupo. 
Essas duas experiências foram decisivas para o processo de maturação das orientações assumidas 
pelo movimento a partir de então (LIRA, 2005: 146). Na periodização proposta por Moraes, a 
publicação do Manifesto Poesia Pau-Brasil marcaria a transição da crise aguda causada pela 
insuficiência inicial do movimento para sua segunda fase, caracterizada pela preocupação com a 
dimensão identitária do movimento e com a determinação da entidade nacional (MORAES, 1983: 
37). “As viagens compreendidas no ano de 1924 dão o start para a busca de um Brasil desconhecido, 
 
5
 No caso de Oswald, um contato mediado, como assinala Ribeiro (2005: 123), pela percepção das coisas de seu próprio 
país de uma perspectiva de estrangeiro. 
6
 As impressões desta viagem ficaram registradas na coletânea de poemas Feuilles de Route / Le Formose, de Blaise 
Cendrars, publicada na França em 1924 (com capa e ilustrações de Tarsila do Amaral), e no livro de poemas Pau-Brasil, 
de Oswald de Andrade, editado na França em 1925. 
7
 Para ser mais exato, embarcaram para o Rio de Janeiro nesta ocasião: D. Olívia, Tarsila, Oswald e seu filho, Nonê, Paulo 
Prado, René Thiollier, Gofredo da Silva Telles e Blaise Cendrars. 
 
 
na verdade podemos dizer “inexistente”, cujas dimensões e fronteiras transparecem em obras como 
Macunaíma e Manifesto Antropófago, ambos publicados pela primeira vez em 1928. País inexistente 
porque idealizado” (RIBEIRO, 2005: 48). 
A proposta oswaldiana modificaria os termos da discussão sobre como se deve operar a 
modernização da arte brasileira, questão levantada na Semana de Arte Moderna. As diferentes 
abordagens e soluções criadas pelos demais modernistas a partir de então ocorreriam, de certo modo, 
como desdobramentos ou variações da estética pau-brasil. Seu impacto pode ser medido pela ampla 
repercussão que teria nas declarações e nas obras dos demais participantes do movimento a partir de 
1924 (MORAES, 1983: 22). 
A resposta de Mário de Andrade emergirá com clareza em Macunaíma, escrito em dezembro de 
1926, porém publicado em sua forma definitiva apenas em 1928. A orientação assumida pelo autor a 
partir do Manifesto Poesia Pau-Brasil o levaria a esboçar planos para uma viagem pelo Nordeste, 
como demonstra a sua correspondência com Câmara Cascudo entre 1924 e 1928 (RIBEIRO, 2005). 
Com o constante adiamento do projeto inicial, surgiria a oportunidade de viajar à Amazônia, a 
convite de D. Olívia Guedes Penteado, o que Mário aceita com entusiasmo tanto por seu interesse em 
reescrever a primeira versão de Macunaíma quanto pelo anseio de vivenciar novas experiências de 
Brasil. No entanto, a companhia de D. Olívia com sua sobrinha Margarida Guedes Nogueira e Dulce 
do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral, tornaria a viagem diferente do esperado por Mário. As 
frequentes e enfadonhas cerimônias de recepção e visitas oficiais promovidas pelas autoridades locais 
de cada cidade visitada em homenagem a D. Olívia – milionária da oligarquia cafeeira paulista e 
mecenas dos modernistas – converteriam Mário de Andrade seu acompanhante e porta-voz da ilustre 
dama (LIRA, 2005: 146; LOPEZ, 2005: 138). 
Nas anotações feitas durante de viagem, Mário expressou sua decepção com as paisagens urbanas do 
Norte, cujo caráter civilizatório caricatural pareceu-lhe sintomático de um progresso inconstante que 
lençara milhares de caboclos à miséria e à servidão. A partir de Manaus, os roteiros oficiais passam a 
ser preteridos por passeios em bairros populares e trechos de floresta. Isto possibilitava a observação 
e o registro mais livre da geografia físicada região, das populações locais, de seus costumes e sua 
cultura material. As impressões desta viagem ficaram gravadas mais na forma de imagens – 500 
fotografias ao todo – do que em textos descritivos. 
A viagem ao Nordeste, idealizada desde 1924 e já planejada em 1926, seria realizada apenas no final 
de 1928. Organizada de acordo com o calendário tradicional de festas da região, percorreu os estados 
de Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco entre o ciclo natalino e o carnaval (de 
27/11/1928 a 24/02/1929), o que possibilitou a observação de uma enorme variedade de 
manifestações populares em um intervalo de pouco mais de três meses. 
 
 
A análise dos registros feitos durante a viagem indica que a maior parte do tempo foi dedicada à coleta de 
material (LIRA, 2005: 151; RIBEIRO, 2005: 111). Desta vez isento de restrições protocolares e 
compromissos inconvenientes como os que haviam marcado sua ida à Amazônia, Mário de Andrade 
realiza uma pesquisa de campo em que tanto o itinerário quanto as atividades diárias e decisões 
ocasionais dependiam unicamente do seu livre arbítrio. A expedição se revestia de caráter 
profissional devido também ao financiamento parcial concedido pelo Diário Nacional, jornal 
paulistano em cujas páginas foram publicados, na coluna intitulada “O Turista Aprendiz”, os relatos 
diários desta experiência. 
 
Das setenta crônicas publicadas pelo jornal desde a partida de São Paulo, mais de vinte tratam diretamente de 
cultura popular. Pontuam o itinerário do começo ao fim e frequentemente perpassam os outros temas da escrita, 
como as condições de vida dos trabalhadores rurais, a economia local, as paisagens e misérias dos sertões, a 
migração, a cidade, os bairros populares, a arte religiosa, os casos e anedotas, o caju, os anfitriões, em tudo o 
escritor é permeado pela personagem popular, sua tradição oral, o ethos do cantador. (LIRA, 2005: 151) 
 
Diferente do ocorrido na viagem ao Norte, em que esteve cercado por autoridades locais às quais se 
mostraria bastante crítico em suas notas pessoais, no Nordeste Mário de Andrade fora recebido como 
o autor de Macunaíma e guiado por jovens intelectuais da região – alguns deles eram seus 
correspondentes de longa data – que demonstravam simpatia pelo Modernismo e por suas fontes de 
inspiração na cultura popular. O roteiro da pesquisa se desenharia a partir tanto das sugestões de seus 
guias e anfitriões e quanto das orientações fornecidas por seus informantes: sacerdotes e adeptos de 
crenças religiosas populares, instrumentistas, cantadores, cordelistas, mestres populares e 
protagonistas das manifestações pesquisadas. 
O objetivo da expedição estava associado à pesquisa sobre as danças dramáticas, publicada anos 
depois em dois volumes e inscrita no projeto mais amplo de nacionalização da produção musical 
brasileira, exposto no Ensaio sobre a Música Brasileira.8 
A natureza diferenciada desta experiência foi apontada pelo próprio Mário de Andrade que se referiu 
a ela como “viagem etnográfica”. De fato, apesar da pouca familiaridade do pesquisador com as 
teorias antropológicas, o propósito etnográfico orientaria suas escolhas ao longo da viagem pelas 
cidades nordestinas. 
 
5. A ambivalência da doutrina modernista 
O quadro de referências utilizado pelo pesquisador no tratamento do material recolhido em campo 
seria composto basicamente por autores de orientação evolucionista. No prefácio ao primeiro volume 
 
8
 Publicado pouco antes, no intervalo entre o passeio pela Amazônia e a expedição ao Nordeste. 
 
 
de Danças Dramáticas do Brasil, ao tratar o cortejo de rua como estrutura cênica em manifestações 
populares brasileiras, ele recorre a incidências de cortejos entre os gregos e menciona O Ramo de 
Ouro, de James Frazer, como fonte de referência para casos exemplares a esse respeito. 
Como observa Moraes (1983: 87), a tese subjacente ao texto de Mário de Andrade postula a origem 
do fenômeno folclórico no pensamento religioso “primitivo”, o que permite inscrever as culturas 
populares no mundo “civilizado” como reminiscências de um passado remoto em que aquelas formas 
de pensamento corresponderiam à perspectiva dos atores acerca da realidade objetiva. 
Frazer elaborou um modelo interpretativo que relaciona magia, religião e ciência como formas de 
pensamento caracterizadas por diferentes níveis de complexidade. O esforço humano no sentido de 
controlar a natureza teria originado as formas mágicas de interação com a natureza. A decadência da 
magia, devido à sua insuficiência para explicar boa parte dos fenômenos, teria levado os homens a 
atribuir a imprevisibilidade da natureza à existência de forças ocultas que podiam ser apaziguadas ou 
persuadidas através de preces e oferendas ou sacrifícios rituais. 
A ciência se afirmaria sobre essas formas menos evoluídas de conhecimento por ser mais racional e 
impessoal – à medida que se baseava no método experimental – e, por conseguinte, mais universal. 
Por trazerem consigo já algumas formas de pensamento presentes na ciência moderna, como a noção 
de causa e efeito, a magia e a religião seriam estágios intermediários no caminho evolutivo em 
direção ao conhecimento científico. 
Desta perspectiva, o folclore seria encarado como manifestação do pensamento “primitivo”, matriz 
sobre o qual teria se estruturado a modernidade – o que explica o valor intrínseco das manifestações 
populares enquanto objetos de interesse etnográfico, porque percebidas como substrato evolutivo do 
mundo “civilizado”. 
Outro teórico evolucionista que informa a perspectiva etnográfica de Mário de Andrade, conforme 
Moraes (1983: 88), era Edward Tylor, cuja abordagem para o fenômeno da diversidade humana pode 
ser reconhecida na doutrina modernista de Mário de Andrade. 
A obra de Tylor foi produzida sob o impacto de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, no 
contexto da controvérsia entre monogenistas e poligenistas. Tylor acreditava na existência de uma 
unidade psíquica fundamental entre os seres humanos e pensava a diversidade cultural como 
consequência da desigualdade entre os estágios do processo evolutivo. As diferenças observáveis 
seriam manifestações superficiais que obedecem às regularidades de uma natureza humana comum, 
segundo a sua classificação no quadro das condições de vida: selvagem, bárbaro e civilizado. Estes 
invariantes poderiam ser encontrados pelo estudo das sociedades que estivessem no mesmo grau de 
civilização. 
 
 
Portanto, a tarefa central da antropologia seria estabelecer uma “escala de civilização” que 
possibilitasse a compreensão da diversidade cultural. Com isso, Tylor estabelece uma linha evolutiva 
que situa as nações europeias em uma extremidade e as sociedades tribais na outra – o restante da 
humanidade estaria disposto em algum ponto entres esses dois limites – e entende as instituições 
humanas como organizadas em séries equivalentes distribuídas por todo o planeta, independente de 
raça ou língua, consideradas manifestações superficiais. 
Além disso, foi Tylor o criador do primeiro conceito antropológico de cultura, ao postular sua 
aquisição e transmissão pelo aprendizado e não pela herança genética. No campo científico, sua tese 
contrária à origem inata dos fenômenos culturais abriria caminho para a superação do determinismo 
de tipo biológico das teorias racistas – embora acabasse por incorrer em outro de tipo de 
determinismo, de natureza cultural. 
Apesar de pouco ortodoxo, o aproveitamento de teorias de orientação evolucionista pela doutrina 
modernista teve consequências importantes no projeto modernista de construção da identidade 
nacional. Como vimos, Mário de Andrade encontraria na cultura popular o fundamento da 
singularidade brasileira diante de outras nações e na noção de “raça brasileira” a unidade subjacente 
à enorme diversidadecultural do país. O preenchimento destas categorias possibilitava a 
estabilização da entidade nacional e, com isso, a inserção do país no conjunto das nações civilizadas. 
No entanto, como aponta Moraes (1983), esta inserção se opera segundo uma concepção etnocêntrica 
decorrente dos referenciais teóricos adotados. A descoberta da singularidade nacional nas 
manifestações folclóricas, entendidas como sobrevivência de um passado menos evoluído, estabelece 
uma equivalência entre a nacionalidade e a natureza primitiva. O conceito de “primitivo”, formulado 
de uma perspectiva etnocêntrica “civilizada”, se refere a uma incompletude, um estado de 
imperfeição que se encaminha para o desenvolvimento. Trata-se, portanto, de um sofisticado 
dispositivo político utilizado para neutralizar e a domesticar a alteridade. 
A constituição do ser nacional com base nestes pressupostos evolucionistas produz uma 
nacionalidade dependente da ordem civilizatória que confere sentido à sua existência enquanto parte 
de um conjunto maior. No plano das representações, esta subordinação aos princípios ditados pelo 
“concerto internacional” se traduz em uma identidade nacional precária e desprovida de autonomia 
ontológica – bem adequada à condição de país capitalista subdesenvolvido. 
Contudo, é interessante notar que Mário de Andrade parece não perceber claramente este fato. Neste 
trecho, encontrado em uma carta para Manoel Bandeira escrita em Natal a 15/11/1928, fica clara a 
sua posição: “Já afirmei que não sou folclorista. O folclore hoje é uma ciência, dizem... Me interesso 
pela ciência porém não tenho capacidade para ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação 
pra músico” (apud RIBEIRO, 2005: 110, nota 109). 
 
 
Esta afirmação parece surpreendente se considerada à luz das críticas veementes registradas em seus 
cadernos de campo contra as condições subumanas em que vivem as populações pobres do Norte e 
Nordeste, a insensatez civilizatória de cidades construídas em plena floresta amazônica e cuja 
extravagância europeizada ocasionaria a devastação da natureza e a miséria das populações locais, 
contra as concepções colonialistas, ilustradas e românticas de civilização brasileira vigentes na 
Primeira República e a sua indiferença ante aos sofrimentos reais dos indivíduos e contra o 
colecionismo da antropologia de gabinete e o seu distanciamento em relação à realidade pesquisada. 
Como demonstra Lira, apesar de sua pouca familiaridade com a antropologia Mário de Andrade 
voltaria para São Paulo profundamente impactado por sua experiência etnográfica no Nordeste 
enquanto Gilberto Freyre – que o havia guiado no período em que esteve no Recife – retorna de sua 
temporada na Universidade de Colúmbia “chocado com as transformações de sua cidade e 
inegavelmente comprometido com uma herança patriarcal” (LIRA, 2005: 168), permanecendo “cada 
vez mais bem instalado no seu porto seguro” (Idem: 169). 
 
6. Modernismo como política cultural 
As negociações entre o governo federal e o estado de São Paulo após os conflitos de 32 deram aos 
membros do Partido Democrático (PD) o protagonismo na política local. No ano de 1935, Fábio da 
Silva Prado foi nomeado Prefeito da cidade de São Paulo por Armando Salles de Oliveira, o 
interventor que assumiu o governo do estado a partir das negociações entre o governo federal e o 
movimento constitucionalista. Seu chefe de gabinete, Paulo Duarte, foi o autor do anteprojeto para a 
criação do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal, em cuja revisão colaboraram Fernando 
de Azevedo e Mário de Andrade, entre outros. 
O DC foi criado em maio de 1935 e sua direção foi entregue a Mário de Andrade (filiado ao PD 
desde 1928) por indicação de Paulo Duarte, e seus quadros foram preenchidos por intelectuais 
ligados a ambos. Era constituído por cinco divisões: Expansão Cultural, Bibliotecas, Educação e 
Recreio, Documentação Histórica e Social, Turismo e Divertimentos Públicos. Mário de Andrade 
atuou como diretor do DC de 1935 a 1938, acumulando ainda a direção da Divisão de Expansão 
Cultural. Entre as inúmeras ações do departamento, destacam-se a criação de Parques Infantis, onde 
se realizavam atividades educativas sobre folclore brasileiro, a criação da Biblioteca e da Discoteca 
Pública, a promoção de concertos gratuitos, a fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore9, que 
fomentava e divulgava pesquisas sobre folclore e estudos antropológicos e a realização da Missão de 
Pesquisas Folclóricas. 
 
9
 A Sociedade de Etnografia e Folclore constitui um tema particular e mereceria uma atenção privilegiada de nossa parte 
– a qual, no entanto, extrapolaria o limitado espaço concedido para este artigo. 
 
 
A política de “vulgarização cultural” implementada pelo DC pretendia reverter os efeitos 
desagregadores da modernização capitalista e construir uma modernidade brasileira autêntica, cuja 
essência estaria no interior do país, para resgatar e preservar uma herança cultural ameaçada por 
elementos estranhos à realidade nacional, trazidos por imigrantes ou disseminados pela indústria 
cultural. Diante da influência crescente do mercado fonográfico com seus produtos de qualidade 
inferior e fácil assimilação, Mário de Andrade descreveu a música popular urbana como “deletéria”, 
impura e desorganizadora da matriz cultural brasileira (MELLO, 2011). 
Esta posição, que parece expressar mais uma “percepção da sociedade em suas tensões sísmicas não 
aparentes do que um feliz arranjo de classes e raças que se acomodariam harmonicamente para sanear 
a falta de “caráter” nacional” (WISNIK, 2004: 137), evidencia a proximidade existente entre a 
orientação do DC e as teses defendidas no Ensaio sobre a Música Brasileira. De fato, uma das 
heranças mais significativas do breve período em que Mário de Andrade esteve à frente do DC (1935 
a 1938) resultaria do acervo de gravações e imagens da Missão de Pesquisas Folclóricas, pela qual 
estariam assegurados os subsídios para a realização do projeto do nacionalismo musical. 
Realizada por folcloristas treinados nos cursos da Sociedade de Etnografia e Folclore, esta expedição 
foi organizada e dirigida por Mário a partir de São Paulo e percorreu cidades do Norte e Nordeste de 
fevereiro a julho de 1938. Seu roteiro era baseado nas viagens feitas por ele há cerca de dez anos. A 
importância de sua consecução para os objetivos de Mário de Andrade foi expressa por ele no bilhete 
enviado a Luiz da Câmara Cascudo em 22/01/1938: “Aí vai o Luiz Saia com a Missão. Me ajude que 
isto é coisa de vida ou de morte pra mim.” (TONI: 25). 
Nos preparativos para a Missão havia uma constante preocupação de caráter metodológico com a 
necessidade de proceder a uma “revalidação científica do folclore”: 
 
Quase toda a nossa documentação folclórica recolhida até agora, quando não é em todo inaceitável, é 
deficitária, desprovida de elementos acessórios que a valorizem, é não selecionada. Um documento folclórico 
colhido da memória de um advogado tem o mesmo valor de outro colhido da boca de um vaqueiro; não se faz 
diferença entre o colaborador urbano e o rural, o alfabetizado e analfabeto, nem data, nem idade, nem sexo, 
nem nada; o folclore é o paraíso da ‘sensação democrática’: tudo é igual” (SOUZA, 1983: 8) 
 
Este detalhamento nas coletas sugere uma influência metodológica das teorias evolucionistas sobre o 
pensamento de Mário de Andrade. Como sabemos, as primeiras obras de Antropologia apoiavam-se 
no imperialismo europeu e procuravam fornecer uma justificação científica a sua suposta 
necessidade. As obras anteriores a Malinowsky nutriram-se, sobretudo, de descrições e relatos de 
exploradores, missionários, colonos e administradores com base em questionários enviados pelos 
pesquisadores das metrópoles aos colaboradores nas colônias. Esta tentativa de homogeneizare sistematizar os procedimentos de recolha está na origem da Ficha de Campanha a ser 
preenchida durante a Missão de Pesquisas Folclóricas. 
A coerência entre as diretrizes da Missão e o projeto do nacionalismo musical, que se baseia na 
hierarquização entre música erudita e popular, parece ainda mais evidente na recomendação de Mário 
de Andrade para o caso de membros do Congresso de Língua Nacional Cantada solicitarem cópia de 
material recolhido durante a expedição: “dar a cópia só e exclusivamente no caso da melodia não ter 
importância, isto é, não tiver caracteres técnico-musicais excepcionais ou curiosos” (TONI, s.d: 27). 
Apesar do prestígio alcançado pelo DC e do êxito de suas ações, ou talvez por causa disso mesmo, 
Mário de Andrade seria substituído na direção do Departamento em maio de 1938, permanecendo à 
frente apenas da Divisão de Expansão Cultural até sua saída definitiva em julho do mesmo ano. Com 
a reordenação política decorrente do golpe que instituiu o Estado Novo, o acordo firmado entre os 
paulistas e o governo federal foi desconsiderado e a base de apoio do Departamento, composta por 
membros do PD na administração municipal, dissolvida. O que se explica pelo fato de o projeto 
político que deu origem ao DC envolver a formação de um aparelho cultural que servisse de exemplo 
ás demais elites regionais na luta contra os efeitos da modernização capitalista e reestabelecesse a 
hegemonia política do estado São Paulo no plano nacional (MELLO, 2011). 
Devido à sua colaboração com o Ministério da Educação e Saúde – por exemplo, na elaboração do 
anteprojeto do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) em 1936 – Mário de 
Andrade foi convidado por Gustavo Capanema para atuar no Ministério, considerado o principal 
adversário político do DC, mas hesitou em aceitar o convite até a sua saída definitiva dois meses 
depois. O anteprojeto foi substituído pelo texto de Rodrigo Melo Franco de Andrade, transformado 
no decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937 que criava o Sphan e limitava a concepção de 
patrimônio proposta por Mário em benefício de um princípio jurídico mais adequado. 
A necessidade de se adaptar às circunstâncias impostas pela Ditadura Vargas e, sobretudo, a extinção 
do DC parecem ter deixado marcas profundas na personalidade de Mário de Andrade. Estas 
experiências o fariam rever suas afinidades políticas e estéticas, o que resultaria tanto na devastadora 
autocrítica que marca a fase final de sua obra quanto nos ataques contundentes que desferiu contra o 
Estado Novo e que provocariam o seu afastamento do Ministério. 
 
7. Considerações finais 
Não apenas por sua importância biográfica, mas pela abrangência de sua trajetória intelectual Mário 
de Andrade nos ajuda a avaliar as traduções entre teoria e prática realizadas no âmbito do projeto 
modernista de construção da identidade nacional. Seu compromisso e perspicácia o fariam por 
diversas vezes questionar suas próprias convicções, como vimos nas viagens ao Norte e Nordeste. 
 
 
Na conferência intitulada O Movimento Modernista, proferida no Itamarati em 1942, poucos anos 
antes de sua morte, Mário realiza uma revisão crítica do Modernismo e de alguns de seus 
desdobramentos. Ao avaliar a contribuição dos modernistas de 22, conclui tratar-se de uma atitude 
claramente aristocrática, prepotente e antipopular, e que, inclusive se considerada quanto aos seus 
objetivos de atualização da inteligência artística, procedeu de maneira contraditória e muitas vezes 
precária. 
Mesmo ao tratar de sua própria atuação, Mário de Andrade chega a conclusões surpreendentes como 
as seguintes: 
 
Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a problemas do 
meu tempo e da minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muita coisa! E no entanto me sobra 
agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivam duma ilusão vasta. E eu que 
sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida á 
convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. 
[...] 
Deformei, ninguém não imagina quanto, minha obra – o que não quer dizer que si não fizesse isso, ela fosse 
milhor... Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não 
sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que 
fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza divina. 
 
Como observa Moraes (2012), a interpretação modernista do Brasil é a mais importante na 
nossa história intelectual e, não obstante a sua superação das últimas décadas do século XX, 
precisamos percebê-las com seu potencial e suas contradições se quisermos compreender o 
significado do seu esgotamento e as possibilidades que se nos colocam mais adiante. 
 
 
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