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PRÉ-HISTÓRIA Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat Thomas Heimman Mara Salazar Machado Andréa de Azevedo Eick Astomiro Romais Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G633p Gomes, Juliane Maria Puhl. Pré-história / Juliane Maria Puhl Gomes. – Canoas: Ed. ULBRA, 2013. 120p. 1. Pré-história. 2. Período paleolítico. 3. Período neolítico. I. Título. CDU: 903 Editoração: Roseli Menzen Dados técnicos do livro Fontes: Palatino Linotype, Franklin Gothic Demi Cond Papel: off set 75g (miolo) e supremo 240g (capa) Medidas: 15x22cm ISBN 978-85-7528-509-1 APRESENTAÇÃO Este material tem como objetivo apresentar alguns conceitos e temáticas mais relevantes ao estudo do período histórico denominado “Pré-História”. No intuito de melhor organizar os conteúdos expostos, apresentaremos as temáticas em dez capítulos, sendo o primeiro mais conceitual, no qual questionamos e analisamos, inclusive, o próprio termo “Pré-História”. Os demais capítulos apresentam os períodos referentes ao Paleolítico, o processo de produção de alimentos e o Neolítico. No último capítulo (10) abordaremos as teorias de entrada dos grupos humanos na América, bem como apresentaremos um panorama dos achados arqueológicos que registram este grande processo migratório. SOBRE O AUTOR Juliane Maria Puhl Gomes Juliane Maria Puhl Gomes é historiadora e arqueóloga com formação em História e mestrado na mesma área pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Atua como professora na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) nos cursos de História nas modalidades de ensino a distância (Canoas) e presencial (Torres). SUMÁRIO 1 CONCEITOS E PERIODIZAÇÃO ...................................................................................11 Apresentação .........................................................................................................11 1.1 A Escrita como demarcador da História ...............................................................11 1.2 Periodização e Conceitos ...................................................................................16 1.3 Sistemas de datação .........................................................................................19 Atividades .............................................................................................................19 2 PALEOLÍTICO INFERIOR............................................................................................23 Apresentação .........................................................................................................23 2.1 Homo habilis .....................................................................................................24 2.2 Homo erectus ....................................................................................................25 Atividades .............................................................................................................30 3 PALEOLÍTICO MÉDIO: HOMO SAPIENS NEANDERTHALENSIS E HOMO SAPIENS ............35 Apresentação .........................................................................................................35 3.1 Os Neanderthalenses e sua cultura .....................................................................36 3.2 O Homo sapiens arcaico e sua cultura .................................................................38 Atividades .............................................................................................................40 4 PALEOLÍTICO MÉDIO: COTIDIANO E CULTURA MATERIAL ............................................43 Apresentação .........................................................................................................43 4.1 Tipo de vida e cotidiano ......................................................................................43 4.2 Cultura Imaterial: sepultamentos e religiosidade ................................................45 4.3 Extinção............................................................................................................48 Atividades .............................................................................................................49 5 PALEOLÍTICO SUPERIOR ..........................................................................................53 Apresentação .........................................................................................................53 5.1 Ambiente e tecnologia .......................................................................................55 5.2 Sociedade e religiosidade ..................................................................................61 Atividades .............................................................................................................63 6 A ARTE NO PALEOLÍTICO SUPERIOR E SUAS ORIGENS ................................................67 Apresentação .........................................................................................................67 6.1 Aurinhacense ....................................................................................................69 6.2 Gravettense ......................................................................................................70 6.3 Solutrense ........................................................................................................71 6.4 Madalenense ...................................................................................................71 6.5 Epigravettense ..................................................................................................72 6.6 A Arte no Mesolítico ..........................................................................................72 Atividades .............................................................................................................72 7 PRODUÇÃO DE ALIMENTOS AO NEOLÍTICO ................................................................75 Apresentação .........................................................................................................75 Atividades .............................................................................................................79 8 PRODUÇÃO DE ALIMENTOS AO NEOLÍTICO: PLANTAS E ANIMAIS .................................83 Apresentação .........................................................................................................83 8.1 A Domesticação de Plantas ................................................................................83 8.2 A Domesticação de Animais ...............................................................................85 Atividades .............................................................................................................87 9 NEOLÍTICO: DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS AO SURGIMENTO DO ESTADO ...................91 Apresentação .........................................................................................................91 9.1 Breve panorama da produção de alimentos .........................................................91 9.2 A transição para a produção de alimentos ..........................................................94 9.3 Características do Neolítico ...............................................................................949.4 O Surgimento das Primeiras Cidades-Estados .....................................................97 Atividades .............................................................................................................99 10 A ENTRADA DO HOMEM NA AMÉRICA .....................................................................103 Apresentação .......................................................................................................103 10.1 A Travessia da Ponte Terrestre (Beríngia) entre a Ásia e a América ...................105 10.2 Quem foram os primeiros habitantes da América? ...........................................106 10.3 Paleoíndios na América Central e na América do Sul ........................................108 Atividades 104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................115 10 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a 1 CONCEITOS E PERIODIZAÇÃO Apresentação Apesar do nome desta disciplina ser Pré-História ela não conta a história prévia ao Homem, pelo contrário, ela estuda o processo cultural de várias espécies humanas do seu surgimento até a consolidação da economia baseada na produção de alimentos e domesticação de animais. Por que então ela não é chamada de História? Como seria a designação correta para este longo período que abrange quase 2 milhões de anos da História da Humanidade? Certamente não é Pedra Lascada e Polida, como ainda vemos em livros didáticos! Este capítulo tem como objetivo apresentar questões conceituais e de periodização da chamada, mesmo que erroneamente, Pré-História da Humanidade. 1.1 A Escrita como demarcador da História Como diz Young Jr. (1988) a escrita é apenas mais uma mídia do pensamento humano dentre tantas outras que exigem processos mentais muito mais complexos. A música foi criada por grupos de Homo sapiens neanderthalensis, como atestam as flautas associadas a alguns de seus acampamentos. Uma espécie que não conseguia falar, mas que manifestava seus pensamentos através de um meio tão expressivo que é a música. Seria o processo de escrita mais complexo? Formular ritos religiosos elaborados que envolvem categorias simbólicas extremamente complexas, como muitos rituais tribais conhecidos através de pesquisas etnológicas, é algo menos difícil do que o processo da escrita? A escrita é, sem dúvida, uma dentre tantas outras fontes para a História. Mas e quando não conseguimos lê-la? A arte rupestre é uma manifestação, não de 12 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a escrita, mas certamente de registro de pensamentos, crenças e até mesmo de cenas da vida cotidiana. Escrever é mais complexo que desenhar? Você sabe ler, o está praticando aqui neste texto, mas me responda com sinceridade: você sabe desenhar? Conseguiria resumir este texto em forma de desenho de maneira clara a ponto de outro colega de aula entender a essência do texto através de seus desenhos? A maioria de nós não conseguiria! Ao refletir sobre estas questões Young Jr. (1988) afirma que qualquer fonte do passado, [...] seja um documento, um fragmento de cerâmica, um instrumento lascado, um padrão de assentamento ou uma música que as pessoas ainda cantam mas que nunca foi escrita é, potencialmente, o dado, o material (matéria-prima) da história. É a matéria-prima da história porque representa pensamento (consciente ou inconsciente) de pessoas que viveram no passado. Reproduzindo esses pensamentos, o historiador faz história. Vamos ilustrar estas afirmações com dois gráficos que representam estas ideias acerca da “divisão de tempo”. O primeiro deles mostra todo o período anterior à escrita e ao Estado (2,5 milhões de anos a 5 mil AP), que na vertente tradicional não é considerado História e sim um período prévio a esta (Pré-História), em relação a invenção da escrita (5 mil AP) e ao nascimento de Jesus Cristo (2 mil AP — um marcador de tempo na visão Ocidental). Gráfico 1 Nascimento de Cristo Estado/Escrita Período anterior à escrita (Pré-História) -2500 -2000 -1500 -100 -500 0 Escala de tempo em anos (multiplicar por mil) O período posterior à invenção da escrita parece quase vazio. O sistema de linguagem binária do comutador (e olhem que grande invenção tecnológica que ele é e o quanto é importante no nosso cotidiano moderno) não consegue ler. 13 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aGráfico 2 Nascimento de Cristo Estado/Escrita Neolítico Paleolítico Superior Paleolítico Médio Paleolítico Inferior -2500 -2000 -1500 -100 -500 0 Escala de tempo em anos (multiplicar por mil) O gráfico 2 representa a mesma ideia porém acrescida de outra divisão (também artificial) que inclui Paleolítico e Neolítico à mesma fórmula anterior. Da mesma forma que no Gráfico 1, não visualizamos a representação temporal posterior à invenção da escrita. O pesquisador Sigfried Jan De Laet (2000, p.1-2) utiliza dois exemplos muito bons para ilustrar este mesmo processo demonstrado nos gráficos. No primeiro deles ele sugere que façamos o exercício de imaginar o período do surgimento do Homo habilis (2,5 milhões AP), da invenção da escrita (5 mil AP), do nascimento de Jesus Cristo (2mil AP) e da conquista da América (1492), em uma faixa de 5km em que cada ano representasse 2mm. O período anterior à escrita teria 4990 metros, enquanto que os considerados históricos teriam apenas 10 metros, dos quais, o início da Era Cristã estaria a apenas 4 metros antes do final da faixa e a conquista da América a apenas 1 metro antes do final da mesma. No segundo exemplo, ele compara os mesmos períodos a 24 horas de um dia. Cada ano corresponderia a 3456 segundos, portanto o Homo habilis teria aparecido no segundo 1, a invenção da escrita e do Estado estariam a menos de 3 minutos da meia- noite e a conquista da América estaria apenas a 17 segundos do dia terminar. Não estamos negando o grande processo tecnológico e cultural da Humanidade após a criação do Estado. Nem mesmo que a velocidade da produção científica e tecnológica nos últimos 100 anos é algo sem valor. Estamos apenas querendo incluir neste processo a história do pensamento humano, e do desenvolvimento cultural e científico anteriores à invenção da escrita, como parte importante, senão fundamental para a compreensão da história atual. 14 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a O termo Pré-História, apesar de ser utilizado em quase todas as línguas, é incorreto, pois é muito restrito e rejeita 99,8% da existência cultural da Humanidade e reduz a História, baseada em fontes escritas, a 0,2% desta existência (DE LAET, 2000). Sigfried De Laet (2000, p.2) continua sua reflexão: Este período “pré-histórico” presenciou o nascimento, a juventude e a adolescência da humanidade. Transporta-nos desde a antropogênese até a invenção da escrita, ao nascimento das primeiras cidades, dos primeiros Estados e à ascensão das sociedade de classes que viria a ser, durante milênios, um traço característico do período da “história propriamente dita”. Este período assistiu ainda à lenta elaboração das primeiras características da civilização humana, sem cujo conhecimento muitos dos traços predominantes das culturas atuais permaneceriam incompreensíveis. O termo Pré-História foi criado no século XIX, frente aos primeiros achados fósseis (1856) do Homem de Neanderthal, em uma tentativa de situar no tempo uma espécie que ainda vivia em meio à natureza e aos animais. O século XIX vivia a sistematização das ciências, e dentre elas estava incluída a História. Toda sistematização requer método e dentro destes havia a análise do que eraou não fontes históricas, sendo que as mais (e muitas vezes únicas) aceitas eram as fontes escritas, os documentos. O estudo deste período ficou a cargo não dos historiadores, já que as fontes não eram escritas, e sim dos chamados pré-historiadores, ou arqueólogos. Os dois grupos não trocavam ideias ou conceitos e assim permaneceram por muito e muito tempo até a Escola dos Annales, quando o conceito de História foi revisto. Para Lucian Fèbvre (apud DE LAET, 2000, p.2) História diz respeito a, “tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende dele, é-lhe útil, indica a sua presença, a sua atividade, os seus gostos e formas de atuar.” Neste ponto voltamos a reflexão de Young Jr. (1988) a respeito das fontes históricas. Um fóssil, um instrumento lítico, os vestígios de um acampamento, um instrumento musical, um corpo sepultado, dentre tantos outros vestígios, pertencem ao homem, indicam a presença humana, ilustram a forma de seu pensamento, portanto registram sua História. Ao argumentar que o Homo habilis é um produtor de cultura material e, portanto um agente histórico, o pesquisador Jean Chavaillon (2000, p.36) faz uma série de afirmações que conduzem a mesma reflexão proposta por Young Jr. e De Laet (2000): • Um instrumento é uma prova inconfundível da presença humana, pelo menos no que diz respeito aos objetos trabalhados. • O que é um instrumento? É um “objeto feito pelo homem, utilizado para desempenhar trabalho manual”. “Feito pelo homem” – distingue claramente o instrumento não trabalhado, 15 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aum seixo ou pedaço de madeira que qualquer humano ou macaco semelhante poderiam usar, do instrumento talhado e realizado com um objetivo específico, que seria raspar, cortar ou partir. O adjetivo “feito pelo homem” confere ao instrumento um valor social, e desempenha um papel cada vez mais exigente na vida humana, de tal modo que, à medida que a tecnologia da inteligência artificial avança, nos perguntamos se esses papéis não estão perto de se inverterem. Seremos ainda capazes de controlar os nossos instrumentos? Em caso afirmativo, seremos sempre capazes de fazê-lo? • Não há como negar que a invenção dos primeiros instrumentos constitui um marco no desenvolvimento físico e psicológico dos hominídeos • As técnicas utilizadas e a função dos objetos fabricados estão intimamente ligadas às atividades desenvolvidas no Paleolítico e aos primeiros indícios de cultura e organização social. • Os instrumentos de pedra constituem provas inequívocas da presença humana, tão convincentes quanto um fragmento de crânio de hominídeo. Encontram-se geralmente em boas condições, uma vez que sobrevivem melhor que os vestígios de esqueletos humanos, ossos de animais ou dentes, ou ainda vestígios da organização de um acampamento, que podiam ter sido apagados para sempre devido a um fenômeno tão natural como o transbordar do leito de um rio. Um instrumento de pedra pode não ser encontrado na sua posição original mas, desde que não esteja partido ou danificado, poderá fornecer muita informação sobre as técnicas de fabricação e utilização continuada. O termo Pré-História já está “enraizado” e é muito difícil encontrar outro que o substitua. Houve algumas propostas em usar o termo Proto-História (a primeira História, antes da História), mas este conceito também já é utilizado para designar períodos de algumas culturas que tinham escrita, mas não foi possível compreendê- la, ou então para outras que apesar de ágrafas (sem escrita) foram descritas por outras sociedades contemporâneas e vizinhas em textos escritos. A periodização histórica deste grande período é um problema que vem sendo bastante discutido nos últimos 50 anos (quando a história factual perdeu espaço e a antropologia passou a contribuir de forma significativa na construção histórica), por pesquisadores do mundo inteiro. Um dos principais problemas em tentar escrever uma história universal, é que todas as culturas precisam ser representadas igualmente. A ideia de dividir a História em períodos artificiais compromete o entendimento orgânico da mesma. Sem contar que nem todas as sociedades se “encaixam” nos períodos definidos. Enquanto parte das comunidades do Oriente Próximo já estavam vivendo em larga escala da produção de alimentos e do Pastoreio, outras comunidades asiáticas ainda viviam da caça e da coleta. Quando afirmamos: no período da “Antiguidade” ou da “Idade Média”, estamos deixando de fora praticamente toda Ásia, África e América. 16 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a Segundo Charles Morazé (2000, p.XI), “A importância de cada período é medida pela contribuição que a humanidade deu a cada um deles, mais do que pela sua duração”. Porém, se tentarmos entender a história dentro da lógica orgânica, ela seria contada pelos períodos geológicos e alterações climáticas, mas mesmo assim seria difícil fazê-lo sem regionalismos e particularidades. A maioria dos pesquisadores, apesar de discordar em parte ou em grande parte, utiliza a periodização proposta por C.J.Thomsen: Paleolítico Inferior, Médio e Superior, Mesolítico e Neolítico. Assim como as demais periodizações, ele é falho, pois muitas sociedades tinham cerâmica e não eram produtoras de alimentos, enquanto que outras já os produziam, mas não viviam desta produção. Da mesma forma que o termo “Pré-História” já está arraigado, esta divisão proposta por Thomsen também está e é bem mais coerente que as tradicionais Idade da Pedra Lascada e Polida, que assustadoramente ainda são utilizadas em muitos livros didáticos atuais. Atualmente muitos arqueólogos e pré-historiadores estão utilizando as datações encontradas nos sítios e relacionando-as com a economia dos grupos estudados, não as classificando dentro de um período, mas sim, dentro do contexto arqueológico naquela data em específico. Mesmo assim, os comparativos, ou a menção ao Paleolítico e Neolítico europeus são quase inevitáveis. Neste livro optamos em seguir esta periodização, mesmo tendo em vista toda a problemática que ela engloba, porque nossas fontes de pesquisa (material organizado pela UNESCO) estavam dentro desta linha. 1.2 Periodização e Conceitos O termo Paleolítico vem de Paleo (antigo) e lítico (pedra trabalhada), significa as primeiras e mais antigas técnicas de se trabalhar a pedra. Este é o maior período da nossa história, pois inicia com o surgimento da primeira espécie humana, há 2,5 milhões de anos atrás (o Homo habilis) e “termina” com a substituição da economia baseada em caça, pesca e coleta pela produção de alimentos e/ou criação de animais, há mais ou menos 12 mil anos atrás. É dividido em: • Paleolítico Inferior — inicia com o Homo habilis, na África, há 2,5 milhões de anos atrás. O marco de diferenciação entre Homem e demais primatas seria a capacidade de desenvolver cultura material sistemática, ou seja, alterar o meio consciente do que estava fazendo, ou “pensar antes de agir”. Além do Homo habilis, o Homo erectus também surge na África neste período. O período é designado como “inferior” não no sentido de menos do que os outros, mas em analogia a níveis estratigráfi cos (camadas), em que tudo que está mais 17 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aabaixo (níveis inferiores) é mais antigo do que o que está mais para cima (superiores). • Paleolítico Médio — inicia com o surgimento das espécies sapientes: Homo sapiens neanderthalensis (Europa e Oriente Próximo) e Homo sapiens arcaico (África e Ásia), em torno de 300 mil anos atrás. A grande característica deste período, e que justifi ca o sapiente no nome das espécies (sapiens) foi o início da cultura imaterial (religiosidade). Neste período também surgiu na África o Homo sapiens sapiens (Homem moderno, nossa espécie),há 100 mil anos atrás. Porém, esta espécie vive no espaço e tempo dos seus contemporâneos africanos, sem grandes distinções culturais, até as grandes alterações climáticas que marcam a transição do Pleistoceno para o Holoceno, quando então precisou desenvolver alternativas para adaptação neste meio alterado, dando início ao último período do Paleolítico. • Paleolítico Superior — iniciou entre 40 e 35 mil anos atrás, com o desenvolvimento cultural da espécie Homo sapiens sapiens. Neste período, esta mesma espécie surge de forma autônoma na Ásia, Oriente Próximo e Europa. Frente às alterações climáticas e às mudanças dela decorrentes no meio em que viviam, os grupos do Paleolítico Superior desenvolvem uma série de alternativas culturais, sociais e tecnológicas frente aos problemas que surgiram. A dupla sapiência (sapiens sapiens) signifi ca complexidade mental e cultural. Foi neste período que os grupos passaram a observar o ciclo de vida dos animais que caçavam e das plantas que colhiam. A experiência de gerações e gerações baseadas numa economia que retirava in natura tudo o que consumia, deu-lhes conhecimento sufi ciente para aprenderem a domesticar plantas e animais. Ainda no Paleolítico Superior, muitos grupos de caçadores-coletores já dominavam as técnicas de cultivo e pastoreio, mas por várias razões não viviam delas. • Mesolítico — meso (meio), lítico (pedra trabalhada). Esta denominação, que signifi ca “meio termo” não é mais utilizada pela maioria dos pesquisadores, pois designa o período de transição da economia baseada na caça, pesca e coleta, para a produção de alimentos e criação de animais. Sabemos, como apresentado no item acima, que este processo de transição ocorreu ainda no Paleolítico Superior. Por este motivo, muitos pesquisadores preferem utilizar o termo Paleolítico Superior Final. Não há como estabelecer uma margem de datação, pois este processo foi vinculado a especifi cidades bem regionais, mas de modo geral ocorreu entre 30 e 9 mil anos atrás. • Neolítico — neo (novo), lítico (pedra trabalhada), ou seja, nova maneira de trabalhar com a pedra. Esta nova maneira de trabalhar com a pedra não está vinculada à técnica de polimento da mesma, mas sim da inserção de uma série de ferramentas e instrumentos necessários à produção de alimentos e a 18 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a domesticação de animais. O Neolítico abrange as comunidades que já viviam da economia alicerçada na produção de alimentos e/ou criação de animais. O período de transição (Mesolítico) já havia sido concluído e agora a caça e a coleta complementavam a agricultura e o pastoreio. Isto ocorreu em torno de mais ou menos 12 mil anos atrás e terminou com o surgimento dos primeiros Estados há 5 mil anos. Salientamos alguns conceitos que são fundamentais ao estudarmos o Paleolítico e o Neolítico: cultura material, cultura imaterial e níveis estratigráficos. Cultura é um termo polissêmico e permite uma série de empregos e interpretações. Não é nosso objetivo aprofundar esta discussão, apenas gostaríamos de explicar o termo “cultura material”. Ele representa o conjunto de toda a produção material desenvolvida pelo homem. O objeto produzido, que foi planejado, concebido e executado, deixa de ser matéria prima e passa a ter um significado. A ele é agregado um “valor” seja utilitário, ou mágico, o que o torna muitas vezes um “bem cultural”. Bem cultural é o resultado da ação do homem, fruto da relação que estabelece com a natureza e com os outros homens. Quando o homem transforma a natureza para satisfazer suas necessidades, através do trabalho, ele produz objetos, cria instrumentos e utensílios, estabelece normas, elabora regras de convivência, expressa seus sentimentos e emoções, lida de diferentes formas com os elementos extra-humanos e organiza ritos e celebrações para expressar suas crenças... Bem cultural é todo aquele vestígio da ação humana que possui uma significação cultural (MACHADO, 2004, p.12; e p.14, grifo nosso). Desta forma um seixo de pedra bruta passa a ser um machado de mão, cujo significado e utilização não necessitam ser explicados. Já Cultura Imaterial representa as respostas humanas frente às necessidades não materiais, ou seja, as simbólicas, ou como alguns autores preferem designar, as extrafísicas, como as crenças, por exemplo, passadas oralmente, manifestadas através da arte, da religião e de quaisquer outras manifestações de cunho simbólico. Níveis estratigráficos são as camadas, ou estratos que compõe um sítio arqueológico. Lembram as camadas de um bolo, porém o recheio é composto por materiais arqueológicos, ou como já vimos, por vestígios de cultura material. Sítios arqueológicos são os locais onde encontramos vestígios de cultura humana, seja através de seus objetos, de ocupações, ou da alteração de determinada paisagem. Os sítios arqueológicos não necessariamente são Pré-Históricos, eles podem ser históricos e até mesmo contemporâneos (arqueologia industrial, por exemplo). 19 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aArqueologia é a ciência que estuda as sociedades humanas através da análise da cultura material que elas produziram. Arqueo (antigo/arcaico) e Logos (ciência). Ela surgiu como um ramo da Antropologia (Antropos = Homem) e Logos (ciência), ciência que estuda o Homem. A Arqueologia é comumente confundida com a Paleontologia. Paleo, como já vimos significa antigo; Onto = vida; e Logos = ciência, assim a Paleontologia é a ciência que estuda todas as antigas formas de vida. Por isto que, dentre os vários seres vivos estudados por esta ciência, estão (além dos Homens) os dinossauros, cuja extinção ocorreu 65 milhões de anos antes do surgimento da primeira espécie humana (Homo habilis). 1.3 Sistemas de datação Ao longo do nosso texto, utilizamos várias vezes a sigla AP que significa Antes do Presente. Mas este “antes do presente” não é antes de 2013 (data deste livro), mas anterior a 1950, data de início do uso das datações por radiocarbono, ou Carbono 14 como são mais conhecidas. Outra sigla que tem exatamente o mesmo significado é BP, ou Before Present, versão em inglês que traduzida significa “antes do presente”. Duas siglas bastante conhecida, com forte influência Ocidental, são a.C. e d.C., que significam respectivamente “antes de Cristo” e “depois de Cristo”. Assim, o início do Neolítico pode ser estabelecido em 12mil anos AP, ou 10mil anos a.C. As duas formas estão corretas. Optamos em utilizar AP (antes do presente) por ser mais geral e coerente com todas as formas de expressão cultural, inclusive as não cristãs. Atividades 1. O termo Pré-História apesar de ser bastante utilizado é considerado inadequado, pois: I – Exclui da História todo período anterior à escrita; II – Não abrange sociedades tribais que ainda mantém sistemas culturais que não englobam a escrita e o Estado; III – Foi criado no século XIX, quando as únicas fontes consideradas como históricas eram os documentos escritos, o que já foi revisto após a Escola dos Annales; IV – Alguns pesquisadores, de maneira equivocada, não acreditam que a escrita é de fato o demarcador cultural mais importante da humanidade. 20 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a A partir das alternativas, é possível afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas I, II e IV estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) As alternativas II, III e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. 2. Segundo De Laet (2000) o estudo do período anterior à escrita é importante porque: I – Ele é prévio à “história propriamente dita”; II – Presenciou o nascimento, a juventude e a adolescência da humanidade; III – Abrangedesde a antropogênese até à invenção da escrita; IV – Abrange o nascimento das primeiras cidades, dos primeiros Estados e à ascensão as sociedade de classes que viria a ser, durante milênios, um traço característico do período da “história propriamente dita”. A partir das alternativas, é possível afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas I, II e IV estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) As alternativas II, III e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. 3. A periodização proposta por C.J.Thomsen para designar o período anterior à escrita é: a) Paleolítico, Médio, Superior; Neolítico e Mesolítico; b) Inferior, Médio e Superior; Paleolítico; Neolítico; c) Paleolítico (Inferior, Médio e Superior); Mesolítico e Neolítico; d) Paleolítico (Inferior, Médio e Superior); Megalítico e Neolítico; e) Inferior, Médio e Superior; Paleolítico; Megalítico; Neolítico. 21 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a4. Alguns pesquisadores não concordam com o sistema de Thomsen para periodizar a chamada “Pré-História”. O principal argumento deles é baseado na ideia de que: a) Nem todas as culturas “entram” e “saem” dos períodos propostos ao mesmo tempo. Por exemplo, enquanto muitos grupos europeus já viviam da produção de alimentos (que caracteriza o Neolítico), outros bem próximos (norte da África), continuavam com a economia baseada na caça, pesca e coleta; b) Ela deveria ser mais rígida e defi nir melhor as tecnologias baseadas no lascamento ou polimento dos artefatos; c) Não há datações sufi cientes que possibilitem o enquadramento das culturas na divisão proposta por Thomsen; d) O termo Pré-História não deveria existir, portanto nenhuma periodização que o inclua deveria ser utilizada; e) O uso dos metais, tão importante no Neolítico (Idade dos metais) não foi incluído nesta periodização e portanto ela não é válida. 5. Dentre as ciências que estudam a Pré-História temos a Arqueologia. Podemos defi nir como objetos de estudo dela: I – Todas as formas de vida antigas; II – A cultura material produzida pelas sociedades humanas; III – Homens e animais que fi zeram parte da História da Humanidade, dentre eles merece destaque os Dinossauros; IV – O entendimento do contexto natural e sua relação com a cultura das sociedades humanas. A partir das alternativas, é possível afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas II e IV estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) As alternativas I e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. 22 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a Gabarito: 1. a; 2. d; 3. c; 4. a; 5. b. 2 PALEOLÍTICO INFERIOR Apresentação No primeiro capítulo do livro apresentamos a divisão dos períodos históricos que compõe a chamada “Pré-História” e também as questões referentes à produção de cultura material e sua relação com o início da História. No capítulo 2 apresentaremos o Paleolítico Inferior, especificamente o processo histórico e cultural das duas espécies humanas que marcam este período: Homo habilis e Homo erectus. A história deste período é baseada em pesquisas que têm como fonte a cultura material, ou seja, instrumentos líticos, ossos de animais, fósseis humanos e até mesmo estruturas de habitat, que permitem inferir a vida social dos primeiros grupos humanos, aos quais estamos ligados por um longo processo tecnológico e cultural. Isto não quer dizer que estes homens utilizam exclusivamente instrumentos confeccionados pelo grupo. Segundo Jean Chavaillon (2000), foram encontrados sítios arqueológicos datados do início do Paleolítico, com seixos em estado natural, ou seja, não trabalhados, junto com ossos de animais e instrumentos lascados, comprovando que nem todos os objetos eram preparados antes de sua utilização no cotidiano. Este é um indicativo de que não é apenas a técnica de trabalhar a matéria-prima em si que confere o limiar entre o que é História ou não, mas sim o contexto social relacionado com as operações técnicas. Segundo Jean Chavaillon (2000, p.37): Os primeiros instrumentos trabalhados estão definitivamente associados a áreas habitadas: os acampamentos temporários de Omo (Etiópia), os acampamentos base de um grupo em Olduvai, na Tanzânia, e em Melka Kunturé, na Etiópia. Os instrumentos de pedra trabalhados estão mais frequentemente associados a estruturas de acampamentos-base e indicam, por conseguinte, atividades comunitárias. 24 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a O início do Paleolítico e, portanto, da História humana, é comprovado por vestígios que indicam a produção de instrumentos e a vida em sociedade. E quando se deu este processo? Quem o desencadeou? Onde? 2.1 Homo habilis A história humana inicia na África há cerca de 2 milhões de anos atrás com o surgimento do Homo habilis. Não foi apenas o surgimento da espécie em si que definiu o início do período, mas sim a comprovação de que foram os primeiros produtores de “cultura material sistemática” associada a uma vida em sociedade. Os primeiros fósseis de Homo habilis foram encontrados em Olduvai (Tanzânia), em 1960, por Louis Leakey, mas foram necessários mais de vinte anos de debates e uma série de outras descobertas na África Oriental e do Sul para que toda comunidade científica reconhecesse a nova espécie. Podemos destacar, dentre as principais diferenças entre este “Homem habilidoso” e os Australopitecinos, a capacidade craniana (750cc), um pouco acima da metade da do Homo sapiens sapiens, mas para um corpo de no máximo 40kg. Ainda tem os membros superiores (braços) desproporcionais aos inferiores, assim como os phytecus, mas com maior motricidade. Uma característica evolutiva importante em relação a estes últimos foi o alargamento pélvico do Homo habilis, aumentando o tempo de gestação e garantindo, com isso, mais chances de sobrevivência aos bebês. Mas para os autores Yves Coppens e Denis Geraads (2000, p.22): A principal diferença encontra-se a nível cultural: a humanidade alcançou com o Homo habilis um novo patamar evolutivo que irá influenciar todo o seu desenvolvimento subsequente. A prova desta evolução cultural vem-nos principalmente da África Oriental, onde os objetos mais frequentemente preservados são os instrumentos de pedra lascada, seixos lascados unifacial e bifacialmente embora não haja dúvidas que os ossos e especialmente a madeira, desempenharam, também, um papel importante, senão essencial. A preservação dos objetos de madeira é, infelizmente, uma questão de sorte, sendo muito difícil considerarmos verdadeiro o seu fabrico intencional ou retoque. A indústria lítica do Homo habilis foi denominada de Olduvaiense em homenagem ao local onde o primeiro fóssil foi encontrado (Olduvai). Os instrumentos que melhor representam-na são os Choppers e os Chopping-Tools, utilizados para quebrar, trinchar, raspar, dentre outras funções. A tecnologia é apenas mais uma das fontes, talvez a mais abundante, que nos remete à história destes grupos. Mas há outras, como já vimos no início deste capítulo, que são as estruturas de habitat, ou acampamentos. Ainda segundo Yves Coppens e Denis Geraads (2000), alguns sítios na África Oriental, mais precisamente na 25 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aEtiópia, no Quênia e na Tanzânia, apresentam estruturas de habitat, próximas de rios, que representam acampamentos temporários. Também citam como exemplo destas estruturas, um círculo de enormes pedras em Olduvai, e uma ampla área de terra batida (pisoteada) em Melka Kunturé, que indicam certa organização do espaço, ainda que simples, sugerindo apartilha do local de habitação, característica atribuída normalmente apenas ao Homo erectus (COPPENS; GERAADS, 2000). Nestes locais é possível entender um pouco do cotidiano destes pequenos grupos, pois há vestígios de suas atividades como restos de lascas e artefatos abandonados, e também da sua dieta alimentar e da forma de consumir os alimentos, verificáveis através de ossos de animais ali encontrados. Um dado importante revelado pelas marcas nestes ossos de animais é que a caça não era a principal atividade para obtenção de carne, mas sim complementar a atividades oportunistas, ou seja, estes grupos humanos eram necrófagos (carniceiros), isto quer dizer que aproveitavam as sobras de comida de outros animais. Uma quebra nos elementos anatômicos das espécies representadas mostra que só certas partes dos animais caçados, ou dos cadáveres disputados com outros necrófagos, eram trazidos de volta para o acampamento. Os animais de maior porte eram desmembrados no local onde tinham sido mortos (são conhecidos os sítios arqueológicos onde se efetuaram este trabalho); as presas mais comuns eram os hipopótamos, os antílopes, zebras e girafas. Contudo, a componente animal deve estar representada em excesso, uma vez que vestígios vegetais da dieta não se preservam tão bem. (COPPENS; GERAADS, p.32). Alguns estudos mais recentes, baseados na morfologia craniana, afirmam que as marcas de atividade cerebral encontradas nos crânios de Homo habilis, indicam um tipo de linguagem elaborada (ainda sem o recurso da fala), o que faz supor relações sociais mais complexas do que se inferia até então. Por mais simples que hoje os instrumentos fabricados por estes grupos possam nos parecer, eles denotam o “pensar antes de agir”, ou seja, a alteração consciente do meio em prol da adaptação e sobrevivência. Quebrar os ossos, desmembrar um animal, raspar a carne da pele e dos ossos, independente das presas terem sido caçadas ou partilhadas de outros caçadores, garantia a esses grupos um recurso a mais neste contexto em que muitas vezes eles eram as presas e a sobrevivência ditava as normas. 2.2 Homo erectus Os primeiros fósseis de Homo erectus foram descobertos por E. Dubois, em 1891, na ilha de Java, muito antes da descoberta de seu antecessor, o Homo habilis. Ele foi encontrado na época em que os naturalistas estavam no auge das discussões acerca da teoria da evolução e, abertamente, a procura do “elo perdido” que ligaria o homem aos demais primatas. Foi inicialmente batizado de Phitecantropus erectus, 26 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a ou “homem-macaco vertical”, sendo considerado por muitos naturalistas como apenas mais uma espécie de babuíno gigante, ainda mais por ter sido encontrado em uma ilha exótica (COPPENS; GERAADS, 2000). Apenas em meados do século XX, quando as pesquisas foram mais aprofundadas em sítios da Ásia, África e Europa, é que o achado foi devidamente reconhecido como mais um elo importante na história da humanidade. Outra grande questão discutida pela comunidade científica foi a diversidade de datas dos achados relacionados ao Homo erectus. As datações variavam de 1, 5 milhões de anos a 300 mil anos AP. A grande questão é que o Homo erectus foi o primeiro membro da linhagem humana a sair de seu continente de origem, a África, e migrar para a Ásia e Europa. Apesar da mudança de território os grupos desta espécie continuaram ocupando regiões com clima quente. Quando comparado ao Homo habilis, com quem partilhou o território africano até a extinção daqueles, percebemos que o Homo erectus apresenta a capacidade craniana um pouco maior (1100cc), é mais alto (cerca de 1,70m) e possui uma ossatura e musculatura mais reforçada, o que contribuiu para que esta espécie tivesse condições de fazer caminhadas em maiores distâncias que o Homo habilis, e aumentar a gama alimentar, uma vez que a musculatura relacionada à mastigação era mais reforçada e lhe permitia comer alimentos mais duros. Testes de DNA mostram que esta espécie praticava a exogamia, ou seja, procuravam seus parceiros sexuais fora do grupo de origem. Isto pode significar uma resposta empírica às questões de consanguinidade, pois procriando com membros de fora do grupo de origem as chances da prole ter problemas com doenças consanguíneas diminuiria bastante, aumentando assim as possibilidades de filhos mais sadios que chegassem à idade adulta. A indústria lítica atribuída ao Homo erectus é conhecida como Acheulense, ou “indústria dos machados de mão”. Analisando a cultura material desta espécie, tanto na África, como na Ásia e na Europa, é possível verificar que inicialmente eles deram continuidade à indústria Olduvaiense, tendo sua transição para o Acheulense sido marcada por uma diversificação dos instrumentos, modificações no seu modo de vida, na estruturação do seu habitat e, provavelmente, na utilização do fogo, ocorrida pouco tempo depois da especialização Homo habilis – Homo erectus. (COPPENS; GERAADS, 2000, p.34). Na verdade a indústria Acheulense agrega uma diversidade de técnicas, que são diferentes de uma região para outra ocupada por esta espécie, representadas por machados de mão, cutelos e as “bolas” (esferas facetadas cuja finalidade ainda não foi descoberta). Também foram encontradas lascas com sinais de uso para corte e raspagem e de perfuradores. A matéria-prima também variava entre obsidiana, basalto, sílex, quartzito, arenitos quartzíticos e calcário. “O termo Acheulense 27 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aabarca, portanto, muitas e variadas indústrias, dentre as quais é difícil estabelecer classificações e reconhecer filiações” (COPPENS; GERAADS, 2000, p.34). O domínio do fogo (ou a domesticação como também é denominada esta fase), datado de 1,4 milhões de anos, em um sítio no Quênia (África), inicialmente parece ter servido exclusivamente à confecção de instrumentos, ou seja, o fogo era também uma ferramenta! Entenda-se que dominar o fogo é saber fazê-lo e mantê-lo sempre que necessário. Isto quer dizer que mesmo os Australophytecus ou Homo habilis podem eventualmente ter utilizado o fogo quando o encontravam na natureza, fruto de algum fenômeno natural, mas não sabiam como fazê-lo. O fogo foi de fato uma importante ferramenta, que proporcionou a confecção de um utensílio bastante encontrado nos acampamentos temporários desta espécie, as lanças de madeira com pontas endurecidas pela queima. Alguns processos de queima deixam a madeira muito mais dura e resistente, o que tornaria as lanças mais eficientes durante as caçadas e possivelmente com menos necessidade de retoques após a utilização. Inicialmente, como já mencionamos, o fogo não parece ter tido um lugar de destaque no cotidiano destes grupos. Não era utilizado sistematicamente no cozimento dos alimentos, e sim eventualmente, e principalmente, na África, não tinha, neste período, a função de aquecer os indivíduos. Esta utilização torna-se importante na Eurásia a partir das alterações climáticas, quase no final do Paleolítico Inferior. Mesmo que não usado de forma sistemática no cozimento dos alimentos, ele permite, assim como o reforço muscular da mandíbula, o aumento da gama alimentar destes grupos. Alimentos que não podem ser consumidos crus. Seja por sua toxidade, pelo excesso de fibras, ou até mesmo pela dureza, podem facilmente ser comidos após o cozimento. Algumas carnes também são mais digeríveis após assadas. A autora Paola Villa (2000) ao analisar a utilização do fogo por grupos de Homo erectus em territórios europeus, afirma que ele foi um dos fatores determinantes para a expansão para regiões mais frias, bem como pela defesa do grupo contra predadores, os quais ficariam expostos em áreas mais abertas. O domínio do fogo nos remete a algumas questões que não deixamcomprovação material, mas que quando pensamos nas tribos atuais, não podemos deixar de pensar que seriam viáveis também neste período: o fogo aumenta o dia, pois garante certa iluminação quando fica noite, permitindo que pequenas tarefas antes inviáveis de serem realizadas no escuro, possam ser feitas à luz da fogueira; ele também pode ser usado como ferramenta para afugentar outros animais, ou como armadilha para condicionar as manadas a um local específico onde a caçada seria mais fácil; ainda podemos imaginar que os espaços em torno das fogueiras serviram como agregadores sociais. Sentar em torno da fogueira, seja para proteção, aquecimento ou confecção de instrumentos, fazia com que os 28 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a indivíduos convivessem mais e agregassem experiências. Sabemos que, assim como o Homo habilis, o Homo erectus não falava, mas com certeza tinha códigos de linguagem que serviriam para comunicação e intercâmbio de ideias. É ainda no Acheulense que encontramos os primeiros indícios de construção de abrigos, ou seja, proteções exteriores contra os predadores ou as condições atmosféricas adversas. Ao mesmo tempo, o espaço habitado passa a ser dividido em áreas distintas, onde é possível, sem demasiada especulação, identificar uma oficina de talhe ou, por vezes, uma fogueira (COPPENS; GERAADS, 2000, p.34). Alguns autores afirmam que esta divisão do espaço social parece indicar uma possível divisão sexual de tarefas, em que homens eram responsáveis pela confecção de instrumentos, ou seja, pelos espaços de talhe, enquanto que as mulheres ficariam com a tarefa de manutenção do fogo e/ou cozimento de algum alimento fruto de coleta. Porém, outros pesquisadores não concordam com esta “leitura” do espaço social, pois afirmam que para a maior parte dos grupos de Homo erectus, a fogueira era apenas mais uma das ferramentas masculinas e que não temos como analisar as questões de gênero no Paleolítico a partir da ótica contemporânea. Segundo o autor Jean Chavaillon (2000) a escolha dos locais de acampamento estava diretamente relacionada à água, seja fontes, poços, rios ou lagos, este era o requisito principal. A maioria dos acampamentos era em campo aberto, às margens de rios ou antigos terraços, muito raramente em abrigos sob rocha ou grutas (como algumas exceções na África do Sul). Na Europa, principalmente no período final do Paleolítico Inferior, quando o clima começa a ficar mais frio, os grupos utilizam muito mais as grutas do que os campos abertos, provavelmente porque acampando em locais mais fechados ficariam menos expostos ao vento gelado e aos predadores. Na África, a proximidade com os rios foi providencial para a arqueologia, pois na medida em que haviam os períodos de inundação, a lama ajudava a manter as camadas de ocupação praticamente inalteradas, preservando a história de seus habitantes. Ainda analisando a escolha dos locais para acampamento, Chavaillon (2000) divide a escolha pelo local entre: oportunista e planejada. A escolha planejada era a dos acampamentos-base, nos quais temporariamente fixam o grupo, podendo retornar ao local por diversas vezes; e a escolha oportunista era relacionada aos acampamentos temporários, se dava em virtude da funcionalidade do local, ou seja, ele poderia ser próximo a um afloramento rochoso de onde retirariam matéria- prima para confecção de seus instrumentos ou, então, de um rio com leito rico em seixos; e até mesmo algum local com água que facilitasse a captura de animais moribundos que ali chegavam para beber água. Estes últimos, sempre com água abundante, também poderiam ser utilizados como locais de esquartejamento da 29 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci acaça, atividade que, se o animal fosse grande, poderia levar até 15 dias, cujas partes nobres eram levadas até o acampamento-base. Este tipo de acampamento, determinado pelos movimentos dos animais, não era estruturado, enquanto o acampamento-base, a longo prazo (habitado durante meses e até anos), deve ter sido escolhido porque oferecia melhores condições. A localização do acampamento temporário era, pelo contrário, ditada exclusivamente pela presença do animal moribundo (CHAVAILLON, 2000, p.41). Provavelmente algumas partes dos animais caçados, como os fortes e afiados caninos dos hipopótamos, por exemplo, eram utilizados como ferramentas na elaboração de instrumentos, ou até mesmo em atividades cotidianas. Uma das principais atividades dos grupos do Paleolítico Inferior era a obtenção da alimentação. Discorremos muito sobre a caça porque temos muitos vestígios desta atividade, mas de forma alguma podemos esquecer ou menosprezar a coleta de frutos, raízes, tubérculos e sementes. Sem dúvida alguma a coleta era uma prática diária, que infelizmente deixa pouco ou nenhum vestígio. Mesmo que tenham utilizado os percutores para quebrar nozes, moer raízes, ou os raspadores para cortar fibras e cascas de árvores, estas atividades não costumam deixar muitas marcas, ainda mais quando os instrumentos são também utilizados para quebrar ossos, cortar carne e fibras musculares. Ao analisarmos todas as questões aqui apresentadas em relação ao Homo erectus, vemos que a adaptação ao meio, a dispersão por territórios conhecidos, a expansão para áreas desconhecidas e a diversidade de culturas a que deu origem, são fruto de um conjunto de características físicas e culturais. Esta espécie, como já foi dito anteriormente, possuía um físico que favorecia as longas caminhadas (musculatura dos membros inferiores) e que lhe permitiu também, aumentar a gama alimentar (musculatura da articulação mandibular). Além disso, parecem ter diversificado bem mais seus instrumentos e a matéria- prima com as quais eram fabricados, acrescentando tanto como ferramenta, como instrumento, o fogo. A “domesticação do fogo”, como denomina a autora Paola Villa, permitiu também a conquista de territórios mais frios, o reforço de algumas ferramentas, o cozimento de tubérculos e raízes cujo consumo in natura não era possível, aumentando a gama alimentar, a proteção contra predadores em áreas em que os grupos ficavam expostos, bem como, ajudava a afugentar animais para consumir a carne que haviam preado, dentre outras coisas. Também podemos supor que o fogo aumentou algumas horas nas atividades cotidianas do grupo permitindo que algumas tarefas fossem executadas durante o escurecer. O convívio em torno da fogueira pode ter proporcionado troca de experiências, agregando os indivíduos do grupo. Portanto a expansão dentro da própria África para a Ásia e a Europa foi resultado não apenas de um processo de desenvolvimento tecnológico, mas da organização 30 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a social e do domínio do meio. Nem todos os grupos de Homo erectus utilizaram fogo, nem todos tinham lanças com pontas endurecidas, outros não usavam dentes, chifres e ossos de animais para confecção de seus instrumentos. Queremos dizer com isso que, ao contrário do que se afirmou durante anos e anos, o Paleolítico Inferior tem grande diversidade cultural, resultado de um longo processo de expansão e adaptação dos grupos ao meio, e não pode ser reduzido a generalizações a partir de técnicas de lascamento. No fim do Acheulense os seres humanos tinha já conquistado todo o mundo antigo. Possuidores de alguns conhecimentos técnicos e econômicos, estavam prontos a adaptar-se às condições ambientais específicas da região em que então se encontravam. Foi este o ponto de partida para a diversidade de culturas que rapidamente floresceram nos vários locais da África e da Eurásia. (CHAVAILLON, 2000, p.43). A escolha dos locais de acampamento e a divisão entre acampamentos-base e temporários, é uma diferença significativa entre o Homo habilise o Homo erectus, mostrando a gradativa transição cultural do Olduvaiense para o Acheulense. Com isto reforçamos que não são apenas as técnicas de lascamento ou a escolha da matéria-prima que configuram um período estudado, mas sim o contexto formado pelas diversas características culturais de um grupo ou espécie, abrangendo além da tecnologia, os padrões de assentamento, a organização social e o processo de conhecimento e domínio do meio. Atividades 1. São muitas as diferenças entre os Australopitecinos e o Homo habilis. Dentre elas podemos destacar: maior capacidade craniana, alargamento pélvico e motricidade mais desenvolvida, mas sem dúvidas o fator mais relevante é: a) O fato de migrarem para fora da África, demonstrando domínio do meio e organização social. b) A fala articulada, que permitiu ao grupo maior comunicação e portanto organização social mais elaborada frente aos Australopitecinos. c) A produção de cultura material, ou seja, a elaboração de instrumentos (Indústria lítica Olduvaiense). d) O fato de deixarem de ser necrófagos (carniceiros) como os Australopitecinos, tornando-se exclusivamente caçadores-coletores. e) Já utilizarem cabanas para proteção do grupo, demonstrando sua grande capacidade de elaboração mental. 31 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a2. Durante muitos anos os pesquisadores afi rmavam que os grupos de Homo habilis não haviam deixado vestígios de acampamentos. Atualmente, principalmente depois das descobertas de alguns sítios na África Oriental (Etiópia, Quênia e Tanzânia), que apresentam estruturas de habitat, próximas de rios, sabemos que eles tinham acampamentos temporários. Isto é importante porque: I – Indica organização do espaço, ainda que simples, sugerindo a partilha do local de habitação; II – Nestes locais é possível entender um pouco do cotidiano destes pequenos grupos, pois há vestígios de suas atividades como restos de lascas e artefatos abandonados; III – Possibilita o entendimento da dieta alimentar destes grupos, bem como da forma de consumir os alimentos, verifi cáveis através de ossos de animais e artefatos ali encontrados. IV - Revelam um dado muito importante a partir da análise dos ossos de animais ali encontrados: a caça não era a principal atividade para obtenção de carne, mas sim complementar à atividades oportunistas, ou seja, estes grupos humanos eram necrófagos (carniceiros), isto quer dizer que aproveitavam as sobras de comida de outros animais. A partir das alternativas, é possível afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas I, II e IV estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) As alternativas II, III e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. 3. Uma das diferenças do Homo erectus em relação ao Homo habilis é que ele possuía a musculatura mais resistente, principalmente nos membros inferiores e na região mandibular. Entendemos que isto proporcionou alguns benefícios ao Homo erectus, dentre eles: a) A possibilidade de deixarem de ser necrófagos (carniceiros) tornando- se exclusivamente caçadores-coletores; b) O bipedismo, fator fundamental para desenvolvimento da cultura humana; 32 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a c) O pleno domínio do meio ambiente, tornando-os exclusivamente caçadores-coletores; d) Maior diversidade da gama alimentar já que podiam consumir alimentos mais duros e também, as caminhadas mais longas, fator decisivo na expansão dentro e fora da África. e) Maior diversidade da gama alimentar já que podiam consumir alimentos mais duros e também, maior tempo gestacional, aumentando a chance de sobrevivência da prole e portanto fortalecendo o grupo. 4. Um dos fatores culturais mais marcantes do Homo erectus, além da indústria lítica Acheulense, é a domesticação do fogo. Este novo elemento da cultura humana possibilitou aos grupos de Homo erectus: I – Diversifi car as técnicas de lascamento; II – Utilizar o fogo como defesa, aquecimento e como ferramenta; III – Viver em regiões geladas; IV – Diversifi car a gama alimentar. A partir dos itens expostos acima, é correto afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas I, II e IV estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) As alternativas II, III e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. 5. A expansão dos grupos de Homo erectus foi possível a partir de uma soma de fatores, são eles: I – Diversidade da gama alimentar pelo uso do fogo e fortalecimento da região mandibular; II – Domínio total do meio, permitindo abandonar a necrofagia e a adaptação em ambientes frios; III – Organização social mais elaborada que a do Homo habilis, possivelmente com divisão sexual de tarefas; 33 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aIV – Diversifi cação das ferramentas e utensílios; A partir dos itens expostos acima, é correto afi rmar que: a) As alternativas I, II e III estão corretas; b) As alternativas I, II e IV estão corretas; c) As alternativas I, III e IV estão corretas; d) As alternativas II, III e IV estão corretas; e) Todas as alternativas estão corretas. Gabarito: 1. c; 2. e; 3. d; 4. b; 5. c. 34 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a 3 PALEOLÍTICO MÉDIO: HOMO SAPIENS NEANDERTHALENSIS E HOMO SAPIENS Apresentação Neste capítulo apresentaremos o período histórico intermediário ao Paleolítico Inferior e o Superior, e por isso mesmo denominado de Paleolítico Médio. Esta indicação de “meio” se deve ao fato de que os vestígios arqueológicos, deste período, indicam que os grupos humanos não se preocupavam única e exclusivamente com a sobrevivência material. Assim como no Paleolítico Inferior, as questões de datação para o Paleolítico Médio não são consenso entre os pesquisadores. Atualmente, as datas mais aceitas variam de 300 a 40 mil anos AP. As espécies que dele fizeram parte, principalmente o Homo sapiens neanderthalensis e o Homo sapiens arcaico têm, em certas regiões, seu palco definido de atuação, o que não quer dizer de modo algum que não migravam ou faziam trocas com outras áreas e regiões. O Homo sapiens sapiens também surgiu neste período, mas seu processo cultural é significativo a partir de 40 mil AP, dando início ao Paleolítico Superior, portanto não o estudaremos neste capítulo e sim no próximo (capítulo 4). A maioria das pesquisas do Paleolítico Médio apresentam a história do Homo sapiens neanderthalensis ou Homem de Neanderthal, tanto que a maioria das pessoas acredita que ele foi a única espécie deste período. Isto se deve ao fato de que os fósseis desta espécie foram encontrados na Europa, ainda no século XIX (1856), e claramente atribuídos a um homem que não o moderno (Homo sapiens sapiens), sendo pesquisados desde então. Além disso, segundo Bernard Vandermeersch (2000) a Europa possui muitos sítios arqueológicos deste período, com material preservado e contextualizado, o que permite análises mais complexas do modo de vida destes grupos, ampliando assim o número de pesquisas e publicações a respeito do período. 36 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a Atualmente as pesquisas em outras regiões que não as europeias, provam que os grupos de Homo sapiens (não neanderthalensis) tinham culturas tão elaboradas quanto aquelas, mas cujos resultados não são tão conhecidos com os europeus. 3.1 Os Neanderthalenses e sua cultura Os primeiros fósseis desta espécie foram encontrados no vale de Neander, perto de Dusseldorf (Alemanha), em 1856. Em 1920 houve a descoberta de novos fósseis no Oriente Próximo (Mugharet Al-Zuttiyeh), ampliandoo território desta espécie para fora da Europa, mas demonstrando que ele era limitado à Europa Central e Meridional e parte do Oriente Próximo, expandindo-se para oriente do mar Cáspio (VANDERMEERSCH, 2000). Ainda segundo este autor, atualmente os Neanderthalenses são entendidos como um conjunto de populações que partilham muitas características morfológicas e possuem a mesma estrutura óssea. Os estudos da anatomia desta espécie demonstram que estavam preparados para o frio, pois, ao contrário do Homo erectus, que tinha altura média de 1,70m, os Neanderthalenses mediam de 1,60 a 1,65m, o que significa que houve uma espécie de compactação óssea, reforçando o tórax (que projete os órgãos vitais), deixando- os com um esqueleto extremamente robusto. A capacidade craniana com média de 1450cc é praticamente a mesma do homem moderno (Homo sapiens sapiens). Segundo Vandermeersch (2000) uma das características mais marcantes era a mandíbula extremamente reforçada e com dentes mais largos do que os do homem moderno, sem as fossas dos caninos, e quase sem queixo, o que lhe dava uma aparência de “focinhudo”. A análise de alguns ossos como a clavícula, omoplata, úmero, rádio e fêmur, indicam que ele tinha a musculatura muito forte, o que lhe conferia incrível força física. Os ossos da pélvis demonstram um alargamento do canal pélvico que favoreceria o parto, uma vez que “os neanderthalenses recém- nascidos, deveriam ter a cabeça maior que os recém-nascidos atuais devido ao maior tempo de gestação.” (VANDERMEERSCH, 2000, p.106). Os fósseis encontrados no Oriente Próximo revelam poucas diferenças com o grupo europeu, são mais altos e com o crânio mais arredondado. Alguns cientistas afirmam que possuem características intermediárias entre o Neanderthal e o Homem Moderno, mas mais semelhantes aos primeiros. Esta homogeneidade física tanto na Europa, como no Oriente Próximo são muito raras, principalmente tratando-se de pequenos grupos espalhados por um amplo território, o que favoreceria o aparecimento (devido ao isolamento genético por muito tempo) de características particulares. Os ossos encontrados, apesar de abundantes, estão muito fragmentados para que se possa fazer uma análise mais elaborada e responder a esta questão. Alguns pesquisadores afirmam que as características homogêneas se mantiveram, porque apesar dos pequenos grupos estarem isolados, poderiam ter a prática da exogamia, o que garantiria a manutenção genética sem 37 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aparticularismos. Mas mesmo assim é algo surpreendente tendo em vista que a espécie se manteve de 300 a 35 mil anos AP. A história do Homem de Neanderthal pode ser dividida em três períodos. O primeiro, que situamos grosseiramente entre cerca de 400 000 e 250 000 anos, corresponde ao aparecimento das principais características da linhagem. O segundo continua até cerca de 100 000 anos e assistiu à organização destas características no esqueleto do Neanderthal. O terceiro, caracterizado por uma estabilidade geral, terminou há cerca de 35 000 anos com o desaparecimento da linhagem (VANDERMEERSCH, 2000, p.108). Foi provavelmente nos fins deste “segundo período” que alguns grupos de Neanderthalenses, que neste tempo já ocupavam toda Europa, migraram e se espalharam por todo Oriente Próximo. O pesquisador Karel Valoch (2000A) descreve as alterações climáticas que marcaram este período, oriundas de períodos glaciais e interglaciais e que muitas vezes foram limitantes à ocupação humana em certas regiões, como o extremo norte da Europa, por exemplo. Segundo o autor, mesmo assim o território dos Neanderthais era mais amplo do que o do Homo erectus, pois esta espécie, amparada por uma diversidade tecnológica maior e condições físicas mais apropriadas que a segunda, mostrou sua adaptação às mais variadas condições naturais. Durante os períodos glaciares o meio ambiente consistia em estepes e tundra, com um solo permanentemente gelado. As variações climáticas refletiam-se na vegetação e na fauna. As florestas interglaciares foram substituídas por estepes de erva, florestas-estepes e até tundra ártica. A fauna dos climas quentes (elefantes, rinocerontes, cervídeos, bovídeos) alternava com fauna de estepe (cavalos, vários roedores) e fauna boreal (especialmente mamutes, rinocerontes lanudos, rangíferos, carnívoros, etc.) (VALOCH, 2000A, p.112). Uma das técnicas de lascamento mais marcantes deste período é a Levallois (homenagem ao subúrbio de Paris, Levallois-Perrt, onde este tipo de instrumento sobre lasca foi encontrado pela primeira vez), caracterizada pela habilidosa preparação de um núcleo, do qual eram retiradas lascas. Esta técnica exigia grande quantidade de matéria-prima de alta qualidade. Porém, na Europa ela divide espaço com outra técnica a Mustierense (homenagem ao sítio arqueológico em que foi encontrada pela primeira vez, Le Moustier, Dordogne, na França). Segundo Valoch (2000A, p.113): A sua preparação é menos elaborada e não contempla a predeterminação da forma da lasca. Por vezes as lascas são obtidas a partir de blocos não preparados, com a ajuda de um martelo percutor ou de uma bigorna, possuindo um topo macio ou cortical. Os instrumentos em osso são poucos, mas permitem afirmar que eram complementares aos líticos, tanto lascas em osso (para cortar e raspar), como furadores e talvez até pontas de pequenas lanças. 38 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a Não foram encontrados instrumentos em madeira, mas por comparação com estudos etnológicos, podemos supor que utilizavam paus e varas na coleta dos alimentos, para retirar bulbos e raízes da terra ou colher frutos. A madeira é fácil de trabalhar e muito leve para carregar ao longo das caminhadas. Também podemos supor, segundo Valoch (2000A) que utilizavam cestos ou pequenos sacos feitos em couro de camurça para carregar os poucos pertences e ou alimentos colhidos durante as caminhadas. O melhor testemunho disto foi uma grande vara de 2,5m com ponta endurecida pelo fogo e marcas de raspagem, encontrada em Lehringen (Alemanha), junto com ossos de uma antiga espécie de elefante (Elephas antiquus) e lascas Levallois (VALOCH, 2000A, p.116). 3.2 O Homo sapiens arcaico e sua cultura Os pesquisadores Fred Wendford, Angela E. Close e Romuald Schild (2000) afirmam que os principais locais que revelam a história do Paleolítico Médio na África são: norte da África (incluído o Saara), África Meridional e África Oriental. Os grupos de Homo sapiens arcaico parecem ter iniciado o período do Paleolítico Médio ainda vinculados à indústria lítica Acheulense (típica do Homo erectus). Gradativamente iniciaram a produção de instrumentos típicos do P.Médio, indústria Mustierense e, especificamente do Norte da África a indústria Ateriense. O Levallois também é encontrado, mas em proporção bem menor aos outros dois. Na África do Sul, junto com alguns instrumentos líticos, foi encontrada uma vara de madeira que pode ter sido utilizada como lança, assim como fazia o Homo erectus (VALOCH, 2000A, p.116). Os abundantes vestígios faunísticos associados a alguns sítios aterienses sugerem um ambiente rico em recursos, principalmente no noroeste da África, onde os ossos dos animais caçados revelaram 37 espécies diferentes de animais, dentre eles: elefantes, rinocerontes, burros, zebras, hipopótamos, porcos, javalis-africanos, bovídeos selvagens, veados-do-cabo, búfalos, gazelas, hienas, camelos gigantes e carneiros da barbaria. No norte da África não existem vestígios de cabanas ou de outras estruturas de habitação, tão comuns na Europa e Oriente Próximo (WENDFORD; CLOSE; SCHILD, 2000). Até mesmo as lareiras são extremamente raras, mas em todos os acampamentos, seja a céu aberto ou em grutas, há vestígios do uso regular do fogo. Diferente donorte, na África Meridional há vestígio de estruturas e principalmente das lareiras. Determinadas matérias-primas revelam um intenso sistema de comunicação e trocas, como seixos trazidos de mais de 200km do acampamento onde foi encontrado. 39 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci aEm relação à África Meridional, os autores (WENDFORD; CLOSE; SCHILD, 2000) salientam a importância da coleta, entendida como dominante, na dieta destes grupos. As mós feitas em pedra atestam esta afirmação. Na costa os moluscos, focas, pinguins, baleias, golfinhos, aves marinhas, dentre outros, eram extremamente importantes na dieta dos grupos que ali habitavam. Outro ponto que fica em aberto, mas que podemos supor embasados nas pesquisas etnológicas é o uso de vestimentas feitas com pele de focas, principalmente após as baixas temperaturas do último interglacial. (WENDFORD; CLOSE; SCHILD, 2000). Alguns sítios revelam que a prática da necrofagia (comer animais abatidos por outros animais), tão comum no Paleolítico Inferior, continuou a ser praticada por muito tempo. Os pesquisadores Fred Wendford, Angela E. Close e Romuald Schild (2000) refletem que os poucos vestígios africanos comprometem a descrição do modo de vida deste período. Mesmo assim, afirmam que o Homo sapiens arcaico possuía praticamente as mesmas características físicas dos Neanderthais, apenas eram mais altos e menos corpulentos. Não tiveram tanta necessidade de readaptação ao meio, já que as temperaturas, de maneira geral, eram mais amenas na África, mas nos locais mais frios também desenvolveram habitações, lareiras e possivelmente vestimentas. Na maioria dos locais, os vestígios indicam que caçavam animais de pequeno e médio porte, mas também praticavam a necrofagia (carniceiros). Os instrumentos líticos passaram a ser elaborados a partir de 200 mil anos AP, quase 100 mil anos depois dos Europeus. Isto indica que os recursos disponíveis ainda eram muito ricos, não exigindo o aprimoramento das técnicas, para melhor domínio do meio. Também sepultavam seus mortos, mas não se sabe muito sobre os rituais que faziam parte deste processo. O território da antiga União Soviética apresenta muitas semelhanças culturais com a Europa do Paleolítico Médio. Valeryi Alexeev (2000) afirma que o Homo sapiens arcaico que ocupava esta vasta região também era atarracado e robusto como o Neanderthal, totalmente adaptados ao frio intenso desta região (maior do que na Europa). O autor chama a atenção para as enormes mãos que estes homens possuíam, muito maiores do que as do Homem Moderno, o que talvez dificultasse um pouco as atividades que exigissem motricidade fina. O modo de vida, economia e cultura destes grupos será descrito no item seguinte juntamente com outros locais. Wu Rukang e Jia Lanpo (2000) afirmam que o Homo sapiens arcaico da China é fisicamente mais semelhante ao Homo erectus do que com o Homo sapiens neanderthalensis, e a indústria lítica, assim como na África também é bem menos elaborada do que a da Europa e Oriente Próximo. O mesmo se dá com os achados na Indonésia descritos por Gert-Jan Bartstra (2000). 40 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a Atividades 1. Quando lemos ou ouvimos falar do Paleolítico Médio automaticamente lembramos do Homo sapiens neanderthalensis ou Homem de Neanderthal. Isto se dá pelo fato de que: I – Esta espécie apresentou desenvolvimento cultural muito superior a seus contemporâneos e possuía características físicas que superam todas as outras espécies do período; II - Os fósseis desta espécie foram encontrados na Europa ainda no século XIX (1856) e claramente atribuídos a um homem que não o moderno (Homo sapiens sapiens), sendo pesquisados há muito mais tempo do que o de seus contemporâneos. III - A Europa possui muitos sítios arqueológicos deste período, com material preservado e contextualizado, o que permite análises mais complexas do modo de vida destes grupos, ampliando assim o número de pesquisas e publicações a respeito do período. A partir dos itens expostos acima, é correto afi rmar que: a) As alternativas I e II estão corretas; b) As alternativas II e III estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) Apenas a alternativa I está correta; e) Todas as alternativas estão corretas. 2. Os estudos anatômicos do Homem de Neanderthal comprovam que seu corpo era adaptado ao frio. Verifi camos que isto é correto a partir da observação de que: I – Era bem maior e forte do que o Homo erectus; II – Era robusto e atarracado com uma forte caixa torácica que protegia seus órgãos internos; III – Sua mandíbula era extremamente reforçada, assim como os ossos dos braços e das pernas, indicando grande força física. 41 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a A partir dos itens expostos acima, é correto afi rmar que: a) As alternativas I e II estão corretas; b) As alternativas II e III estão corretas; c) As alternativas I e III estão corretas; d) Apenas a alternativa I está correta; e) Todas as alternativas estão corretas. 3. As principais indústrias líticas que caracterizam o Paleolítico Médio Europeu são: a) Acheulense e Mustierense; b) Mustierense e Ateriense; c) Acheulense e Levallois; d) Levallois e Mustierense; e) Acheulense e Ateriense. Gabarito: 1. b; 2. b; 3. d. 42 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a 4 PALEOLÍTICO MÉDIO: COTIDIANO E CULTURA MATERIAL Apresentação Neste capítulo apresentaremos o período histórico denominado de Paleolítico Médio, destacando a discussão sobre uma nova leitura da cultura do Homo sapiens arcaico e do Homo sapiens Neanderthalensis em uma prática diferente de seus antecessores (Homo habilis e Homo erectus), principalmente destacando aspectos imateriais, fazendo deles sapientes (sapiens), ou seja, sabedores não apenas de como viver em seu meio físico, mas preocupados com o além-vida e o sobrenatural. 4.1 Tipo de vida e cotidiano Os Neanderthalenses assim como os seus contemporâneos, tinham a economia baseada na caça e na coleta. Em grupo, caçavam manadas de herbívoros e elefantes, utilizando lanças de madeira e dardos. Como o clima era frio a carne se conservava por mais tempo, possibilitando maior aproveitamento da presa, no Paleolítico Médio as reservas alimentares eram mais abundantes, principalmente no que tange a animais de médio e pequeno porte, que poderiam ser facilmente caçados, bem como em relação às plantas exploradas através da coleta. Valoch (2000A) inclui a esta dieta, a caça eventual de outros animais mais agressivos, como os ursos das cavernas, nos Alpes ou no Cáucaso. No final do Paleolítico Médio a caça já estava muito mais especializada, principalmente a relacionada às manadas de herbívoros. Na gruta de Kulna, na Moróvia [Libéria], foram encontrados um grande número de vestígios de veados e mamutes; na gruta de Brockstein, na Alemanha, foram encontrados vestígios de cavalos; no sítio arqueológico a céu aberto de Erd, perto de Budapeste, na Hungria, vestígios de ursos das cavernas; na gruta de Hortus, no sul da França, vestígios 44 UL BR A – E du ca çã o a D ist ân ci a de cabras; nas grutas de Teshik-Tash na Ásia Central (Usbequistão), vestígios de cabras selvagens; em Aman Kutan, de carneiros das montanhas asiáticos, e em Obi Rachmat, de cabras selvagens e veados; no sítio a céu aberto de Kuturbulak (Cazaquistão), vestígios de cavalos e elefantes. [...] Na Europa Central os elefante e os rinocerontes eram os animais mais caçados, mas também foram recolhidos vestígios de cavalos, bovídeos e cervídeos (gruta de Kulna). (VALOCH, 2000A, p.116). A dieta não era baseada apenas em caça e coleta, mas também na
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