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DIREITO CIVIL I2 aspectos gerais das obrigações

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DIREITO CIVIL II: OBRIGAÇÕES
Capítulo 1
Aspectos Gerais das Obrigações
Capítulo 1: Parte 1
Aspectos Gerais das Obrigações
Introdução
O presente capítulo abordará as noções preliminares para a compreensão da relação jurídica obrigacional.
A obrigação talvez seja uma das realidades mais presentes no cotidiano das pessoas. Desde a simples compra de um bilhete de cinema até as mais complexas transações internacionais, estabelecem-se relações que são regidas pelo Direito das Obrigações - daí porque o estudo sólido da Teoria Geral das Obrigações é essencial a todos os ramos do Direito que lidam com negócios jurídicos (mesmo que as fontes das obrigações, como será demonstrado ao longo deste capítulo, não se restrinjam aos negócios jurídicos).
Assim é que serão agora estudados o conceito, abrangência, importância e evolução histórica do Direito das Obrigações, bem como as noções elementares de obrigação e seus princípios norteadores.
Diante disto, ao final deste capítulo, você será capaz de:
Compreender o alcance do Direito das Obrigações e situá-lo no Direito Civil;
Refletir sobre a importância das obrigações para a circulação de riquezas e serviços;
Apreender o conceito atual de obrigação;
Identificar os princípios norteadores da obrigação e sua relevância para o estudo do Direito Obrigacional.
1.1 O Direito das Obrigações sistêmica e sistemas abertos
1.1.1 Conceito, abrangência e importância
O Direito das Obrigações talvez seja um dos ramos do Direito mais presentes no cotidiano das pessoas. Lembre como foi o seu dia ontem. Você pode ter ido ao trabalho e depois à faculdade ou, então, somente à faculdade ou mesmo pode ter aproveitado um dia preguiçoso na frente da televisão ou lendo um bom livro; pode ter encontrado os amigos no final da tarde, pode ter ido a um aniversário de família, pode ainda ter aproveitado o dia na praia. Enfim, as possibilidades são inúmeras, no entanto há algo em comum em todas elas: seguramente na maior parte do seu dia, independentemente do que tenha feito, você estava valendo-se de regras do Direito das Obrigações. Quando você acende a luz, liga a televisão, utiliza qualquer meio de transporte para se locomover, frequenta bares, restaurantes, cinemas, locais públicos, estabelecimentos de ensino, vai ao trabalho, você está tornando concreto o Direito das Obrigações, pois em todas essas situações existem relações jurídicas, cujo objeto consiste em realizar algum dever de prestação e o Direito precisa regulamentar essas relações para o bom funcionamento da sociedade.
Ao acionar o interruptor para acender a luz, por exemplo, você (credor) nada mais está do que exigindo o cumprimento, pela companhia elétrica, (devedora) do dever de fornecer energia (prestação).
Da mesma maneira, quando você vai a uma lanchonete, você exige a entrega do pedido (prestação) pelo pagamento de um determinado preço (contraprestação). Em todos os casos, existem normas jurídicas que regem essas relações.
CONCEITO
O Direito das Obrigações é o ramo do Direito Civil destinado a regulamentar relações jurídicas que têm por objeto uma prestação (dar, fazer e não fazer) de natureza patrimonial que deve ser cumprida por um sujeito (devedor) a outro (credor). Esse dever de prestação pode decorrer da vontade dos sujeitos envolvidos (como em um contrato de compra e venda), da própria lei (como a obrigação de pagar alimentos) ou até mesmo de um ato ilícito (dever de reparar ou ressarcir os danos causados a outrem). O Direito das Obrigações abrange todo esse complexo de normas, que vai desde a proteção do negociante de boa-fé na fase pré-contratual, até o cumprimento voluntário ou forçado de uma prestação.
COMENTÁRIO
Fase pré-contratual: Os contratos são fontes de obrigações, portanto o estudo do contrato necessariamente envolve o estudo da teoria geral das obrigações. A formação do contrato apresenta três fases: negociações preliminares (fase pré-contratual ou também chamada de puntuação), proposta e aceitação. Embora na fase pré-contratual ainda não exista vínculo jurídico contratual, há deveres laterais que decorrem da cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422, CC) que impõem aos negociantes o dever de lealdade e confiança desde o início das negociações. Dispõe o art. 422, CC, que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Esse dispositivo, ainda que aparentemente refira-se a contratos já formados, têm sido interpretados pela doutrina e pela jurisprudência como fonte para a chamada responsabilidade civil pré-contratual. Vide, a exemplo, no seguinte julgado:
Recurso Especial. Civil e Processual Civil. Violação do Artigo 535 do Código de Processo Civil. Ausência. Declaratórios Procrastinatórios. Multa. Cabimento. Contrato. Fase de Tratativas. Violação do Princípio da Boa-Fé. Danos Materiais. Súmula Nº 7/Stj.
Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.
"No caso, não se pode afastar a aplicação da multa do art. 538 do CPC, pois, considerando-se que a pretensão de rediscussão da lide pela via dos embargos declaratórios, sem a demonstração de quaisquer dos vícios de sua norma de regência, é sabidamente inadequada, o que os torna protelatórios, a merecerem a multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do CPC' (EDcl no AgRg no Ag 1.115.325/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 4/11/2011).
A responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.
As instâncias de origem, soberanas na análise das circunstâncias fáticas da causa, reconheceram que houve o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. A desconstituição do acórdão, como pretendido pela recorrente, ensejaria incursão no acervo fático da causa, o que, como consabido, é vedado nesta instância especial (Súmula nº 7/STJ).
Recurso especial não provido.
(REsp 1051065/AM, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013).
Na fase de negociações, portanto, existem obrigações que devem ser observadas por ambos os negociantes.
A fase pré-contratual, porém, não pode ser confundida com o chamado pré-contrato, contrato preliminar ou contrato-promessa (art. 462-466,CC).
O Direito Civil regula tanto situações existenciais (e.g. direitos de personalidade) quanto situações patrimoniais. Os direitos patrimoniais dividem-se em:
Direitos reais
São aqueles que representam uma relação de sujeição de uma coisa a um bem. O direito real é aquele que afeta a coisa direta e imediatamente, sob todos ou sob certos respeitos, e a segue em poder de quem quer que a detenha. O titular de um direito real pode, dependendo da espécie do direito, ter poderes de uso, gozo, disposição e reivindicação de um bem móvel ou imóvel. Por exemplo, o proprietário de um imóvel pode utilizá-lo pessoalmente, emprestar, alugar, ceder o uso e proteger o seu direito contra quem quer que o ameace. Os direitos reais são estudados pelo Direito das Coisas.
Direitos obrigacionais, pessoais ou de crédito
Vê-se, portanto, que o Direito das Obrigações possui relevância acentuada no dia a dia. Ele se ocupa da circulação de riquezas e da realização de serviços, elementos fundamentais à sociedade contemporânea. Rosa Nery e Nelson Nery Junior destacam que o direito das obrigações acompanha de perto as transformações sociais e os progressos da ciência e da tecnologia em todos os setores onde se opera a circulação livre e civilizada de riquezas. Isso já é o bastante para revelar
a importância do caráter próprio das relações jurídicas de direito de obrigações, economicamente apreciáveis e capazes de impor a alguém, de forma transitória, a sujeição de certo ato ou fato (a prestação), por decorrência de obrigação assumida.
1.1.2 Evolução histórica
Dada a sua importância, as civilizações antigas já se preocupavam em tratar das relações jurídicas obrigacionais. A Lei das XII Tábuas trazia regras relativas ao descumprimento de obrigações, considerando como delito atos que hoje compreendemos como ilícitos ensejadores de responsabilidade civil. É o caso, por exemplo, do item 2 da Tábua Terceira, segundo o qual se alguém colocar o seu dinheiro a juros superiores a um por cento ao ano, que seja condenado a devolver o quádruplo, ou do item 2 da Tábua Sétima que determinava que se alguém causar um dano premeditadamente, que o repare.
A sistematização do Direito das Obrigações, porém, começou a ocorrer algum tempo depois. No século II, o jurisconsulto Gaio já anunciava uma ordenação das obrigações ao tentar enumerar as fontes das obrigações.
CURIOSIDADE
No decorrer dos séculos, o Direito das Obrigações sofreu profundas evoluções não apenas no que diz respeito às fontes, mas também ao conteúdo e às consequências do inadimplemento.
Se antes o devedor poderia ser preso, escravizado, mutilado ou mesmo morto em razão de uma dívida não paga, atualmente o aspecto patrimonial do Direito Obrigacional prevalece até nas consequências pelo descumprimento do dever prestacional, respondendo pela dívida apenas o patrimônio do devedor.
COMENTÁRIO
Jurisprudência
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5o, LXVIII, estabelece que as únicas hipóteses de prisão por dívida civil são a do devedor de alimentos e a do depositário infiel. A partir de 2007 (HC 90.172-7), porém, a jurisprudência do STF passou a entender que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos retirariam a base legal para regulamentar a prisão civil do depositário infiel, de maneira que qualquer lei que tentasse disciplinar o assunto não passaria pelo crivo da convencionalidade. A evolução da jurisprudência do STF nesse sentido culminou na edição da Súmula Vinculante n. 25, aprovada 16/12/2009 e publicada em 23/12/2009, segundo a qual "é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito".
Ao longo do século XX a massificação das relações sociais contribuiu para um grande salto no Direito Obrigacional, sobretudo para harmonizar os princípios da livre iniciativa, autonomia privada e dignidade humana. Giselda Hironak destaca que as exigências da contemporaneidade requerem uma evolução cada vez mais dinâmica, em toda a estrutura jurídica e relacional humana, o que não deixa de alcançar, também, a ambiência da relação jurídica obrigacional, sem dúvida. A autora aponta ainda que atualmente existe uma certa tendência de intervenção estatal pontual, pois há a consciência, por parte do Estado, de que a autonomia da vontade pode ser constantemente prejudicial a uma das partes.
COMENTÁRIO
Álvaro Villaça de Azevedo destaca que, por mais dinâmica que seja a sociedade, o Direito das Obrigações é o que menos sofre influência das modificações sociais. Vide a lição do autor:
O Direito das Obrigações, dos ramos do Direito Civil, é o que menos se torna sensível às mutações sociais, entretanto não se pode dizer que seja ele imutável, pois o Direito não deixa de ser a própria vida social normatizada, regulamentada pelas normas. O direito não pode estatizar-se.
(...)
O que se quer mostrar é que o Direito das Obrigações, não sofrendo muito essas injunções locais, é universal, quase imutável, pois as situações dele decorrentes são, praticamente, as mesmas em todo o mundo.
(...)
A evolução do Direito das obrigações está presa ao elemento econômico e se faz muito lentamente.
(AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2011. pp. 6-7).
SAIBA MAIS
No Brasil o Código Civil de 1916 disciplinava o Direito das Obrigações no Livro III da Parte Especial, que trazia tanto a Teoria Geral das Obrigações quanto a Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie.
Em meados do século XX, o Brasil, seguindo a experiência de países como Suíça, Itália, Polônia, entre outros, tentou unificar o Direito das Obrigações, tendo em 1941 sido elaborado um Anteprojeto de Código das Obrigações pelos então ministros Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães. Já em 1964 foram produzidos 3 (três) anteprojetos: Caio Mário da Silva Pereira escreveu sobre as obrigações em geral, dividindo a matéria em negócio jurídico, teoria geral das obrigações, teoria geral dos contratos, várias espécies de contratos, declaração unilateral de vontade, enriquecimento indevido e responsabilidade civil; Teophilo Azevedo ficou encarregado dos títulos de crédito e Sylvio Marcondes abordou o direito de empresa. Em 1965, esses anteprojetos foram unidos em um projeto de código de obrigações, mas a proposta não obteve êxito.
ATENÇÃO
A partir do século XIX, a doutrina, sob forte influência de Teixeira de Freitas, passou a clamar pela unificação do Direito Privado, rechaçando a autonomia do Direito Comercial com relação ao Direito Civil. O projeto de unificação do Direito Privado consistia em estabelecer princípios e regras uniformes para os atos jurídicos de natureza civil e de natureza comercial.
Muito embora o Código Civil tenha determinado no art. 2045 a revogação da primeira parte do Código Comercial, Miguel Reale adverte que não se pode falar que houve unificação do Direito Privado, mas sim do Direito Obrigacional, esclarecendo que é importante "corrigir, desde logo, um equívoco que consiste em dizer que tentamos estabelecer a unidade do direito privado. Esse não foi o objetivo visado. O que na realidade se fez foi consolidar e aperfeiçoar o que já estava sendo seguido no País, que era a unidade do direito das obrigações. Como o Código Comercial de 1850 já se tornara completamente superado, não havia mais questões comerciais resolvidas à luz do Código de Comércio, mas sim em função do Código Civil. Na prática jurisprudencial, essa unidade das obrigações já era um fato consagrado, o que se refletiu na ideia rejeitada de um Código só para reger as obrigações" (REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm
O Código Civil de 2002 dispõe sobre as obrigações no livro I da parte especial, dividindo a matéria em Obrigações em Geral (Título I ao Título IV), Parte Geral dos Contratos (Título V), Espécies Contratuais (Título VI), Atos Unilaterais (Título VII), Títulos de Crédito (Título VIII) e Responsabilidade Civil (Título IX). O Livro de Empresa (livro II da parte especial) também traz uma série de disposições materialmente pertencentes ao Direito Obrigacional, evidenciando a diretriz já mencionada de unificação do Direito Obrigacional.
Há mudanças sensíveis entre o tratamento dado ao Direito das Obrigações no Código Civil de 1916 e no Código Civil de 2002, não só com relação à localização das normas no Código, mas sobretudo no que se refere à inserção dos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, que serão oportunamente estudados adiante.
LEITURA
Para complementar os seus estudos, sugerimos as seguintes leituras:
NERY, Rosa Maria de Andrade e NERY, Nelson. Instituições de direito civil. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
KLEE, A unificação do direito privado e as relações entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, out.dez 2007.
KOURY, Suzy Cavalcante. Novo código civil: unificação do direito das obrigações e direito societário. Revista da Faculdade de Direito de Minas Gerais, n. 44. Disponível aqui.
1.2 Obrigação: conceito e natureza jurídica
A palavra obrigação pode assumir diferentes acepções:
Obrigação
como dever social
É uma acepção bastante ampla que equipara obrigação a qualquer dever que o sujeito tem de se comportar de determinada forma, sob pena de sanção. Nessa acepção, o próprio conceito de sanção é amplo, eis que abrange também sanções sociais, não necessariamente jurídicas. Assim, os deveres de uma pessoa não mentir a um amigo (norma social) ou de confessar-se ao menos uma vez no ano (norma religiosa) podem ser considerados obrigações nessa concepção.
Obrigação como dever jurídico
Também é uma acepção ampla, embora um pouco mais contida do que a obrigação como dever social. Aqui a obrigação é entendida como um dever imposto por norma jurídica, sob pena de sanção. Para melhor compreender essa acepção, vale lembrar os elementos estruturantes das relações jurídicas: o sujeito passivo é titular do dever jurídico, ao passo que o sujeito ativo é titular do direito subjetivo. Nesse caso, a obrigação confunde-se com o próprio dever jurídico titularizado pelo sujeito passivo. Por exemplo, aquele que causa dano a outra pessoa tem a obrigação (dever) de reparar os prejuízos.
Obrigação como vínculo jurídico
Essa acepção recebeu apoio da doutrina por bastante tempo, tendo, inclusive, sido utilizada no art. 397 do Código Civil Português. Por essa concepção, obrigação é um vínculo constituído entre duas ou mais pessoas, pelo qual uma delas (ou algumas delas) deve realizar, em benefício da outra (ou das outras), uma prestação que é do interesse desta (ou destas). Apesar de essa acepção ser mais técnica do que as anteriores, ela falha por resumir a obrigação a um de seus elementos (o vínculo jurídico). Como será visto adiante, a obrigação é uma relação jurídica e o vínculo é apenas um dos elementos estruturais.
Obrigação como relação jurídica
É a acepção estrita de obrigação, portanto, objeto do Direito das Obrigações. A obrigação é uma relação jurídica transitória em que o devedor (sujeito passivo/solvens) tem o dever de realizar uma prestação de natureza econômica, consistente em um dar, fazer ou não fazer (objeto) em favor do credor (sujeito ativo/accipiens), sob pena de o seu patrimônio responder pelo descumprimento (garantia). Traduzindo em exemplo, a relação jurídica entre locador e locatário de um imóvel é uma obrigação (ou relação jurídica obrigacional).
Clóvis do Couto e Silva propôs um novo olhar ao conceito de obrigação, definindo-a como um processo: a obrigação é um processo, vale dizer, dirigese ao adimplemento, para satisfazer o interesse do credor. A relação jurídica, como um todo, é um sistema de processos. Não seria possível definir a obrigação como ser dinâmico se não existisse separação entre o plano do nascimento e desenvolvimento e o plano do adimplemento.
A definição de Clóvis do Couto e Silva permite atentar ao fato de que a obrigação desenvolve-se de maneira dinâmica, dirigida à satisfação do interesse do credor. Isso fica muito claro quando pensamos em situações de descumprimento do dever de prestação e a possibilidade de adimplemento tardio.
Se, por exemplo, uma noiva contrata uma doceira para preparar o seu bolo de casamento, se a prestação não for cumprida na data, local e horário pactuados, o interesse da credora no cumprimento da obrigação cessará. Por outro lado, se a pessoa deixa de pagar a conta de energia na data do vencimento, ainda assim poderá efetuar o pagamento após o prazo, pois continua sendo de interesse do credor. O enfoque no interesse do credor resulta ainda em uma série de outros institutos que serão oportunamente estudados ao longo deste livro.
O que se deve deixar claro é que a obrigação, enquanto relação jurídica complexa e dinâmica, desenvolve-se para atingir um fim, qual seja o interesse do credor.
Clóvis Veríssimo do Couto e Silva (1930-1992) foi um importante jurista brasileiro, nascido em Porto Alegre, bacharel, mestre e doutor em Direito Pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se tornou também professor catedrático. Ocupou a cadeira 42 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Bastante reconhecido no Brasil e no exterior, a obra do autor é praticamente toda voltada ao estudo do Direito Privado. A obra obrigação como um processo foi originalmente a tese escrita para o concurso à cátedra de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964. Embora já conte com mais de 30 (trinta) anos, a tese continua bastante atual e o seu estudo é muito relevante para a compreensão dos institutos do Direito das Obrigações contemporâneo.
LEITURA
Para complementar os seus estudos, sugerimos a seguinte leitura:
NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
1.3 Princípios norteadores das relações obrigacionais
1.3.1 Autonomia privada
A autonomia privada talvez seja um dos princípios mais importantes de todo o Direito Privado. Imagine que você vá a uma loja adquirir um plano de telefonia móvel. Você pode escolher, entre as várias operadoras, aquela que você contratará; você pode escolher se o plano será pré-pago ou pós-pago, a franquia de minutos, o pacote de serviços e a data do vencimento da fatura. Ainda que a liberdade de escolha seja limitada às opções da operadora, você pode escolher o que corresponder melhor ao seu interesse.
Essa liberdade que a pessoa tem para criar regras aplicáveis aos seus negócios consiste justamente na autonomia privada - daí porque ela é comumente conceituada como o poder de autorregulamentação dos próprios interesses.
No exercício da autonomia privada, as pessoas podem celebrar negócios jurídicos, considerados fontes de relações obrigacionais - é assim com a compra e venda, empréstimo, títulos de crédito e tantos outros. É no âmbito dos negócios jurídicos, portanto, que a autonomia privada encontra ambiente para desenvolver-se.
COMENTÁRIO
É comum, na literatura jurídica, as expressões “autonomia da vontade” e “autonomia privada” aparecerem como sinônimas, indicando o poder de autodeterminação que tem o sujeito de direito para estabelecer livremente as regras de suas relações jurídicas. Vide, a exemplo, Carlos Roberto Gonçalves: “o princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual. No poder dos contratantes de disciplinar seus interesses mediante um acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados.” (Direito civil brasileiro, V.III, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20).
Entretanto, há autores que diferenciam as expressões. Parte da doutrina entende que a expressão autonomia da vontade foi superada pela expressão autonomia privada, na medida em que aquela consagrava a vontade como dogma absoluto, o que não pode ser admitido. Nesse sentido, leciona Roxana Cardoso Brasileiro Borges e que “a autonomia privada contestou o dogma da vontade ao afirmar que o puro consenso não é capaz de criar direito, mas apenas o consenso que for previsto pelo ordenamento jurídico ou aquele consenso ou acordo que não o contrariar (Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 52).
Rosa Maria Nery traz ainda outra teoria, admitindo a coexistência das expressões autonomia da vontade e autonomia privada, que refletem realidades distintas:
"A ideia de autonomia da vontade liga-se à vontade real ou psicológica dos sujeitos, no exercício pleno da liberdade própria de sua dignidade humana, que é a liberdade de agir, ou seja, a raiz ou a causa de efeitos jurídicos (...) Autonomia privada é outra coisa. É princípio específico de direito privado. Situa-se em outro plano, ligado à ideia de poder o sujeito de Direito criar normas jurídicas particulares que regerão os seus atos”. (Função do direito privado no atual momento histórico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 115-116).
SAIBA MAIS
Por óbvio, a autonomia privada não é irrestrita e tem
limites impostos pelo próprio ordenamento jurídico por meio de normas cogentes. Por mais que os sujeitos tenham liberdade para estabelecer as regras próprias de seus negócios, não podem contrariar disposições normativas de imperatividade absoluta, sob pena de invalidade do ato praticado.
Assim é que normas de ordem pública, como as que tutelam os direitos de personalidade, ou as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e função social do contrato não podem ser afrontadas pelo exercício da autonomia.
Por exemplo, no Brasil é vedada a celebração de compra e venda de órgãos e tecidos. O art. 14, parágrafo único do Código Civil determina que a disposição em vida de órgãos e tecidos será regulada por lei especial. Regulamentação esta feita pela Lei n. 9.434/1997 que em seu art. 1o admite apenas a doação. Se uma pessoa vender um rim a outrem, esse negócio é inválido e, consequentemente, os deveres de prestação (pagar o preço e entregar o órgão) são inexigíveis.
Considerando que a autonomia privada pode definir o conteúdo do negócio jurídico e que negócios jurídicos são uma das fontes das obrigações, a influência da autonomia no Direito Obrigacional é evidente.
Em um contrato de compra e venda de um imóvel, por exemplo, as partes podem ajustar a forma do pagamento (se à vista, a termo ou parcelado), o valor das prestações, a cláusula de pericário retrovenda, entre outros.
Vale, por fim, ressaltar que há obrigações que não foram originadas de negócios jurídicos, como ocorre com as relações envolvendo responsabilidade civil. Por isso, ainda que a autonomia privada exerça forte influência no Direito Obrigacional, existem situações em que tanto o surgimento do vínculo jurídico obrigacional quanto o próprio conteúdo da obrigação independem do exercício da autonomia privada, conforme se estudará no próximo capítulo.
1.3.2 A boa-fé
1.3.2.1 Boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva
Até o início do século XX, a boa-fé no Direito brasileiro era conhecida apenas pelo seu aspecto subjetivo, ou seja, no querer psicológico dos agentes, na intenção de não causar dano ao outro, ou no desconhecimento do vício que impede a aquisição legítima de um direito. A boa-fé subjetiva, enquanto estado psicológico, emerge da teoria da aparência, quer dizer, agia de boa-fé aquele que acreditava que estava agindo conforme o Direito.
Na Alemanha pós-Primeira Guerra, a boa-fé encontrou terreno fértil para o surgimento de um novo conceito, retomando e aprimorando o que já havia sido feito no Direito Romano, com amparo no § 242, combinado com o § 1.106, ambos do BGB. A jurisprudência alemã, respaldada no binômio Treu und Galuben, ou seja, lealdade e confiança, passou a conferir nova plástica à boa-fé, relacionando-a não mais com o psicológico dos contratantes, mas sim com o fato de as suas condutas estarem adequadas aos padrões sociais de comportamento leal e probo. A teoria da aparência cedeu espaço à teoria da confiança, o “estar” de boa-fé é separado do “agir” de boa-fé.
Assim é que nasceu, como filha da solidariedade social, a boa-fé objetiva, que reflete a exigência de respeito, colaboração e fidelidade recíprocos.
COMENTÁRIO
O princípio da solidariedade está inserido no art. 3o, III, CRFB, que determina que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é constituir uma sociedade livre, justa e solidária.
A solidariedade social reflete a ideia de que todos são responsáveis pelo bem comum. Rosa Nery e Nelson Nery afirmam que:
É no princípio da solidariedade que devemos buscar inspiração para a vocação social do Direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado pacificação e pacificação social.
Esse valor social, essa principiologia de solidariedade, que inspira a função social do direito, é introjetada na doutrina de Direito Privado em muitas ocasiões, como, por exemplo, nas ocasiões em que o sistema limita o abuso de direito e coíbe práticas mercadológicas que permitem que um se aproveite da debilidade do outro (Instituições de direito privado. Vol. 1. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2015. sp. 544).
Pela cláusula geral da boa-fé objetiva, foi criado o padrão social do bom negociante, indivíduo no qual pode ser depositada confiança por apresentar conduta correta, leal e proba, cooperando sempre com a satisfação da obrigação. A obrigação, pelo ângulo da boa-fé, passa a ser encarada como uma relação complexa que compreende, para além dos deveres de prestação voluntários, deveres involuntários de conduta.
Não se pode confundir boa-fé subjetiva com boa-fé objetiva, nem afirmar que existe uma relação necessária entre ambos.
Nesse ponto, é preciso esclarecer que a boa-fé subjetiva não foi eliminada do Direito Civil, nem poderia ser. Ainda há situações em que o exame da boa-fé subjetiva é fundamental, como, por exemplo, na validade e eficácia do pagamento feito a credor putativo, tal qual estabelece o art. 309, CC.
SAIBA MAIS
No Brasil, o Código Civil de 1916 conheceu somente a boa-fé subjetiva, pois à época a boa-fé tinha pouca expressão no Direito Civil, sendo relevante apenas em alguns casos específicos, como nos efeitos da posse ou na disciplina dos vícios do negócio jurídico. A boa-fé objetiva ganhou espaço na legislação pátria quando da elaboração do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que trouxe às relações obrigacionais consumeristas o apelo da solidariedade e colaboração entre fornecedor e consumidor.
A partir de então, a jurisprudência passou a movimentar-se, ainda que timidamente, no sentido da aplicabilidade do princípio também nas relações obrigacionais não consumeristas.
Em 2002, finalmente, o princípio da boa-fé objetiva foi positivado no art. 422, do Código Civil, sob a forma de cláusula geral irradiante: ainda que esteja na parte relativa à Teoria Geral dos Contratos, deve ser aplicada a todas as relações jurídicas obrigacionais, contratuais ou não, que tenham o Código Civil como fonte direta ou subsidiária, como acontece, por exemplo, nos contratos administrativos.
Sobre os destinatários da boa-fé objetiva, o jurista alemão Karl Larenz propõe o seguinte esquema:
	Devedor
	Cabe cumprir a obrigação, conforme o espírito com a qual foi criada.
	Credor
	Deve corresponder à confiança nele depositada e colaborar para a satisfação da obrigação.
	Todos os sujeitos envolvidos
	Precisam cooperar para atingir à finalidade objetiva do negócio com respeito e lealdade recíprocos.
SAIBA MAIS
1.3.2.2 Funções da boa-fé objetiva
O art. 422, CC/2002, apesar de ser o dispositivo que trata explicitamente da vertente objetiva da boa-fé, não é o único a ser considerado no estudo global do princípio, que também se faz presente no art. 113, que trata da interpretação dos negócios jurídicos conforme a boa-fé, e no art. 187 , que fixa a ilicitude do abuso de direito, determinado conforme a conduta excessiva do titular do direito conforme parâmetros estabelecidos pela boa-fé.
Dessa maneira, seguindo a doutrina alemã, o Código Civil brasileiro confere à boa-fé objetiva uma tríplice função:
Função de cânone interpretativo
Função de cânone interpretativo (art. 113, CC). A interpretação das regras que regem a obrigação deve ser feita conforme a boa-fé objetiva.
Função de criação de deveres anexos
Função de controle do abuso de direito
SAIBA MAIS
CONCEITO
Jurisprudência
Direito civil e processual civil. Contratos. Recurso especial.
Embargos do devedor. Execução de honorários advocatícios contratuais. Acordo em ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato com previsão de sub-rogação do ex-companheiro nas obrigações contratuais, inclusive de pagar honorários. Incidência sobre condenação a pagamento de “renda vitalícia”. “Cláusula de sucesso”. Limitação. Boa fé objetiva.
– Em se tratando de honorários advocatícios contratuais – e não sucumbenciais – deve valer entre as partes o tanto quanto pactuado, mesmo na hipótese de sub-rogação de obrigações, na qual o recorrente assumiu a
obrigação de pagar os honorários contratuais estipulados entre terceira pessoa – sua ex-companheira – com o recorrido, que atuou como advogado em ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato.
– O contrato de honorários advocatícios que embasa a execução tem em seu bojo uma “cláusula de sucesso”, isto é, abrange todos os ganhos da representada em Juízo, de modo que devem os honorários recair sobre a totalidade dos valores a ela destinados, tanto aqueles decorrentes da divisão dos bens do casal, quanto os referentes à “renda vitalícia” fixada, ressalvado, quanto esta, que, para o cálculo desta execução, os honorários não podem recair sobre as parcelas ainda não pagas, porque não há como fazer incidir a verba honorária sobre valor que sequer foi ainda recebido pela parte, o que faria com que o advogado obtivesse, de imediato, valores correspondentes a prestações que sua cliente apenas poderá receber ao longo da vida, pois o recebimento está condicionado ao fator de ela “continuar viva”; qualquer raciocínio diferente caracterizaria tentativa imediata de enriquecimento sem causa do recorrido.
– A boa fé objetiva, verdadeira regra de conduta, estabelecida no art. 422 do CC/02, reveste-se da função criadora de deveres laterais ou acessórios, como o de informar e o de cooperar, para que a relação não seja fonte de prejuízo ou decepção para uma das partes, e, por conseguinte, integra o contrato naquilo em que for omisso, em decorrência de um imperativo de eticidade, no sentido de evitar o uso de subterfúgios ou intenções diversas daquelas expressas no instrumento formalizado.
– A pretensão do advogado que postula honorários contratuais em valores superiores ao proveito econômico imediato auferido pela parte que representou em Juízo, encontra limitação no princípio da boa fé objetiva, mostrando-se patente o rompimento da atuação ponderada e preocupada com a outra parte, marcada pela postura respeitosa e povoada de lealdade que deve nortear os contratantes.
- A expectativa de vida da beneficiária da pensão vitalícia, não pode se converter em direito líquido e certo para fins de execução, porquanto não se pode aferir e, por consequência, tampouco adiantar, algo que é de acontecimento incerto, porquanto os aludidos 25 anos de sobrevida não passam de mera probabilidade, baseada em estatísticas.
- A única forma viável, portanto, é que integrem, para o cálculo dos honorários contratuais a embasar a execução, a totalidade das parcelas já pagas e, por conseguinte, já percebidas por M. R. dos S. S., ficando ressalvado ao recorrido, que execute, nos termos do acordo e respectivo contrato de honorários, as parcelas que forem sendo pagas, como entender de direito.
Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 830.526/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/09/2009, DJe 29/10/2009)
SAIBA MAIS
COMENTÁRIO
A doutrina, embora reconheça que a boa-fé objetiva apresenta diferentes funções, não é unânime na classificação, havendo, portanto, vários critérios utilizados por autores diferentes.
Judith Martins-Costa classifica as funções da boa-fé em três grupos:
otimização do comportamento contratual, que envolve tanto os deveres de conduta quanto a interpretação do contrato;
função de reequilíbrio; e
função de limite, que corresponde à restrição ao exercício dos direitos subjetivos a fim de evitar o abuso de direito (MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.p. 199).
Cláudia Lima Marques, apoiada na doutrina de Jauering e Vollkommer, classifica as funções da boa-fé em:
complementação ou concretização da relação, que vê na boa-fé fonte dos deveres anexos;
controle e limitação das condutas, que diz respeito ao abuso de direito;
correção e adaptação em caso de mudança de circunstâncias, que trata do reequilíbrio contratual decorrente de onerosidade excessiva; e
d) autorização para a decisão por equidade, que corresponde à função interpretativa. (Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 221-222).
Já Gustavo Tepedino e André Schreiber, amparados nos ensinamentos de Franz Weiacker, lecionam que a boa-fé tem função tríplice, distribuída da seguinte maneira:
função interpretativa;
função restritiva do exercício abusivo de direitos; e
função criadora de deveres anexos (A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo código civil. In: TEPEDINO, Gustavo (org). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 35-36.).
1.3.3 Responsabilidade patrimonial
Já vimos que a obrigação é uma relação jurídica complexa cuja finalidade é a satisfação do credor. Vimos também que, caso o devedor não cumpra o seu dever de prestação, sofrerá as consequências impostas pela legislação.
No âmbito obrigacional, essas consequências têm caráter patrimonial: o patrimônio do devedor responderá pelos prejuízos sofridos pelo credor (art. 391, CC), tanto de ordem patrimonial quanto extrapatrimonial. Com exceção da prisão do devedor de alimentos, a prisão civil por dívida não é admitida no Direito brasileiro, o que já foi exposto anteriormente.
O princípio da responsabilidade patrimonial está previsto no art. 391, CC e no art. 789 do CPC de 2015 (art. 591 do CPC de 1973). Assim é que em um contrato de mútuo oneroso (empréstimo de bem fungível), se o devedor não pagar o valor devido no vencimento deverá arcar com juros, multa (se houver), podendo ter o seu patrimônio executado pelo credor pela via judicial.
Obviamente esse princípio comporta exceções previstas em lei, entre as quais destacam-se:
a) os bens do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada em direito real ou obrigação reipersecutória (art. 790, I, CPC/15);
b) os bens do sócio, nos termos da lei (art. 790, II, CPC/15);
c) os bens do devedor, quando em poder de terceiros (art. 790, III, CPC/15);
d) os bens do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou se sua meação respondem pela dívida (art. 790, IV, CPC/15);
e) os bens alienados ou gravados com ônus real em fraude à execução (art. 790, V, CPC/15);
f) bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução (art. 833, I, CPC/15);
g) os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida (art. 833, II, CPC/15);
h) os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor (art. 833, III, CPC/15);
i) os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional (art. 833, IV, CPC/15);
j) os livros, máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão (art. 833, V, CPC/15);
k) o seguro de vida (art. 833, VI, CPC/15);
l) os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas (art. 833, VII, CPC/15);
m) a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família (art. 833, VIII, CPC/15);
n) os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social (art. 833, IX, CPC/15);
o) a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos (art. 833, X, CPC/15);
p) os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei (art. 833, XI, CPC/15);
q) o bem de família, na forma da Lei n. 8.009/90.
As situações antes descritas já eram tratadas no CPC/73. O CPC de 2015, porém, acrescentou ainda novas hipóteses de exceção
à responsabilidade patrimonial:
a) bens cuja alienação ou gravação com ônus real tenha sido anulada em razão do reconhecimento, em ação autônoma, de fraude contra credores (art. 790, VI, CPC);
b) bens do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica (art. 790, VII, NCPC);
c) os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra (art. 833, XII, NCPC).
1.3.4 Relatividade das obrigações
Diz-se que a obrigação é relativa porque ela vincula somente os sujeitos envolvidos na relação. O credor de uma obrigação apenas pode exigir o dever de prestação de seu devedor.
Isso ocorre, por exemplo, nas dívidas de pessoa falecida: em conformidade com o art. 1.997, CC, é o patrimônio do de cujus que responderá pelas dívidas até a partilha; uma vez realizada a partilha, o herdeiro responderá, porém nos limites das forças da herança.
Como qualquer princípio, a relatividade das obrigações também apresenta temperanças, tanto advindas da própria lei (como, por exemplo, na estipulação em favor de terceiros - arts. 436-438, CC) quanto da boa-fé objetiva e da função social do contrato (art. 421, CC).
ATIVIDADE
Antes de finalizar este capítulo, vamos analisar um estudo de caso.
Imagine a seguinte situação hipotética:
Rebeca adquiriu de um conhecido um notebook e pagou em 3 (três) prestações com cheque - o primeiro para o dia e os outros para serem descontados em 30 (trinta) e 60 (sessenta) dias. Sem avisar Rebeca, o vendedor descontou todos os cheques ao mesmo tempo, apenas 10 (dez) dias após a celebração do negócio, sendo que os dois cheques pós-datados foram devolvidos pelo banco por falta de saldo suficiente na conta-corrente.
Sabendo que, conforme a lei, o cheque é uma ordem de pagamento à vista e com base no conteúdo estudado neste capítulo, reflita:
a) Qual a natureza da relação jurídica estabelecida entre Rebeca e o vendedor? Explique sua resposta.
b) Em qual princípio está embasada a possibilidade de estabelecer livremente a forma de pagamento? Explique sua resposta.
c) Houve violação à boa-fé objetiva? Justifique.
Gabarito
REFLEXÃO
Você compreende a relevância do estudo do direito das obrigações? Como vimos acima, a obrigação permeia o funcionamento de toda a sociedade, desde as situações mais simples até as mais complexas. Neste exato momento, provavelmente você está concretizando alguma(s) relação(ões) obrigacional(is). Consegue identificar qual(is)?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005
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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
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NERY, Rosa Maria de Andrade (org). Função do direito privado no atual momento histórico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
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REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm.
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TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo código civil. In: TEPEDINO,Gustavo (org). Obrigações: estudos na perspectiva civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
CAPÍTULO 1
Aspectos Gerais das Obrigações

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