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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/311607561 Recombinação de repertórios: criatividade e a integração de aprendizagens isoladas Chapter · December 2016 CITATIONS 0 READS 216 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Creativity: Ontogenetic and cultural aproach View project Psicologia e tecnologias View project Hernando Borges Neves Filho Federal University of Pará 23 PUBLICATIONS 14 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Hernando Borges Neves Filho on 13 December 2016. The user has requested enhancement of the downloaded file. Hernando Borges Neves Filho 284 Recombinação de repertórios: criatividade e a integração de aprendizagens isoladas Hernando Borges Neves Filho Pontifícia Universidade Católica de Goiás Epstein, R., Kirshnit, C. E., Lanza, R. P. & Rubin, L. C. (1984). “Insight” in the pigeon: Antecedents and determinants of an intelligent performance. Nature, 308, 61-62. “Uma tarde, contrariando meus hábitos, tomei café preto e não consegui dormir. Multidões de ideias surgiram; senti-as colidindo até que pares se interligaram, for- mando uma combinação estável, por assim dizer” (Poincaré, 1913, p. 387) Capítulo XVIII | Criatividade 285 1 Köhler foi um pioneiro do estudo empírico da cognição animal, mas não foi o único. Pelo menos três de seus contemporâneos foram tam- bém pioneiros em suas metodologias empíricas: E. L. Thorndike, L. Hobhouse e R. Yerkes. Köhler (1948, p. 22) contrasta sua metodologia e seus dados aos dados obtidos por Thorndike com gatos em caixas problema. Köhler alinha e encontra pontos de confluência com às pro- postas de Hobhouse e Yerkes. Esta polarização gerou um longo debate sobre dois supostos tipos de resolução de problemas distintas: uma re- solução tentativa e erro (como a obtida por Thorndike) ou uma resolu- ção súbita por Insight (Delage & Carvalho Neto, 2006). A Universidade de Würzburg disponibiliza online em seu website algumas filmagens originais dos experimentos de Köhler (1948) com chimpanzés. INTRODUÇÃO À ÁREA DE PES- QUISA E CONTEXTUALIZAÇÃO DO EXPERIMENTO A criatividade tem sido uma fonte inesgotável de especulações filosóficas e científicas. Seu escrutínio empírico tem sido um trabalho constante na Psicologia desde o início do século XX, e a Análise do Com- portamento vem dando uma contribuição importante ao estudo deste tema a partir da análise de processos comportamentais rela- cionados com a origem de comportamentos novos. No início do século XX, uma das dis- cussões mais acaloradas no meio científico tratava do que separava animais humanos de não humanos, e que tipo de diferenças eram essas (Mas, 2015). Toda essa discussão era suplantada pela efusiva eclosão da teo- ria da evolução de Darwin, que começava a ganhar adeptos eminentes na Psicologia (Boakes, 1984). Nesse contexto, um traba- lho pioneiro e lembrado com frequência em livros texto é o de Wolfgang Köhler (1948) com chimpanzés (Pan troglodytes). Köhler expôs chimpanzés a diferentes tarefas de resolução de problemas e, em alguns casos, descreveu uma solução súbita da tarefa em questão como um “insight”. Este “insight” foi descrito por Köhler como uma topogra- fia de resolução de problema súbita, que ocorria em um lampejo, de forma fluída e direcionada a uma meta (a solução do pro- blema). Um exemplo deste desempenho se deu em uma situação problema na qual uma banana estava fora do alcance, sus- pensa por uma corda, e caixotes estavam disponíveis no ambiente. Diversos animais tinham acesso a essa situação simultanea- mente. Diversos chimpanzés pularam e es- ticaram seus braços em direção a banana, sem alcança-la. Até que, subitamente um destes sujeitos, chamado Sultão, se aproxi- ma de uma caixa e a carrega em direção a banana, coloca-a abaixo da posição da ba- nana, sobe na caixa e agarra a banana dian- te do olhar atento da plateia (de chimpanzés e humanos). Rapidamente foram traçadas analogias antropomorfizadas que tratavam o desempenho de Sultão como similar ao “a-há!” que humanos em uma cultura oci- dental costumam emitir ao resolver subi- tamente um problema (Jung-Beeman et al., 2004). Na época em que Köhler lançou seu livro, seus dados empíricos e suas manipu- lações experimentais contrastaram com a forma anedótica com a qual a inteligência animal era usualmente tratada em livros clássicos de Psicologia Comparada (Boakes, 1986; Delage & Carvalho Neto, 2010), e con- sequentemente seu método de teste siste- mático de resolução de problema animal chamou a atenção de outros pesquisadores1. Hernando Borges Neves Filho 286 Ao longo dos anos, e com a vasta repercussão dos trabalhos de Köhler, uma série de estudos sobre a resolução de pro- blemas foi realizada com chimpanzés e ou- tros animais em diferentes situações (Neves Filho, 2015). O debate acerca do “insight” chegou até mesmo a chamar a atenção de Pavlov e seus colegas, que adquiriram um casal de chimpanzés com o objetivo de re- plicar os achados de Köhler (para uma des- crição detalhada da série de estudos de resolução de problemas em chimpanzés, re- alizados nos laboratórios de Pavlov, conferir Razran, 1961; Ladygina-Kots & Dembovskii, 1969; Windholz, 1984; Windholz & Lamal, 1985; Reznikova, 2007). A maioria dos estu- dos focava a capacidade de animais de dife- rentes espécies resolverem tarefas em uma primeira apresentação, de forma criativa. Uma menor parcela de estudos, não menos relevante, teve como objetivo explorar qual o efeito da aprendizagem sobre o desem- penho súbito de resolução de problemas (Maier, 1931; 1937; Birch, 1945). Foi apenas uma questão de tempo até que pesquisado- res de viés analítico comportamental des- sem suas contribuições sobre este tópico. Na década de 1980, B. F. Skinner e alguns colaboradores publicaram uma sé- rie de experimentos cujo objetivo foi estu- dar fenômenos complexos2, ordinariamente chamados de cognitivos, em um tradicio- nal espécime do laboratório de Análise do Comportamento: o pombo (Columba livia). Esses estudos faziam parte do que ficou conhecido como o Columban Simulation Project3 (Epstein, 1981). Foram abordados fenômenos comportamentais como o auto reconhecimento e a formação de self (Eps- tein, Lanza & Skinner, 1981), uso de memo- randos (Epstein & Skinner, 1981), comunica- ção (Epstein, Lanza & Skinner, 1980), e até mesmo o comportamento de mentir (Lanza, Starr & Skinner, 1982). Dentre estes estudos, um que ganhou reconhecido destaque foi o que se propôs a identificar quais as variá- veis históricas responsáveis pelo “insight” (Epstein, Kirshnit, Lanza & Rubin, 1984). Publicado no tradicional periódico Nature, este estudo trouxe à comunidade científi- ca um novo processo comportamental de- monstrado empiricamente, a recombinação de repertórios (ou interconexão de repertó- rios), e elencou com clareza qual o papel da aprendizagem na resolução súbita de um problema, e alguns dos processos compor- 2 Em geral, o termo “comportamento complexo” é pouco claro e cria uma distinção pouco útil (comportamento simples e comportamento complexo). Entretanto, os autores utilizam este termo na série de ar- tigos do Columban Simulation Project para chamar a atenção de Psi- cólogos Cognitivos (Epstein, 1996). Em uma visão analítico comporta- mental, a dicotomia comportamento complexo vs. simples é eliminada, na medida em que se parte do pressuposto de que o que distingue di- ferentes comportamentos são suas variáveis de controle antecedente e consequente, e que em geral, chama-se de “complexo” comportamen- tos dos quais pouco se sabe sobre suas variáveis de controle (Donahoe & Palmer,2004, p. 3). 3 O Columban Simulation Project foi uma resposta a febre cognitiva que tomou conta da psicologia experimental estadunidense na épo- ca. Neste momento das ciências cognitivas, estava em voga a metá- fora do computador, que tinha como pressuposto básico o uso de um computador para simular e estudar fenômenos mentais (Cisek, 1999; Teixeira, 2008). O Columban Simulation Project visava dar uma alter- nativa biologicamente mais sensata e parcimoniosa: simular e estudar fenômenos tidos como mentais em organismos vivos, no caso, pombos (Epstein, 1981). O Columban Simulation Project hoje é apenas uma nota de rodapé em livros de história, mas seu pressuposto básico de estudar processos ditos mentais em organismos e não em máquinas, tem volta- do a ter destaque nas ciências cognitivas, na medida em que a metáfora do computador perdeu força (Lopes, Lopes & Teixeira, 2004), e as abor- dagens evolutivas do comportamento vem novamente ganhando vigor (Chemero, 2009; Horik, Clayton & Emery, 2012). Um documentário de 1982 sobre o projeto, com a apresentação de B. F. Skinner, está disponí- vel na íntegra no site de R. Epstein: http://drrobertepstein.com/index. php/videos Capítulo XVIII | Criatividade 287 tamentais básicos envolvidos no desempe- nho criativo. DESCRIÇÃO DO EXPERIMENTO Objetivo e Método Epstein et al. (1984) adaptaram uma das situações problemas do pioneiro traba- lho de Köhler (1948) aos pombos. A tarefa consistiu em empurrar uma caixa em di- reção a uma banana de plástico afixada no teto da câmara experimental, subir na cai- xa, e bicar a banana. A banana foi escolhida sarcasticamente para mostrar que pombos, dado o treino adequado, poderiam exibir o mesmo desempenho que os chimpanzés de Köhler. A essa situação problema, deu-se o nome de teste de deslocamento de caixa (Cook & Fowler, 2014). Os autores mani- pularam explicitamente o treino que estes pombos receberam antes de serem expos- tos a situação de teste. Onze pombos participaram do expe- rimento, e diferentes números de sujeitos receberam diferentes histórias experimen- tais antes de serem expostos a situação pro- blema. Quatro sujeitos receberam o treino independente (não encadeado) de dois re- pertórios pré-requisito: (a) treino de empur- rar direcionado (na qual uma caixa deveria ser empurrada em direção a um alvo verde), e; (b) subir na caixa e bicar um alvo (uma banana de plástico afixada no teto da câ- mara experimental). Todas as respostas fo- ram consequenciadas com acesso a alimen- to, e os animais foram mantidos em regime de privação alimentar durante o período do experimento. Foram também realizadas sessões de extinção de voar em direção ao alvo. Nestas sessões o alvo ficava disponí- vel, fora do alcance e sem a caixa, e nenhu- ma resposta era consequenciada. O treino da habilidade de empurrar direcionado consistia na modelagem de respostas de empurrar a caixa em direção a um alvo verde, que ficava afixado em uma das paredes da câmara, em posições alter- nadas a cada tentativa, na altura do piso. Também foram realizadas sessões de extin- ção de empurrar na ausência do alvo verde. O alvo do teste final (a banana de plástico) não esteve presente em nenhuma das ses- sões desta etapa. Durante o treino da habilidade de su- bir e bicar o alvo, a caixa permanecia fixa no piso da câmara, logo abaixo da posição onde o alvo estava afixado no teto. Tenta- tivas de empurrar e caixa e bicar a mesma não foram consequenciadas. A posição da caixa e da banana foi aleatorizada a cada apresentação. Durante o treino, nenhum critério de aprendizagem foi utilizado, e os autores apenas afirmam que o teste foi realizado após os sujeitos emitirem respos- tas de empurrar direcionado e subir e bicar confiavelmente na presença de cada estí- mulo (empurrar na situação caixa e alvo, subir na situação caixa e banana). Poste- riormente, Epstein (1996) afirma que a não utilização de critérios de aprendizagem foi Hernando Borges Neves Filho 288 intencional, para assegurar que nenhuma das duas respostas treinadas adquirisse um forte controle discriminativo durante o trei- no. Além dos quatro pombos que recebe- ram o treino completo dos dois repertórios pré-requisito, dois outros sujeitos aprende- ram somente a bicar o alvo, mas não a subir na caixa. Outros dois sujeitos aprenderam a subir na caixa e bicar o alvo, mas não a em- purrar a caixa. Um terceiro par de sujeitos aprendeu a subir na caixa e bicar o alvo e a empurrar a caixa, mas de forma não di- recionada (sem o alvo verde), e um último sujeito passou pelo treino completo (subir na caixa e bicar a banana, e empurrar di- recionado), mas não recebeu as sessões de extinção de respostas de voar. Cada uma destas histórias de treino produziu um de- sempenho particular na situação de teste. Resultados e Discussão Os resultados dos quatro sujeitos que receberam o treino completo foram similares e consistentes entre si. No início do teste, os animais exibiram um padrão de respostas que os autores categorizaram como um estado de “confusão”. Este padrão consistia em o sujeito ficar parado, entre a caixa e o alvo, emitindo respostas de olhar alternadamente para a caixa e para a alvo. Após a “confusão”, os sujeitos passaram a ir em direção à banana e tentar alcança- -la (nunca pulando ou voando), sem êxito. Após isso, novamente os sujeitos emitiram os mesmos padrões de “confusão” do início do teste. Após estes momentos de “confu- são” os sujeitos se aproximaram da caixa, e prontamente começaram a empurrá-la em direção à banana. Todos os sujeitos deste grupo guiavam seus empurrões em direção à banana olhando para a mesma a cada em- purrão, corrigindo a rota de deslocamento da caixa se necessário. Todos os sujeitos pararam de empurrar a caixa quando ela estava abaixo da banana, ou próximo dela, e em seguida subiram na caixa e bicaram a banana, resolvendo o problema. Dos sujeitos que não receberam um treino completo dos dois repertórios pré-re- quisito, os que não haviam sido treinados a subir na caixa, não resolveram a tarefa, e passaram a maior parte da sessão tentan- do alcançar a banana esticando-se em di- reção a ela. No teste dos sujeitos que não aprenderam a empurrar a caixa, nenhuma resposta de empurrar foi registrada durante as sessões, logo, a tarefa não foi resolvida. Os sujeitos que não tiveram um treino de empurrar direcionado passaram a maior parte do tempo das sessões empurrando a caixa, em diversas direções, tendo inclusive passado pelo local onde estava pendurado o alvo. Um destes sujeitos resolveu a tare- fa eventualmente, após 14 minutos, o outro apenas empurrou a caixa durante toda a sessão. O último sujeito, que recebeu o trei- no de subir a caixa e bicar o alvo e empurrar direcionado, mas não passou pelas sessões de extinção de voar em direção a banana, apresentou várias respostas em direção à Capítulo XVIII | Criatividade 289 banana, como pular e voar, por diversos minutos, até que, após essa etapa inicial, começou a empurrar a caixa em direção à banana, subiu na caixa e bicou a banana. Os resultados deste estudo identifi- caram o papel da história de treino, como uma variável decisiva na resolução súbita de uma tarefa, já que os animais sem al- gum dos pré-requisitos comportamentais não resolveram o problema, ou o resolve- ram acidentalmente, ao passo que os ani- mais que receberam o treino completo dos repertórios pré-requisitos, solucionaram a tarefa com topografia similar à clássica to- pografia de “insight”. Köhler foi um pioneiro ao mostrar que chimpanzés exibiam com- portamentos originais e criativos em situ- ações problemas criadas em um ambiente controlado. Epstein et al. (1984) mostraram a origem e uma forma de se construir estescomportamentos originais a partir de uma história de treino controlada. Epstein et al. (1984) também forne- ceram uma análise ponto a ponto da solu- ção do problema. No início da resolução, o estado de “confusão” do sujeito é efeito do controle de duas respostas pelo contexto do problema. O alvo, a banana pendurada no teto, controla respostas de bicar, e a caixa controla respostas tanto de subir como de empurrar. A “confusão” é resultado da nova configuração dos estímulos, no caso, bana- na e caixa presentes, com a caixa afastada da banana. Alguns dos sujeitos começam a sessão subindo na caixa, como a caixa não está abaixo da banana, a resposta de subir não produz o reforço, portanto entra em extinção. Na extinção, o empurrar ocorre por ressurgência (Epstein & Skinner, 1980), e é controlado pela posição da banana, que adquire controle sobre o empurrar a partir de um processo que os autores chamam de generalização funcional. A generalização funcional seria distinta da generalização tradicional, já que neste caso, não há se- melhança física entre os estímulos, apenas um compartilhamento de função. Ao passo que o animal empurra a caixa na direção da banana, o ambiente vai sendo progressiva- mente modificado, até que a caixa fique em baixo (ou próxima) da banana. Este novo estímulo (caixa em baixo da banana), pro- duzido pelo sujeito, controla a segunda res- posta, o subir, que é, na palavra dos autores, encadeada automaticamente ao empurrar, e produz a solução da tarefa. O animal para de empurrar a caixa assim que ela está pró- xima da banana pois ao produzir o estímulo “caixa em baixo da banana”, o subir se torna mais provável. O conjunto destes processos resultava no que os autores chamaram de recombinação de repertórios. A recombinação de repertórios é o processo comportamental pelo qual reper- tórios aprendidos independentemente um dos outros (ou seja, não encadeados) podem ser recombinados em uma forma ou sequ- ência nova, dada um controle discriminati- vo (situação problema) adequada. A recom- binação de repertórios passou a ser então uma nova maneira que a AC desenvolveu Hernando Borges Neves Filho 290 para lidar com a criatividade, ou a origem de comportamentos novos, ao lado de ou- tros processos básicos como a generalização de estímulos, a indução, a variabilidade, a modelagem e o encadeamento de respos- tas. Além disso, a recombinação de reper- tórios, quando estudada em procedimentos de resolução de problemas, é também um modo de descrever os processos compor- tamentais envolvidos na solução súbita de um problema, tradicionalmente conhecido na literatura de Psicologia como um “insi- ght”, desde que Köhler (1948) popularizou o termo a partir de seus experimentos com chimpanzés. DESDOBRAMENTOS Todos os trabalhos do Columban Si- mulation Project produziram muitas con- trovérsias. Franz de Waal, um eminente primatologista, chegou a comentar que o trabalho de auto reconhecimento em pom- bos (Epstein, Lanza & Skinner, 1981) é uma das “maiores bizarrices da ciência compor- tamental” (de Waal, 2001, p. 60)4. Diversas críticas foram também direcionadas ao tra- balho de “insight” (Epstein et al. 1984), em geral acusando que o mesmo se tratava de um simples encadeamento de respostas (El- len & Pate, 1986). Esta crítica não procede, já que a rigor não se trata de um treino de encadeamento, dada a natureza indepen- dente dos treinos das habilidades pré-re- quisito (um treino encadeado asseguraria que a consequência de uma resposta seria também discriminativo de outra). Outra crí- tica (Ettlinger, 1984) aponta que não houve manipulação de variáveis paramétricas de treino (como treinos de repertórios em con- textos distintos), o que sugere que o dado obtido possa ser um artefato metodológico (i.e. a resolução não passa de algo que pom- bos fazem por não haver outras coisas a não ser uma caixa e uma banana na situação de teste). A crítica de Ettlinger (1984) não se sustenta, graças aos dados com os pombos de Epstein et al. (1984) que não resolveram a tarefa com um treino incompleto dos reper- tórios pré-requisito, portanto, apesar dos autores não terem testado variáveis adicio- nais, o efeito do treino é claro. Sem o treino, não há resolução. Apesar destas críticas, maiores fo- ram os impactos positivos do trabalho so- bre a comunidade científica, tanto que Shettleworth (2012, pg. 217), especialista em cognição animal, coloca o trabalho de Eps- tein et al. (1984) como uma das maiores des- cobertas das ciências comportamentais do século XX, ao lado do pioneiro trabalho de Köhler (1948). 4 O principal ponto da crítica formulada por de Waal (2001) se pauta no fato de que primatas que apresentam o comportamento de auto reco- nhecimento em espelhos precisam de pouco ou nenhum treino explí- cito para que isso ocorra, ao passo que os pombos de Epstein, Lanza e Skinner (1981) precisaram de um treino direto de repertórios pré-requi- sito. A crítica passa ao largo do ponto principal do trabalho de Epstein, Lanza e Skinner (1981), que é construir em laboratório os pré-requisitos ontogenéticos para que esse desempenho seja observado, independen- te da espécie. O autor da crítica (de Waal, 2001) também aponta que replicações do estudo de Epstein, Lanza e Skinner (1981) não obtive- ram o mesmo resultado. Considerações acerca dessas replicações po- dem ser encontradas no recente estudo de Uchino e Watanabe (2014) que replicaram adequadamente o trabalho original de Epstein, Lanza e Skinner (1981). Capítulo XVIII | Criatividade 291 Desta forma, diversos trabalhos adi- cionais sobre a recombinação de repertó- rios foram publicados ao longo dos anos que se seguiram a publicação do trabalho original de Epstein et al. (1984). Com pom- bos, em variações do teste de deslocamen- to de caixa, Cook e Fowler (2014) e Neves Filho (2015) replicaram os achados originais de Epstein et al. (1984) envolvendo a recom- binação de dois repertórios. Epstein (1985) e Luciano (1991) demonstraram a recombina- ção de três repertórios, a partir do desmem- bramento do treino de subir e bicar em dois repertórios independentes, e Epstein (1987) demonstrou a recombinação de quatro re- pertórios, adicionando uma porta que, se aberta, dava acesso a caixa. A recombinação de repertórios tam- bém foi observada em diferentes tarefas, para além do teste de deslocamento de cai- xa, e com diferentes espécies como: maca- cos-prego (Delage & Galvão, 2010; Neves Filho, 2010; Delage, 2011; Neves Filho, Car- valho Neto, Barros, & Costa, 2014), ratos al- binos (Delage, 2006; Tobias, 2006; Ferreira, 2008, Leonardi, 2012; Neves Filho, Stella, Dicezare & Garcia-Mijares, 2015), corvos da Nova Caledônia (Taylor, Elliffe, Hunt & Gray, 2010; Neves Filho, 2015) e humanos (Sturz, Bodily & Katz, 2009). CONSIDERAÇÕES FINAIS A recombinação de repertórios é um processo comportamental relacionado a re- solução de problema e criatividade (Neves Filho & Carvalho Neto, 2013). A publicação do artigo de Epstein et al. (1984) trouxe uma nova linha de pesquisa para a Análise do Comportamento, e a recombinação de re- pertórios tem o potencial de ser um mode- lo animal para o estudo de comportamen- tos novos (Kubina, Morrison & Lee, 2011; Leonardy, Andery & Rossger, 2011; Murari & Henklain, 2013). Assim como procedi- mentos comportamentais bem estabeleci- dos, como os esquemas de reforçamento, são amplamente utilizados em pesquisas de neurociências e farmacologia (McKim, 2007), a recombinação de repertórios, como um modelo animal de criatividade, tem o potencial de servir aos mesmos propósitos. Na medida em que um procedimento pro- duz a recombinação de repertórios, novas variáveis podem ser introduzidas, como o efeito de drogas. Será que um animal queaprenda uma das habilidades pré-requisito de um problema sob o efeito de álcool apre- senta uma topografia de solução igual a um animal sóbrio? E se o animal estiver sob efeito da droga somente no teste? Estas são perguntas empíricas ainda em aberto. Algumas variáveis de treino já ma- peadas indicam que se as habilidades pré- -requisito são treinadas com reforços dife- rentes (água ou comida), a recombinação de repertórios não ocorre em pombos na tare- fa de deslocamento de caixa (Neves Filho, 2015). Com macacos-prego, em uma tarefa de dois repertórios (encaixar ferramentas e alcançar alimento usando uma ferramen- Hernando Borges Neves Filho 292 ta) a recombinação ocorre se os repertórios forem treinados e testados em um mesmo ambiente (Neves Filho, 2010), porém não ocorre da mesma maneira se ao menos um dos repertórios é treinado em um local di- ferente do local onde a recombinação é tes- tada (Neves Filho, Carvalho Neto, Barros, & Costa, 2014), o mesmo efeito de contexto distinto de treino e teste não é observado em corvos da Nova Caledônia de vida li- vre5 (Neves Filho, 2015). Uma série de ou- tras variáveis ainda precisa ser analisada, e processos como a generalização funcional e o encadeamento automático precisam ser mais bem estudados e definidos (Luciano, 1991). De qualquer forma, todos estes dados sobre os efeitos de variáveis de treino so- bre a recombinação de repertórios apontam que, de fato, para cada situação problema e espécie estudada, um conjunto de variáveis de treino podem ter efeitos distintos sobre a topografia de solução do problema. Dife- rentes tipos de treino produzem diferentes soluções, ou as inviabilizam. Desta forma, é possível, em tese, mapear que variáveis de treino produzem uma melhor recombi- nação, em uma tarefa específica, de modo a criar uma “tecnologia de insight”, ou uma “tecnologia da criatividade”, pautada em um método de aprendizagem que facilite recombinações em diferentes tarefas. Este amadurecimento da área e do que se sabe sobre a recombinação de repertórios produz o contexto ideal para começarmos a aplica- ção do que sabemos, e observar, treinar e facilitar a recombinação em ambientes fora do laboratório, como escolas, ambientes de educação à distância, empresas e organiza- ções. Este é o desafio do momento. PARA SABER MAIS Epstein (1996). Coletânea de artigos de Ro- bert Epstein sobre a recombinação de re- pertórios e criatividade. No livro constam todos os experimentos do Columban Simu- lation Project nos quais Epstein esteve en- volvido. O livro apresenta diversos comen- tários sobre o tema e a proposta do autor de uma “teoria generativa do comportamento”, baseada na recombinação de repertórios. Leonardy, Rossger, & Andery (2011). Artigo discutindo a importância da recombinação de repertórios para a Análise do Comporta- mento a partir de uma revisão de diversas dissertações de mestrado que utilizaram ra- tos como sujeitos. Neves Filho & Carvalho Neto (2013). Uma introdução à recombinação de repertórios e alguns exemplos interpretativos de onde podemos encontra-la em diversos produtos artísticos humanos. Murari & Henklain (2013). Artigo discutin- 5 Vida livre aqui indica que os animais que participaram do estudo não estavam em um laboratório. Neste estudo (Neves Filho, 2015), corvos da Nova Caledônia (Corvus moneduloides) foram capturados em seu ambiente natural e foram alojados em um aviário, no qual a coleta de dados ocorreu. Ao final da coleta, os animais foram liberados no mes- mo local onde ocorreu a captura. Para mais informações sobre estudos de cognição animal em animais de vida livre, em especial corvos da Nova Caledônia, conferir Taylor, Elliffe, Hunt e Gray (2010). E para uma sugestão de algumas vantagens do estudo de animais de vida livre para a Análise do Comportamento, conferir Pritchard et al. (2016). Capítulo XVIII | Criatividade 293 do como a Análise do Comportamento lida com a criatividade, apresentando diversos processos básicos, incluindo a recombina- ção de repertórios. REFERÊNCIAS Birch, H. G. (1945). The relation of previous experience to insightful problem-solving. Journal of Comparative Psychology, 38, 367-383. Boakes, R. (1984). From Darwin to beha- viourism: psychology and the minds of ani- mals. UK: Cambridge University Press. Cisek, P. (1999). Beyond the computer me- taphor: Behaviour as interaction. Journal of Consciousness Studies, 6, 125-42. Chemero, A. (2009). Radical embodied cog- nitive science. Cambridge: The MIT Press. Cook, R., & Fowler, C. (2014). ‘‘Insight’’ in pi- geons: Absence of means–end processing in displacement tests. Animal Cognition, 17, 207-220. de Waal, F. (2001). The Ape and the sushi master. New York: Basic Books. Delage, P. E. G. A. (2006). Investigações so- bre o papel da generalização funcional em uma situação de resolução de problemas (“insight”) em Rattus norvegicus. (Disserta- ção de Mestrado). Universidade Federal do Pará, Belém, Pará. Delage, P. E. G. A. (2011). Transferência de aprendizagem no uso de ferramentas por Macacos-Prego (Cebus cf apella). (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Pará, Belém, Pará. Delage, P. E. G. A., & Carvalho Neto, M. B. (2006). Comportamento criativo & análise do comportamento II: Insight. Em H. J. 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