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O Movimento Cognitivo na Psicologia “A psicologia”, escreveu John B. Watson em seu manifesto comportamentalista de 1913, “deve descartar toda referência à consciência”. Os psicólogos que seguiram os ditames de Watson eliminaram todas as referências à mente e aos processos conscientes e baniram os termos mentalistas. Foram banidos: a vontade, o sentimento, a imagem, a mente e a consciência, que nunca eram mencionados exceto em tom sarcástico. Assim, B. F. Skinner pôde falar sobre um organismo vazio e construir um sistema influente de psicologia que nunca tentou investigar o que poderia estar acontecendo no interior. Durante décadas, os manuais introdutórios de psicologia não discutiam nenhuma concepção da mente humana. Tinha-se a impressão de que a psicologia ‘perdera a consciência” para sempre. De súbito, ou assim pareceu, embora a coisa viesse sendo construída há algum tempo, a psicologia começou a recuperar a consciência. As palavras antes proibidas estavam sendo ditas em voz alta em reuniões e conferências e aparecendo impressas em publicações profissionais. Em 1979, a American Psychologist publicou um artigo intitulado “O Comportamentalismo e a Mente: Uma Conclamação (Limitada) a Um Retorno à Introspecção” (Lieberman, 1979), invocando não apenas a mente mas também a técnica suspeita da introspecção. Alguns meses antes, a mesma revista publicara corajosa e abertamente um artigo com o simples título “A Consciência”. “Depois de décadas de deliberada negligência”, escrevia seu autor, “a consciência retoma ao escrutínio científico, com discussões do tópico surgindo em lugares absolutamente respeitáveis da literatura da psicologia” (Natsoulas, 1978, p. 906). O presidente da APA disse em seu discurso anual ao público reunido que a concepção de psicologia estava mudando e que essa alteração envolvia uma volta à consciência. Como resultado, a imagem psicológica da natureza humana se tornava “antes humana do que mecânica” (McKeachie, 1976, p. 831). Quando um membro da APA e uma prestigiosa revista discutem a consciência com tanto otimismo, é justo suspeitar de que um novo movimento, outra revolução, está a caminho. Seguiram-se revisões nos manuais introdutórios definindo a psicologia como a ciência do “comportamento e dos processos mentais”, em vez de apenas do comportamento, e como a ciência que “estuda sistematicamente e tenta explicar o comportamento observável e sua relação com os processos mentais não manifestos que ocorrem no interior do organismo” (Hilgard, Atkinson e Atkinson, 1975, p. 12; Kagan e Havemann, 1972, p. 9). Essas definições nos mostram o ponto até o qual a psicologia contemporânea ultrapassou os desejos e projetos de Watson e Skinner. Influências Antecedentes sobre a Psicologia Cognitiva Como todos os movimentos em psicologia, a revolução cognitiva não eclodiu da noite para o dia. Muitas de suas características básicas tinham sido antecipadas pelo trabalho de outros. Com efeito, sugeriu-se que “a psicologia cognitiva é tanto a mais nova como a mais velha tendência na história do assunto” (Hearnshaw, 1987, p. 272). Isso significa que o interesse pela consciência existia nos primeiros dias da psicologia, antes mesmo de ela se tomar uma ciência formal. Os escritos de Platão e Aristóteles se ocupavam das faculdades e processos cognitivos, o mesmo ocorrendo com as teorias dos empiristas e associacionistas britânicos. Mesmo quando se tornou uma disciplina científica distinta, a psicologia continuou a ter a consciência como foco. Considerou-se Wilhelm Wundt precursor da psicologia cognitiva devido à sua ênfase no aspecto construtivo ou criativo da mente. O estruturalismo e o funcionalismo também lidavam com a consciência, concentrando-se, num caso em seus ele mentos e, no outro, em suas funções. O comportamentalismo produziu uma mudança fundamental, expulsando a consciência do campo por quase cinquenta anos. O retomo à consciência, os primórdios da psicologia cognitiva, pode remontar aos anos 50, embora sinais do ressurgimento da mente já fossem perceptíveis desde a década de 30. Um dos primeiros proponentes foi E. R. Guthrie (Capítulo 11), que na maior parte de sua carreira foi um ardoroso comportamentalista. Perto do final da vida, contudo, ele veio a deplorar o modelo mecanicista e afirmou que nem sempre é possível reduzir os estímulos a termos físicos. Ele sugeriu que temos de descrever os estímulos de que a psicologia se ocupa em termos perceptivos ou cognitivos, para que tenham sentido para o organismo que responde. Os psicólogos não podem tratar do sentido apenas em termos comportamentalistas, por ser ele um processo mentalista ou consciente. O comportamentalismo intencional de E. C. Tohnan (que é uma abordagem molar) foi outro precursor do movimento cognitivo. Sua abordagem reconhecia a importância de variáveis cognitivas, tendo contribuído para o declínio da abordagem estímulo-resposta. Tolman propés a noção de mapas cognitivos, atribuiu propósito aos animais e destacou as variáveis intervenientes como uma maneira de definir operacionalmente estados interiores não suscetíveis de observação. Rudolf Carnap, um filósofo positivista, conclamou a um retomo à introspecção. Em 1956, Carnap observou que “a consciência que a pessoa tem do seu próprio estado de imaginação, de sentimento, etc., tem de ser reconhecida como uma espécie de observação, em princípio não distinta da observação externa, e, portanto como uma fonte legítima de conheci mento” (Koch, 1964, p 22). Mesmo P. W. Bridgman, o físico que deu à psicologia a noção de definições operacionais, tão compatível com o comportamentalismo, mais tarde renunciou a este último. Bridgman insistiu que se invocassem relatos introspectivos de sujeitos individuais para dar sentido a análises operacionais. Alguns psicólogos veem a psicologia da Gestalt como uma influência sobre o movimento cognitivo. A “ênfase na organização, na estrutura, nas relações, no papel do sujeito e na importante função desempenhada pela percepção na aprendizagem e na memória reflete a influência dos seus antecedentes gestaltistas” (Hearst, 1979, p. 32). A psicologia da Gestalt ajudou a manter vivo ao menos um interesse periférico pela consciência no decorrer dos anos de domínio do comportamentalismo. Outro antecedente do movimento cognitivo é o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), que produziu importantes obras acerca do desenvolvimento infantil, não em termos de estágios psicossexuais ou psicossociais (propostos por Freud e Erikson), mas em termos de estágios cognitivos. As formulações piagetianas iniciais, publicadas nas décadas de 20 e 30, tiveram ampla influência na Europa, se bem que menos nos Estados Unidos, onde não eram compatíveis com a posição comportamentalista dominante. Entretanto, a ênfase de Piaget nos fatores cognitivos foi bem recebida pelos primeiros proponentes do movimento cognitivo. À medida que as ideias dos psicólogos cognitivos avançaram nos Estados Unidos, a relevância do trabalho de Piaget tomou-se mais evidente; em 1969, Piaget tomou-se o primeiro psicólogo europeu a receber o Distinguished Scientiflc Contribution Award da APA. Por se concentrar no desenvolvimento infantil, sua obra ajudou a ampliar a gama de comportamentos a que a psicologia em ascensão poderia ser aplicada. Quando deparamos com uma mudança importante na evolução de uma ciência, sabemos que ela reflete mudanças já em andamento no Zeitgeist em que funciona. Como vimos, uma ciência, assim como uma espécie viva, se adapta a novas exigências e condições do seu ambiente. Qual foi o clima intelectual que levou ao movimento cognitivo, que determinou um arrefecimentodo comportamentalismo mediante a readmissão da consciência? Podemos examinar o Zeitgeist na física, com frequência um modelo para a psicologia, que tem influenciado o campo desde os seus primórdios como ciência. No início do século XX, desenvolvia-se uma nova perspectiva na física como resultado da obra de Albert Einstein, Niels Bohr, Werner Heisenberg e outros. Sua abordagem rejeitava o modelo mecanicista galileu-newtoniano do universo, o modelo de que a psicologia extraiu sua concepção mecanicista, reducionista, regular e previsível da natureza humana exposta por psicólogos de Wundt a Skinner. A nova perspectiva na física descartava o mundo clássico da objetividade total e a completa separação entre o mundo exterior e o observador. Esse novo modelo teve importantes implicações para a psicologia. O psicólogo suíço Jean Piaget propôs urna teoria do desenvolvimento infantil que tinha como foco processos cognitivos. Os físicos chegaram à constatação de que não podemos observar o curso da natureza sem perturbá-la. A separação artificial entre o observador e o observado, entre o mundo interior e mundo exterior, entre o universo da experiência consciente e o universo da matéria, foi assim derrubada. O foco da investigação científica passou de um universo apreensível independente e objetivamente para a nossa observação desse universo. Os cientistas modernos, não mais apartados do foco de sua observação, seriam observadores-participantes. O ideal de uma realidade inteiramente objetiva foi considerado inalcançável. Hoje, a física é caracterizada pela crença de que aquilo que denominamos conhecimento objetivo é, na verdade, subjetivo, ou seja, depende do observador. Essa posição de que todo o conhecimento é pessoal soa tão suspeita quanto a proposta que George Berkeley fez há duzentos anos — a de que todo o conhecimento é subjetivo porque depende da natureza da pessoa que o percebe (Capítulo 2). Um autor descreveu a situação nos seguintes termos: nosso quadro do mundo, “longe de ser uma reprodução fotográfica genuína de uma realidade independente ‘lá fora’, [ antes semelhante à pintura: uma criação subjetiva da mente que pode transmitir uma semelhança, mas nunca produzir uma réplica” (Matson, 1964, p. 137). A rejeição, pelos físicos, de um objeto de estudo objetivo, semelhante a uma máquina, e seu reconhecimento da subjetividade, restauraram o papel da experiência consciente na aquisição do nosso conhecimento do mundo. Essa revolução na física foi um argumento efetivo para a aceitação da consciência como parte legítima do objeto de estudo da psicologia. Embora resistisse à nova física por meio século, apegando-se a um modelo ultrapassado ao definir-se como ciência objetiva do comportamento, a psicologia científica terminou por responder ao Zeitgeist e modificou a sua forma para readmitir o papel da consciência. A Fundação da Psicologia Cognitiva Um exame retrospectivo do movimento cognitivo dá a impressão de uma transição lógica e rápida, algo da ordem de uma revolução, que abalou os alicerces do mundo psicológico em uns poucos anos. Na época, na verdade, nada disso era evidente. Essa dramática mudança na psicologia foi se fazendo lenta e calmamente, sem tambores nem fanfarras. De fato, “ninguém anunciou a sua existência até bem depois do fato” (Baars, 1986, p. 141). A progressão da história com frequência só fica clara depois que o evento acontece. Observamos que a fundação da psicologia cognitiva não ocorreu da noite para o dia nem pode ser atribuída à força e capacidade persuasiva de um único fundador que, tal como John B. Watson, tenha mudado o campo quase que com as próprias mãos. Assim como a psicologia funcional, o movimento da psicologia cognitiva não pode reivindicar para si um fundador solitário, talvez, em parte (mais uma vez, tal como o funcionalismo), porque nenhum dos que trabalhavam na área tivesse a ambição pessoal de liderar um novo movimento. Seu único interesse era avançar com o trabalho de redefinir a psicologia. Não obstante, podem-se identificar duas pessoas que, embora não tenham sido fundadoras no sentido formal do termo, de fato contribuíram com trabalhos seminais na forma de um importante centro de pesquisas e um livro excelente, considerados marcos no desenvolvimento da nova psicologia cognitiva. Elas são George Miller e Ulric Neisser, e suas histórias ilustram alguns dos fatores pessoais envolvidos na plasmação de novos movimentos. • George Miller (1920-2012) George Miller iniciou a carreira formando-se em inglês e no estudo da fala na Universidade do Alabama; fez o mestrado nesta última área, tendo-o terminado em 1941. Enquanto estudava no Alabama, revelou interesse pela psicologia. Deram-lhe um cargo de instrutor em que ele dava dezesseis aulas de introdução à psicologia sem nunca ter feito um curso no campo. Ele disse que, depois de ensinar o mesmo material dezesseis vezes por semana, passou a acreditar no que dizia. Miller foi para a Universidade Harvard trabalhar em problemas de comunicação vocal no laboratório de psicoacústica e, em 1946, doutorou-se. Dedicou-se ao estudo da psicolinguística, tendo publicado em 1951 Language and Communication (Linguagem e Comunicação). Miller aceitou a posição comportamentalista dominante, observando que não tinha escolha, pois os comportamentalistas ocupavam todas as posições de liderança nas principais universidades e organizações profissionais. “O poder”, escreveu ele, “as honras, a autoridade, os manuais, o dinheiro, tudo em psicologia pertencia à escola comportamentalista... quem quisesse ser psicólogo científico de fato não podia se opor a ela. Você simplesmente não conseguiria um emprego” (Baars, 1986, p. 203). Na metade dos anos 50, depois de mergulhar na teoria estatística da aprendizagem, na teoria da informação e nas primeiras tentativas de simular a mente humana com computadores, Miller chegou à conclusão de que o comportamentalismo, como ele disse, não “ia funcionar”. As semelhanças entre as operações dos computadores e da mente humana o impressionaram, e o seu interesse começou a se transferir para uma psicologia de orientação mais cognitiva. Ao mesmo tempo, uma alergia a pêlos e ao produto da descamação dos animais significou a impossibilidade de Miller fazer pesquisas com ratos de laboratório. Ele só podia trabalhar com sujeitos humanos, uma desvantagem num mundo dominado por comportamentalistas. Além disso, a passagem de Miller para uma psicologia cognitiva teve a ajuda do seu espírito rebelde, que, segundo ele, tipificava muitos de sua geração de psicólogos. Ele e um grande número de outros estavam prontos a se revoltar contra o tipo de psicologia ensinada e praticada na época e a oferecer uma nova abordagem que se concentrasse antes em fatores cognitivos do que comportamentais. Associando-se com um colega, Jerome Bruner (1915-2016), que estudara com William McDougall, Miller decidiu fundar um centro de pesquisas para a investigação da mente humana. Eles pediram espaço ao presidente de Harvard e, em 1960, receberam a casa em que William James um dia vivera, um lugar apropriado, já que James tinha se ocupado tão intensamente da natureza da vida mental. A escolha de um nome para o novo empreendimento não era uma questão trivial. Estando em Harvard, o empreendimento teria o potencial de exercer um enorme impacto sobre a psicologia, na verdade, de definir uma nova psicologia. Miller e Bruner preferiram a palavra cognição para denotar seu objeto de estudo e deram às novas instalações o nome de Centro de Estudos Cognitivos. Miller disse: Ao usar a palavra ‘cognição”, estávamos nos expulsando do comportamentalismo. Queríamosalguma coisa que fosse mental — mas “psicologia mental” parecia terrivelmente redundante. “Psicologia do senso comum” teria sugerido alguma espécie de investigação antropológica, e “psicologia popular” [ folclórica] teria sugerido a psicologia social de Wundt. Que palavra usar para rotular esse conjunto de perspectivas? Escolhemos cognição (Baars, 1986, p. 210). Dois dos primeiros alunos do centro se recordam de que ninguém ali poderia dizer o que a palavra cognição realmente significava ou o que se esperava que eles fizessem em favor dela. O centro, disseram eles, “não foi instalado para ser a favor de nenhuma coisa particular, mas para ser contra coisas, O que era importante era o que ele não era” (Norman e Levelt, 1988, p. 101). O movimento não era o comportamentalismo. Não era a autoridade dirigente, a posição estabelecida, a psicologia do presente. Ao definir o Centro, seus fundadores estavam demonstrando quão profundamente diferiam do comportamentalismo. E, como vimos ao tratar de todos os novos movimentos, proclamar de que modo sua posição ou atitude se distingue da escola de pensamento vigente é um estágio preliminar necessário à definição ulterior daquilo que se faz e da maneira como se deseja modificar o campo. George Miller montou um centro de pesquisas na Universidade Harvard para investigar tópicos cognitivos como a linguagem, a percepção e a formação de conceitos. Ele a considerava uma “adição”, isto é, um incremento ou mudança por crescimento ou acúmulo. Ele via o movimento mais como evolutivo do que como revolucionário, e acreditava que era um retomo a uma psicologia do senso comum que reconhece e afirma que a psicologia deve se ocupar da vida mental tanto quanto do comportamento. Uma ampla gama de tópicos, a maioria dos quais era tabu no léxico dos comportamentalistas, foi investigada no Centro, incluindo a linguagem, a memória, a percepção, a formação de conceitos, o pensamento e a psicologia do desenvolvimento. Miller mais tarde estabeleceu o programa de ciências cognitivas e instalou o laboratório de ciências cognitivas na Universidade Princeton, onde continua a trabalhar. Como reconhecimento pelos seus esforços, Miller foi eleito presidente da APA em 1969 e recebeu seus Distinguished Scientifíc Contributiofl Award e Gold Medal Award for Life Achievemeflt in the Applicatiofl of Psychology. Talvez o maior reconhecimento do seu trabalho esteja no número de laboratórios e institutos de psicologia cognitiva que surgiram depois do seu, e no rápido desenvolvimento da abordagem de psicologia que ele tanto fez para definir. • Ulric Neisser (1928-2012) Nascido em Kiel, Alemanha, Ulric Neisser foi levado para os Estados Unidos pelos pais aos três anos de idade. Começou seus estudos superiores em Harvard, concentrando-se em física. Impressionado com um jovem professor chamado George Miller, Neisser decidiu que a física não combinava com ele e passou para a psicologia. Fez um curso com Miller que tratava da psicologia das comunicações e veio a conhecer a teoria da informação e outros aspectos dos primeiros momentos da abordagem cognitiva. Também sofreu a influência do livro de Kurt Koffka, Princípios de Psicologia da Gestalt. Neisser fez o mestrado no Swarthmore College, estudando com Wolfgang Köhler. Voltando a Harvard, doutorou-se em 1956. Apesar do seu crescente interesse por fatores cognitivos, ele não viu como escapar das garras do comportamentalismo numa carreira acadêmica. “Era o que você tinha de aprender”, disse ele. “Tratava-se de um momento em que se supunha que nenhum fenômeno psicológico era real a não ser que você pudesse demonstrá-lo num rato. Por exemplo, para estabelecer se o pensamento existia, tentava-se demonstrar que os ratos pensavam. Uma tarefa bastante peculiar, pelo menos a meu ver” (Baars, 1986, p. 275). Neisser considerava o comportamentalismo não somente peculiar como “louco”, e teve a felicidade de conseguir seu primeiro emprego acadêmico na Universidade Brandeis, onde o departamento de psicologia era dirigido por Abraham Maslow. Na época, Maslow começava a se afastar do seu próprio passado como comportamentalista e a desenvolver uma abordagem humanista. Maslow não teve sucesso em transformar Neisser em psicólogo humanista, nem em tornar a psicologia humanista a terceira força da psicologia — Neisser mais tarde afirmou que a terceira força era a psicologia cognitiva —, mas deu a Neisser a oportunidade de desenvolver seus interesses por assuntos cognitivos. Em 1967, Neisser publicou Cognitive Psychology (Psicologia Cognitiva), um livro que “estabeleceu e batizou o campo” (Goleman, 1983, p. 54). Ele conta que o livro era pessoal, na verdade uma tentativa de definir a si mesmo, isto é, o tipo de psicólogo que era e que queria ser. O livro também ajudou a definir uma nova psicologia. Ele tomou- se extremamente popular, e Neisser viu-se diante do embaraço de ser apresentado como o “pai” da psicologia cognitiva. Ele não tinha desejo de fundar uma escola de pensamento, mas mesmo assim o seu livro ajudou a afastar a psicologia do comportamentalismo e a aproximá-la da cognição. Ulric Neisser, cujo livro de psicologia cognitiva publicado em 1967 ajudou a lançar o novo movimento, mais tarde veio a criticar o campo por sua estreiteza e artificialidade. Neisser definia a cognição com referência aos processos “mediante os quais a entrada de dados sensoriais é transformada, reduzida, elaborada, armazenada, recuperada e usada.., a cognição está envolvida em tudo aquilo que um ser humano pode fazer” (Neisser, 1967, p. 4). Assim, a psicologia cognitiva se vincula com a sensação, a percepção, a formação de imagens, a retenção, a recordação, a solução de problemas, o pensamento e todas as outras atividades mentais. Nove anos depois de publicar o livro que lançou o campo, Neisser publicou Cognition and Reality (Cognição e Realidade), no qual exprimia sua insatisfação com o que considerava o estreitamento da posição cognitiva e a tendência de acentuar situações artificiais de laboratório em lugar do mundo real. Desiludido, ele concluiu que o movimento de psicologia cognitiva tal como existente em 1976 não tinha quase nada de sua função de proporcionar uma compreensão da maneira como os seres humanos enfrentam a realidade. Assim, Neisser, uma das mais importantes figuras da fundação da psicologia cognitiva, tomou-se seu crítico feroz, atacando-a como ela antes atacara o comportamentalismo. Ele dá aulas atualmente na Universidade Emory, de Atlanta, Geórgia, depois de passar dezessete anos em Cornell, onde o seu gabinete não ficava muito longe do cérebro em conserva de E. B. Titchener. O Papel do Computador na Psicologia Cognitiva No século XVII, os relógios e autômatos serviam de metáfora à concepção mecânica do universo e, por extensão, da mente humana (ver o Capítulo 2). Essas máquinas eram modelos facilmente disponíveis e de simples compreensão da maneira como se dizia que a mente operava. Hoje, o modelo mecânico do universo e a psicologia comportamentalista dele deriva da foram superados por outros pontos de vista, a saber, a nova perspectiva na física e o movimento cognitivo em psicologia. É evidente que o relógio já não é um exemplo útil da concepção da mente do século XX. Uma nova metáfora é necessária, e uma máquina do século XX, o computador, veio a servir de modelo. Cada vez mais, é usado como modo de explicar fenômenos cognitivos. Afirma-se que os computadores exibem uma inteligência artificial, e seu funcionamento é corriqueiramente descrito em termos humanos. A capacidade de armazenamento de um computador, por exemplo, é a sua memória; os códigos de programaçãosão chamados de linguagens; e afirma- se que novas gerações de computadores estão sendo desenvolvidas (Campbell, 1988; Roszak, 1986). Pode-se afirmar que a operação dos programas de computador — essencialmente conjuntos de instruções para trabalhar com símbolos — é semelhante à da mente humana. Tanto o computador como a mente recebem e digerem grande quantidade de informações (estímulos) do ambiente. Eles processam essa informação manipulando-a, armazenando-a e recuperando-a e realizando a partir dela várias operações. Logo, a programação dos computadores é o padrão da concepção cognitiva da capacidade humana de processar informações, raciocinar e resolver problemas. É o programa, e não o próprio computador (o software, e não o hardware), que serve de explicação às operações mentais. Os psicólogos cognitivos não têm interesse em eventuais correlatos fisiológicos dos processos mentais, mas na sequência de manipulação de símbolos que subjaz ao pensamento. Seu objetivo é descobrir a “biblioteca de programas que o ser humano tem armazenado na memória — programas que permitem que a pessoa compreenda e produza sentenças, decore certas experiências e regras e resolva novos problemas” (Howard, 1983, p. 11). Essa concepção da mente humana baseada no processamento da informação fundamenta a psicologia cognitiva. Nos mais de cem anos de sua história, a psicologia passou dos relógios aos computadores como modelos do seu objeto de estudo — mas o significativo é que uns e outros são máquinas. Isso demonstra a continuidade histórica da evolução da psicologia entre pontos de vista mais antigos e mais novos. “Para os psicólogos, sempre em busca de garantias de que as suas teorias se refiram a alguma realidade fisicamente possível, o encanto das metáforas com máquinas é absolutamente irresistível” (Baars, 1986, p. 154). Ficamos a imaginar se a expressão “quanto mais as coisas mudam, tanto mais permanecem iguais” não contém uma lição acerca da história para aqueles que tentam aprender com ela. A Natureza da Psicologia Cognitiva Descrevemos de que maneira a introdução de fatores cognitivos nas teorias da aprendizagem social de Albert Bandura e Julian Rotter contrabalançou a natureza do comportamentalismo americano (Capítulo 11), mas o impacto do movimento cognitivo não se limitou à psicologia comportamentalista. Os fatores cognitivos estão sendo considerados em virtualmente todas as áreas do campo: a teoria da atribuição na psicologia social, a teoria da dissonância cognitiva, a motivação e a emoção, a personalidade, a aprendizagem, a memória, a percepção e, como observamos, a abordagem da tomada de decisões e da solução de problemas baseada no processamento da informação. Em áreas aplicadas como a clínica, a psicologia comunitária, a psicologia industrial/organizacional e a psicologia escolar também há ênfase em fatores cognitivos. A psicologia cognitiva difere do comportamentalismo em vários pontos. Em primeiro lugar, os cognitivistas concentram-se no processo do conhecimento, e não na mera resposta a estímulos. Eles acentuam os processos e eventos mentais, e não as conexões estímulo-resposta, a mente, e não o comportamento — o que não significa que eles ignorem este último. Mas significa que as respostas comportamentais não constituem o objeto exclusivo de pesquisa. As respostas são usadas como fontes para a inferência dos processos mentais que as acompanham. Em segundo lugar, os psicólogos cognitivos se interessam pela forma como a mente estrutura ou organiza a experiência. Os gestaltistas, assim como Jean Piaget, alegaram que a tendência a organizar a experiência consciente (sensações e percepções) em todos e padrões significativos é inata. A mente dá forma e coerência à experiência mental, e o objeto de estudo da psicologia cognitiva é esse processo de organização. Os empiristas e associacionistas britânicos, e seus derivados do século XX, os comportamentalistas skinnerianos, sustentavam que a mente não possui essas capacidades organizacionais inerentes. Em terceiro lugar, na concepção cognitiva, o indivíduo organiza ativa e criativamente os estímulos recebidos do ambiente. Somos capazes de participar da aquisição e do uso do conhecimento, atentando deliberadamente para alguns aspectos da experiência e optando por guardá-los na memória. Não respondemos passivamente a forças externas nem somos lousas em branco em que a experiência sensorial é escrita. Você vai reconhecer esta última ideia como a posição comportamentalista, derivada dos empiristas e associacionistas. Observamos que muitas áreas de pesquisa foram influenciadas pelo movimento cognitivo. Em uma dessas, o sono e o sonho, estudos experimentais identificaram o sono REM (Rápidos Movimentos Oculares) como o estágio em que ocorre a maioria das atividades oníricas; esse trabalho oferece um excelente exemplo da combinação de dados fisiológicos objetivos e dados conscientes subjetivos. Os sonhos são produtos conscientes, e sua relação comprovada com processos fisiológicos subjacentes toma esses dados subjetivos mais aceitáveis na psicologia atual. Essas experiências conscientemente recordadas não teriam sido admitidas pelo referencial comportamentalista estrito. Pesquisadores cognitivos que investigam o processamento da informação durante o sono se ocupam de fenômenos como a transferência para o sono de respostas condicionadas adquiridas no estado vígil, o efeito de sugestões verbais feitas durante o sono e a tentativa de melhorar o desempenho mediante a aprendizagem durante o sono (Bootzin, Kihlstrom e Schacter, 1990). Também essas são experiências cognitivas que não poderiam ter sido discutidas, e menos ainda estudadas seriamente, sob a égide do comportamentalismo. Os psicólogos também estão estudando o efeito de drogas sobre o comportamento em termos das mudanças tanto nas respostas fisiológicas como nas experiências conscientes relatadas — aquilo que as pessoas fazem sob a influência de drogas e aquilo que elas dizem que sentem. Esses dados eram igualmente inadmissíveis para os comportamentalistas. Mesmo processos não conscientes como o biofeedback em que as pessoas aprendem a controlar funções fisiológicas como a taxa de batimentos cardíacos, a tensão muscular e a temperatura do corpo, em basear-se mais em processos cognitivos do que antes se supunha. Os terapeutas que usam o biofeedback estão dando uma atenção maior ao papel das metas e expectativas dos pacientes na produção das mudanças fisiológicas desejadas. Com a volta à psicologia do estudo dos processos mentais conscientes, o interesse pelos processos mentais inconscientes, outra área banida pelos comportamentalistas, foi impulsionado. As pesquisas de tópicos como a atenção seletiva, a hipnose, a percepção subliminar e os fenômenos visuais que envolvem o processamento perceptivo sugerem que o primeiro estágio da cognição em resposta à estimulação é inconsciente (Kihlstrom, 1987; Shevrin e Dickman, 1980). Sob o impacto do movimento cognitivo, volta-se a atribuir consciência aos animais. As pesquisas sobre cognição animal inferem evidências de consciência animal a partir de observações do comportamento, particularmente do comportamento que demonstra adaptabilidade à mudança de condições ambientais (Domjan, 1987; Pearce, 1987). Essa obra se concentra na capacidade dos animais de pensar sobre objetos e eventos específicos, mesmo quando esses objetos e eventos não estão presentes, e de iniciar alguma ação. Outros trabalhos demonstraram que existem na memória animal processos mentais como a codificação e a organização de símbolos, bem como a capacidade de formar abstrações básicassobre o espaço, o tempo e o número (Gallistel, 1989; Roltblat, Bever e Terrace, 1984). Com a influência cognitiva na psicologia experimental e a ênfase na consciência na psicologia humanista e na psicanálise pós-freudiana, podemos ver que a consciência retomou a posição central em psicologia que ocupava há cem anos, celebrando assim um substancial e vigoroso retorno. Comentário O movimento cognitivo tem sido obviamente um sucesso. No início dos anos 70, o campo atraira tantos seguidores que precisava de suas próprias publicações. No curso de uma década, foram fundadas seis: Cognitive Psychology (1970), Cognition (1971), Meínory and Cognition (1983), Journal of Mental Imagery (1977), Cognitive Therapy and Research (1977) e Cognítíve Science (1977). Jerome Bruner descreveu a psicologia cognitiva como “uma revolução cujos limites ainda não podemos vislumbrar” (Bruner, 1983, p. 274). Seu impacto alcançou a maioria das áreas da psicologia e, saindo dos Estados Unidos, influenciou o pensamento psicológico na Europa e na ex-União Soviética. Ela também se estendeu para além da psicologia. “Talvez o mais estimulante desenvolvimento recente advindo da revolução cognitiva seja uma nova tendência na direção da integração de todas as principais disciplinas dedicadas ao estudo da natureza do conhecimento” (Baars, 1986, p. 180). Essa nova perspectiva proposta, apelidada de “ciência cognitiva”, é um amálgama de psicologia cognitiva, linguística, antropologia, filosofia, ciências computacionais, inteligência artificial e das neurociências. Embora George Miller tenha questionado o ponto até o qual esses campos díspares de estudo podem se unificar, sugerindo que se deveria usar nas referências a eles a forma plural, ciências cognitivas, não há como negar o desenvolvimento dessa abordagem multidisciplinar. Têm sido estabelecidos em universidades de todos os Estados Unidos laboratórios e institutos de ciência cognitiva, e alguns departamentos de psicologia foram rebatizados como departamentos de ciência cognitiva. Tudo isso sugere que, qualquer que seja o nome que lhe demos, o estudo dos fenômenos e processos mentais pode dominar não apenas a psicologia como outras disciplinas, pela década de 90 e até o século XXI. Nenhuma revolução, por mais bem-sucedida, deixa de ter críticos. A maioria dos comportamentalistas skinnerianos se opõe ao movimento cognitivo (Skinner, 1987b, 1989), e até os que são a favor assinalaram fraquezas e limitações. Eles alegam que há poucos conceitos com os quais a maioria dos psicólogos cognitivos concorde, ou até considere importantes, e que há uma considerável confusão no tocante à terminologia e às definições. Outra crítica está relacionada com o que alguns veem como um excesso de ênfase na cognição em detrimento de outras influências sobre o pensamento e o comportamento, tais como a motivação e a emoção. O número de livros e artigos profissionais sobre a motivação e a emoção tem declinado muito nas últimas duas décadas, enquanto a literatura sobre a cognição tem aumentado (Pervin, 1985). O resultado, como sugeriu Ulric Neisser, é o estreitamento e a esterilidade do campo. Neisser comentou que “o pensamento humano é passional e emocional, as pessoas operam a partir de motivos complexos. Um programa de computador, em contrapartida... não tem emoções e é monomaníaco em sua franqueza” (Goleman, 1983, p. 57). Há o perigo de que a psicologia cognitiva esteja ficando demasiado unilateral, concentrando-se apenas no pensamento na mesma medida que a escola anterior se concentrava somente no comportamento. Outros críticos dizem que o progresso da psicologia cognitiva é mais ilusório do que real, pois muitos psicólogos apenas adotaram as palavras cognitivo ou cognição sem fazer nenhuma alteração fundamental no modo como abordam seus problemas de pesquisa. B. F. Skinner observou que ficou “elegante inserir a palavra cognitivo’ sempre que possível” (Skinner, 1983b, p. 194). George Miller concorda: O que parece ter acontecido é que muitos psicólogos experimentais que estavam estudando a aprendizagem, a percepção ou o pensamento humanos começaram a se denominar psicólogos cognitivos sem alterar de qualquer maneira visível aquilo que sempre estiveram pensando e fazendo — como se de repente descobrissem que estiveram falando psicologia cognitiva a vida inteira. Desse modo, a nossa vitória pode ter sido mais modesta do que o registro escrito pode ter levado vocês a acreditar (Bruner, 1983, p. 126). A psicologia cognitiva ainda não se completou; ela ainda não é história. O movimento está se formando, crescendo e se desenvolvendo; ainda é história no seu processo de vir-a-ser, É muito cedo para julgar seu impacto e sua contribuição amais. Mas a psicologia cognitiva efetivamente tem os atavios e as características que definem cada uma das escolas de pensa mento anteriores. A psicologia cognitiva tem suas próprias publicações, seus próprios laboratórios, reuniões, jargão e convicções, bem como o zelo dos justos. Hoje falamos de cognítivismo, assim como falamos de funcionalismo e comportamentalismo. A psicologia cognitiva tornou-se o que outras escolas de pensamento se tornaram em sua época: parte da corrente principal da psicologia. E isso, como vimos, é a progressão natural das revoluções e dos movimentos quando eles alcançam sucesso. Uma Observação Final Se nos diz alguma coisa, a história da psicologia retratada nestes capítulos diz que, quando um movimento é formalizado como escola, ele ganha um impulso que só pode ser interrompido pelo seu próprio êxito na derrubada da posição estabelecida. Quando isso acontece, as artérias desobstruídas do movimento um dia vigoroso e jovem começam a endurecer. A flexibilidade se torna rigidez, a paixão revolucionária se transforma em defesa de uma posição e os olhos e mentes começam a se fechar a novas ideias. Assim nasce uma nova posição estabelecida. E assim é no progresso de toda ciência: há uma construção evolutiva para níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento. Não há ponto culminante — nenhum término nem fim —, mas um processo interminável de crescimento, à medida que espécies mais novas se desenvolvem a partir das antigas e tentam se adaptar a um ambiente em contínua mudança. Fonte: SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix, 1992.
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