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Maria Luiza Dias O QUE É PSICOTERAPIA DE FAMÍLIA ÍNDICE Introdução ............................................. 7 Por que uma psicoterapia de casal e família 9 A construção do mito familiar ........... 15 A escolha e o contrato secreto do casamento . . . . 19 Sua Majestade "O Bebê" .................... 24 O "filho-problema" como o paciente identificado ... 27 A família no divã . . . . . 33 A família com crianças em psicoterapia 38 A comunicação em família ................... 43 O casamento no mundo atual ............. 48 Amor e paixão . .................................... 53 Casais separados. Os meus, os teus e os nossos . . 58 Como nasceu a psicoterapia de casal e família ... 68 Conclusão ............................................... 70 Indicações para leitura ----------------- 72/ INTRODUÇÃO Gostaria, inicialmente, de esclarecer alguns fatores sobre a temática apresentada neste livro. O texto não se propõe a aprofundar todos os temas levantados, uma vez que tem por objetivo realizar somente uma primeira aproximação do leitor com a psicoterapia de casal e de família. Procurarei oferecer a você, apenas curioso, uma visão sobre como se desenrola o trabalho desta espécie e em que condições se poderia estar lançando mão desta psicoterapia como recurso pessoal. Além disso, falarei sobre alguns mecanismos típicos do funcionamento psíquico da família, alicerçando-me em teorias existentes, quando necessário. Se você é membro de um casal interessado em submeter-se à psicoterapia, este livro talvez o ajude a iniciar uma leitura mais global, mais dialética de seus problemas de relacionamento com o parceiro (ou parceira). É provável que você venha a suspeitar de suas avaliações parciais. Se você é parte de uma familia com um filho apresentando alguma espécie de dificuldade, encontrará neste texto subsídios para começar a perceber o quanto o problema de seu filho pode estar relacionado com a estrutura de sua família como um todo. Neste caso, seria interessante procurar um psicólogo que tenha formação em terapia familiar. Para o estudante de Psicologia ou para o psicólogo interessado em investigar esta especialidade, o texto procura oferecer uma primeira visão sobre temas importantes da terapia de casal e família e subsídios para a leitura de outros autores. Independentemente de sua condição, espero que, através deste pequeno texto, possamos começar a estabelecer um diálogo. Bom mergulhol POR QUE UMA PSICOTERAPIA DE CASAL E FAMÍLIA Inúmeras pessoas passam por momentos na vida em que o ambiente em casa está ruim e o convívio na família não vai bem. A terapia familiar pode auxiliar a compreender o que se passa e facilitar a resolução dos conflitos. Pode, também, atuar em sentido preventivo. Na experiência de uma gravidez, por exemplo, ou quando a mãe resolveu sair para trabalhar, ou mesmo quando a família tem um filho adolescente que se torna mais independente (momentos em que são vividas intensas mudanças). A única condição necessária para que a terapia de casal/família ocorra é que haja um par amoroso interessado em se pensar, com filhos ou não: o par amoroso pode ser heterossexual, bissexual, homossexual, composto por indivíduos solteiros, noivos, casados, desquitados, divorciados, amantes etc. Para se iniciar uma terapia, não importa qual ideia se tenha sobre sua necessidade, mas é preciso haver um ingrediente comum: alguma confusão, dúvida ou ainda um desejo de se pensar dentro do ciclo vital do grupo familiar. Importa ainda menos a noção que se tenha sobre "família", pois esta pode ser compreendida num sentido bem mais amplo que pai, mãe e filhos consanguíneos. Deste modo, tampouco importa o estado civil do casal. Mesmo jovens casais de namorados podem submeter-se a uma terapia de casal, desde que estejam interessados em compreender a dinâmica do vinculo que vêm estabelecendo. Neste caso, a terapia pode prevenir problemas futuros que se acirrariam, se agravariam, no noivado ou casamento (ou co-habitação), além de promover maior autoconhecimento. Mesmo se o casal não permanecer como tal no futuro, levará consigo uma "bagagem" mais amadurecida para os próximos relacionamentos. Você, então, que pensa, quem sabe, em procurar um psicólogo, provavelmente se depara com inúmeras questões: "Vão pensar que estou doente, desequilibrado?"; "Não haveria mesmo um jeito de eu sair disto sozinho?"ou "O que minha mulher/meu marido vai pensar?". Estas perguntas advêm, ainda, da ideia de que o individuo que procura o psicologo é o que porta o problema e o espaço da terapia seria o lugar onde ele pode vir a ser curado. Aquilo de que as pessoas não se apercebem é que, muitas vezes, o que sentimos e somos é também fruto da qualidade dos relacionamentos que estabelecemos. E, em sendo assim, a responsabilidade e o resultado destas interações (destes relacionamentos), sejam prazerosas ou desprazerosas, sadias ou nocivas, devem ser compartilhados e percebidos como um produto comum. Para alguns, a psicoterapia é entendida como um tratamento que procura dar conta das fases criticas da vida. As terapias focalizadas no problema seguem o modelo médico, dando alta clinica diante da remissão do sintoma. Para outros, a psicoterapia é vista como um recurso para promover maior autoconhecimento e, para tanto, não é preciso "estar mal" ou ter um problema sério para recorrer a ela, mas ser tomado por um certo questionamento existencial, querer refletir sobre os relacionamentos que estabelece e sobre a própria subjetividade. De qualquer forma, concorda-se que ó preciso haver alguma dose de "dor psíquica", que mobilize e justifique um "voltar-se para dentro", a investigação do mundo interior subjetivo. Quando se conhece melhor a realidade interna e externa, ganham-se mais recursos para enfrentar os conflitos. Assim, também um casal pode lançar mão da terapia porque os dois estão em “duelo", à beira da separação (o que é mais comum) ou porque desejam compreender algumas experiências compartilhadas, ou mesmo, conversar com o auxílio de um profissional sobre a educação a ser dada aos filhos, por exemplo. Cabe lembrar que psicoterapia, pelo menos de base psicanalítica, não tem a ver com orientação pessoal, de casal ou de pais, pois certamente o apeio pedagógico fracassa diante das dificuldades em torno das quais se estruturaram as personalidades dos cônjuges. De nada adianta dizer a uma mãe que deixe de bater em seu filho se não se desvelam as motivações inconscientes que a impulsionam, pois seria como dizer a um paralítico que andasse sem a cadeira de rodas. Deste modo, a compreensão intelectual do problema não o resolve por si só: é necessária a análise destas motivações inconscientes, com o auxílio do terapeuta, para que esses problemas possam ser elaborados. Fatores culturais também interferem na indicação e procura do auxílio psicoterápico. É comum nas pessoas a falsa ideia de que só se deve procurar a psicoterapia em último caso, pois tal recurso significa o próprio atestado de impotência, de que não foi possível resolver o problema sozinho. Não há necessidade de se deixar para pedir ajuda apenas quando se está "nas últimas". Numa sociedade onde as pessoas nunca podem falhar, que exige perfeição e onde as dificuldades são nomeadas "defeitos", fica muito difícil romper com tais valores e procurar ajuda. No imaginário do senso comum, precisar de um dentista para obturar uma cárie é compreensível; contudo, necessitar de um psicoterapeuta, para compreender melhor uma questão emocional, é grave. Se se deixar este preconceito de lado — pois, atualmente a psicoterapianão tem mais o fim exclusivo de tratar "alienados" ou "loucos delirantes" —, podem-se descobrir muitos elementos importantes para a própria vida, submetendo-se a um trabalho desta espécie. Outra ideia dominante no senso comum é ade que a psicoterapia separa o casal, ou mesmo o inverso, de que ela está lá'a serviço de reunir o casal. A terapia de casal não se propõe a unir ou separar ninguém. O casal pode ter muito medo de ir à terapia e ver aumentarem seus problemas; contudo, só irão surgir, emergir, os conflitos que já estão vivendo. A experiência clínica demonstra que o que acontece é que, se o casal persiste no trabalho clínico e a co-respon- sabilidade no vínculo e os incômodos vão sendo compreendidos, o casal vai restabelecendo o relacionamento em moldes mais maduros, aumentando a gratificação com o parceiro e a complementaridade sadia. Tudo que é vivido numa relação de casal é gerado a dois. Isso vale para os prazeres e os sucessos, bem como para os desprazeres, as brigas e o mal-estar. Cada um tem meia responsabilidade nisto, mesmo que a participação de um dos membros do casal no resultado não seja nitida. Chamo de responsabilidade ao que normalmente os casais chamam de "culpa". Em determinado momento, parece-lhes muito importante descobrir quem ó o culpado. E, mais que isso, que o culpado é o outro! Em alguns casos, a separação se coloca mesmo como o único caminho de crescimento pessoal às duas pessoas. Ainda al, a psicoterapia de casal tem uma contribuição importantíssima a dar, ajudando o casal a elaborar as perdas e ganhos desta condição. Existem lutos a serem experienciados (elaboração das perdas) e acomodados. Além disso, havendo filhos, a psicoterapia familiar poderá ajudá-los a compreender e conviver com a nova realidade criada pela separação dos pais. A indicação para o comparecimento dos filhos na sessão depende da psicodinâmica familiar. No caso de haver um membro enfermo, é primordial, pois ele ajudará, através de seu(s) sintoma(s), no entendimento do que, em verdade, se passa. Como veremos adiante, o indivíduo sintomático (que é considerado problemático na família) é o porta-voz dos problemas apresentados, funcionando como a porta que se abre ao inconsciente da familia. Os filhos podem também ser chamados para que se observe o funcionamento do casal diante da unidade familiar completa. A terapia de casal e familia ó útil, sobretudo, em situações-problemas onde se anda em círculos. Uma discussão de casal pode fazer esse caminho circular, por exemplo. A analogia se remete a um circulo porque se sai de um ponto e se retorna novamente a ele e, com isso, não há começo nem fim. Uma mulher faz cara feia ao marido porque ele chegou tarde em casa; mas ele chegou tarde em casa porque ela lhe havia respondido de forma grosseira ao telefone; contudo ela o fez porque imagina que ele possa estar tendo um caso com outra e assim por diante. Chamo isso de um "jogo sem-fim". Nessa situação, a discussão no concreto não levaria a lugar algum. Seria útil a intervenção de um terceiro, no sentido de compreender os elos de ligação entre estes eventos e desfazer o jogo sem-fim. A CONSTRUÇÃO DO MITO FAMILIAR A família constrói uma história fantasiosa sobre si mesma, que tende a deformar a maneira como ela realmente é, como funciona. Com isso, certos sentimentos e certos padrões de interação permanecem inconscientes aos membros da família, ou seja, estes não se apercebem de que tal dinâmica está em jogo. Tais conteúdos deformados (pelos mecanismos conjuntos de defesa compõem o mito familiar. A ideia de mito familiar advém da noção de que um mito é uma história construída por um povo, que não está sujeita a nenhuma regra de lógica ou de continuidade—nela tudo pode acontecer. É uma espécie de sonho coletivo de uma cultura, suscetível de interpretação, de modo que seu sentido oculto possa revelar-se. Os mitos expressam desejos inconscientes, que, de algum modo, são incompatíveis com a experiência consciente de um povo. Subentendido no sentido manifesto das histórias mitológicas, existiria, então, um não-sentido, uma mensagem envolta num código a ser decifrado. Havería, portanto, uma relação de semelhança entre o mito e a vida do povo. Os mitos seriam histórias sem um significado aparente, cujo entendimento só pode ser resgatado com o estudo daquela cultura, que, por sua vez, não tem consciência do sentido dessas narrativas. Tais pensamentos seriam, então, desconhecidos por esses homens. Assim também ocorre com a família, que em torno de seus problemas aparentes constrói seu mito, ou seja, uma versão fantasiosa sobre como funcionam em conjunto e sobre quem é o membro da família que carrega o problema. Mito no sentido de que a família elabora uma história fantástica (que não corresponde aos processos reais em jogo) e a vive tal qual se fosse a história verdadeira. Organizam-se em torno de uma ideologia, de uma visão sobre o mundo e suas dificuldades em família, que lhes parece mais aceitável. Imaginar, por exemplo, que o problema de uma família é um filho rebelde, um pai ausente ou uma criança tímida é apenas a versão mais superficial sobre as dificuldades emocionais da família, que situa o problema num determN nado membro e esconde conflitos mais sérios do funcionamento do grupo familiar. O trabalho do psicoterapeuta seria ajudar a desvendar, a decifrar os significados que estão por trás da história desse mito familiar — através do filho sintomático, por exemplo — , tal como o antropólogo procura compreender o significado de um mito para uma determinada população. Imaginemos um casal que vem para uma primeira entrevista no intuito de iniciar uma psicoterapia. O marido toma as rédeas e começa a explicar o motivo da consulta. A mulher (que estava ao seu lado calada), segundo ele, estava muito enferma: não assumia mais responsabilidades em casa, as duas crianças do casal haviam sido removidas para a casa de uma parente porque ela já não cuidava delas adequadamente, largava-se na cama por horas a fio e, quando o marido chegava em casa (já bem tarde), desatava a reclamar e não o deixava dormir. Na história apresentada por eles — digo por eles porque, embora a esposa não dissesse nada, o seu silêncio contava sobre sua concordância e cumplicidade com aquela versão (apesar da cara de descontentamento) —, a mulher era a "louca" do casal e o marido o "são". Se ela se modificasse, voltasse a cuidar das crianças e a cumprir o papel que o marido esperava dela, tudo estaria resolvido. O marido e os pais dele, que moravam ao lado, esperavam que a psicoterapia pudesse evitar a internação da moça. Ele dizia: "Já tentamos tudo: conversar, ir ao médico, ao psiquiatra. A terapia de casal é a última coisa que tento, pois, se não der certo, vou me separar dela. Não dá mais para continuar assim". Solicitada a falar sobre como via o que estavam vivendo, a esposa não conseguia se expressar, enrolando-se muito para falar, como se fosse mesmo uma mulher completamente perturbada. Aos poucos e depois de muito incentivo, contou que acreditava que o problema, na verdade, estava nele, que só chegava em casa tarde e nunca se dispunha a conversar. Esta primeira versão, trazida pelo casal sobre a dinâmica de sua família, constitui o mito familiar. No decorrer da investigação analítica, os sentidos subliminares que explicavam este comportamento conjunto foram, pouco a pouco, emergindo e sendo trabalhados pela família, na medida em que tomavam consciência de aspectos anteriormentel negados. A esposa foi deixando o papel de "louca" e passou a assumir novamente o cuidado das crianças (que retornaramà casa), como também a manifestar-se mais verbalmente, reivindicando que suas necessidades também fossem atendidas. O marido, paulatinamente, foi capaz de perceber sua participação nos problemas familiares. Foi também possível esclarecer os papeis que cada um deles desempenhava no jogo do "papai bravo" e "menina atrapalhada", pois reeditavam, no casamento, sensações enrijecidas vividas com os próprios pais. Se, de um lado, o marido repetia o modelo masculino autoritário recebido, de outro, a esposa repetia a mãe, que também havia ”en- louquecido" e deixado os filhos menores aos cuidados dosirmãos mais velhos. A própria moça em questão havia sido abandonada pela mãe e tinha sido criada por uma irmã mais velha. Nesta linha, a família busca o atendimento tentando envolver o terapeuta na sua própria versão do problema. No momento em que o psicoterapeuta se desfaz da posição inicial que lhe foi conferida, auxilia a família a se conhecer e a se apoderar das partes negadas de suas personalidades, como também a reorganizar o espaço de convívio, desfazendo, desmontando o mito familiar. A ESCOLHA E O CONTRATO SECRETO DO CASAMENTO As motivações, que conduzem as pessoas ao casamento e a se manterem nele — e que lhe dá qualidades particulares — são, em grande parte, inconscientes. Compreender por que uma pessoa escolhe justamente unir-se a uma outra determinada pessoa, selecionada a dedo em meio à multidão, não é simples, como superficialmente possa vir a parecer. Desconfiar, ainda, da sensação de liberdade cultivada pelo autor da escolha também não é fácil. Refiro-me aqui ao fato de que a pessoa tem a impressão de que está livre para escolher qualquer outra para seu par, sem interferência da família ou de outras pessoas — ela é "dona de seu nariz". Contudo, estamos muito mais aprisionados internamente pelos padrões de relacionamento desenvolvidos com as figuras significativas da infância, com as quais convivemos, do que podemos suspeitar. Quando duas pessoas se elegem para parceiros amorosos, dificilmente conseguem apresentar argumenta consistentes sobre por que justamente aquela outra pessoa foi escolhida. Raramente as respostas fogem às generalidades banais, além do que, comumente, falam som as boas qualidades do indivíduo amado. Há muito pouco conhecimento consciente sobre as possíveis motivação que compuseram o ímã que atrai exatamente tais duas pessoas. Essas motivações nem sempre se relacionam com as boas qualidades, mas com as dificuldades da personalidade do outro. Isto pressupõe um ajuste das duas personalidades, como se cada um dos parceiros procurasse no outro as peritos de si mesmo que não conseguiu desenvolver; ou inversamente, procurasse no outro exatamente a mesma dificuldade que possui, para juntos se protegerem do objeto temido. Inconscientemente, a "escolha" é, então, feita a para de uma complementaridade doentia, de um encaixe da personalidades das duas pessoas em questão, denomina do "conluio" (pactos inconscientes ou "lealdades invisíveis"). Um homem com tabus sexuais, por exemplo, certamente escolherá para seu par uma mulher também cheia de tabus, pois não "aguentaria" uma mulher liberada. No nível manifesto (aparente), pode até parecer que as dificuldade) sexuais desenvolvidas a partir daí sejam decorrentes da mulher que é "frígida", pois com o homem parece não haver problemas. Uma pesquisa mais cuidadosa leva facil mente a perceber que esta versão não é verdadeira. Inversamente, quando uma pessoa procura na outra aa pectos que não desenvolveu em si mesma, temos, por exemplo, o caso da mulher que se sente burra e que exalta a inteligência do marido, como se somente ele a possuísse, como forma de sentir-se engrandecida através dele e emprestar dele a inteligência de que se sente desprovida. Essa determinação de que os problemas estão localizados apenas no outro viabiliza-se graças ao mecanismo de projeção, onde sentimentos e ideias subjetivas do indivíduo são atribuídas objetivamente a pessoas e objetos. Assim, um indivíduo que tenha muita dificuldade em expressar raiva pode casar-se com uma mulher "raivosa", que consegue expressar tal sentimento em seu lugar. Eia acaba incumbida de expressar pelos dois este sentimento. Essa carga dupla, representada por um aspecto vivido por um elemento do casal e aparentemente ausente no outro, acaba por pesar na experiência de ambos. Existe uma ansiedade que faz com que seja importante conservar esses aspectos, mas no outro. O mecanismo será estudado detidamente mais aprofundado, sob o nome de "identificação projetiva", no item sobre a confecção do "bode expiatório" no interior da dinâmica da família. De alguma maneira, no ato da escolha, um captou que poderia ajudar o outro a continuar um aperfeiçoamento na própria personalidade, que sozinho não conseguiria. Compartilhando a mesma dificuldade, como no caso anteriormente citado em que ambos não sabem como lidar construtivamente com sentimentos hostis, buscam encontrar juntos uma saída mais adequada. Em geral, esse movimento complementar se dá no sentido do crescimento, mas também pode constituir um pacto destrutivo que colabore para adoecer ambos os cônjuges, através de processos de mútua digladiação. Desse modo, existiria sempre num casamento um acordo inconsciente no que se refere ao contrato não-escrito — o contrato oculto. Um dos membros do casal projeta aspectos indesejáveis ou desejáveis de sua personalidade sobre o outro, que os aceita, uma vez que, em retribuição, também deposita aspectos seus complementares no outro. Nem sempre tais aspectos têm a ver com características pejorativas; por exemplo, um homem pode não assumir seu lado generoso (o que seria sentido como uma qualidade boa) e depositá-lo em sua esposa, como se ela fosse especialmente generosa e ele não. As crianças também podem sofrer as projeções de aspectos das personalidades dos pais. Frequentemente carregam aspectos mal resolvidos de todos como se fossem problemas pessoais seus, exercendo uma função reguladora na família, na medida em que, ao permanecer nessa função, aliviam de tal carga o resto da família. Os anseios e medos inconscientes que configuram a natureza do contrato oculto do casamento provêm dos relacionamentos da infância, pois todos os indivíduos , apresentam padrões repetitivos de comportamento derivados do que se estabeleceu nas primeiras etapas do desenvolvimento com as figuras parentais (pais ou pessoas significativas que cuidaram da criança). Muitas vezes, a escolha e o contrato secreto podem garantir a repetição literal do que se passou com os pais na infância. Imaginemos uma mulher que trabalha e vem sozinha sustentando a família, pois o marido se acomoda em casa sem sair a procurar emprego, sendo que seu próprio pai tinha sido um desempregado crônico e sua mãe a batalhadora. É comum também que filhas de pai alcoólatra] se interessem por homens com distúrbios semelhantes. Existem componentes inconscientes nessas escolhas que precisam ser detectados durante a terapia de casal, de forma que as pessoas, ao se darem conta dos respectivos mecanismos, possam refazer o alicerce sobre o qual o casamento se sedimenta. A união sadia implica reciprocidade e complementaridade construtiva no atendimento às necessidades de ambas as personalidades. Todos os vínculos amorosos, assim como todos os relacionamentos humanos, possuem aspectos de gratificação e aspectos de desprazer, de conflito. Tentar ampliar a possibilidade nutriente da relação só colabora com o crescimento pessoal e conjunto, enquanto os segredos e os pactos ocultos apenas restringem os relacionamentos e a oportunidade deum contato genuinamente mais Intimo. E no sentido de denunciar e elucidar essas alianças que o psicoterapeuta atua, pois uma vez que o casal se desvencilhe de suas armaduras, poderá estabelecer uma troca interpessoal mais rica. SUA MAJESTADE "O BEBE" A psicoterapia de família pode auxiliar o casal no sentido de desenvolver recursos que garantam a assimilação da criança no interior da família — inaugurando a possibilidade de uma relação triangular sadia, sem que a criança seja utilizada como campo de projeção de conteúdos mal resolvidos dos pais com as próprias figuras parentais. Quando o casal está "grávido", pode estar recebendo isto com muito agrado. Mesmo assim, existem medos, temores, sentimentos confusos e ambivalentes que precisam ser reconhecidos, embora a sociedade cobre felicidade total. Será preciso abrir um espaço entre os dois para que a criança caiba, o que não é tão simples assim. Imaginemos um casal com seu cotidiano estruturado, programas com amigos e passeios de fim de semana, que precisa organizar tudo em torno de um bebê recém-chegado, que mama de três em três horas e chora com dor de barriga. E assim, nunca mais estarão sós. Esta perda, contudo, poderá também trazer ganhos. Perda e renovação ocorrem em cada estágio do desenvolvimento e é preciso que se deixem certas experiências e possibilidades para trás, para que se possam atingir formas mais adequadas às novas etapas de desenvolvimento. O luto diante das perdas pode ser superado com o auxílio da percepção dos ganhos. Quando não é possível esperar a chegada do bebê com maturidade, muitos sentimentos normais e superáveis acabam por se acirrar, podendo vir a gerar sérias confusões. Por exemplo, a chegada do bebê pode representar ao pai regredido a vinda de um competidor, que lhe rouba a própria esposa (no caso sentida como a própria mãe). Um segundo filho pode ser sentido como intruso, na medida em que reedita a situação de competição com os próprios irmãos reais de um dos membros do casal, que permanece identificado com o primeiro filho, cujo trono é usurpado. Deste modo, uma criança pode ser utilizada desde o nascimento como extensão dos pais, recebendo papeis que se ajustam às fantasias desses pais, mas não a sua própria personalidade e necessidades. Isto acabará por dificultar o desenvolvimento das personalidades de todos os membros da família. Quando um bebê está por vir, é preciso que se abra um lugar dentro do casal para que ele possa existir. No caso de famílias com mais de um filho, cada novo bebê é um indivíduo único e precisa encontrar seu lugar no seio da família. O contato do casal com o(s) filho(s) pode vir a enriquecer o relacionamento conjugal, em vez de perturbá-lo. Para isso, é preciso maturidade no processo de construção da família. O "FILHO-PROBLEMA" COMO O PACIENTE IDENTIFICADO O indivíduo portador do sintoma, na familia, recebe o nome de paciente identificado. Isto significa que ele acaba por ser o encarregado de portar o problema e "dar uma carona a todos”. Ou seja, o resto da família vive uma sensação ilusória de que, na medida em que o elemento problemático melhore, o problema de todos estaria, por tabela, sendo resolvido, sem que os demais fizessem muito esforço. Com isso, a família persegue o bode expiatório, fantasiando que, ao livrar-se dele, livra-se dos conteúdos indesejáveis nele projetados. Isto é o que ocorre com famílias com um membro drogado, alcoólatra, suicida, delinquente, ou mesmo com clássico "capeta escolar”. É por isso que a criança-problema está na fala dos pais, pois uma vez que o jogo do ”passa-passa a batata quente” seja compreendido, a criança mais real surge e tudo começa a parecer bem mais coerente. Um filho excessivamente tímido pode, por exemplo, ser redefinido como um filho esperto que tenta poupar-se de confronto com os demais. Contudo, embora a ansiedade seja compartilhada (seja de todos), com frequência esse membro da família, que tem o(s) sintoma(s), incorpora o problema como se fosse apenas seu, salvando assim os demais membros da família do consequente "apuro" de lidar com tais conteúdos. O indivíduo passa, pois, a desempenhar um papel na dinâmica familiar, funcionando como bode expiatório do grupo. Partindo da ideia de que os pais transmitem aos filhos seus conhecimentos de acordo com os recursos psicológicos que possuem, não seria possível compreender a dificuldade enfrentada pelo(s) filho(s) sem relacioná-las às F condições apresentadas pelos adultos. Assim, a ansiedade vivida por um filho pode reativar nos familiares as próprias vivências que tiveram no momento evolutivo correspondente. As formas encontradas para lidar com os conflitos e ansiedades em determinadas situações serão apreendidas pelos filhos através dos modelos dos pais, de maneira que estes dificilmente poderão oferecer algo diverso do que eles próprios vivenciaram nas famílias de origem, a não ser que tenham seus conflitos infantis melhor elaborados. Para compreender como tal processo se torna viável, teríamos que recorrer à noção psicanalítica de identificação projetiva introduzida por Melanie Klein (1882-1960), em 1946. Ela utilizou essa expressão para designar o mecanismo através do qual "uma combinação de partes cindidas do EU é projetada em outra pessoa". Isso quer dizer que os sentimentos e ideias derivados do mundo interno do indivíduo são cindidos (divididos em pedaços) e projetados num objeto externo. Consequentemente, o sujeito fica desprovido dessa parte do EU e vivenda o objeto (a outra pessoa) como se ele possuísse a parte projetada. Essas partes podem ser aspectos seus que o indivíduo considere tanto bons como ruins. Pela complementaridade, o outro recebe tais projeções e se transforma em cúmplice da configuração, num processo conivente de interação (num pacto inconsciente). Imaginemos um casal que vinha enfrentando problemas sexuais. O marido acusa a esposa de ser completamente desinteressada do relacionamento sexual do casal, enquanto se vê muito necessitado e o único autor das tentativas de aproximação. A mulher justifica-se dizendo que o marido já chega em casa de cara "amarrada" e que, dessa forma, não pode realmente se excitar. O que ocorre aqui é que o marido acaba se sentindo responsável por cuidar pelos dois da vida sexual do casal, enquanto a esposa vivência, também pelos dois, a necessidade de trabalhar o relacionamento no que respeita ao diálogo, à intimidade e demonstração de afeto. No decorrer do atendimento, a esposa resolve investir na vida sexual do casal e tomar a iniciativa. Surpreendentemente, o marido "fogoso e sexualizado" diante do ato sexual acaba por não conseguir ereção pela primeira vez. Nesse momento, abre-se a ocasião de reunirem os pedaços de forma a compor cada um deles uma pessoa mais inteira. Isso na medida em que agora se falava de duas pessoas nesse casal, ao mesmo tempo interessadas em ganhar intimidade (o relacionamento sexual também aí incluído) e sentindo-se ambas "brochadas" diante das dificuldades de contato encontradas. O relacionamento sexual do casal melhorou muito, ao passo que as dificuldades do relacionamento geral eram resolvidas. A problemática sexual era, pois, apenas a pontinha de um iceberg, pois os obstáculos vivenciados eram bem mais complexos. Desse modo, da mesma forma que a mulher da situação apresentada acabava como bode expiatório das dificuldades do casal, numa família, qualquer elemento pode assumir esse papel. As crianças são elementos propensos para atuar nessa função, uma vez que estão menos estruturadas e são mais facilmente engajadas nas dinâmicas de família. No casode o indivíduo sintomático ser um filho, é comum que, depois de algumas sessões iniciais, ele deixe de ser o tema principal e os conflitos do casal comecem a aparecer. Os conteúdos inicialmente projetados no filho são introjetados, não sendo mais preciso que ele funcione como o intermediário entre os pais e suas dificuldades emocionais. Isto não significa que os filhos possam ser dispensados da terapia, mas que todos poderão trabalhar juntos esses mesmos temas aflorados através do sintoma. O bode expiatório é elemento importantíssimo no trabalho terapêutico, na medida em que é o porta-voz da problemática da família e via de acesso ao inconsciente familiar, pois expressa os conteúdos que, na verdade, são de todos. Seria como se a família fosse dividir na sobremesa três bolos: um de chocolate, um de coco e um feito de morangos estragados. Imaginemos que, na divisão dos pedaços, a família deixasse todo o bolo com morangos estragados • para um determinado membro do grupo. O sintoma também é fundamental, pois é o alarme que põe em contato indivíduo e problemas a serem avaliados. Imaginemos uma pessoa que pusesse descuidadamente a mão no fogo e nada sentisse. O sujeito torraria sua mão e a perderia. A dor do sintoma é, de fato, o alarme que indica perigo à vista e a necessidade de se tomarem medidas. Nesta linha, através do problema, a família se coloca em psicoterapia, numa última tentativa de lidar com velhos conflitos e experiências primitivas da vida. Ao psicoterapeuta será dado um lugar neste contexto: a família o convida a compartilhar sua estrutura de referência. Imaginemos uma situação exemplificativa. Uma família procura terapia familiar por indicação de um psicólogo. O motivo da consulta é que o filho de sete anos é muito agressivo, não se submetendo a regras em casa ou na escola, chegando até a bater na irmã de seis anos e na própria mãe. O cotidiano é bastante turbulento para esta família, como é fácil imaginar. Aos poucos, esclareceram-se alguns aspectos relacionados com a psicodinâmica da família. De um lado, o comportamento agressivo do garoto transformava-o num menino-problema, o capeta que conseguia monopolizaras atenções de todos ao seu redor, mesmo que para isso pagasse alto preço, como apanhar dos pais. Por outro lado, tinha-se a sensação de que a irmã ficava anulada, desaparecida, pois estava sempre à margem dos acontecimentos. Em contrapartida, a maneira que a irmã encontrou de rivalizar com o irmão era transformando-se na menina mais perfeita e na melhor filha possível. Na escola, tinha excelentes notas e se comportava em todos os lugares como uma "princesinha". Afora ser a maneira de se destacar diante dos pais, pois não poderia competir com a mesma arma do irmão — a agressividade —, procurava, nas sessões, salvar a todos de crises e ansiedades nos picos das tensões, falando alto ou chamando a atenção sobre si mesma. Assim, ambos os filhos disputavam o centro das atenções dos pais como se, no colo deles, só coubesse um. Curioso foi observar que conforme o menino desenvolvia o seu lado "doce", paralelamente vinha a primeira reclamação da escola sobre a menina. Desta maneira, os dois se transformavam em crianças mais "normais", mais inteiras. De outro lado, a investigação da história dos pais nas famílias de origem revelou fatos correlatos. Ambos possuíam apenas mais Um irmão de sexo oposto (a esposa tinha um irmão e o marido uma irmã), o que sugeria a repetição de inúmeras rivalidades mal resolvidas, através do novo casal de irmãos. Tal fato dificultava que pudessem agora ajudar os próprios filhos a lidarem com sensações de exclusão, disputa, ciúme, inveja e daí por diante. Além disso, descobriu-se que não era apenas o garoto que não sabia o que fazer da própria raiva, mas que ambos os cônjuges também não haviam aprendido isto com os próprios pais. Na família dele, a mãe era poupada de qualquer notícia ruim e os descontentamentos ou sentimentos hostis eram rapidamente apaziguados. Na família dela, segundo sua própria visão, o irmão era o filho predileto e suas queixas não tinham muito lugar. Enquanto os pais tentavam resolver tais dilemas através da reedição desses conflitos, agora com os próprios filhos, não havia disponibilidade para se ocuparem com o "namoro" no casamento. Os conflitos das crianças tinham também por função distrair o casal de suas dificuldades conjugais. Muitas crianças como esta, no lugar de paciente identificado, trazem, através de seus sintomas, um grito de socorro, como se dissessem: "Uma coisa grave está acontecendo com meus pais e conosco! Estou desesperado!". A FAMÍLIA NO DIVÃ A psicanálise de casais se apoia em alguns princípios fundamentais. Em primeiro lugar, como visto em capítulo anterior, tanto a escolha do parceiro quanto aquilo que mantém o casamento e lhe confere características específicas estão relacionados a motivações inconscientes. Não se escolhe o parceiro apenas devido a seus aspectos expressamente "bons", como comumente se pensa, mas também por fatores inconscientes (dos quais não nos damos conta). Outro aspecto importante é que existem duas tendências num casamento: uma de criatividade e outra de destrutividade. Criatividade porque o casamento é uma tentativa, mesmo que às vezes fracassada, de lidar com o passado e continuar a desenvolver-se no sentido do crescimento. É uma tentativa de resolver conflitos antigos inconscientes através da escolha de um parceiro que, ao complementar tais conteúdos, enseja que tais conflitos possam vir a ser lidados no presente, no processo do casamento. Destrutividade porque o casamento implica na repetição de conflitos vivenciados com os próprios pais (ou outras pessoas significativas), que são revividos na nova composição de casal, reeditados dentro da dinâmica da nova unidade familiar. Por exemplo, um indivíduo que encontrou muita dificuldade em trocar carinho com os pais, provavelmente, também encontrará dificuldade em dar e receber carinho com outras pessoas. Deste modo, a mesma dificuldade se reedita em novos relacionamentos e no casamento. Isto explica por que uma pessoa pode concluir por separar-se e acabar contraindo um ou vários outros casamentos subsequentes com problemáticas de estrutura semelhante. Uma vez que a questão a ser resolvida é interna ao sujeito, de nada adianta a troca de coadjuvantes. Assim, no trabalho analítico com casais é importante que se investigue como se deu a eleição (a escolha) do parceiro amoroso e se desenvolveu o processo conivente de interação (a cumplicidade, o estabelecimento de pactos inconscientes). Para tanto, são importantes informações não só sobre a família nuclear, mas também sobre a família de origem de ambos os parceiros. Nesta linha, afirma Henry Dicks (psiquiatra, Londres): "Quando los padres comieron uvas verdes, ios hijos tienen dentera" ("Quando os pais comeram uvas verdes, os filhos têm diarreia"). Ou seja, os pais oferecem como modelo de comportamento aos filhos o modelo que também tiveram (ou como o vivenciaram) e, geralmente, educam seus filhos com a melhor das intenções. Mas, além dos aspectos bons, as dificuldades também são transmitidas e retraba- Ihadas na vida intrapsíquica dos filhos. Certas dificuldades podem, com isso, ser passadas de geração a geração. Vamos supor que uma mulher de personalidade dominante se case com um homem mais submisso. Este modelo de casal pode ser repetido pela filha e, quem sabe, mais tarde, pela neta do casal em questão. Com isso, o analista de casal e família terá por função destacar o sentido latente (subliminar, que fica "embaixo dos panos”) existente nas palavras e açõesdo grupo familiar, trazendo à tona os conflitos subjacentes em tais comportamentos (através de interpretações); ser tolerante ante as frustrações da família assim também como ante as suas frustrações; ajudar a família a modificar-se, em vez de evadir-se; receber as projeções de sentimentos, percepções etc., vividos e internalizados, que derivam de experiências de relacionamentos anteriores dos sujeitos com as figuras parentais (com os pais). Em Psicanálise, estes processos recebem o nome de atitude de continência (por parte do terapeuta), manejo da transferência e da contratransferência. No processo transferencial, em vez de o indivíduo lembrar-se de experiências vividas com os próprios pais ou figuras significativas, o sujeito representa as emoções na relação com o terapeuta. Por exemplo, um indivíduo muito desconfiado não necessitará de motivos reais para se sentir perseguido pelo analista. Por transferência, ele provavelmente reagirá tal como se o analista fosse aquela pessoa da qual ele precisa proteger-se. Por contratransferência entende-se o mesmo processo, só que por parte do analista. Seriam as vivências que são atualizadas no seu interior, a partir do que sucede no contexto do processo. O analista precisaria perceber tais experiências e utilizá-las adequadamente na relação com seu cliente, no sentido de ajudar a compreensão dos processos em jogo, em vez de atuar tais conteúdos (por exemplo, sendo realmente a figura persecutória para o indivíduo descrito no parágrafo anterior). É frequente a sensação contratransferencial oferecer informações importantíssimas a respeito da dinâmica psíquica do cliente. Suponhamos que um casal reage ao processo de psi- coterapia da seguinte maneira: o marido está animado, achando que juntos podem vir a resolver os conflitos conjugais, ao passo que a esposa se mantém desanimada. Imaginemos que o casal está sendo atendido por um casal de co-terapeutas (dois terapeutas trabalhando em parceria), que comece a se sentir do mesmo modo. Um incorpora o ânimo pelo trabalho e o outro se mantém mais descrente. Poder-se-ia dizer que cada um dos co-terapeutas se identificava com um dos membros do casal e acabava por reproduzir, dentro do "casamento da co-terapia", a estrutura da dinâmica psíquica do casal em atendimento. Ao refletirem sobre tais sensações e discutirem sobre o desenrolar da sessão, podem vir a descobrir elementos importantes para a continuidade do processo terapêutico. Na terapia de casal e família, as fantasias inconscientes são comuns a todos, são partilhadas. A família irá transferir tais fantasias para a situação terapêutica e convidar o terapeuta a ocupar algum lugar nisto tudo. O analista deve estar atento a estes processos e trabalhar, não os aspectos psicológicos de cada membro, mas sim o inconsciente grupai. Mais precisamente analisará as fantasias inconscientes compartilhadas e comuns a todos os membros da família, e as ansiedades geradas por essas fantasias, que induzem os membros da família a utilizarem defesas complementares entre si. Vejamos um exemplo: uma família composta por mãe e duas filhas (uma de sete e outra de quatro anos). A mãe procura psicoterapia para a menina de sete anos que acaba de desenvolver uma fobia escolar: de uma hora para outra, passa a recusar-se a ir à escola e, quando forçada a isso, fica o período todo em pó ao lado do portão de saída, não cedendo a nenhum apelo de qualquer pessoa (mãe, diretora, professora, amiguinhas etc). Ao longo das investigações, descobre-se que o pai havia falecido repentinamente, havia dois meses, de ataque cardiaco, numa manhã quando saía para trabalhar. Ocupando-se da fobia escolar, todos se protegiam, através de um pacto, de vivenciar e elaborar o luto da perda do membro da família. Tal situação se transferia ao contexto terapêutico, uma vez que toda iniciativa por parte do analista em trazer o tema às sessões era rapidamente sabotada pela família — a mãe despistava, queixando-se da rebeldia da filha de sete anos, que se esforçava deste modo em manter-se no centro das atenções, enquanto a filha de quatro anos falava alto, atrapalhando a conversa dos adultos e chamando a atenção para outros temas e brincadeiras. A família representará, portanto, no contexto relacionai com o analista seus principais dilemas, oferecendo a ele um papel complementar no interjogo de sua dinâmica. O analista inicialmente aceita tal papel, para compreendê-lo e entender o funcionamento da família — o que ela quer dizer através do sintoma fóbico de um dos seus membros —, mas em seguida o abandona, tentando mostrar à família o que se passa, de forma a encorajá-la a procurar novas acomodações mais sadias, que permitam abandonar o sintoma. A FAMÍLIA COM CRIANÇAS EM PSICOTERAPIA As crianças, mesmo muito pequenas, podem com certeza ter um lugar de grande importância no desenrolar do processo psicoterápico. Com seu modo mais autêntico de ser, acabam de alguma maneira oferecendo informações valiosas sobre a real natureza das experiências emocionais compartilhadas na família. É preciso "ler" o comportamento não-verbal da criança e relacioná-lo ao tema debatido por todos na sessão. Muitas pessoas, contudo, não conseguem imaginar de que maneira as crianças poderiam colaborar numa sessão psicoterápica. É comum, mesmo entre os psicólogos alunos de curso de formação nessa especialidade, que se pergunte: "Mas o irmão tem apenas um ano; ele vai ficar fazendo o quê? Deverá vir?". O que ocorre, de um modo geral, é que a família vem para atendimento e encontra na sala do psicoterapeuta um espaço onde todos caibam, independentemente da idade que tenham. Para as crianças, ficam disponíveis alguns brinquedos, uma pasta individual com material gráfico para desenho e outros recursos que se possa oferecer, como: lousa, massinha, guache, argila etc. A escolha do material a ser colocado para as crianças dependerá de suas idades e do nivel de maturidade de cada uma. É comum que, no início, as crianças se sintam inibidas, enquanto reconhecem o novo espaço; mas é também muito frequente que, num curto período de tempo, se aventurem a explorar o material. Ocorrem momentos iniciais em que os pais ficam tentando fazer com que a criança tome alguma iniciativa e sobre isso são tranquilizados: "O material está aí; no momento em que seu filho quiser utilizá-lo, ele o fará por si só. Deixemos todos à vontade para fazer e falar o que quiserem”. Frequentemente, os pais iniciam um diálogo, enquanto as crianças aos poucos assumem algumas atividades. Todo comportamento verbal e não-verbal (seja através do posicionamento da criança na sala de atendimento, seja através do jogo lúdico) se relaciona com o tema que está sendo tratado. Se o terapeuta consegue "ler" isto e "traduzir" para o resto da família o significado da ação de uns aos outros, muitos conteúdos e sentimentos podem ser esclarecidos. O desenho a seguir foi feito por uma menina de onze anos, durante uma sessão de terapia de família, quando se falava sobre como ela, filha, construía uma imagem de sua mãe muito frágil, enquanto o pai lhe parecia uma figura forte, que aguentaria dificuldades. Ao mesmo tempo que o tema era colocado pelos pais, a menina inicia este desenho: é Jaspion (super-herói), que na verdade é ela mesma, carregando a mãe nos braços. Se observarmos cuidadosamente o desenho, veremos que ele representa graficamente o que os pais abordaram verbalmente. A filha identifica-se com o super-herói, pois deseja ter seus superpoderes e, ao mesmo tempo, representa como um personagem masculino, que acredita ser mais poderoso diante da vida, com o controle sobre o mundoe, portanto, sobre a própria família. No desenho, a mãe é um personagem que ela facilmente manipula. Na vida real, quando zangada, hostiliza o pai, pois acredita que ele pode aguentar os seus ataques. Assim, ele acaba recebendo o ódio da filha em "dose dupla”, mantendo a mãe poupada, uma vez que esta é vista como frágil. Dessa forma, amor e ódio eram cindidos, dicotomizados e projetados sobre os pais. Com a psicoterapia, a menina consegue, aos poucos, integrar esses pedaços de si mesma e compreender que cada uma das pessoas é forte e fraca, potente e impotente, hábil e inábil. Paralelamente, os pais também podem integrar os pedaços e perceber que a filha lhes dirige ódio e amor, pois inicialmente o pai se acreditava somente odiado e a mãe era apresentada como o centro das atenções da filha. O pai se sentia muito rejeitado e alheio à relação mãe e filha, permanecendo com inveja da esposa que, na sua visão, acabava ficando com o melhor que a filha tinha a oferecer. A menina, que antes só se interessava por "coisas de menino” e desejava ser um, acaba por se interessar também por objetos femininos; por exemplo, passa a usufruir os presentes que recebe dos pais, tal como usar as roupas que o pai lhe dava (as quais anteriormente desprezava) e "curtir" mais seu quarto cor-de-rosa. E difícil aos pais, por si sós, decifrarem a linguagem que permanece subjacente aos jogos infantis, pois estão demasiado envolvidos também com tais conflitos e, frequentemente, "lêem" os jogos apenas como brincadeiras. No contexto da terapia, o psicoterapeuta pode exercer esse papel de "tradutor", fomentando maior contato entre os membros da família. Imaginemos uma outra situação em que um casal procura terapia: estão brigando muito e pensando em separação. O relacionamento vai muito mal e as tensões em casa aumentam. O casal chega a uma das sessões preocupado com a única filha de quase três anos, que vinha desenvolvendo um medo exagerado de palhaço — não queria mais ir às festinhas de crianças porque haveria Show de palhaço e ela entrava em crise de choro. A filha voltava em prantos, o que a impossibilitava de conviver com as outras crianças e desenvolver sua sociabilidade. O sintoma havia aparecido de repente e os pais preocupados me perguntavam sobre a necessidade de uma ludoterapia (terapia infantil individual) para a criança. Peço que a tragam e, no primeiro encontro, ela inicia um jogo com a casinha, arrumando os móveis e as pessoas: coloca dois bonecos na cama de casal e, quando inquerida, informa que eram o pai e a mãe juntos. A partir daí o tema da conversa girou em torno de como a filha podia perceber os conflitos entre os pais e ali expressava seu desejo ativo de que pai e mãe permanecessem juntos. Além disso, quando estava mal, conseguia manter pai e mãe ocupados com ela, criando os únicos momentos em que ambos pareciam realmente juntos, funcionando como um casal. Esta era, talvez, a única situação em que o casal se unia em colaboração, aliava-se para resolver problemas, o que dava à filha a sensação de manter pai e mãe interligados. Enquanto o casal se unia para socorrer a filha, estabelecia uma trégua, que também os tranquilizava e permitia que não tivessem de decidir nada, pelo menos naquele momento. O sintoma da criança, então, também lhes era útil. A mutação da pessoa em palhaço acabava por ser associada à mutação da família, que também ganharia outra cara, caso os pais viessem a concretizar a separação. A cara antiga era conhecida e segura; a cara nova, transformada, ninguém sabia o que era capaz de fazer, tal como quando se esperam "as peças" que o palhaço vai pregar. A filha começou a frequentar festinhas infantis e, mais tarde, foi à primeira excursão da escola, na medida em que estas situações emocionais foram sendo compreendidas e trabalhadas. Caberia aqui perguntar o que uma criança de quase três anos estaria fazendo numa ludoterapia, sem que tais conteúdos fossem trabalhados em conjunto e no interior da dinâmica familiar. Certamente o trabalho que integre a participação dos pais nas dificuldades apresentadas pela criança pode ser muito mais abrangente. A COMUNICAÇÃO EM FAMÍLIA Promover o diálogo em família não é simples, sobretudo sem o auxílio da psicoterapia. Frequentemente, as famílias, de escasso diálogo entre seus membros, estruturam um pacto de defesas compartilhado (onde todos participam) de forma a garantir sua obstrução. 0 medo de que os ternas-tabus eclodam e que se tenha que encarar as dificuldades colabora no sentido de que os membros da família não busquem um contato mais autêntico uns com os outros. Nessas questões, um psicoterapeuta pode ajudar. 0 mero pertencer a uma família não imuniza contra a solidão. É comum, nas conversas informais, ouvir queixas de uma pessoa em relação aos parentes que não a compreendem. Em muitas famílias a co-habitação não gera o estreitamento dos laços entre as pessoas. Nas grandes metrópoles, as crianças ocupam-se em tarefas e numerosas atividades, inclusive extra-escolares, reduzindo cada vez mais o tempo de contato com os familiares e de brincadeira com outras crianças. O ingresso paulatino da mulher no mercado de trabalho, as dificuldades financeiras que aumentam e o pai fatigado do começo da noite somente agravam o quadro. „ Tais crianças acabam se transformando, nas classes mais pobres, no adolescente que ingressa precocemente no mercado de trabalho e que compartilha, ao final do dia (quando não estuda à noite), da fadiga familiar com seus pais subempregados (se estes não estão fazendo hora extra); ou, nas classes mais altas, no superadolescente, financeiramente abastado, que se divide entre escola, e consequentes tarefas de casa, aulas de natação, vôlei, inglês, francês, violão, piano, sapateado etc. A distância entre as gerações e a televisão como babá — ou, no caso do adulto, como calmante — agravam os problemas familiares. Vê-se que, no mundo moderno, achar um tempo para sentar e conversar com o filho, ou com os pais, não é fácil. Quase que se têm que abrir a agenda para registrar quando será a brecha. Deste modo, compartilhar experiências, falar sobre os sentimentos e trocar ideias são privilégios de algumas famílias. Neste contexto a comunicação se mantém precária, limitada aos aspectos superficiais do cotidiano. É possível que a família descrita se transforme numa familia conflitiva, que exerce o movimento contrário, como se andasse no contrafluxo: em vez de promover o crescimento de seus membros, o obstrui. ' Para se transformar em nutridora, a família precisaria oferecer condições adequadas para que o bebê se transformasse num adulto maduro. Se os indivíduos "empacam", a evolução do ciclo vital da família também fica incompleta e dificilmente poderá liberar os elementos mais jovens para a composição de novas unidades familiares. Paul Watzlawick (Paio Alto, Califórnia) identifica dois tipos de comunicação frequentes nas relações humanas e, portanto, também dentro da família: a comunicação simétrica e a complementar. Ambas podem significar algo provedor ao crescimento, quando não enrijecidas. Existiriam, ainda, as comunicações digital e analógica. A comunicação simétrica implica uma simetria, como o nome propriamente diz, uma igualdade de condições. Ambos os indivíduos possuem recursos equitativos. Vejamos um exemplo: Um casal possui potencialidades de mesma qualidade — capacidade de trabalho, recursos para resolver situações problemáticas, sensibilidade para compreender as necessidades dos filhos e para cuidar deles —; podem funcionar em colaboração, exercendo papeis semelhantes, o que auxiliaria o desenvolvimentode todos. Destrutivamente, poderiam utilizar esta mesma condição numa "escalada simétrica" de rivalidade contínua, competindo para decidir quem é o melhor. A comunicação complementar implica na ideia de que o indivíduo irá exercer a função que o outro não está apresentando, de forma a complementá-lo. Naquele momento, ambos os indivíduos funcionam como única composição. Imaginemos um casal onde a mulher não está conseguindo decidir sobre como lidar com o filho diante do quarto bagunçado. O pai se interpõe, argumenta com o filho e este arruma o quarto. Isto pode ser rico enquanto troca de ideias sobre a educação desse filho e como modelo de atuação que o marido oferece à esposa, momentânea- ' mente insegura, podendo resultar em algum aprendizado. Se essa complementaridade, contudo, se transformar em algo crônico e enrijecido, ou seja, se toda vez que precisar exercer sua função, a mãe tiver de emprestar a capacidade de atuar com autoridade sobre o filho e a capacidade de diálogo do marido, isto funcionará como algo restritivo ao crescimento de todos: da esposa, porque não desenvolverá tais aspectos em si mesma; do marido, porque permanecerá sobrecarregado nesta função, descuidando de outros aspectos; do filho, porque não receberá um modelo de casal e de paternidade com pessoas "mais inteiras", provavelmente separando de forma estanque o que pertence aos papeis feminino e masculino. A comunicação pode ser, ainda, digital ou analógica. A primeira, tal como o relógio digital onde aparecem os dígitos indicando diretamente o número de horas e minutos, lida com sinais. Assim, nas relações humanas, esta linguagem corresponderia à linguagem verbal onde as palavras se associam diretamente a determinados objetos ou ações. A comunicação analógica poderia ser comparada ao relógio com ponteiros, que exige que o interessado estabeleça uma relação entre suas posições para descobrir a hora indicada. Também nas relações humanas é possível obter informações através do comportamento que não ó dito (falado), mas demonstrado através da atitude, de pequenos gestos e expressões, do posicionamento espacial com os outros e demais comportamentos não-verbais, bem como da própria possibilidade de múltiplas interpretações do que é dito. Esta divisão entre linguagem digital e analógica acaba por ser estanque e para fins didáticos, pois na prática dificilmente uma comunicação digital deixa de exprimir um conteúdo analógico. Por exemplo: uma criança que diz na sessão "Agora vou para casa" pode estar, na verdade, dizendo "Agora vou para aquele lugar horrível!", ou mesmo o oposto: "Por favor, vamos parar com isso e deixe a gente ir para casa e continuar como estávamos". Numa psicoterapia, não somente a linguagem verbal é considerada mas também a linguagem não-verbal, que pode ser reveladora da estrutura psíquica do grupo familiar. As crianças pequenas, principalmente, participam da sessão utilizando a linguagem não-verbal como principal via de comunicação, ao que permanece atento o psicoterapeuta. O CASAMENTO NO MUNDO ATUAL As mudanças sociais, através dos tempos, envolvem mudanças de valores no ambiente familiar. Estas mudanças geram tensões e necessidade de reestruturação dos papeis de cada um na família. Os novos valores conflituam com a educação recebida dos pais. A combinação dos conflitos individuais no casamento transformam-se em problemas para os quais fica difícil encontrar uma saída. A psicoterapia familiar pode desempenhar um papei importante nesse contexto, auxiliando a família na compreensão desses processos e no encaminhamento de novos arranjos. Quando pensamos no casamento no mundo contemporâneo, na maior parte das vezes não nos remetemos ao casamento realizado "para a vida toda", tal como nos valores de bem poucas décadas atrás. A não ser em setores bem conservadores da sociedade, onde o casamento é indissolúvel a qualquer custo, ele tem sido visto como uma experiência de relacionamento que se inicia com o desejo de que tudo transcorra bem e se mantém enquanto as necessidades de ambos os cônjuges possam ser nele satisfeitas. Hoje a maior proporção de pessoas desquitadas ou divorciadas cria uma certa faixa social que afronta os valores do passado, que exigiam a vida conjugal indissolúvel, mesmo que absolutamente infeliz. Há dez anos, por exemplo, uma pessoa que decidisse enfrentar a família e o meio social, separando-se do parceiro, era alvo de poderoso preconceito e marginalizada como "má companhia". Os motivos que tivessem levado tal pessoa a essa decisão não era o mais relevante. O mais nítido era o estigma de "desquitado". Antes ainda, uma moça, que desejasse casar-se com um homem separado, necessitaria fugir de casa para tanto e, muitas vezes, arcar com o rompimento com a família de origem por muitos anos, como represália pela sua decisão independente. Com isso, os jovens, atualmente, procuram alguém com quem possam compartilhar suas existências e, quem sabe, ter filhos e constituir uma nova unidade familiar. Não é mais a mera regra que seguraria um casal jovem unido, provavelmente, pois o mundo atual tem um espaço mais flexível para as pessoas que desejam desfazer o casamento (a lei do divórcio instaurou-se no Brasil nos anos 80). Assim, se um casal se mantém unido, mais frequente- mente o faz pela possibilidade de manter uma relação sempre renovada, que até pode durar toda uma vida. A sociedade moderna sofre, contudo, de outra ordem de dificuldades que, poder-se-ia arriscar a dizer, chegam a ser traços sociais predominantes. Numa sociedade que gera personalidades competitivas, narcisistas (indivíduos embotados em si mesmos, auto-referentes, que exigem o mundo à semelhança de suas imagens no espelho), casar não é tarefa fácil. Tais pessoas tendem a funcionar pelo sistema de gangorra: "ou tudo ou nada" ("oú oito ou oitenta"). Ou o indivíduo "supostamente amado" corresponde ao modelo de expectativa dentro do sujeito ou já não é possível mais nada. Não se pode esquecer que a personalidade narcisista, no fundo se apaixona por um objeto interno de si mesmo (ama seu próprio ego no outro), que permanece projetado no parceiro amoroso. O indivíduo não se vincula com o outro "real", cuja existência se dá independentemente da sua. Tais pessoas esperam, então, que o outro possa corresponder ao que elas necessitam e não conseguem tolerar qualquer elemento desfavorável que advenha, tanto do outro quanto de si mesmo. É fácil observar, deste modo, como muitos jovens se casam ainda brincando do jogo de "príncipe e princesa". Imaginam que o outro agirá dentro do que se espera dele e de seu papel de esposa ou marido, como se as pessoas pudessem ser encontradas prontas, e do jeito que se quer. No discurso de senso comum se diz: encontrar a "outra metade" que irá completá-lo. Como se a solidão fosse facilmente preenchida e o difícil fosse achar a pessoa "certa". Claro que um relacionamento não se instaura ao se deparar com um príncipe, ao beijar-se um sapo ou ao despertar de Bela Adormecida, mas precisa ser construído aos poucos, pelas duas pessoas. E preciso regar e alimentar o vínculo interpessoal que se deseja cultivar. Nesta linha, não se trata de achar um parceiro amoroso que se encontre pronto, mas de entrar em um relacionamento a dois, a ser trabalhado por ambos na direção de maior consideração às necessidades de cada um, realizando-as dentro do possível. Quando se lida com conflitos no contexto da psicoterapia, podem-se desenvolver as partes mais imaturas das personalidades dos componentes de um casal. É possível, ainda, investigar e superar os conflitos geradospelas várias partes fragmentadas e paradoxais das personalidades dos indivíduos. Por exemplo, o casal pode desejar ter uma vida sexual mais livre, sem preconceitos, tal como os jovens de sua geração; por outro lado, recriminam-se por sua prática sexual, sentindo-se culpados, tal como aprenderam com seus pais. Muitos casais não entendem por que namoravam tão alegremente antes do casamento e, depois dele, assumiram os papeis de esposos num ritual demarcado e sem graça. Para onde foi o encanto? Tais questões podem ser aclaradas através do processo psicoterápico, que busca investigar os elos de ligação entre estes eventos. Na medida em que as dificuldades vão sendo resolvidas, abre-se o ensejo para um casamento mais provedor, no que respeita às necessidades adultas de ambas as pessoas. Além disso, fica também mais fácil ajudar os filhos a se desenvolverem nos mesmos aspectos. As pessoas que encontram dificuldade em entender o casamento nesta perspectiva, caem frequentemente em contínuas cobranças mútuas, sem que a energia seja utilizada no sentido de descobrirem, afinal, quem é o outro. Diante da frustração e da raiva que as acompanha, esquecem-se, com frequência, que a pessoa odiada é também a pessoa amada. A acusação "Por que você..." precisaria ser substituída pela interrogação "Por que ajo assim?" ou "Qual a minha parte de co-responsabilidade no que está ocorrendo?". Ou seja, as acusações ao outro ou a si mesmo precisariam ser substituídas por uma reflexão conjunta a respeito de como ambos estão construindo esse relacionamento. Numa sociedade competitiva, as pessoas não se dão conta de que, numa briga de casal, não há vencedor nem vencido, mas apenas a derrota. O casai sadio é, necessariamente, um casal cooperativo. AMOR E PAIXÃO O indivíduo que ama não só se enamora por atributos que o outro possa possuir, mas também tolera e lida com as diferenças de personalidade que lhe possam parecer adversas. Diante de conflitos, que certamente vão ocorrer em algum momento, é importante que o casai abra um espaço de continência a eles e reúna os recursos para elaborar uma solução em conjunto, que atenda a ambos os parceiros. Afinal, não se compôs um casal para se continuar sozinho. É no desenvolvimento desses aspectos que a psicoterapia de casal e família procura colaborar. Muitos não conseguem definir ou compreender o teor dos sentimentos que desenvolvem por uma pessoa, que é vi vendada como "objeto de amor". Os jovens, então, muitas vezes se embaraçam, não sabendo o que verbalizar ao seu parceiro (ou parceira): "Eu te amo", "Eu te adoro", "Estou apaixonado", "Estou vidrado em você" etc. Para quem ouve, tais declarações podem ter, ainda, um significado especialmente particular. Por exemplo, um namorado pode dizer à namorada que a ama e ela entender que ele já quer casar com ela. Ou uma namorada se diz apaixonada e o namorado compreende que, então, não gosta dele tanto assim e que os sentimentos dela serão passageiros. Por isso, é comum, hoje, que se sinta uma grande insegurança com relação aos sentimentos do outro. Isso parece até poder explicar o fato de que também é comum, entre jovens, não saber mais como esclarecer a si próprio e aos outros sobre o relacionamento que vêm estabelecendo. Como distinguir se é uma "transa", "um namoro", "um caso" ou se apenas "se ficou" com ele (ou ela). Essa expressão "fulano ‘ficou’ com fulana" é a novidade desta virada de década. Significa dizer que o casal de pretendentes a um envolvimento passou a noite, um dia ou um tempo relativamente curto como um casal de namorados. A breve experiência funciona como uma tentativa, mas também libera o jovem casal para tomar iniciativas com novos parceiros. Contudo, apesar desse caráter dispersivo, a paixão ainda prevalece como uma das experiências mais marcantes da juventude. É vista, predominantemente, como a paixão romântica: o poeta do período do romantismo acabava definhando no ardor da paixão pela amada, que se mantinha como a musa adorada a distância e concretamente inatingível. Na mitologia grega, o Cupido atira flechas em outras pessoas com o objetivo de transformá-las em apaixonadas. O Cupido, que era cego, por intermédio de sua flecha transfere a cegueira aos demais — as pessoas eram atingidas pela cegueira do amor. Adviria daí a ideia de que a pessoa apaixonada está cega em relação a quem é, "em verdade", o outro. A pessoa apaixonada estaria, deste modo, num estado psíquico em que não pode considerar quem é o outro, pois nele coloca a finura de um ser idealizado, que não passa, realmente, de uma projeção de um pedaço de si mesma. Isto explicaria por que a paixão é súbita, inexplicável, intensa e também porque da mesma maneira que vem, vai, ruindo abruptamente. n I Sigmund Freud (1856-1939) compara o estado de paixão ao estado hipnótico. Da mesma forma que o hipnotizador constitui o único objeto (a única pessoa de interesse) do hipnotizado, não prestando atenção a mais ninguém que não a ele, assim também ocorre com o indivíduo apaixonado em relação à pessoa amada. I O apaixonado, encantado com as "perfeições" que se esforça para conseguir para o próprio ego, vislumbra consegui-las através do outro (do amado) de maneira indireta, como meio de satisfazer seu próprio narcisismo. Poder-se-ia dizer que na paixão se está amando "um eu idealizado”, que se gostaria de ser, imaginando que isto foi encontrado na outra pessoa. Na medida em que o relacionamento se prolonga, dura, toma-se impossível a sustentação dessa imagem e, diante das diferenças pessoais e das adversidades, a paixão desmonta. Isto se deve ao fato de que o outro nunca poderá corresponder ao "eu idealizado" que é projetado sobre ele. Quando a paixão acaba, se as duas pessoas têm condições de iniciar um processo de recíproco conhecimento, um amor mais maduro, que considere a outra personalidade, pode nascer. Por isso, a paixão tem fama de ser intensa, frágil e passageira e o amor de ser um sentimento mais fortalecido e duradouro. No caso da paixão, quanto maior for a idealização que se faz "de si no outro", maior será o tombo, pois o pedestal onde se colocou o outro será mais alto. O amor promete algo afetivamente mais seguro, mais genuino; para vivenciá-lo, numa relação de casal, é preciso que as duas personalidades tenham atingido maior maturidade. Entende-se aqui por maturidade a capacidade de relacionamento interpessoal que considera o outro como um outro e não como reflexo de si próprio. Exatamente por isso não se pode esperar dele que corresponda sempre às próprias expectativas e necessidades. E importante compreender também que, ao se compor um casal, é preciso caberem nele as necessidades de ambas as pessoas. CASAIS SEPARADOS. OS MEUS, OS TEUS E OS NOSSOS O psicoterapeuta de família pode ter um papel fundamental diante dos processos emocionais em jogo, quando um casal decide separar-se. Pode funcionar como um "tradutor" que objetiva colocar pais e filhos, adultos e crianças num contato recíproco mais autêntico. Desse modo, as emoções mais escondidas ganham ensejo de compartilhamento, oferecendo elementos fundamentais para a tomada de decisões e sua sustentação em família. Quando os problemas e a situação de convivência de um casal se tornam insustentáveis, na maior parte das vezes busca-se alívio através da separação. É o veículo que permite afastar o mal-estar mais imediato. Em seguida, o casal se dá conta de que, paralelamente, surgem novos problemas; a experiência não é tão simples assim. Fica difícil lidar com os sentimentos ambivalentes e as duas pessoas se vêem diante do dilema entre querer e,ao mesmo tempo, não querer a separação. Por mais que haja alívio diante dos aspectos do relacionamento e do outro, com os quais não se quer arcar, existem também os aspectos bons que não se quer perder. Há uma série de lutos a serem elaborados (pesar diante do que não se vai viver mais por estar longe do outro, com sua perda), pois a separação de um casal implica na vivência de morte, dado o desaparecimento do outro no interior do mundo pessoal. Uma vez que, nas relações amorosas, partes de um sujeito (expectativas, fantasias, qualidades etc.) encontram- se depositadas no outro e vice-versa, a separação, por contraponto, envolve não só destruir a imagem do outro em si próprio, mas também suportar que o mesmo ocorra com a sua imagem na consciência do outro. Isto explica por que é tão incômodo ver-se rapidamente substituída (o), ao verificar que o antigo parceiro (a) já estabeleceu um novo relacionamento. A negação das perdas ocorridas com a separação e a dificuldade de elaborar em conjunto a ambivalência de sentimentos conduzem, muitas vezes, a uma separação bem atrapalhada. Não é raro os filhos presenciarem as brigas e serem utilizados como pombos-correios entre os pais, além das reclamações e xingamentos que ouvem de um para outro, o que só os tomam mais confusos. Casais melhor estruturados, contudo, preocupam-se com os efeitos que o impacto da separação pode provocar em seus filhos. A ideia de que casais que se separam acabam por gerar inevitavelmente "filhos-problemas" não é real, pois muitas vezes o descasamento pode representar a única saída saudável para o crescimento das pessoas envolvidas. Pode, por exemplo, significar uma tentativa de romper com a simbiose estabelecida, na busca de um desenvolvimento pessoal. Chamo de simbiose o tipo de relacionamento onde as duas pessoas envolvidas se fundem, compondo uma só personalidade. É o conhecido jogo do "você me empresta uma perna, eu te empresto um braço e aí vamos andando". A simbiose limita o crescimento, na medida em que não permite que cada pessoa desenvolva, dentro de si, os aspectos correspondentes. Para sair dessa "encrenca", não seria necessariamente imperioso separar-se. Torna-se importante, porém, um primeiro momento de discriminação um do outro (que pode certamente ser realizado sob o mesmo teto), onde as duas pessoas tentem delimitar quem é quem e o que podem trocar entre si. A psicoterapia pode auxiliar este diálogo e o estabelecimento das fronteiras entre as duas pessoas no casal, de forma que o outro venha a estabelecer-se verdadeiramente como outro. Assim, as separações de casais têm ocorrido com fre- quência e a saúde mental dos filhos não tem a ver com esta variável. Desde que realizadas com maturidade, as duas situações, o casamento ou o descasamento, podem permitir e favorecer o desenvolvimento normal de crianças e adolescentes. O que não se tem demonstrado saudável, gerando sintomas, são situações onde ou os pais se mantêm casados em duelo constante, ou em paz disfarçada e pobre; ou quando a separação ocorre sem que as pessoas estejam preparadas para lidar maduramente com ela. Agir com maturidade implica na percepção da co-responsabilidade tanto no sucesso quanto no fracasso da relação; e, ainda, no respeito e consideração mútua, preservando certa cooperação no atendimento aos filhos. Muitos pais, diante da decisão de separação tomada, ficam muito confusos em relação ao que dizerem aos filhos. Além da dificuldade em dar a notícia com clareza, preocupando-se em definir como vai ser dali para a frente — e, de preferência, com o cuidado de o fazerem em conjunto —, tendem a subestimar a capacidade de participação e compreensão de crianças muito pequenas. Por vezes, os pais sobrecarregam o filho mais velho, que sobreparticipa das decisões e arranjos, enquanto as crianças mais novas passam despercebidas (mas de "antenas bem ligadas"). Não é nada simples promover o diálogo conjunto e em família, uma vez que esta condição possivelmente já era deficiente. E comum, ainda, que a criança possa culpar-se da separação dos pais, como se seus desejos agressivos (sentimento de ciúme, rivalidade) e de separar os pais tivessem tido real efeito em sua fantasia onipotente. Não esqueçamos que a criança é presa de um pensamento mágico e egocêntrico, que a deixa auto-referente, desejando ter cada um dos pais só para si, com ciúmes do casal unido, que parece excluí-la. É indispensável reafirmar à criança que ela não é responsável pela separação de seus pais, isentando-a de culpa, além de assegurá-lhe que a separação é dos pais, que ela continuará a ter seu espaço garantido na vida deles e a ser amada igualmente. É comum que as crianças permaneçam na casa onde já habitam e, ainda mais frequente, que permaneçam com a mãe. Independentemente de com quem ficam as crianças, é importante que o cotidiano e o ambiente corriqueiro se alterem o mínimo possível, pois isso lhes oferecerá alguma segurança num momento em que a separação dos pais já é sentida como mudança brutal. O pai que sai de casa precisa encontrar um lugar onde seja capaz de receber os filhos e criar, o mais possível, espaços de intimidade com eles. O pai que fica morando com as crianças podería produzir recursos para uma boa convivência e vir a desenvolver capacidade para tarefas com as quais possa não estar habituado, ou mesmo, que nunca tenha realizado. A ideia de que os filhos necessitam, por mera regra, de ficar com a mãe é falsa e fruto de viés de nossa cultura. Indispensável é que haja condições adequadas para o desenvolvimento de todos. A compreensão de limites, o saber lidar com a incom- pletude de que não se pode ter tudo e a toda hora, a sensibilidade para detectar as emoções do outro e as próprias, o poder arcar com uma certa dose de impotência diante de certas condições de vida podem ser ingredientes importantes para uma boa convivência. Muitos casais superam de maneira frutífera as dores de uma separação, encontrando no futuro novos parceiros com os quais obtêm gratificação às necessidades da nova etapa de vida. Filhos de diferentes casamentos podem ser auxiliados no sentido de bem conviverem e dividirem o espaço entre os pais, desde que os adultos também possam bem administrar tais questões. Um novo namorado (ou namorada), ou mesmo os novos cônjuges, não são necessariamente sentidos como intrusos, mas podem vir a desempenhar papel importante na vida dos filhos "adotivos”, podendo funcionar como alguém que não rouba, mas acresce. Além disso, o novo casal pode vir a oferecer um modelo de relação mais sadio, afora liberar os filhos de papeis complementares como o de ser a nova "namoradinha" do papai ou o "novo chefe de família" ou o atual "homem da casa”. Com tudo isso, a separação é um momento de crise. Por mais que o casal possa elaborar com naturalidade este processo num clima amistoso, a separação envolve, na maioria das vezes, a vivência muito drástica de uma carga de emoções. Já que a separação pode e deve ser planejada, é possível prever a crise e lidar com ela numa perspectiva preventiva. A psicoterapia de casal e família pode ajudar. Cabe esclarecer que, diferentemente do que se possa pensar, a psicoterapia de família é possível mesmo com os pais já habitando em casas separadas. Seu objetivo seria auxiliar os indivíduos a elaborarem os sentimentos e conflitos em jogo, de forma que cada membro possa adaptar-se à nova situação familiar. As sessões também funcionam como o espaço neutro onde pai e mãe começam a estabelecer o novo contrato de responsabilidade e distribuição de tarefas perante os filhos. As ansiedades e lutos
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