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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Departamento de Letras Vernáculas Língua Portuguesa II (LEV120) Definindo nosso objeto de estudo: o texto 1 A palavra texto do latim textum, que significa “tecido”, “entrelaçamento”. O texto resulta de um trabalho de tecer, entrelaçar várias partes menores a fim de obter um todo inter-relacionado. No exemplo a seguir, as frases, apesar de possuírem elos linguísticos que estabelecem uma relação coesiva, não permitem uma concatenação das ideias e uma unidade de sentido, não caracterizando, portanto, um texto. João foi à padaria, que é feita de tijolos. Tais tijolos são caríssimos, igualmente aos mísseis, que também são caríssimos e são lançados no espaço. Segundo a Teoria da Relatividade, o espaço é curvo. A Geometria Rimaniana dá conta desse fenômeno.” Logo, o texto é: Uma “unidade interativa de comunicação funcional, construída na interlocução.” 2 Uma “unidade linguística concreta (...) tomada pelos usuários da língua (...) em uma situação de interação comunicativa, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida.” 3 Ler é só começar?4 A leitura de um texto não se faz apenas pela significação das palavras e das frases ali presentes. Há que se considerar a situação em que o texto foi produzido, bem como as inferências que podem ser realizadas a partir do conhecimento de mundo dos participantes do ato de comunicação. Dessa forma, o processo de leitura torna-se muito mais abrangente porque envolve fatores intelectuais, emocionais, biológicos, culturais, econômicos e políticos do leitor/ouvinte. Esse conjunto de elementos que atuam na compreensão do texto constitui o contexto de produção. Significados importantes e decisivos para uma compreensão mais profunda do texto são produzidos, dependendo de inferências mais simples ou mais complexas realizadas pelo leitor. Para isso, é preciso que ele observe marcas do contexto de produção presentes no texto: quem é o autor? Em que momento e lugar o texto foi produzido? De que forma o texto dialoga com o contexto, reiterando-o ou criticando-o? Qual o objetivo comunicativo do texto? As condições de produção que determinam as características do texto são: tempo (compartilhamento de valores e informações entre os interlocutores); lugar social (família, escola, interação comercial, mídia); posição social dos interlocutores na interação (papel de professor, pai, patrão, cliente, amigo, de um lado; e papel de aluno, subordinado, filho, amigo, colega, de outro lado); 1 Material elaborado pela Profa. Dra. Juliana Marins. 2Pauliukonis, M.A. L. Texto e contexto. In: VIEIRA, S. & BRANDÃO, S. Ensino de gramática. São Paulo: Contexto, 2007, p.246. 3 KOCH, I. V. & TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo, Contexto, 1995. 4 O texto a seguir foi adaptado da apostila Reflexões sobre texto e ensino (parte 1), das professoras Maria Aparecida Pinilla, Maria Cristina Rigoni e Maria Thereza Indiani. objetivo da interação (qual o efeito que o texto deve produzir nos interlocutores); canal / veículo (livro, jornal, tv, rádio, outdoor); grau de formalidade da situação. Tempo Em função das diferenças temporais – do ponto de vista cultural, social, político, econômico, por exemplo – os textos apresentam diferentes valores e exigem do leitor a realização de determinadas inferências, com base nas informações explícitas e implícitas ali contidas. Assim, quando produtor e receptor compartilham valores e informações, o processo de leitura é mais abrangente. Já quando o leitor não compreende as concepções expressas no texto, porque pertencem a outro momento histórico, necessita utilizar estratégias especiais. Na produção de um texto, as informações apresentam diferentes graus de detalhamento em função da possibilidade de o leitor estar ou não situado no mesmo momento histórico que o produtor. Por exemplo, em notícias e cartas de leitor, inúmeras informações são ocultadas, porque estão subentendidas devido ao fato de produtor e leitor do jornal estarem inseridos em uma situação comum: guerra do Iraque, desastres ecológicos, campanha eleitoral etc. Já em um texto acadêmico, supõe-se que o leitor pode estar em outro momento histórico e, portanto, precisa de informações básicas para contextualizar a informação, embora sua atemporalidade faça com que a dependência do contexto seja muito menor do que a de notícias e cartas. QUINO. O mundo da Mafalda. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p.44. A leitura dessa tirinha exige que os alunos tenham consciência das graves questões mundiais. A presença da televisão, no primeiro quadrinho, sugere que as pessoas podem se informar sobre “tudo” o que acontece no mundo, principalmente os problemas, ao vivo e a cores. A imagem da menina solitária, pensativa, sentada em um banco frente à televisão, lembra a escultura O Pensador, de Rodin. O humor da tirinha apoia-se na ideia de que as notícias sobre o mundo são tão alarmantes que seria preciso um comercial “convincente” para colocá-lo à venda. Essa afirmação ironiza o poder da publicidade, porque permite deduzir que um bom comercial vende qualquer coisa, até o que seria invendável. Portanto, é preciso inferir que é muito difícil atribuir um valor positivo ao mundo. O leitor que não estiver consciente das dificuldades do mundo atual não conseguirá entender o sarcasmo da fala da personagem Mafalda. No ato de leitura, apresentam-se algumas questões cujas respostas podem ajudar o leitor a compreender melhor o sentido do texto e a perceber informações subjacentes. a. Quem é o autor? O que você sabe sobre sua atuação profissional? O autor da tirinha é Quino, cartunista argentino conhecido pela visão crítica com que procura desenvolver em seus leitores a reflexão sobre a vida cotidiana e o contexto social. b. Em que momento e lugar o texto foi produzido? O texto foi produzido na atualidade. Assim, para entender suas referências aos hábitos e valores da sociedade, é preciso relacioná- las aos acontecimentos contemporâneos. Embora o autor seja argentino, o caráter universal das suas tiras é alcançado porque os problemas discutidos afetam as pessoas em todas as partes do mundo. c. De que forma o texto dialoga com o contexto, reiterando-o ou criticando-o? O texto dialoga com as perplexidades contemporâneas: a passividade das pessoas frente à televisão, o poder da propaganda, as angústias em relação aos problemas mundiais. d. Qual o objetivo comunicativo do texto? O texto tem o objetivo de fazer humor voltado à crítica social: critica indiretamente o poder da propaganda e a veiculação de notícias alarmantes pelos jornais da televisão. Lugar social As relações de poder instituídas pelo lugar social são responsáveis desde a forma de abordar o assunto até a escolha do vocabulário. Um exemplo de lugar social é o espaço escolar, que se constitui pelas relações entre professores e alunos, entre os professores como uma categoria profissional, entre professor e diretor, entre diretor e alunos, entre pais e professores. Esse espaço é dinâmico e as relações de poder autorizam o discurso de cada um desses papéis sociais. Posição social do produtor e do receptor na interação A posição que cada pessoa ocupa em um lugar social determina a constituição e os objetivos comunicativos de seu discurso. Além disso, cada leitor estabelece um tipo bem peculiar de interação com o texto de acordo com seu papel social. O mesmo conteúdo pode assumir formas textuais bem distintas em função das diferentes variáveis relacionadasao contexto de produção. Seguem alguns exemplos: um conselho dado por um amigo é construído de uma forma diferente do conselho dado por um professor, porque entre amigos existe a negociação entre as partes, e o conselho pode assumir a configuração de diálogo; o conselho dado pelo professor é, provavelmente, um monólogo, porque a diferença de lugar social do professor e do aluno dificulta ou impede a interlocução; a conversa entre mãe e filho, por sua excessiva intimidade, gera diálogos elípticos que podem não ser entendidos por uma pessoa estranha, visto que os interlocutores se referem a situações desconhecidas pelos outros. Objetivo da interação Em cada situação social, a interação entre as pessoas por intermédio da linguagem é dirigida por um objetivo comunicativo predominante: informar, convencer, relatar, explicar, ensinar, impressionar, revelar sentimentos, modificar comportamentos, causar prazer estético, divertir. Esse objetivo determina as escolhas para a leitura e a produção de cada texto: tema, progressão temática, gênero, modo de organização do discurso, recursos expressivos que se manifestam de diversas formas nos planos fônico, morfossintático, semântico e vocabular. A leitura dos textos a seguir permite observar que o mesmo tema - clonagem - pode se apresentar sob a forma de gêneros distintos de acordo com a finalidade da interação: "Pesquisadores do Instituto Roslin, nos arredores de Edimburgo, Escócia, produzem, em fevereiro de 97, Dolly, clone de ovelha geneticamente manipulado. Os cientistas escoceses fundiram um óvulo não fecundado com uma célula doada pela ovelha que queriam copiar." (Veja, 1997) Essa notícia de jornal transmite uma informação em uma linguagem bem objetiva. Oferece informações sobre o local, a data e as características da experiência científica realizada. Devido à referência, por meio dessas informações, a elementos que constituem o repertório de experiências do leitor, nela predomina o caráter referencial, presente na maioria dos atos de comunicação. "Puxa vida! Que loucura! Onde será que isto vai parar?" O ouvinte/telespectador toma conhecimento da notícia sobre a clonagem e expressa seu espanto. Predomina, nessa frase, a função expressiva da linguagem, pois há uma exteriorização das emoções do indivíduo. A carga emotiva prevalece sobre a carga informativa, permitindo que se realize a interação entre o falante e o interlocutor. Essa comunicação é extremamente dependente do contexto situacional -- as mesmas expressões de espanto terão outro sentido se forem utilizadas em outras situações. Isso mostra que a língua, além de informar, funciona como um instrumento para a manifestação de emoções e sentimentos, conforme se verifica no texto anterior. Canal / veículo Todo processo de interação por meio da linguagem é determinado pelas características do canal / veículo comunicativo. Por exemplo, quando duas pessoas compartilham o mesmo espaço, a interação se dá pela fala, marcada por implícitos, elipses, marcadores conversacionais, repetições, pausas, elementos fáticos, porque a situação preenche as exigências de comunicação. Já na interação mediada pela escrita, há necessidade de maior planejamento, explicitação de informações, estruturação textual complexa, ausência de repetições, de modo a permitir ao leitor a apreensão do conteúdo sem apoio na situação concreta de comunicação. Para a produção do texto falado, emissor e receptor devem, em princípio, situar-se no mesmo tempo e espaço, enquanto que, para a produção do texto escrito, isso não importa. Geralmente, o autor nem sabe quem será o seu leitor: ele constrói sozinho o seu texto. Por isso costuma-se falar do isolamento de quem escreve. Como consequência, o leitor só poderá dispor das informações que o texto oferece – não há retorno, a não ser a longo prazo. O texto escrito tem de suprir, portanto, a ausência da situação, fornecendo o maior número possível de pistas para esclarecer o seu sentido, a sua intenção. Entretanto, essas condições não pressupõem que aquele que escreve deve ignorar seu interlocutor. Critérios de adequação continuam a existir: em uma carta pessoal, como o interlocutor é conhecido, informações podem ser omitidas porque serão recuperadas devido aos conhecimentos compartilhados por produtor e receptor; em um editorial, como o leitor é um público relativamente determinado quanto a grau de escolaridade, classe econômica ou ideologia política, o jornalista deve estar sintonizado com suas expectativas (escolha do assunto, grau de aprofundamento da análise, referência a conhecimentos prévios). Grau de formalidade da situação No seu dia-a-dia, o agente verbal entra em contato com diferentes interlocutores, em situações sociais que apresentam graus distintos de formalidade. Em função do grau de intimidade entre os interlocutores, define-se o assunto, a forma de abordá-lo, o detalhamento do conteúdo, a escolha do registro, a seleção das palavras, a organização do texto. Quando os interlocutores estabelecem uma relação com alto grau de intimidade (em família, entre amigos), o grau de formalidade da situação é extremamente reduzido e é maior a incidência de implícitos. Por outro lado, em certos ambientes profissionais (reuniões, palestras, negócios), o grau de formalidade aumenta em função da reduzida intimidade entre os interlocutores, o que exige explicitação das idéias, estruturação mais complexa das frases, vocabulário mais preciso. Implícitos Para que os dados do contexto de produção possam ajudar na compreensão do texto, é preciso que o leitor realize inferências, ou seja, perceba informações implícitas e pressupostos. Isso ocorre porque o processo de leitura vai além da mera decodificação linear dos componentes semânticos dos vocábulos utilizados no enunciado. O ouvinte/leitor pode reconhecer e compreender as palavras, mas ser incapaz de perceber satisfatoriamente o sentido do texto como um todo, porque o texto nem sempre fornece todas as informações possíveis. Há elementos implícitos, subentendidos, que precisam ser recuperados, a partir ou não de elementos presentes no texto. Esses implícitos só podem ser descobertos por um trabalho de conjectura feito a partir de uma avaliação global da situação comunicativa, por meio da recuperação das intenções do interlocutor. Por isso, o leitor/ouvinte precisa estabelecer relações dos mais diversos tipos entre os elementos do texto e o contexto, de forma a interpretá-lo adequadamente. Quando alguém se dirige a outra pessoa, dizendo Ufa, que calor, hein!, pode estar implícita a sugestão de abrir a janela ou ligar o ventilador, sem um pedido direto. A mensagem só será entendida se o interlocutor estiver atento à situação, interpretando possíveis gestos e expressões faciais. Também as piadas são textos que exigem inferências por parte do ouvinte/leitor, já que seu conteúdo ultrapassa o âmbito da mera significação das palavras, jogando sim com uma contextualização mais ampla e com dados que são de conhecimento restrito de um grupo social, de uma comunidade específica, de um momento histórico. Não é à toa que, às vezes, não se entendem piadas de americanos e ingleses, que se consideram grandes humoristas. A falta de conhecimento das referências culturais, contextuais ou situacionais das suas piadas impede que as inferências necessárias sejam feitas. Antes mesmo de ler uma notícia, pode-se tirar algumas conclusões porque a manchete consegue resumir bem o seu conteúdo e o leitor complementa as informações com base em sua experiência de vida. Além disso, ela é responsável por dar indícios, por revelar um pouco do ponto de vista do autor do texto. Flamengo vende seus melhores jogadores. Só agora sai a listados convocados para a seleção. Indústria demite dois mil funcionários só este mês. A depender da vivência de cada leitor, certas manchetes podem admitir várias informações implícitas. Por exemplo: Brasil assume a liderança regional na produção de gado. Microsoft vai enfrentar novo processo. Índice de preços tem a maior alta do ano. Atividade de produção de texto Observe as duas matérias sobre o mesmo tema e aponte em um texto de, no máximo, 15 linhas, as particularidades de cada um, tendo em vista as condições de produção. Leitura para a próxima aula: KOCH, I. e ELIAS, V. M. Leitura, texto e sentido. In: Ler e compreender os sentidos do texto. 2ed. São Paulo: Contexto, 2008. P. 9-37.
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