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FACULDADE DA AMAZONIA OCIDENTAL - FAAO ANA GABRIELA PEREIRA DA SILVA PÂMELA DA SILVA LIMA YARA DO NASCIMENTO ALEXANDRINO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO Rio Branco 2015 2 ANA GABRIELA PEREIRA DA SILVA PÂMELA DA SILVA LIMA YARA DO NASCIMENTO ALEXANDRINO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO Monografia apresentada para o Curso de Bacharel em Direito, como requisito de nota parcial das disciplinas de Metodologia da Pesquisa Jurídica, Análise e Produção Textual e Introdução ao Estudo do Direito. Orientadores: Profª. Adel Malek Hanna e Profª Igor Clem Souza Soares. Rio Branco 2015 3 O verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário, generoso. Ele é cliente das pretórias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios, dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins de responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é o ódio. O amor não figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e não nos túmulos. (Roberto Lyra, 1975, p. 97) 4 FOLHA DE APROVAÇÃO ANA GABRIELA PEREIRA DA SILVA PÂMELA DA SILVA LIMA YARA DO NASCIMENTO ALEXANDRINO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na Faculdade da Amazônia Ocidental/FAAO, no curso de Direito, para obtenção de nota parcial, na cidade de Rio Branco/AC, no ano de 2015. Aprovado em 2015, com nota __________ ______________________________ Prof(a). Orientador(a) ______________________________ Prof(a). Membro Interno / FAAO ______________________________ Prof(a). Membro Interno / FAAO Rio Branco 2015 5 SUMÁRIO 1. A HISTÓRICA INFERIORIZAÇÃO DA MULHER ................................................ 9 1.1. VIOLÊNCIA E SUAS EXPRESSÕES .......................................................... 11 1.2. O CRESCENTE FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO ..................... 12 1.3. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SEUS NÚMEROS ....................................... 14 2. FEMINICÍDIO - LEI 13.104/2015 ....................................................................... 16 2.1 TIPOS DE FEMINICÍDIO .................................................................................. 17 2.2 - LEI MARIA DA PENHA X FEMINICÍDIO ......................................................... 19 2.3 O IMPACTO DA LEI DO FEMINICÍDIO ........................................................... 21 3. MARCAS DO FEMINICÍDIO .............................................................................. 23 3.1. O MASSACRE DE REALENGO .................................................................. 23 3.2. O ASSASSINATO DE ELIZA SAMUDIO .................................................... 25 3.3. AMANDA BUENO E O CRIME PASSIONAL ............................................... 26 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 30 6 RESUMO A presente monografia proporciona um estudo a respeito da Constitucionalidade da Lei do Feminicídio. Lei n. 13.104, de 09 de março de 2015, alterando o Código Penal, a lei é definida como uma qualificadora do homicídio. No entanto surgem alguns questionamentos a respeito de sua importância, constitucionalidade e real necessidade. Para aprofundar e bem entender esse assunto, examina-se e conceitua-se, em um primeiro momento a conduta humana, a histórica inferiorização da mulher e as suas marcas em nossa sociedade atual. Em seguida essa conduta humana é analisada no homicídio de mulheres em razão de gênero e o seu crescdente fenômeno; discorre-se então sobre os diferentes tipos de feminicídio existentes, a aprovação da lei e seus impactos diante dos dias atuais. Há uma enorme desigualdade de gênero presente na sociedade brasileira e tipificar o feminicídio significa promover a igualdade entre homens e mulheres, lembrando que ainda há um imenso caminho a ser percorrido para alcaçar tal objetivo. – Vale ressaltar que o Brasil ocupa a sétima posição mundial de assassinato de mulheres. – O feminicídio é uma forma de segurança e proteção à mulher e é também mais uma importante medida para a garantia dos direitos às mulheres. Por fim, são expostos alguns casos marcantes e a importância e constitucionalidade presente na lei que busca erradicar a extrema violência contra a mulher. O trabalho será elaborado a partir de ampla pesquisa bibliográfica a respeito do tema, com uso de doutrinas jurídicas e legislação onde utilizaremos o método hipotético dedutivo para chegar a uma conclusão final. 7 ABSTRACT This monograph provides a study on the Constitutionality of Femicide Act. Law n. 13,104, of March 9, 2015, changing the Criminal Code, the law is defined as a qualifying the murder. However arise some questions as to its importance, constitutionality and real need. To deepen and fully understand this issue, it examines and appraised, in the first instance human conduct, the historical inferiority of women and their brands in our current society. After that human behavior is analyzed in the killing of women due to gender and their crescdente phenomenon; then it talks about the different types of femicide, the approval of the law and its impact on the present day. There is a huge inequality of this kind in Brazilian society and typify femicide means to promote equality between men and women, noting that there is still a huge way to go to alcaçar this goal. - It is noteworthy that Brazil occupies the seventh position worldwide murder of women. - The femicide is a form of security and protection of women and is also one more important step towards ensuring the rights of women. Finally, they exposed some landmark cases and the importance and constitutionality in this law that seeks to eradicate extreme violence against women. The work will be drawn from extensive literature on the subject, with the use of legal doctrines and legislation which will use the hypothetical deductivemethod to reach a final conclusion. 8 INTRODUÇÃO Ainda vivemos em uma sociedade que controla o comportamento e o corpo da mulher com as formas mais extremas possíveis. O machismo trata as mulheres como cidadãs de segunda categoria em que são subordinadas a qualquer tipo de ordem. Suas vidas, vistas historicamente pelo homem como objeto de posse, estão sempre à disposição e são de livre acesso, sendo no ambiente doméstico ou público. A violência que ainda atinge milhares de brasileiras, viola, agride, diminui, inferioriza, e em casos extremos, tira a vida brutalmente. No Brasil uma mulher é espancada a cada 24 segundos, ou dez a cada 4 minutos (Segundo a Fundação Perseu Abramo 2010). É nesse contexto que o feminicídio em sua forma mais extrema está inserido. O Brasil ocupa a sétima posição entre as nações que mais matam suas mulheres. Nesta monografia iremos abordar a histórica inferiorização da mulher, detalhando os principais fatos que ocorreram nas sociedades antigas. Além disso, pretendemos definir o que é violência, suas atuais classificações, a forma como ela é vista, principalmente, quando é praticada contra a mulher; os fatores que culminaram no pensamento de opressão e submissão ainda existente na sociedade contemporânea, e analisaremos o crescente fenômeno da violência de gênero. Ainda também, buscaremos de maneira clara explicar a Lei do Feminicídio e sua tipificação, o seu significado para a sociedade brasileira, sua relação com a Lei Maria da Penha e os impactos causados por sua aprovação. Por fim, no último capítulo serão expostos três casos marcantes para que se posa entender as circunstâncias que levaram a prática desses crimes e sua gravidade. Onde também nos posicionaremos a respeito da constitucionalidade presente na Lei do Feminicídio. 9 1. A HISTÓRICA INFERIORIZAÇÃO DA MULHER Durante a idade contemporânea, muitos estudiosos começaram a debater a existência da história da mulher, afinal, durante esse tempo todo, ela vem sendo escrita mediante a visão e o consentimento masculino. A razão que justifica esse fato é que os homens sempre ocuparam lugar de destaque na sociedade, como cargos políticos e sociais, os espaços considerados públicos. Às mulheres era reservado o espaço privado, em que se dedicavam ao lar, aos filhos e marido. A inferiorização da mulher, segundo estudos antropológicos, teve inicio nas sociedades primitivas com a divisão do trabalho entre homens e mulheres. Os homens eram caçadores e guerreiros, diga-se de passagem, trabalhos considerados nobres, já para as mulheres, quando não pertenciam a alta sociedade, como rainhas e mulheres de chefes de Estado, restavam-lhes então os trabalhos domésticos e a subordinação ao pai ou marido. Em Roma, por exemplo, um estatuto jurídico garantia, por lei, o poder absoluto dos homens sobre as mulheres. Natalia Lausch, explica que o conceito de amor atual, de um homem para uma mulher, foi totalmente destruído pelo conceito do amor patriarcal, segundo ela: “Amar uma mulher significa ser cavalheiro (ou seja, inferiorizá-la e tratá-la de forma paternalista por causa de seu gênero), respeitoso (condescendente até onde não lhe for prejudicial), protetor (como se ela não conseguisse cuidar de si mesma e necessitasse de um homem para fazê- lo), etc. Todas essas qualidades mascaram a opressão misógina que acontece em boa parte das relações cis-hétero na sociedade. Não me bastam pequenos atos de gentileza enquanto ser mulher na sociedade ainda for motivo de subalternação e subjugação; não me basta que essa gentileza seja motivada pelo patriarcado; não me basta que a gentileza às mulheres exista como forma de dominação. Dominação essa que ocorre de forma sutil: tentam nos domar com esse suposto amor que está mergulhado na noção patriarcal de que amar é prender e objetificar a parceira.” Os homens patriarcais adoravam dizer que “amam” as mulheres, que as tratam “bem”, que são “gentis” e que as “respeitam”. O que não conseguiam perceber é que suas atitudes amorosas sufocavam os sentimentos da mesma. A sutileza e a imperceptibilidade desse tipo de caso torna-se perigosíssimo, pois se pensa que esse é o melhor tratamento, mas na verdade se está oprimindo quem o recebe. Durante a Idade Média a mulher esteve principalmente presa ao lar ou aos conventos. O Cristianismo primitivo, pela doutrina de São Paulo, enfatizou que a inferiorização e a subordinação da mulher era uma condição natural, e, portanto, de origem divina. Porém, podemos destacar algumas mulheres que conseguiram sobressair-se, embora se fizesse necessário utilizar trajes masculinos, como Joana D’ arc. Seu fim foi o mesmo de muitas outras, que eram julgadas como feiticeiras e levadas às fogueiras, por conta de seus pensamentos e comportamentos considerados inadequados para aquela época. Cerca de 75% dos mortos em fogueira durante a Idade Média e Moderna eram mulheres. 10 Foi com a Revolução Francesa e seus ideais, no final do século XVIII, que surgiram as pensadoras feministas, como a francesa Olympe de Gouges, autora da “Declaração dos Direitos de Mulheres e Mulheres Cidadãs” (1791), que defendeu igualdade entre homens e mulheres no ambiente público e privado, e a inglesa Mary Wollstonecraft, que escreveu” Defesa dos Direitos da Mulher” (1790). Esses pensamentos eram baseados nos ideais de Liberdade, igualdade e fraternidade, porém os revolucionários não aceitaram a ideia de assegurar esses direitos às mulheres, e foi assim, que Olympe de Gouges, teve como destino a guilhotina. No século XIX, tivemos outro acontecimento marcante, foi com a Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo que as mulheres passaram a se organizar em fábricas e sindicatos, reivindicando melhores condições de trabalho, proteção contra a exploração e o direito de participar da política, fato que gerou uma grande greve operária de uma Indústria Têxtil em Nova Iorque, em 1857, onde morreram centenas de operarias queimadas. Em 1960, os modelos sociais e culturais do comunismo Soviético e do American Way Of Life começaram a ser questionados. Surge assim, a fundação do feminismo na década 70, sua principal influência foi à obra teórica de Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, de 1949, que diz: “As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; Começam a afirmar concretamente sua independência; mas não é sem dificuldade que conseguem viver integralmente sua condição de ser humano. Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino normal é o casamento que ainda as subordina praticamente ao homem; o prestígio viril está longe de se ter apagado: assenta ainda em sólidas bases econômicas e sociais. É, pois necessário estudar com cuidado o destino tradicional da mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se acha encerrada, que evasões lhe são permitidas, eis o que procurarei descrever. Só então poderemos compreender que problemas se apresentam às mulheres que, herdeiras de um pesado passado, se esforçam por forjar um futuro novo. Quando emprego as palavras “mulher” ou “feminino” não me refiro evidentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável; após a maior parte de minhas afirmações cabe subentender: “no estado atual da educação e dos costumes”. Não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular.” Todavia, a modernidade não foi moderna com as mulheres. Algumas expressões das revoluções e manifestações, acima citadas, como o ideal de Liberdade, igualdade e fraternidade, são praticadas apenas entre umgênero: o masculino. Com as lutas feministas as mulheres conquistaram, sim, alguns direitos, como no campo de igualdade entre os homens, porém, é necessário que se compreenda que se trata de conquistas meramente de aparências, a sua substancialidade é praticada de outra forma. As buscas por uma igualdade efetiva, com a finalidade de que sejam dadas as mesmas oportunidades para homens e mulheres, ainda fazem parte das rotinas de cada uma. 11 1.1. VIOLÊNCIA E SUAS EXPRESSÕES A violência é um desequilíbrio entre fortes e oprimidos. De acordo com Aristóteles, ” violência é tudo aquilo que vem do exterior e se opõe ao movimento interior de uma natureza; ela se refere à coação física em que alguém é obrigado a fazer aquilo que não deseja (imposição física externa contra uma interioridade absoluta e uma vontade livre)”. Como forma de sobrevivência, mediante de sua vulnerabilidade diante da natureza, o homem primitivo teve como princípio vital o fenômeno da violência. Hoje em dia, ela ainda existe pelo simples fato de ser uma consequência da organização humana no mundo. Tal atitude desenfreada afeta a saúde, ameaça à existência de vida, produz danos emocionais e psicológicos, e, por fim, provoca a morte. Podemos perceber que herdamos das civilizações antigas um preconceito exacerbado social, biológico e cultural que define a mulher como ser inferior, incapaz de realizar atividades públicas, condenadas, assim, a se tornar propriedade do pai ou marido. Como explica Dinarte Belato, “Essa condição de inferioridade gerou um imaginário legitimador de violência destinada a produzir uma figura de mulher submissa, calada e obediente”. Como conseqüência desses acontecimentos, criou-se na sociedade um problema tanto no contexto nacional como internacional chamado violência. Para que possamos entender esse fenômeno, faz-se necessário definir alguns conceitos que classificam a violência. Violência intrafamiliar ou doméstica: é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito de desenvolvimento de outro membro da família. É a violência ocorrida em casa, no âmbito familiar ou em relação à familiaridade, afetividade ou coabitação, ou seja, nas relações entre os membros da comunidade familiar, formada por vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha etc.) ou civil (marido, sogra, padrasto ou outros), por afinidade (por exemplo, o primo ou tio do marido) ou afetividade (amigo ou amiga que more na mesma casa). As agressões podem ser na forma de abuso físico, sexual, psicológico, negligência e abandono. Eduardo Galeano comenta que: “A extorsão, o insulto, a ameaça, o cascudo, a bofetada, a surra, o açoite, o quarto escuro, a ducha gelada, o jejum obrigatório, a comida obrigatória, a proibição de sair, a proibição de se dizer o que pensa, a proibição de fazer o que pensa, e a humilhação pública são alguns dos métodos de penitência e torturas tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo. Os direitos humanos deveriam começar em casa.” Violência física: é caracterizada pela ação que prejudique ou cause dano à integridade física de uma pessoa. Podendo causar lesões internas e externas ou ambas. As agressões podem se manifestar de várias formas: empurrões, socos, tapas, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, estrangulamentos, lesões por armas 12 ou objetos cortantes, obrigar a tomar remédios inadequados e desnecessários (como álcool, drogas e alimentos de péssima procedência), tirar de casa a força, amarrar, arrastar, arrancar a roupa, abandonar em lugares desconhecidos, danos a integridade corporal decorrentes de negligência (omissão de cuidados e proteção contra situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação e higiene). Tudo isso pode ser agravado quando o agressor esta sob o efeito de álcool ou quando possui uma embriagues patológica ou um transtorno explosivo. Violência psicológica/moral: é toda ação ou omissão destinada a degradar ou controlar o comportamento, crenças e decisões da mulher por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta e indireta, humilhação, isolamento ou qualquer outra conduta que prejudique a saúde psicológica, a autodeterminação ou desenvolvimento pessoal. Essa violência abala a autoestima da mulher através de palavras ofensivas, desqualificação, difamação, insultos constantes, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, privação de liberdade, críticas pelo desempenho sexual, omissão de carinho e negar atenção. A agressão emocional, tão ou mais prejudicial que a física, é caracterizada por punições exageradas transmitidas verbalmente. Não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente provoca cicatrizes para toda vida. De acordo com Minayo, trata-se, portanto, “de uma violência silenciosa, pois a sua manifestação acontece entre as quatro paredes das casas, no choro contido, na ilusão de que não acontecerá outra vez, e de que o agressor irá mudar.” Violência sexual: a vitima é obrigada a manter contato sexual (seja físico ou verbal), ou a participar de outras relações sexuais com uso de força, intimidações, chantagem, suborno, manipulação ou qualquer outro mecanismo que anule a vontade pessoal. De acordo com o Código Penal de 1940: a violência sexual pode ser caracterizada de forma física, psicológica ou com ameaça, compreendendo o estupro, a tentativa de estupro, a sedução, o atentado violento ao pudor e o ato obsceno. Vale ressaltar que esse tipo de ato é frequentemente cometido pelo próprio marido/companheiro da vitima. 1.2. O CRESCENTE FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO Para entendermos esse fenômeno que vem tomando grandes proporções, faz-se necessário retornar um pouco na cultura ocidental, que de acordo com alguns historiadores, foi onde deu início a essa violência de gênero. A classificação do que é mulher tem sido baseada em conceitos biológicos e fatos sociais, que são determinantes para essa desigualdade entre homens e mulheres. Na Grécia, exemplo, os mitos contavam que, a curiosidade do sexo feminino, influenciou Pandora a abrir a caixa e espalhar todos os males do mundo, e como consequência a esse acontecimento, as mulheres passaram a ser responsáveis por todo o tipo de desgraça. O Cristianismo não pregava muito diferente, consideravam as mulheres como sendo pecadoras e culpadas pelo desterro dos homens do paraíso, devendo por isso ser submissa, obediente e passiva para obter sua salvação. Caso as mulheres 13 resolvessem reagir ou questionar esse tipo de comportamento, a punição era violentá-las e, se esse ato se repetisse, eram queimadas. Devemos considerar que esse tipo de pensamento era considerado normal e significava imposição de respeito para as demais, ou seja, uma forma de calar. É considerada violência de gênero aquela que é exercida de um sexo sobre o sexo oposto. Em geral, esse conceito refere-se à mulher. Este comportamento é consciente e provoca lesões corporais e mentais. Assim, quando todas as violências acima são relacionadas e praticadas contra a vítima por conta de sua identidade de gênero, sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição está-se diante da violência de gênero. Alice Bianchini afirma que: “Ao longo da História, nos mais distintos contextos socioculturais, mulheres e meninas são assassinadas pelo tão-só fato de serem mulheres. O fenômeno forma parte de um contínuo de violência de gênero expressada em estupros,torturas, mutilações genitais, infanticídios, violência sexual nos conflitos armados, exploração e escravidão sexual, incesto e abuso sexual dentro e fora da família.” Esse tipo de violência possui características singulares que a diferencia dos outros tipos de violência. Ela acontece de maneira rotineira e cotidiana, na maioria das vezes, é praticada pelas relações de parentesco e pode existir durante anos. São atitudes que causam danos aos mecanismos de defesa física e psicológica. Não podemos desconsiderar que o homem pratica esses maus tratos com quem exerce relações afetivas e amorosas. A violência de gênero é classificada em três fases, segundo a Psicóloga americana Lenore Walker: a) Fase da tensão: esta fase é caracterizada pela presença da violência psicológica. O agressor mostra irritabilidade, hostilidade e a tensão aumentam, mas não de forma explosiva. A mulher apresenta características de angústia, duvida de suas capacidades e sente-se culpada por tudo que está passando. b) Fase de agressão: Toda a tensão gerada na fase anterior chega a um limite, e é descontada através da violência física, psicológica e sexual grave. Os danos causados são agravantes e necessitam de auxílio médico, porém, 50% das mulheres não possuem coragem de recorrer. c) Fase de calma e conciliação: O agressor após cometer o abuso, sente- se arrependido e culpado. Utiliza diversas estratégias de manipulações afetivas, pede perdão e promete mudar de atitude. Esse ato de conciliação, no primeiro momento, parece ser verdadeiro, pois é uma estratégia para manter a calma e calar a vitima. Após a conclusão do ciclo dessas fases, existe um momento de calmaria para que a mulher possa manter sua relação, o que permite que ela crie expectativas de melhores condições e veja o lado bom de seu companheiro. Assim, torna-se difícil 14 tomar atitude de romper a relação. Com o passar do tempo, os ciclos voltam a se repetir e a fase de agressão é a mais intensa, ou seja, se está o tempo todo entre a tensão e agressão. Quando não existe mais a fase da conciliação muitas mulheres procuram ajuda. Quando o ciclo de tensão e agressão não se rompe, a mulher torna- se cada vez mais dependente de seu agressor, em que a frequência e a intensidade dos maus tratos são maiores, ocasionando sérios ricos de vida à mulher. Quando elencamos os conceitos históricos e as definições desse tipo de violência, percebemos que os crimes praticados contra as mulheres são justificados por questões de ordem cultural, social e religiosa em diversos países do mundo. Segundo Nadine Gasman, porta-voz da ONU Mulheres no Brasil, “A violência contra as mulheres é uma construção social, resultado da desigualdade de forças nas relações de poder entre homens e mulheres. É criada nas relações sociais e reproduzida pela sociedade”. De acordo com alguns estudos, existem outros fatores associados a violência de gênero e suas formas de manifestação, como a problemática da exclusão social, preferências sexuais e outras condutas que contrariam as normas de comportamentos impostas “tradicionalmente” na sociedade. Em todos esses casos a causa é justificada pela condição de subordinação do gênero feminino diante do sistema patriarcal. Segundo Ana Letícia Aguillar: “No momento em que qualquer destas formas de violência resultam na morte da mulher, essa se converte em feminicídio. O feminicídio é, portanto, a manifestação mais extrema de um continuum de violência. Dessa perspectiva, a violência de gênero é um elemento central que ajuda a compreender a condição social das mulheres. A presença ou ameaça real de violência cotidiana e de femicídio ilustram como a opressão e a desigualdade colocam as mulheres em uma posição de terrível vulnerabilidade. A violência contra as mulheres é de fato a pedra angular da dominação de gênero.” (Aguilar, 2005, p. 3). Contudo, a busca pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres não tem impedido o crescimento da violência de gênero. Isso decorre do histórico poder exercido pelo homem. Os costumes, a educação e os meios de comunicação também criam estereótipos que reforçam a ideia de que o sexo masculino tem o poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres. 1.3. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SEUS NÚMEROS Os corpos das mulheres foram historicamente vistos como objetos de reprodução da vida humana na visão masculina, já que possuíam livre acesso. O sexismo e as representações das mulheres como sendo submissa a imposição masculina culminaram em uma avassaladora violência que atinge milhares de brasileiras cotidianamente. A ONU divulgou dados de que “7 em cada 10 mulheres no mundo já foram ou serão violentadas em algum momento da vida.” 15 Uma pesquisa realizada em 2010, pela Fundação Perseu Abramo revelou que uma em cada cinco mulheres, 18% das entrevistadas, afirmou que já sofreu alguma vez algum tipo de violência por parte dos homens, sendo conhecido ou desconhecido. Das modalidades de violências acima citadas, duas em cada cinco mulheres (40%) já teria sido pelo menos uma vez na vida, controladas, violência psíquica ou verbal (23%) e ameaça ou violência física (24%). 16% das mulheres já levaram empurrões, tapas ou foram sacudidas, sofreram xingamentos e ofensas referidas a sua conduta sexual e 15% foram controladas a respeito de aonde iriam e com quem sairiam. Além disso, 13% foram ameaçadas de surra, uma em cada dez mulheres (19%) já foi espancada, ou seja, uma mulher é espancada a cada 24 segundos, ou 10 a cada 4 minutos. O marido ou parceiro é responsável por mais de 80% das agressões dos casos aqui reportados. No que diz respeito à raça ou etnia, a pesquisa informa que 35% das mulheres que já sofreram alguma violência são pardas, 11% são negras e 45% brancas. Somando – se negras e pardas, estas são agredidas em 46% dos casos. Amarelas e Indígenas correspondem a 2% cada. A Pesquisa Nacional de Domicilio (PNAD) – Características da Vitimização e Acesso à Justiça mostram que, pessoas desconhecidas foram responsáveis por 39% dos casos de agressão, pessoas conhecidas respondem por 36%, o cônjuge 12,2% e parentes 8,1%. Quando somamos os percentuais dos casos em que a agressão foi cometida por conhecido, incluindo cônjuges e parentes, chega-se ao percentual de 52,5 %. Ainda conforme essa pesquisa, 55,7% das vítimas de agressão não procurou a polícia. Dentre as razões justificadas para não procurá-la, 33,1% afirmaram que tinham medo de represália ou não queriam envolver a autoridade policial no caso. Em 2011, dos 107.572 atendimentos registrados no SINAM (Sistema Nacional de Informação de Agravos e Notificação, do Ministério da Saúde), 70.270 foram à mulheres vítimas de violência, ou seja, 65,4% do total. Dois em cada três atendimentos na área pesquisada foram mulheres, o que indica que a violência existente atualmente é contra as mulheres. Dos 26.358 atendimentos que registram algum tipo de risco decorrente das violências sofridas, 50% relatam que o risco de morte, seguido pelo risco de espancamento (39%). A frequência com que a violência acontece, segundo a central de atendimento, é uma vez por semana. Em relação ao homicídio feminino, denominado Feminicídio, Segundo o mapa da violência de 2012 o Brasil ocupa a sétima posição entre 84 países nas taxas de homicídios femininos, atrás apenas de El Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia e Colômbia. É possível observar, com os dados expostos na pesquisa nacional, que a violência contra a mulher na sociedade brasileira é exacerbada e endêmica. Combateressas atitudes ainda é um constante desafio, realizado de forma lenta, devido suas proporções. Para que isso ocorra de forma eficiente é necessário transformar as raízes da cultura machista na qual estamos inseridos. Cultura essa que permite que mulheres sejam violentadas, assediadas ou estupradas por 16 andarem nas ruas sozinhas, por romperem relacionamentos amorosos ou, pelo simples fato, como muitos justificam, de que as mulheres que usam roupas curtas e que mostram alguma parte do seu corpo merecem ser espancadas. 2. FEMINICÍDIO - LEI 13.104/2015 Em razão do número elevado e cada vez maior do assassinato de mulheres em todo o mundo, inclusive no Brasil – onde aproximadamente cinco mil mulheres são mortas anualmente – no dia 09 de março de 2015 o Senado Federal aprovou a Lei do Feminicídio, Nº 13.104/2015. Tal lei é uma alteração do Código Penal, definida como uma qualificadora do homicídio, que é motivado pelo ódio, desprezo ou sentimento de perda de propriedade sobre a mulher. Esse crime é caracterizado pela prática de violência sexual, a mutilação ou a tortura da vítima antes ou depois do assassinato. Homicídio doloso que envolve violência doméstica e familiar, e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Os crimes que caracterizam a qualificadora do feminicídio são, principalmente, a destruição da identidade da vítima. A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República, Eleonora Menicucci, escreveu um artigo comentando sobre a sanção da lei que tipifica o feminicídio, publicado no dia 14 de março de 2015. Segundo a Ministra: “O governo, criou mais um instrumento de proteção e integridade das mulheres. Ressaltou ainda, que o feminicídio não se constitui em evento isolado e nem repentino ou inesperado. Mas sim, faz parte de um processo contínuo, que inclui uma vasta gama de abusos desde verbais, físicos e sexuais. ” Foi no dia 09 de março de 2015, dia da aprovação da lei 13.104/2015, que a Presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que tipificou o feminicídio como crime hediondo. Dessa forma, atendeu uma das maiores lutas mundiais das mulheres. O conceito desse tipo de crime e sua classificação surgiram na década de 70 para dar visibilidade à discriminação, opressão e desigualdade sistemática, que em sua forma mais extrema, culmina na morte. O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 292 de 2013 possui dois artigos: 1º é destinado a acrescentar os §§ 7º e 8º ao art. 121 do Código Penal e o 2º conclui a cláusula que prevê a vigência da lei na data de sua publicação. O § 7º cria a qualificadora do crime de homicídio denominada “feminicídio”, que seria a violência praticada contra a mulher. Já o § 8º prescreve que a pena do feminicídio não prejudica a aplicação das demais penas relativas aos crimes conexos. A pena para esse tipo de crime é reclusão de 12 a 30 anos (Art. 121, § 2º, VI, Código Penal), correndo o risco de ser aumentada de 1/3 em até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou até 3 (três) meses posteriores ao parto; b) contra 17 pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou descendente da vítima. É importante ressaltar que essa lei alterou o artigo 1º da Lei Nº 8072/90 (Lei de Crimes Hediondos), onde deixa claro que o feminicídio é a nova modalidade de homicídios qualificados. 2.1 TIPOS DE FEMINICÍDIO A qualificadora do feminicídio não poderá ser provada através de um laudo pericial ou exame cadavérico, já que nem sempre o assassinato de uma mulher será considerado feminicídio. Para ser assim configurada, a acusação feita ao Ministério Público mediante as provas deverá ser incontestável provando ser “por razões da condição de sexo feminino”. As expressões do feminicídio derivam de diversas razões, como a idade da vítima, sua condição de trabalho quando desempenha um cargo muito alto e prestigiado e a relação entre a vítima e o agressor. A feminista e deputada mexicana, Marcella Lagarde, define o Feminicídio como sendo: “O feminicídio é o genocídio praticado contra as mulheres, e ocorre quando as condições históricas geram práticas sociais que permitem atentados contra a integridade, a saúde, a liberdade e a vida das mulheres. No feminicídio concorrem, em tempo e espaço, danos contra mulheres cometidos por conhecidos e desconhecidos, abusadores ou assassinos individuais ou em grupo, ocasionais ou profissionais, que levam à morte cruel de algumas de suas vítimas. Nem todos os crimes são arquitetados ou realizados por assassinos em série: podem ser em série ou individuais, e alguns são cometidos por conhecidos, parentes, namorados, maridos, companheiros, familiares, visitantes, colegas e companheiros de trabalho; também são perpetrados por desconhecidos e anônimos, e por grupos mafiosos de delinquentes ligados a modos de vida violentos e criminosos. No entanto, todos têm em comum o fato das acreditarem que as mulheres são utilizáveis, dispensáveis, maltratáveis e descartáveis. E, claro, todos concordam em sua infinita crueldade e são, de fato, crimes de ódio contra as mulheres” Sendo assim, de acordo com sua definição conseguimos definir a tipologia desse tipo de crime. Que consiste em: a) Feminicídio passional ou íntimo: É considerado o tipo clássico do assassinato de mulheres cometido por homens com os quais as mulheres mantinham ou mantiveram relações amorosas. Os casos são praticados por maridos, ex- maridos, namorados e companheiros. A justificativa para esse tipo de violência está ligada à forma de amar, posse exacerbada, amores não correspondidos e ciúmes. Dentro do Feminicídio íntimo ainda temos os crimes relacionados à honra, eles envolvem meninas e mulheres que são mortas por seus familiares por não apresentarem uma conduta sexual ou um comportamento dentro do padrão exigido, ou seja, de acordo com as crenças patriarcais de cada 18 família. Essas condutas vistas como anormais são: adultério, relação sexual e até mesmo casos de estupro. Essas agressões são vistas como uma forma de proteger a reputação da família, que seguem à risca sua tradição e ensinamentos religiosos. Segundo um estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, os sistemas de justiça e serviço social demonstraram que enxergam esses crimes como sendo uma “tradição cultural” e não como uma forma extrema de violência contra a mulher. b) Feminicídio não íntimo: ocorre quando o agressor não tem relações íntimas ou familiar com a vítima, mas havia relação de confiança, amizade ou hierarquia, tais como colegas de trabalho, amigos e empregadores. Nesse tipo de classificação temos dois subgrupos, os que ocorreram pratica de violência sexual ou não. c) Feminicídio por conexão: esse tipo crime ocorre com mulheres que se encontram na chamada “linha de fogo”, ou seja, são os casos de mulheres que tentam impedir a pratica de um crime contra outra mulher e acabam sendo assassinadas por tomar esse tipo de atitude. Independe do tipo de vínculo entre a vítima e o agressor. Ainda sobre a tipologia do feminicídio, Jill Radford afirma que o feminicídio possui diferentes formas. Como por exemplo: “O feminicídio racista, no qual mulheres negras são mortas por homens brancos; o feminicídio lesbofóbico, quando lésbicas são assassinadas por homens heterossexuais; o feminicídio marital, que consiste no assassinato de mulheres por seus maridos; feminicídio cometido fora do ambiente doméstico da vítima, por estranhos; o feminicídio em massa. Feminicídios ocorrem também em locais onde não é dado às mulheres o direito ao controle sobre sua própriafertilidade e, por consequência, sobre seu corpo, onde mulheres morrem em decorrência de abortos mal sucedidos; mulheres mortas em decorrência de cirurgias desnecessárias; infanticídios, nos quais bebês do sexo feminino são mortas com mais frequência do que bebês do sexo masculino; até a preferência deliberada dada, em certas culturas, a meninos em detrimento das meninas, o que resulta em mortes por negligência ou desnutrição.” (Radford, 1992, p. 7). Quando definimos os tipos de feminicídio facilitamos o julgamento e o entendimento do ato praticado contra a mulher. Dessa forma, o que se pretende é que a “igualdade perante a lei signifique igualdade por meio da lei, ou seja, a lei deve ser um instrumento capaz de criar igualdades e o florescimento de relações justas e equilibradas entre as pessoas”, como afirma a Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha. Além disso com esse estudo pretende-se desmascarar o patriarcado que se sustenta como uma instituição controladora do corpo feminino e com capacidade punitiva sobre as mulheres. É inquestionável a relevância dos homicídios de 19 mulheres, pois resultam de um sistema no qual o poder e a masculinidade são considerados sinônimos, e dessa forma acrescentam uma carga negativa ao ambiente social de misoginia: que consiste no ódio e desprezo pelo corpo feminino e pelos atributos associados a feminilidade. 2.2 - LEI MARIA DA PENHA X FEMINICÍDIO Após a aprovação da Lei do Feminicídio diversos questionamentos foram gerados a respeito de sua constitucionalidade e real necessidade. De um lado pesquisadores, legisladores e sociólogos procuram entender a fundamental importância dessa lei, e de outro temos aqueles que afirmam que ela pode ser considerada uma complementação da Lei Maria da Penha, assim, torna-se necessário entender a diferença entre as leis citadas. A primeira impressão, é que as duas leis apresentam dentro de sua constitucionalidade o mesmo significado, porém quando estudamos mais a fundo percebemos que elas apresentam divergências quanto a relação entre a vítima e o agressor, ambiente onde é praticada a violência e os reais motivos que levam a praticar esse crime. A Lei Maria da Penha tem por objetivo a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a vítima mulher. Toda mulher independentemente de sua classe, etnia, religião, orientação sexual, renda, cultura, idade e nível educacional, tem direitos garantidos por lei, tais direitos impedem a prática de violência, previnem a saúde física e mental e permite o seu aperfeiçoamento social, moral e intelectual. A Lei Maria da Penha, segundo o artigo 5º da Constituição Federal configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, dano moral ou patrimonial e até mesmo a morte da vítima, no âmbito da unidade doméstica. Entre o agressor e a vítima deve existir uma relação de afetividade, que pode decorrer da convivência no lar, de um relacionamento amoroso (atual ou ex: namorado, marido, companheiro) ou relação de parentesco em um sentido mais amplo (pai, padrasto, cunhado, irmão, primo, tio). A mulher, independentemente de exercer o papel de mãe ou esposa, não perde a proteção penal especial, esse mesmo caso aplica-se diante de suas preferências sexuais. A Lei do Feminicídio, totalmente contrária ao que foi exposto na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), é um atentado direto à vida da mulher. O crime possui um impacto silenciado, e é praticado sem distinção de lugar, raça, cultura, ou classe social, além de ser a expressão mais brutal da dominação masculina em relação a mulher. É um problema global praticado com uma intensa carga de crueldade e terror, carregado pelo ódio principalmente quando as mulheres decidem dar um basta na relação afetiva. Segundo o que é definido pela Corte Internacional dos Direito Humanos: “O Feminicídio representa o extremo de um caminho de terrorismo anti- feminismo e inclusive uma ampla variedade de abusos verbais e físicos, 20 como violação, tortura, escravidão sexual (particularmente conhecida como prostituição), abuso sexual, infantil, incestuoso, ou extrafamiliar, agressões físicas e emocionais, assédio sexual (por telefone, nas ruas, no escritório, na aula), mutilação genital (...), operações ginecológicas desnecessárias (...), heterossexualidade forçada, esterilização forçada, maternidade forçada (pela criminalização da contracepção do aborto), psicocirurgia, negação de comida para mulheres em algumas culturas, cirurgias plásticas e outras mutilações em nome do embelezamento. Sempre que destas formas de terrorismo resultar a morte, elas se transformam em feminicídios.” Ainda podemos destacar algumas características específicas desse crime, definidas por Lourdes Bandeira (Secretária Executiva da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República): a) Destruição do corpo feminino com excessiva crueldade e desfiguração da identidade do mesmo; b) É realizado por meios sexuais mesmo que não se manifeste o desejo sexual; c) É cometido por meio de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal do agressor, associando-se dessa forma à violência doméstica; d) Caráter violento, cruel e terrorista com predominância de relações de gênero hierárquicas e desiguais; e) As mulheres são expostas a situações de barbárie e terror, como por exemplo: são estupradas, mortas, queimadas, mutiladas, torturadas, asfixiadas, mordidas, baleadas, decapitadas, etc. Essas diversas ações podem ocorrer ao mesmo tempo sobre um mesmo corpo; f) É um crime de apropriação do corpo feminino pelo marido (proprietário), sendo considerado um território para uso ou comercialização diante das atribuições que o corpo oferece. Podendo ser usado na prostituição e até mesmo no tráfico de órgãos; g) É considerado o nível mais elevado de um processo de terror, em que a mulher é submetida: mamilos arrancados, seios mutilados, genitália retalhada. Diante dos questionamentos sobre a constitucionalidade do feminicídio classificado e tipificado é necessário que o Código Penal Brasileiro ponha fim nesse crime social silenciado, impondo-o na sociedade de forma mais clara para que se possa erradicá-lo. O foco principal deve ser diferenciá-lo das tipificações dos crimes passionais já existentes que são considerados menos graves, com penas mais brandas de acordo com a legitimação do sistema jurídico. 21 2.3 O IMPACTO DA LEI DO FEMINICÍDIO Tornar crime o feminicídio tem gerado um grande e intenso debate entre os estudiosos das questões de gênero, muitos justificam a necessidade de criminalizar essa conduta, já que reconhecem que essa pratica é a forma de violência machista mais extrema oriunda das relações desiguais de poder entre os gêneros. Outros já compreendem que a Lei do Feminicídio se encontra inserida nos tipos penais existentes na legislação brasileira, como homicídio qualificado, sequestro, vilipendio de cadáver e entre outros. Independentemente da divergência de opiniões em criminalizar ou não o feminicidio, existe, atualmente, um consenso em relação a proporção e gravidade do problema, dessa forma entende-se a real necessidade de explicar e torná-lo visível para que a partir desse ponto seja intensificada a sua prevenção. A criminalização do feminicídio está inserida no contexto da violência e somente dessa forma conseguimos iniciar as análises. Essa discussão é de suma importância no campo jurídico, político e social. Quando estudamose analisamos a história da mulher ao decorrer dos anos percebemos que, elas foram e ainda são (em sua grande maioria), educadas de acordo com valores de submissão e invisibilidade passados pelo sistema patriarcal em que a sociedade está inserida. No espaço privado elas desenvolviam o papel de criadoras e cuidadoras; já no espaço público não possuíam voz e sobre elas eram lançados olhos de repreensão caso fugissem das atribuições consideradas “naturais” que lhe eram impostas. Fernanda Marinela, presidente da Comissão da Mulher Advogada, Pedro Paulo Medeiros, presidente da Comissão de Direito Penal, e Aline Bianchini, membra da Comissão da Mulher Advogada escreveram um artigo denominado de: Feminicidio e o PL 8305/14, onde afirmam que: “ Ainda que não haja acordo sobre a criminalização do feminicidio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte das mulheres pelo fato de ser mulher é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão que se manifestam generalizadamente em contexto de violência sexista contra as mulheres. Trata-se de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida das mulheres, com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais.” Apesar haver um consenso entre as opiniões expostas, muitos estudiosos ainda divergem sobre a criminalização do feminicidio, sendo que um dos principais argumentos defendidos está relacionado, exatamente, ao que se refere a intensificação da proteção de mulheres, que segundo eles, já é realizada por meio dos tipos penais existentes na constituição federal. Outro posicionamento que temos é que muitos magistrados acreditam que haverá dificuldades no cumprimento da lei, visto que apresenta uma redação curta e ampla e sua aplicação dependerá do entendimento de cada magistrado. 22 A professora de Direito e Antropologia da Universidade Mackenzie, Bruna Angotti, defende que: “muitos casos do feminicídio ainda esbarrarão no machismo de policiais e juristas e, por isso, a lei não será aplicada. O problema vai além. A professora afirma que há não só a necessidade de criar uma lei e de preparar profissionais, mas também de promover uma mudança estrutural na legislação. ” Diante da aprovação da Lei do Feminicídio, algumas pessoas por meio das redes sociais também se manifestaram contrarias a tal admissão, questionando se agora matar uma mulher é mais grave que matar um homem ou se a vida masculina tem menos valor perante a lei. O Advogado Vinicius Rodrigues Arouck, Sócio do Escritório Ramos, Arouck e Schmidt Advogados Associados, reprova a lei afirmando que: “A inclusão da lei do feminicidio com a redação que lhe foi dada dará início a uma perigosa ferramenta para o Estado-Punidor, principalmente contra os homens que, por algum motivo, mate alguma mulher. Isso porque a cultura machista ainda se encontra enraizada em nossa sociedade (admito) e, por vezes, senão sempre, duvidar-se-á que o homicídio praticado por homem contra a mulher não foi motivado por razão de gênero e/ou discriminação contra a condição de mulher. A inclusão do feminicidio dará margem a denúncias arbitrarias e prejudicará, e muito, a defesa do eventual acusado. Isso porque a presunção sempre será da existência de feminicidio, o que inverterá, na pratica (ainda que a teoria diga outra coisa), o ônus probatório, pois é o homem quem terá que provar a inexistência de tais motivações. E como provar isso? A meu ver, é quase uma prova diabólica, de difícil comprovação de inexistência por parte do acusado. Acredita-se que sob a falsa impressão de dar maior proteção a mulher, o que se terá, na verdade, é uma considerável desproteção ao homem que ficara a mercê de um tipo penal quase inafastável quando existir homicídio de homem contra a mulher em casos de violência doméstica e familiar ou em caso de ”menosprezo e descriminação de gênero”. ” A escritora Jarid Arraes, da coluna Questão de Gênero da Revista Fórum, manifestou-se diante de tais posicionamentos, onde afirma que questionar a lei dessa forma é agir de má-fé. Expondo o seguinte argumento: “Tornar as leis mais duras para crimes de ódio- incluindo o ódio contra o feminino, contra a mulher - é uma forma importante de reconhecer um problema grave e buscar meios para exterminá-lo. Isso não quer dizer que as mulheres são frágeis, mas que há um problema social gravíssimo que não pode passar batido. O debate é bem-vindo, mas não os pensamentos misóginos que tentam invalidar a repulsividade do machismo. Além disso defende a importância de que tanto homens como mulheres assumam o compromisso de desconstruir o machismo existente em si e em seu cotidiano. Os homens devem intervir em situações onde há machismo e violência contra a mulher, como comentários depreciativos, xingamentos de cunho sexista ou situações em que um amigo, por exemplo, expõe a intimidade e privacidade de uma mulher. Também é preciso repensar as próprias opiniões e buscar entender porque há tanta diferença entre coisas e tratamentos direcionados para mulheres e homens. As mulheres devem oferecer apoio mútuo umas às outras e construir relações de acolhimento e empoderamento porque com a nossa união o enfrentamento ao machismo é mais eficiente.” 23 No meio em que vivemos há aqueles que consideram essa lei um exagero. O que não podemos deixar de enxergar é que ela representa um grande passo em direção a equiparação dos sexos. A aprovação da Lei do Feminicídio tem por objeto imediato responder a necessidade de que sejam tomadas providencias mais rigorosas aos altos índices de violência praticada contra a mulher. Assim, colocamos em evidencia a existência de homicídios ocasionados por questão de gênero e, que esse crescente fenômeno não pode mais ser colocado “debaixo dos panos”. 3. MARCAS DO FEMINICÍDIO O feminicídio possui marcas cada vez mais brutais e comuns no dia a dia das mulheres. Essa atrocidade tem tomado proporções cada vez maiores, de acordo com pesquisas atuais, no período de 2001 a 2011 foram registrados mais de 50 mil casos de feminicídio, o que equivale a aproximadamente 5.000 mortes por ano, no Brasil. Estima-se que grande parte desses óbitos foram decorrentes de violência doméstica e familiar, uma vez que, segundo o estudo realizado, um terço deles ocorreram em âmbito familiar. Dessa forma, na história do Brasil alguns crimes deixaram marcas fortemente cravadas na vida dos familiares das vítimas e de todos os brasileiros e, assim, torna-se necessário conhece-los. 3.1. O MASSACRE DE REALENGO No dia 7 de abril de 2011, por volta das 08:30 da manhã, na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, que Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola armado com dois resolveres atirando em várias meninas e meninos. Ao total foram 12 vítimas, sendo 10 meninas e 2 meninos. Após o crime, a Policia Federal iniciou as investigações e encontrou textos escritos pelo atirador no qual ele julgava as mulheres como sendo “seres impuros”. Encontraram, ainda, blogs e fóruns masculinistas que Wellington frequentava, que consiste em um grupo de ódio composto basicamente por homens brancos, héteros e cissexuais que acreditam que não vivemos mais em uma sociedade patriarcal, mas sim matriarcal no qual o verdadeiro descriminado é o homem branco e heterossexual. Segundo o testemunho de sua irmã adotiva e o de seu colega mais próximo, ele era reservado, sofria bullying e pesquisava muito sobre assuntos relacionados a atentados terroristas e a grupos religiosos fundamentalistas. Na época do massacre ocorrido em Realengo, um desses blogs masculinistas,se manifestou diante do ocorrido, expondo o seu posicionamento marcado pelo ódio: “ Esse mercado sexual seletivo cria homens errantes, como é o caso deste assassino. Alguns homens com menos poder diante do mercado sexual adquirem uma extrema raiva e frustação contra o processo seletivo das mulheres. ” Segundo a blogueira e feminista Lola Aronovich: 24 “Os masculinistas possuem um discurso extremamente misógino, onde pregam para seus seguidores que todas as mulheres agem por interesse em riquezas materiais e que, por isso, só se relacionam com homens que possuem dinheiro, carro, enfim, indicadores externos de status sociais que, para eles, seriam sinônimos de sucesso – os homens que preenchem esses requisitos são o que chamam de macho alfo. Os outros homens que não são ricos – machos betas – não teriam chance, então, de se relacionarem com as mulheres, mesmo sendo “caras bonzinhos”. ” Mediante ao que foi exposto, chegou-se à conclusão, por meio das autoridades judiciais participantes das investigações, que o crime ocorreu porque Wellington Menezes acreditava que ele não estava recebendo o que acreditava merecer, de acordo com o que estava aprendendo nos blogs masculinistas, que era a atenção e os serviços sexuais das mulheres. A razão para tudo isso ter ocorrido é que o atirador entendeu de forma errante que as mulheres lhe deviam algo, já que ele era merecedor só pelo fato de ter nascido homem. O caso envolve um sentimento de masculinidade exacerbado, já que os homens foram ensinados desde o começo que eles tudo podem e que tudo merecem. David Wong, escreveu um artigo conhecido como “ 5 maneiras em que o homem moderno é treinado para odiar as mulheres”, nesse artigo explica que a própria sociedade diz aos homens o que cada um merece e como merece: “Nos foi dito por cada filme, programa de TV, revista em quadrinhos, vídeo game e música com os quais nos deparamos. Quando o Karate Kid ganha o torneio, seu prêmio é um troféu e Elisabeth Shue. Neo salva o mundo e é recompensado com Trinity. Marty McFly ganha sua garota dos sonhos, John McClane ganha sua esposa de volta, Keanu “Speed” Reeves fica com Sandra Bullock, Shia LaBeouf fica com Megan Fox em Transformers, o Homem de Ferro ganha Pepper Potts, o herói de Avatar ganha a Na’vi mais gostosa, Shrek ganha Fiona, Bill Murray ganha Sigourney Weaver em Ghostbusters, Frodo ganha Sam, WALL-E ganha EVE... e assim por diante. Raios, ao final de An Officer and a Gentleman, Richard Gere entra no local de trabalho da moça e simplesmente carrega ela para fora como se ele estivesse recolhendo seu terno na lavanderia. (...) em todos os casos, a mulher não terá poder de decisão sobre isso. (...) então é muito frustrante, e eu quero dizer frustrante ao ponto de se tornar violento, quando nós não recebemos o que nos foi prometido. Um contrato foi quebrado. Essas mulheres, quando exercem seu direito de escolha, estão nos negando isso para nós. É por isso que todo Cara Legal fica chocado ao descobrir que comprar presentes para uma garota e fazer favores para ela não lhe será recompensado com sexo. É por isso que recorremos a ‘puta’ e ‘vadia’ como nossos xingamentos padrões – nós não estamos brabos porque mulheres gostam de sexo. Nós estamos brabos porque mulheres estão distribuindo para outras pessoas o sexo que elas nos deviam”. A mídia é um fator agravante para que esse tipo de pensamento seja comum no meio social, por ainda tratar a mulher como um objeto. No caso do crime Massacre em Realengo, a mídia tradicional justificou tal comportamento dizendo que Wellington Menezes era psicopata, sociopata e que sofria bullying. O que não consegue perceber é que tomando esse tipo de posicionamento, ela individualiza o problema a um homem e impossibilita, bloqueando o pensamento da sociedade, os 25 debates e questionamentos necessários para se chegar a uma conclusão mais justa. Além disso, ignora que o massacre é produto que uma cultura misógina geradora de uma masculinidade agressiva, cega, brutal e falida. 3.2. O ASSASSINATO DE ELIZA SAMUDIO O caso Eliza Samudio refere–se aos acontecimentos que envolveram o desaparecimento e morte da modelo Eliza Silva Samudio. Durante as investigações, uma das testemunhas relatou aos investigadores que vítima teria sido morta por estrangulamento. Em seguida, o cadáver teria sido esquartejado e grande parte dos pedaços foram jogados aos cachorros. Tudo começou por que no dia 13 de outubro de 2009 Eliza prestou queixa à polícia dizendo ter sido mantida em cárcere privado pelo Bruno Fernandes e seus amigos Russo e Macarrão, onde foi obrigada a tomar substancias abortivas. Também os acusou de espancamento. A questão é, que somente em julho de 2010 que o Instituto Médico Legal do Rio de janeiro e a polícia concluíram os exames periciais, época do desaparecimento da modelo em que já era tratado como homicídio. Em 26 de Junho de 2010, a Policia Civil de Minas Gerais declarou o goleiro Bruno Fernandes suspeito, por conta do desaparecimento da ex-amante, que tentava provar na Justiça que ele não é o pai do filho dela. Apesar da modelo Eliza Samudio ter sofrido grandes pressões físicas e psicológicas como sequestro, espancamento, arma apontada na cabeça e, por final, esquartejamento e morte e do caso ter tido grande repercussão tanto no cenário nacional como internacional, a capa da Revista Placar de Abril de 2014 trouxe como foco de sua matéria o ex-goleiro Bruno Fernandes. Em letras bem destacadas a fala do mesmo: “Me deixem jogar” estava em destaque, preferiu assim colocar o assassino e não a vítima, na capa, apelando na matéria, como se ele estivesse sendo impedido injustamente de exercer sua profissão. Considerando-se assim, por muitas pessoas, um desrespeito com todas as mulheres que sofrem diariamente violência por parte de seus parceiros. Em 13 de outubro de 2009, quando a modelo registrou ocorrência policial e pediu medidas protetivas o Sistema Judiciário não agiu diferente. A Juíza de Direito do 3º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, de Jacarepaguá, negou proteção a Eliza, onde alegou que ela tinha com Bruno apenas um relacionamento de caráter eventual e sexual. Quando Bruno foi condenado o Juiz da 1ª Vara Criminal de Jacarepaguá declarou que Eliza tinha um “ Comportamento desajustado”, já que “mantinha outros envolvimentos com muitos jogadores de futebol”. “ Neste ponto, não se define bem quem é vítima de quem”, conclui o Juiz. O que podemos perceber diante dos fatos expostos nos dois crimes é que em muitos pontos a Justiça deixou a desejar e negou o seu dever, desqualificando Eliza Silva Samudio, taxando-a como uma mulher pertencente a uma categoria inferior 26 que não merece atenção e proteção de quem é responsável por dar. Com isso, mostraram para sociedade que se a mulher não mantiver um relacionamento estável, como casamento ela pode ser violentada sem que o Estado aplique suas medidas protetivas. 3.3. AMANDA BUENO E O CRIME PASSIONAL Foi na tarde do dia 16 de abril de 2015 que Cícera Alves de Sena, 29 anos, mais conhecida pelo seu nome artístico de Amanda Bueno, ex dançarina da Gaiola das Popozudas e mãe de uma menina de 12 anos, foi assassinada no jardim da própria casa, no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Quatro dias antes do assassinato em 12 de abril, Amanda e Milton ficaram noivos após completarem seis meses de relacionamento. No dia seguinte, Amanda, que já havia parado de dançar resolveu contar ao seu noivo que havia trabalhado em uma boate de strip-tease em Taguatinga, Brasília, e que recorria da condenação por tentativade homicídio de uma ex-colega. O casal começou a discutir e Milton ofendeu Amanda. Três dias depois, ele foi almoçar com uma ex-namorada, que fez vídeos e fotos do encontro, que foram enviados para o celular de Amanda com o intuito de provoca-la. Naquela tarde, Amanda mandou uma mensagem de voz para sua mãe, que mora em Goiás, avisando que iria voltar para a casa de sua família. Quando Milton voltou para casa, o casal voltou a discutir diante da suspeita de Amanda de que ele estava tendo uma relação extraconjugal. Diante das chateações Milton deixou o local. Horas mais tarde, retorna embriagado e os dois voltam a discutir. Uma câmera de segurança registra o exato momento que Milton pega Amanda pelo pescoço e bate com a cabeça dela 11 vezes em uma pedra do jardim e lhe dá 10 coronhadas na cabeça. Na sequência, ele entra na casa veste um colete a prova de balas e se arma com um revolver, três pistolas e uma escopeta calibre 12. Ao passar por Amanda, que estava caída no chão, atira com a pistola e na sequência, com a escopeta no rosto da noiva. Depois de disparar contra Amanda, Milton tentou limpar a cena do crime e se livrar das armas e munições guardadas na residência. Em seguida, roubou um carro e fugiu do local. Ao tentar escapar da perseguição da polícia, capotou o veículo e ficou preso entre as ferragens. Após ser preso e ter confessado matar Amanda por um momento de surto, a justiça decretou a prisão preventiva de Milton, autuado em flagrante pelos crimes de roubo majorado com emprego de arma de fogo, porte ilegal de arma e homicídio triplamente qualificado, por motivo fútil, sem chance de defesa e feminicídio. O caso teve tanta repercussão que os discursos foram carregados de ódio. Por Amanda ser uma dançarina de funk e ter trabalhado como stripper, os comentários nas redes sociais taxaram-na como merecedora da própria morte. Essa violência cometida no espaço virtual também atingiu a filha de Amanda que teve que excluir suas redes sociais pois constantemente era alvo de ofensas. 27 Os comentários diante dos crimes acima expostos são os mais desumanos possíveis. A sociedade para exercer domínio sobre os corpos femininos e sua sexualidade dividem as mulheres em duas categorias: as santas e as putas, ou seja, de acordo com o seu comportamento “sexual”. Essas discriminações definidas pelo sistema patriarcal colaboram para que tenhamos uma segregação e retaliação social, violenta e expressivamente “sutil”. A juíza Marixa Fabiane Rodrigues do caso Eliza Samudio defende a importância da criação do feminicídio. Segundo ela neste contexto estão inseridos os crimes popularmente conhecidos como passionais, além do assassinato de mulheres consideradas objetos descartáveis. É importante pois esses crimes não serão mais julgados como homicídio simples e sim como homicídios qualificados. Assim afirma: “A mulher não pode ser vista como objeto de posse. Ela não é posse. No momento em que você está vendo a mulher como objeto de posse, como seu, e você vai lá e mata, que valor você está dando para esta pessoa? Ela é descartável. Isso é Feminicído. ” Vivemos em uma sociedade que se equivoca ao afirmar que homens e mulheres possuem direito iguais de acordo com o Princípio da Igualdade. Não é negável que segundo a Constituição de 1988, as mulheres conquistaram a sua igualdade formal, baseando-se no artigo 5º, inciso I, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Contudo, na prática, o sexo feminino ainda sofre diversas restrições ao que se refere a esses direitos. Tudo começa com a péssima divisão de trabalho que estamos inseridos, onde para as mulheres ainda cabem, na maior parte do tempo, atividades relacionadas ao âmbito doméstico, como cuidados com os filhos, casa e familiares. Uma pesquisa realizada pelo IPEA divulgou que o tempo médio que os homens se dedicam aos trabalhos domésticos é de 10 horas semanais, enquanto as mulheres dedicam 25 horas semanais às mesmas tarefas. Em porcentagem isso representa 150% a mais do tempo médio gasto pelos homens, além disso, muitas ainda trabalham fora de casa e, mesmo assim, cuidam da casa e dos familiares. Dessa forma, não sobra muito tempo para as mulheres se aplicarem a outras atividades extras, como a política. Tudo isso gera reflexos no campo profissional, já que no Brasil os homens ganham, aproximadamente, cerca de 30% a mais do que as mulheres com o mesmo nível de instrução e idade. O trabalho, muitas vezes não remunerado, é o que impede o exercício pleno dos direitos das mulheres. Isso possibilita que um sentimento de dependência e vulnerabilidade em relação ao seu parceiro seja ainda mais cravado no dia a dia das mulheres. É justamente essa desigualdade material que está na base da violência doméstica. Parece ser meio clichê afirmar que o preconceito ainda ensina meninas a não serem tão independentes, fortes, a assumirem uma condição de inferioridade que não pertence mais a elas, e que muitas vezes são subestimadas aos desafios e taxadas como sexo frágil, que dependem de leis para sobreviver. Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), argumenta que o próprio texto constitucional prevê tratamentos diferenciados para homens e mulheres. Ainda afirma que o princípio constitucional 28 da igualdade depende do reconhecimento das diferenças e das desigualdades históricas entre homens e mulheres. Segundo ela: “Para pensar a cidadania, hoje, há que se substituir o discurso da igualdade pelo discurso da diferença. Certas discriminações são positivas, pois constituem, na verdade, preceitos compensatórios como solução para superar as desequiparações. Mesmo que o tratamento isonômico já esteja na lei, ainda é preciso percorrer um longo caminho para que a família se transforme em espaço de equidade.” A Lei do Feminicídio vem sendo cada vez mais questionada diante de sua constitucionalidade. O que não podemos e nem devemos afirmar é que a inclusão dessa lei no Código Penal é inconstitucional, já que ela não é contrária ao princípio jurídico de igualdade, uma vez, que busca promover o real cumprimento desse princípio. Devemos considerar que essa lei representa um avanço ao combate a violência contra a mulher, reconhecendo que existem tipos de violência em que as mulheres são submetidas pelo simples fato de serem mulheres. Dessa forma, fica explícito que a violência sofrida pela mulher não é uma violência como qualquer outra. Leonardo Isaac Yarochewsky, Professor de Direito Penal dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade PUC-MG, se manifesta a respeito desse assunto da seguinte maneira: “o PLS discrimina a mulher, considerando-a como “sexo frágil”. Seria um projeto “paternalista” e que violaria o princípio da igualdade. Ao incluir o feminicídio no Código Penal, o PLS estaria dando mais valor à vida da mulher do que à do homem.” Percebe-se assim, que há um equívoco nas palavras de Leonardo e que suas palavras estão baseadas em princípio de igualdade meramente formal. A Lei do Feminicídio representa, portanto, a busca pela igualdade tão desejada, já que não viola o princípio constitucional da igualdade entre pessoas do mesmo sexo. Ela não trata a mulher de forma diferenciada, porque no meio social em que está inserida já é submetida a condições diferenciadas. Por fim, a lei não está tratando a vida humana de forma desigual, pelo contrário, tem procurado preservar a vida das mulheres, que estão constantemente ameaçadas pelo machismo exacerbado do sistema patriarcal. Ou aceita o que lhes é imposto ou é punida, sem ter o direito de defesa, de forma monstruosa comtapas, abusos sexuais, mutilações, estrangulamentos, tortura, escravidão sexual, em que a forma mais extrema dessas agressões culmina na morte. A juíza Marixa Fabiane declarou em um de seus posicionamentos a importância da aprovação dessa lei, que segundo ela: “Isso é crime de ódio. E essa discussão é que vai ser colocada a partir do momento que se tipificar a conduta do feminicídio. Vai provocar uma reflexão em toda a população. Vai provocar um debate amplo em torno da morte de mulheres. Então, esse debate vai ser o principal fruto da qualificação do crime. Os acadêmicos de direito vão estudar, vai começar a 29 ter debate doutrinário, porque os juristas vão se debruçar sobre o tipo penal, ou para criticar, ou para elogiar (...) que se fale que está bom, que está ruim, isso é o debate. Que se discuta. O que não pode é fingir que está tudo normal. “ Dessa maneira, para que tenhamos uma diminuição do número de mortes gerados por essas agressões grotescas é necessário que haja um trabalho de conscientização do real problema que milhares de mulheres enfrentam, através da educação, seja ela familiar ou social, da desconstrução do pensamento machista, que enxerga o corpo e a vida da mulher como sendo objetos que estão a sua disposição para lhe servir a qualquer tempo e, principalmente, do controle da sociedade patriarcal que durante muitos anos vem sendo sustentada por aqueles que toleram e justificam seus pensamentos agressivos. A aprovação da Lei do Feminicídio é uma conquista histórica na luta pela igualdade de gênero e universalização dos direitos humanos, entres estes, o direito a integridade física e o direito à vida. É um marco no combate a violência contra mulher e promove justiça e respeito aos direitos das vítimas dessa grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres. 30 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Renata. A Luta pelos Direitos das Mulheres, a Violência Doméstica e a Igualdade Substancial Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/14/ca pacitacaoemgenero_130.pdf Acesso em: 18/06/2015 BUZZI, Ana Carolina. Feminicídio e o projeto de lei nº 292/2013 do Senado Federal, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/122342/TCC%20Femini c%C3%ADdio%20-%20Ana%20Buzzi%20- %20Reposit%C3%B3rio.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 01/06/2015 CREMONESE, Dejalma. 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