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O papel do novo Juiz no Processo Penal – Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

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O papel do novo Juiz no Processo Penal – Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – 16/04/2015 (http://emporiododireito.com.br/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/)
1. INTRODUÇÃO:
Sempre que a história registrou a superação de um regime de força viu florescer um turbilhão de novas ideias, em geral destinadas a sustentar e legitimar as práticas democráticas. Não poucas vezes, o germe está nas próprias entranhas do regime anterior, dada sua narcísica incapacidade de superar a demanda do homem e da sociedade.
O “Movimento” do Direito Alternativo – hoje é tranquila a equivocidade do nome – tem algo a dizer sobre tais assertivas: o mal-estar do lugar comum não é de hoje. Mas há uma imensa diferença entre um discurso crítico tão-só legitimador do status quo e aquele que, agora, precisa dar conta das novas práticas democráticas.
Assim, já antes tantos, vez ou outra, agiam de modo a que, olhando com os olhos de hoje, pode-se dizer que era um atuar “alternativo”. Até aqueles conhecidos ultradireitistas, quase sempre movidos pelo espírito cristão residual, isto é, a sobra do verdadeiro discurso de Jesus – inevitáveis as tentativas constantes de camuflá-lo[1] –, praticaram atos contrários à lei ou em suas lacunas, para encontrar a justiça.
Tal agir, porém, não os legitima a ingressar, como querem alguns (“Se isso é direito alternativo, então também sou alternativista!”), no âmbito do “Movimento”. Afinal, todos sabem que os maiores mafiosos vão à missa todos os domingos, quando não todos os dias e, na porta da igreja, tramam os mais terríveis crimes; os grandes defensores da moralidade (visite-se, por exemplo, as salas dos Tribunais, nos julgamentos dos crimes contra a liberdade sexual!), não de raro são infatigáveis pervertidos; democratas de palanques são senhores do totalitarismo, como mostraram certos políticos que, durante o regime militar eram havidos como os símbolos de um novo tempo e, depois, eleitos, usaram do poder para confirmarem-se no antidiscurso.
Tudo – ou quase tudo –, no fundo, só fazia – e faz – refletir um atuar superegóico, descompromissado (salvo no discurso), com a diferença, com o outro e com o Outro (com maiúscula), como diria Lacan para dar conta do inconsciente.
Como tenho sustentado com frequência[2] (porque tese fundamental ao direito alternativo), o ponto central do “Movimento” está na assunção da postura ideológica. Assim, é essencial assumir uma postura voltada à aspiração maior que é a emancipação do nosso povo, fazendo dela uma prática cotidiana, quiçá calcada no horizonte utópico da máxima cristã: vida em abundância para todos (João, 10:10).[3] Assumir-se, portanto, parece ser a única ponte capaz de garantir ao jurista um caminhar comprometido, engajado. Mas tudo é fruto do momento histórico por que passamos e expressão da realidade social: não há mais o inimigo comum “ditadura”, atrás do qual transitavam no opaco os pseudodemocratas, confundindo a luta contra ela por interesses pessoais com as reais aspirações do povo. Agora, não obstante, “O Rei está nu”[4], como lembrou Edmundo Lima de Arruda Junior; e a questão continua sendo a plena possibilidade de manipulação da lei pelos operadores do direito, contra a qual todos os mecanismos de controle eminentemente jurídicos fracassaram, a começar, no campo processual – e em particular no processual penal –, pelo princípio do livre convencimento: basta a imunização da sentença com requisitos retóricos bem trabalhados[5] e o magistrado decide da forma que quiser, sempre em nome da “segurança jurídica“, da “verdade” e tantos outros conceitos substancialmente vagos, indeterminados[6], que, por excelência, ao invés de perenes e intocáveis, devem ser complementados e ampliados em razão das necessidades reais da vida[7]; só não podem servir de justificação descentrada (e ser aceitos como tal), isto é, legitimadora de uma mera aparência.
Não basta, contudo, ao operador do direito alternativo, a mera assunção da postura ideológica. O instrumental do jurista é, antes de tudo, a dogmática (não confundir com dogmatismo!); e dela não se pode abrir mão, até porque o seu desconhecimento é a porta de entrada dos mecanismos de alienação.[8] Tomo-a no sentido acolhido por Plauto Faraco de Azevedo, de “descrição das regras jurídicas em vigor“[9]. Afinal, todas as atividades que englobam a referida descrição não podem passar despercebidas ao operador jurídico. Mas, para infelicidade geral, é exatamente isto que se tem notado em larga escala. Em ultima ratio, cada vez mais sabe-se menos direito, seja porque o academicismo fisiológico já não consegue mais vaticinar e deslumbrar, seja porque o sistema jurídico, em operação, luta em favor da ignorância, como vai acontecer, por exemplo, no processo penal, com a incidência enorme e constante da prescrição: “quando ‘tudo’ prescreve, qualquer beócio é bom advogado”, como se ouve nos corredores dos Tribunais.
Depois, é imprescindível uma visão interdisciplinar ou transdiciplinar??[10] do direito mas, antes, é preciso não esquecer dele mesmo, do próprio direito, até porque, do ponto de vista alternativo, como estar em tal posição sem um domínio do outro? Por isto ser inafastável a crítica – absolutamente pertinente – que faz Agostinho Ramalho Marques Neto: “… qualquer Direito pode ser tomado como o outro por oposição ao qual o Direito Alternativo se constitui. Estabelecer, pois, este ou aquele Direito, esta ou aquela concepção de Direito, como o outro (ou a outra) do Direito Alternativo e da concepção deste, é fazer uma escolha, tanto política quanto teórica, a qual determinará a tessitura das relações lógicas e históricas dentro das quais a noção de Direito Alternativo irá sendo elaborada. Falar, neste contexto, de Direito Alternativo significa construí-lo mediante, entre outras coisas, a escolha de um Direito que faça as vezes de seu outro. Do até aqui exposto, pode-se inferir facilmente que, quando se fala de Direito Alternativo, não é possível deixar-se de indagar: Alternativo a quê? Alternativo em quê? Alternativo a partir de que ponto-de-vista? E essas indagações – não é difícil perceber – são atinentes à noção de Direito Alternativo quanto à posição do sujeito que as profere.”[11]
Verificar-se o papel do novo juiz no processo penal, a partir de tais premissas, reclama a consciência de que o novo não o é tão-só no aspecto nominal. Afinal, temos convivido com novos operadores do direito e concepções jurídicas ancoradas na velha Roma, quando não no maquiavelismo destrutivo e estagnante de cavaleiros do apocalipse: basta ver as críticas insensatas ao “Movimento”, na maioria das vezes partidas de pessoas sem qualquer noção do que vem a ser, as quais chamadas a opinar a respeito dão-se à ousadia de fazê-lo, ferindo noção primária de respeito ao próprio leitor, justo porque nada conhecem, nada leram, embora até possam ter “ouvido falar”; e “acham” alguma coisa. A crítica honesta, sabem todos por ser primário, só pode ser reconhecida quando partida de alguém que está inserido no contexto. Daí a necessidade de verificar o papel do juiz no processo penal dentro da doutrina clássica.
2. O JUIZ COMO SUJEITO DO PROCESSO PENAL: A VISÃO TRADICIONAL
De acordo com a doutrina predominante na explicação do fenômeno processual, o processo se constitui em uma relação jurídica diversa daquela estabelecida no âmbito das relações de direito material. Tal distinção dá-se, entre outros motivos, pelo fato de que é uma relação triangular e formada, portanto, por três sujeitos: autor, juiz com jurisdição e réu.[12]
Como refere José Frederico Marques, de saudosa memória, sem dúvida o primeiro articulador científico do processo penal brasileiro, sem embargo de fazê-lo com os olhos do processo civil, “O processo penal é também um actum trium personarum, tal como o processo civil, e por isso nêle existem sujeitos parciais, ou partes, que atuam ao lado de um sujeito imparcial, ou juiz, em todo o curso do procedimento.(…) O juiz, figura central do processo, representa e encarna o Estado, na relação processual, como órgão jurisdicional a que incumbe aplicar os preceitos da ordem jurídica”[13]; “… para compor a lide.”[14] Da mesma forma, o autor de Direito Processual Penal mais utilizado nas Faculdades brasileiras nos nossos dias, Tourinho Filho, partindo das mesmas bases (não esquecer que como pano de fundo da estrutura de um processo penal de partes está a velha definição de Bulgaro, em geral expressa resumidamente: Iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei), não foge da noção tradicional: “O Órgão Jurisdicional é, pois, o sujeito mais importante da relação processual. Incumbe-lhe, precipuamente, uma função essencialmente dinâmica, ‘caracterizada pela decisão imparcial de conflitos jurídicos concretos'”.[15]
Enquanto integrante da relação processual, é inquestionável que o juiz se submete ao direito (segundo Bülow, “… el tribunal asume la concreta obligación de decidir y realizar el derecho deducido en juicio,…”)[16], mas o faz enquanto figura central, principal, porque é ele que detém o poder jurisdicional. Assim, aplica o direito ao caso concreto, para alguns solucionando a lide ou, mais precisamente, acertando o caso penal[17], tudo de forma imparcial.
Ademais, compondo a relação processual, o juiz é sujeito de direitos, mas também se subordina aos interesses dos cidadãos enquanto partes, ou seja, possui direitos e deveres, a par do poder que é inerente à função jurisdicional.
Sua posição na relação processual é de órgão super partes.[18] Entretanto, deve-se ter em conta que tal situação não significa que ele está acima das partes, mas que está para além dos interesses delas. É uma figura imparcial, então, como candidamente acena a doutrina tradicional. Neste sentido, o juiz também está para além de seus interesses individuais, encarnando o próprio Estado. É por tal razão que se fala em Estado-juiz. Assim, não se pode dizer que o juiz é um representante do Estado, mas um órgão dele e, deste modo, é o Estado, presentando-o,[19] como quer Pontes de Miranda; e não o representando.
Ao tratar da figura do juiz, Frederico Marques fala de uma capacidade geral e de uma capacidade especial. A primeira diz com o órgão jurisdicional enquanto juiz natural das causas. Quando ela refere-se à pessoa do juiz, estabelece-se em razão de aprovação em concurso público, nomeação e posse no cargo. É, enfim, a habilitação ao exercício do poder jurisdicional, conforme previsão legal.[20]
A capacidade específica, da sua parte, ou é objetiva, dizendo com a competência (do órgão judiciário),ou é subjetiva, isto é, referindo-se à pessoa do magistrado e ao fato dele não se encontrar impedido ou suspeito.[21]
Melhor seria tratar da matéria como pressuposto processual de validade, como faz Antônio Acir Breda, seja em função da chamada capacidade específica objetiva, seja da capacidade específica subjetiva.[22] No primeiro caso, sem a referida capacidade, faltaria ao juiz competência; no segundo, estaria questionada, irremediavelmente, a sua imparcialidade.
A visão tradicional tem a larga desvantagem de desconectar a matéria referente à competência do princípio do juiz natural, o que é inconcebível. Basta ver que em nome da relativização de tal princípio os nossos tribunais têm livremente alterado a competência em processos já constituídos, em flagrante violação à garantia constitucional do cidadão acusado. Não foi diferente o sucedido em relação ao Ato Institucional nº 2 que, como todos sabem, transportou à Justiça Militar a competência para julgamento dos crimes contra a segurança nacional, razão pela qual para lá foram remetidos todos os processos em curso, com a confirmação do e. S.T.F., lastreado nos nossos doutrinadores. Nunca se indagou quantos morreram ou sofreram com tal decisão, mas parece sintomático que antes de acolher os ensinamentos de fascistas como Manzini, seria melhor voltar os olhos para processualistas comprometidos com a democracia.[23]
Figueiredo Dias trata da matéria a partir da independência do Poder Judiciário; e daquela do próprio juiz diante de tal Poder.[24] Esta é, de fato, fundamental. Mas há um algo mais para além da independência, ou seja, a impossibilidade de que se coloquem dúvidas quanto à sua imparcialidade. Em geral, os juízes não querem ser parciais (racionalmente falando e, portanto, no plano da consciência), tratando de agir dentro de tais parâmetros. O que não se quer, enfim, é que se coloque em dúvida a imparcialidade.
Às vezes, não obstante, a dúvida é de tal monta que os juízes são impedidos de atuar no processo (art. 252, do CPP), razão pela qual devem declarar de ofício o impedimento. Seus atos, por óbvio, privados que estão da jurisdição, são inexistentes.
Em outras circunstâncias (art. 254, do CPP), o juiz pode declarar-se suspeito de ofício, sem embargo da possibilidade das partes arguirem a suspeição. Assim, se ela for declarada, há nulidade dos atos praticados pelo juiz.
Uma leitura de tal ordem, à evidência, mostra-se insuficiente para referir o efetivo papel do juiz no processo penal. Há, nela, plenamente visível, algo nebuloso, encoberto, distante do que se constata no cotidiano forense. Uma primeira tomada de consciência do problema poderia começar com o alerta que Carnelutti fazia já em 1958: “Purtroppo il processo penale, anzi de sempre meglio, va sempre peggio. Si i giuristi, i quali coltivano questo ramo della scienza del diritto, invece che esibirsi in una dogmatica sempre più rigorosamente ancorata al diritto positivo, volgessero l’attenzione a ciò che avviene nella vita vissuta, frequentando le aule di giustizia o almeno meditando intorno alle cronache giudiziarie, non potrebbero rimanere insensibili a un svolgimento, che è una vera involuzione.”[25]
3. UMA RELEITURA DO PAPEL DO JUIZ NO PROCESSO PENAL
3.1. Pressupostos à releitura
A visão tradicional não dá conta, coerentemente, da explicação do papel do juiz, o que pode ser constatado a partir da falta de referenciais semânticos adequados aos conceitos que oferta. Órgão estatal desinteressado; imparcialidade; neutralidade e outros elementos formam um pano de fundo que só faz surgir uma irreal versão ao seu efetivo papel.
Não é por outro motivo que muitos  têm o juiz como um semideus (ou quase)[26], desideologizado, o que é inaceitável. Mas poderia ser diferente com uma estrutura técnica como a que acabamos de verificar, onde eventuais críticas dizem tão-somente com o periférico? Até que ponto seria exigível de um magistrado, com tal formação, que não se sentisse um semideus? A realidade do cotidiano tem ajudado a desmitificar tal postura ou tem contribuído para a sua exasperação? Respostas a perguntas como estas é que poderão ajudar-nos a fazer uma releitura do papel do juiz no nosso processo penal.
Desde logo, no entanto, é preciso que fique claro que não há imparcialidade, neutralidade e, de conseqüência, perfeição na figura do juiz, que é um homem normal e, como todos os outros, sujeito à história de sua sociedade e à sua própria história. Mas se isto é tão evidente, pela própria condição humana, parece lógico que a desconexão entre o dever ser e o ser só é possível e aceita em função de fatores externos (manutenção do status quo) e internos (manutenção, ainda que vã, do equilíbrio), em uma retroalimentação do sistema processual penal em vigor.[27] Este (o sistema processual penal), para começar, a grande fonte da visão global do fenômeno processual, consciente ou inconscientemente é relegado, na formação dos operadores jurídicos, a um segundo plano, quiçá como uma tentativa velada de não se permitir o acesso de todos ao domínio dos caminhos tortuosos das armadilhas discursivas.[28] Assim, produto e produtor do sistema processual penal, o juiz convive nas suas entranhas e precisa conhecê-lo o suficiente para eficazmente operar.
Ainda que com uma visão sucinta[29], tenho a noção de sistema a partir  da versão usual, calcada na noção etimológica grega (systema-atos),como um conjunto de temas jurídicos que, colocados em relação por um princípio unificador, formam um todo orgânico que se destina a um fim. É fundamental, como parece óbvio, ser o conjunto orquestrado pelo princípio unificador e voltado para o fim ao qual se destina. Este, no processo penal, como se sabe, joga com conceitos que passam pela instrumentalidade e pela paz social.[30] Aquele, da sua parte, não pode ser desprezado em hipótese alguma. Trata-se, como se tem presente, do princípio inquisitivo e do princípio dispositivo, os quais dão sustentáculo ao sistema inquisitório e ao sistema acusatório, respectivamente.
Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje, sistemas puros, na forma clássica como foram estruturados.[31] Se assim o é, vigora sempre sistemas mistos, dos quais, não poucas vezes, tem-se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba recepcionado como um terceiro sistema, o que não é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjugação dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou é essencialmente inquisitório (como o nosso)[32], com algo (características secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório. Por isto, só formalmente podemos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção referente a seu princípio unificador, até porque está aqui, quiçá, o ponto de partida da alienação que se verifica no operador do direito, mormente o processual, descompromissando-o diante de um atuar que o sistema está a exigir ou, pior, não o imunizando contra os vícios gerados por ele. Visitá-los, ainda que brevemente, é tarefa imprescindível, para se verificar suas estruturas e, a partir daí, situar o papel que desempenha no atuar dos operadores jurídicos e, mais particularmente, dos juízes no processo penal.
3.2. O Sistema Inquisitório
O sistema inquisitório tem raízes na velha Roma, mormente no período da decadência, e alguns traços em outras legislações antigas. Nasce, porém, na forma como estudamos hoje, no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de “doutrinas heréticas”. Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece. Sem embargo da sua fonte, a Igreja, é diabólico na sua estrutura (o que demonstra estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno!), persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos – mantém-se hígido.
Com o final do Império Romano, mormente para garantir a segurança, as populações aglutinam-se nos feudos, em geral estrategicamente estabelecidos nas montanhas, defesas naturais às quais somam-se uma arquitetura medieval típica, quase totalmente diversa da concepção dos romanos que, como se sabe, em geral, conscientes de seu poderio, buscavam os locais planos e neles fixavam as cidades. Compare-se, por exemplo, Milão e Camerino.
A vida medieval, assim, girava em torno do feudo e, nele, para além de suseranos e vassalos, contavam sobremaneira cavaleiros (o braço armado do poder) e clérigos, a inteligência possível, dada a inacessibilidade aos meios de informação, por parte da população. A Igreja, com a conversão de Constantino (312 D.C.), passa a ser a mais importante aliada do Poder e, por estratégia, depois do primeiro mosteiro fundado por São Bento em Subiaco, começa a preparar seus membros a partir da patrística agostiniana, toda fundada em Platão e, portanto, dentro do padrão fornecido por uma verdade calcada em um mundo hipostasiado. Era natural, enfim, que as obras de Aristóteles fossem conservadas nas torres, trancafiadas de todos os modos e tão-só alcançáveis através de labirintos adredemente preparados. Umberto Eco mostra isso de forma magistral no capolavoro “O Nome da Rosa”, sem embargo da questão jurídica e teológica.
Com o domínio dos bárbaros[33] e o fenômeno da recepção do direito romano, o sistema processual penal, apesar das nuanças, manteve-se estruturado nos chamados Juízos de Deus, basicamente nas fórmulas do juramento (em geral para os que mais possuíam), do duelo (de regra para os mais hábeis nas ações agonísticas) e das ordálias, para o povo em geral.[34] Nada impedia que assim se mantivesse, até porque as fórmulas germânicas primitivas, por exemplo, embora nas raízes fossem fundadas em princípio de moral, logo foram “domesticadas”, para serem laboradas em nome de Deus, que deitaria luz para proteger os inocentes; e manter o sistema de poder.
A situação começa a virar do avesso quando se vê impelida pela realidade social e pelo desejo, mola propulsora da humanidade. Com efeito, a partir do ano 1000, mais ou menos, com o aumento das caravanas de mercadores, freqüentemente comandadas por hebreus e árabes (e, portanto, não-cristãos), cada vez mais aparelhadas belicosamente, começam a aparecer os entrepostos comerciais e, de conseqüência, as cidades, os burgos.[35] “Nell’incipiente XIII secolo, mercato, vita urbana, accentramento monarchico (dove esistano dei re), connotano un ambiente indefinibile secondo l’etica feudal-cavalleresca: allora era tutto relativamente facile (ai collocati nell’élite, beninteso); ognuno era se stesso, secondo rango e ‘prodomie’, una ‘virtus’ misurata dalle gesta; l’economia monetaria ha sconvolto i valori immettendo una variabile pazza; l’essere costituiva un dato stabile; l’avere fluttua; adesso uno è quanto ha. Le qualifiche ‘chevalier’ – ‘vilain’ non coprono più l’intera mappa sociale: una terza, ‘bourgeois’, sta eclissando la prima; sono una fauna generata dal mercato questi borghesi abili nei conti, attenti ai fatti minuti, indaffaratissimi, alieni da ogni disinteressato passo divagante, bestie da denaro con una coscienza che digerisce tutto, e ai cospicui talenti naturali combinano latino nonché pandette imparati all’università.”[36] Tem-se um nascente Estado administrativo; novas relações comerciais, de trabalho, enfim, uma vida nova.
O novo, porém, é um dado histórico. Inimigo mortal das velhas práticas, das verdades consolidadas, do poder constituído; mas não deixa espaço para ser sufocado: aceitá-lo ou não é questão de tempo e, quase sempre, de uma visão prospectiva.
Entre liberais e conservadores  (não fosse isto não haveria um Concílio em Latrão, em 1215), a Igreja optou pela morte, na esteira da Bula Vergentis in senium, do Papa Inocêncio III (1199)[37], a qual prepara o campo da repressão canônica com a equiparação das “heresias” aos crimes de lesa-majestade.[38] O Concílio faz a sua opção (o pano de fundo era a manutenção do poder[39]); e o novo sistema paulatinamente assume sua fachada, constituindo-se os Tribunais da Inquisição, com base efetivamente jurídica, pela Constitutio Excomuniamus (1231), do Papa Gregório IX, para consolidar-se com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, em 1252.
O controle direto do processo penal pelos clérigos exclui, por conveniência, um órgão acusador: o actus trium personarum já não se sustenta. Ao inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação[40], razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido. A superioridade do juiz, à evidência, é nítida[41] (mas lógica, na estrutura do sistema), até porque o desencadeamento e o impulso processual é atribuição sua, o que pode ser evidenciado, entre outras coisas,  a partir do fato de fixar tanto o thema probandum quanto o thema decidendum[42]. Estabelece-se, assim, uma característica de extrema importância a demarcar o sistema, enquanto puro, ou seja, a inexistência de partes, no sentido que hoje emprestamos ao termo. Não obstante o vigor com que conduz e orienta o discurso de alguns, às vezes usada como ponto de partida ou mesmo como fator único de distinção, trata-se de elemento distintivosecundário, até porque se pode ter um processo inquisitório e partes[43], como sucedia no ancien régime com as Ordonnance criminelle (1670), de Luís XIV.
A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente[44], sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na ‘acusação’ –, dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das suas fases.”[45] Como refere Foucault, com razão, “ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado.”[46]
O trabalho do juiz, de fato, é delicado. Afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato.
Como crime e pecado passam a ser sinônimos, o processo é imaginado e posto em prática como um mecanismo terapêutico capaz de, pela punição, absolver. Tudo continuava a ser, não obstante, uma fórmula de descoberta da verdade e ninguém melhor do que o acusado para dela dar conta.
Compreende-se, então, quão solitário e penoso (porque angustiante) é o labor do juiz, ciente de que deve chegar à verdade pelos caminhos que escolher. O crime (pecado) é dado histórico e à realidade apresenta-se multifário, razão pela qual, para reconstituí-lo – senão de forma absoluta (porque impossível), mas ao menos aceitável – seria conveniente e lógico verificar cada um dos aspectos, pelo menos os principais. A lógica deformada do sistema, porém, não o permite, porque privilegia o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental (e aí seu grande valor estratégico e, talvez, o motivo da sua manutenção até hoje), ou seja, a lógica dedutiva, que deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão pela qual pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão. Estamos diante daquilo que Cordero, com genialidade, chamou de “primato dell’ipotesi sui fatti“[47]: o ponto central do sistema e sem o qual não é possível compreendê-lo na essência. Por isto que, partindo de premissa falsa, não poucas vezes assentada em um lugar comum (do gato preto induz-se bruxaria; do funcionário da empresa o autor do seqüestro; do mordomo o homicida, e assim por diante), chega-se a uma conclusão também falsa, transmudada em verdade construída.
Não basta, todavia, ter a possibilidade de escolher o “caminho da verdade”, mesmo que seja através de meros indícios e presunções. É preciso o instrumental adequado. A verdade, enfim, possibilita a rendição dos pecados e a absolvição, ainda que paradoxalmente fosse necessário condenar e, no limite, queimar na fogueira. Sendo o pecado (crime), porém,  obra do pecador, a grande ponte à sua descoberta é a confissão, esse milagroso engenho predisposto[48] a aportar a verdade, nem que fosse induzida[49], presente sempre a hipótese da falta de espontaneidade. Neste patamar, os fatos podem estar relegados completamente a um segundo plano e se entende como a confissão torna-se a “regina probationum“.
O problema mais sério para o inquisidor era exatamente como alcançar a confissão e, para tanto, “niente di meglio della tortura“[50], “quella vergogna del genere umano“[51]; e tudo no seio da Igreja, agora “esquecida” do que havia passado durante a decadência do império romano.[52] De qualquer forma, encontrada a autorização nas fontes e sustentada no jogo retórico, acabaria prevalecendo porque necessária ao sistema[53], sem embargo de se verificar, em várias passagens, um algo mais para além da necessidade, quiçá tanatológico.[54] Para tentar entendê-la – aceitar é impossível dada a natural repugnância que causa -, é preciso procurar penetrar na própria lógica do torturador, a qual Nicolau Eymerich demonstra como poucos.[55]
Discutir sua validade chega a ser despiciendo, mormente em um Estado onde o cidadão conte alguma coisa. O dilema, porém, é ter desaparecido tão-só das regras, o que nos remete para uma outra ordem. De qualquer sorte, ninguém melhor que Pietro Verri, talvez o maior iluminista italiano – e apesar de Beccaria –, no clássico Osservazioni sulla Tortura (1770-1777), para negá-la: “Ademais, a razão corresponde rigorosamente ao fato. Qual é o sentimento que nasce no homem, ao sofrer uma dor? Este sofrimento é o desejo de que a dor pare. Quanto mais violento for o suplício, tanto mais violento será o desejo e a impaciência de que chegue ao fim. Qual é o meio com que um homem torturado pode acelerar o término da dor? Declarar-se culpado do crime pelo qual é investigado. Mas é verdade que o torturado cometeu o crime? Se a verdade é sabida, é inútil torturá-lo; se a verdade é duvidosa, talvez o torturado seja inocente, e igualmente levado a se acusar do crime. Portanto, os tormentos não constituem um meio para descobrir a verdade, e sim um meio que leva o homem a se acusar de um crime, tenha-o ou não cometido.”[56] No fundo, o que poderia ser a vitória do torturador é, em verdade, a sua derrota, tal qual, mutatis mutandis sucede com o estuprador: na impossibilidade de obter o que pretende pela sedução da palavra, escancara sua incapacidade e mediocridade arrancando do torturado uma “verdade“ que não é dele, mas sua. Assim, é infeliz aquele que tem de lançar mão de atos tão abjetos para obter uma resposta que, de tal forma, a sociedade não pediu, ou melhor, no nosso caso, tentando crescer no grau de civilização, expressamente proibiu: CR, art. 5º, XLIII. Se não é necessária[57], portanto, está para além da razão, isto é, no campo do pulsional. Aqui, sem embargo, deve-se impor a vitória de Eros, senão eliminando-se tal tumor maligno (porque naquele campo a cura é até discutível), pelo menos desenvolvendo no potencial torturador os meios à sublimação.
A inquisição, enfim, não inventou a tortura, mas o meio quase perfeito para justificá-la: os mecanismos do sistema inquisitório.
No mais, o referido sistema aponta para outras características secundárias que, pelo menos, merecem registro (dado ser impossível, em um trabalho breve, análises mais detalhadas), na esteira de Barreiros[58]: os juizes são permanentes; o juiz acusa, investiga, dirige e julga, sempre em nítida superioridade em relação ao acusado, mero objeto de investigação; a acusação é “ex officio”, mas pode ser conseqüência de uma denúncia secreta, altamente incentivada (malgrado a confissão dos pecados perante os padres pois, ainda que com  seu sigilo aparentemente garantido, nunca deixou de ser um grande mecanismo de controle de tudo o que se passa na sociedade, mormente nas localidades menores, inclusive hoje), com a criação locais apropriados para o recolhimento (em geral nas partes frontais das igrejas), como sucede no mármore horripilante do “Palazzo Ducale” de Veneza, onde se lê: “denontie secrete contro chi occultera gratie et officii o colludera per nasconder la vera rendita d’essi”; o processo é, por excelência, escrito, secreto e não-contraditório; a prova é legalmente tarifada o que, na aparência, estaria a avaliação vetada ao inquisidor, embora tenhamos visto como tal empecilho tenha sido superado, mormente para alcançar-se a “rainha das provas”, a confissão; a sentença, para ser coerente com o modelo proposto, não se torna “res judicata” e, por fim, para se sustentar uma tal “busca da verdade”, a regra é o perquirido estar preventivamente preso, à disposição do seu algoz.
Um sistema com a referida estrutura, como parece elementar, tende a prevalecer no tempo, embora passível de mudanças secundárias.[59] É assim que permanece, na essência, para nós, até hoje; e continuará prevalecendo – até porque sustenta o status quo e, portanto, serve a quem detém o poder em qualquer regime – enquanto as pessoas não se derem conta que a democracia processual só será alcançada (ou pelo menos estará mais próxima), quandofor ele superado[60], avançando-se em direção da efetivação plena do contraditório, em um processo de partes que cubra toda a persecução penal e, portanto, veja excluído, no nosso caso, o malfadado Inquérito Policial.
3.3. O sistema acusatório e a estrutura mista do processo
Não nos interessa, no espaço limitado do presente ensaio, aprofundar o estudo da estrutura do sistema acusatório, assim como as variações que levaram ao dito sistema misto. Basta, por ora, verificar suas características fundamentais, possibilitando um cotejo com aquilo que foi anotado quando da análise do sistema inquisitório, este sim o pilar-mor do nosso sistema processual penal.
O mais importante, contudo, ao sistema acusatório – é bom que se diga desde logo –, é que da maneira como foi estruturado não deixa muito espaço para que o juiz desenvolva aquilo que Cordero, com razão, chamou de “quadro mental paranoico“[61], em face de não ser, por excelência, o gestor da prova pois, quando o é, tem, quase que por definição, a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a “sua” versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.
Por outro lado, a análise do sistema acusatório não pode deixar de levar em consideração a sua direta vinculação com a questão da cidadania, à qual na Europa continental só se foi aterrar com a Revolução francesa, sem embargo de se poder imaginar que, na Inglaterra, sua aparição no século XII tenha sido casual e, portanto, determinada por outros fatores.
Com efeito, depois da conquista da Inglaterra por Guilherme da Normandia, em 1066, a ilha, que se mantinha – até por questões naturais – mais impermeável às modificações efetuadas pelos “bárbaros”, começa a verificar um acontecimento significativo: a disputa entre os reis e os barões – que segue com os sucessores –, a qual será fundamental na reestruturação do direito vigente. Ao poder central, por óbvio, não interessava as velhas práticas herdadas dos direitos germânicos (não esquecer, também, que os romanos dominaram tão-só entre os séculos I e V D.C.), até porque garantia da estrutura feudal[62], em que pese à moda inglesa. A solução seria superá-las, para seu fortalecimento (do rei) e, aqui, resta nítido como a superação se faz por motivo diametralmente oposto àquele que levou ao sistema inquisitório.
O common law só vai aparecer, com a estrutura que se conhece até hoje, com Henrique II (1154-1189), o qual organiza com eficiência a justiça e o exército. Para tanto, sofistica  um sistema de controle social que já aparecia desde a época carolíngia: “emissari del re rilevano eventi locali interrogando sotto giuramento i rappresentanti delle singole comunità; emergono da queste fonti i dati catastali confluiti nel ‘Domesday Book’ su popolazione, terra, bestiame, arnesi agricoli. Gli interrogati compongono un collegio et emettono dei ‘vere dicta’.”[63] No início, em verdade, julgava o Tribunal real, o Curia regis, logo destacado em Secções Especializadas: o Tribunal do Tesouro (Scaccarium, Court of Exchequer), que apreciava questões de finanças e fiscais, o Tribunal das Queixas Comuns (Court of Common Pleas), que iniciou julgando litígios entre particulares sobre a posse da terra e, por fim, o Tribunal do Banco do Rei (King’s Bench), ao qual incumbia “julgar os crimes contra a paz do reino”.[64]
Como refere Gilissen, “a extensão da competência destes Tribunais tornou-se possível pelo processo técnico utilizado para requerer as jurisdições reais de Westminster. Qualquer pessoa que quisesse pedir justiça ao rei, podia endereçar-lhe um pedido; o Chanceler, um dos principais colaboradores do rei, examinava o pedido e, se o considerasse fundamentado, enviava uma ordem, chamada writ (em latim: breve; em francês bref ) a um xerife (agente local do rei) ou a um senhor para ordenar ao réu que desse satisfação ao queixoso; o facto de não dar esta satisfação era uma desobediência a uma ordem real; mas o réu podia vir explicar a um dos Tribunais reais por que razão considerava não dever obedecer à injunção recebida.”[65]
Assim, com tais mecanismos e suas respectivas forms of action nasce o common law, o qual acaba aprimorado, para o que nos interessa, por um writ de Henrique II (novel disseisin), do ano 1166: criou-se um Tribunal (Assise) em Clarendon e, com ele, o Trial by jury. Perante um sheriff (juiz real itinerante), a comunidade local (daí o caráter privatístico da ação mantido até hoje) composta em júri, estruturado a partir da experiência do órgão colegiado da época carolíngia, “mais tarde chamado Grand Jury deve denunciar os crimes mais graves (assassínios, roubos, etc.) ao juízes (indictment); composto de 23 jurados em cada condado (county), de 12 jurados em cada centena (hundred), tornou-se o júri de acusações; os jurados deviam decidir segundo o que sabiam e segundo o que se dizia; não deviam ocupar-se com as provas. Esta tarefa era transferida para um segundo júri, chamado o Petty Jury, composto geralmente de 12 jurados, boni homines, recrutados entre os vizinhos. No início era perante eles que tinham lugar os julgamentos de Deus; mas quando no século XIII os ordálios desapareceram progressivamente, o júri devia decidir se o acusado era culpado ou não (guilt or innocent) conforme o que sabiam do caso, sem ouvirem testemunhas ou admitirem outras provas; o júri é que era a prova dizendo a verdade (vere dictum – veredicto). O acusado poderia recusar o trial by jury; mas neste caso era detido numa prisão para aí sofrer peine forte et dure que consistia em dormir nu, sob um grande peso, alimentado apenas de pão bolorento e água suja (Statute of Westminster I, 1275). Foi somente nos séculos XV-XVI que o petty jury mudou de carácter: em vez de ser um júri de prova, torna-se a instituição que deve ouvir as testemunhas (oral evidence) e apenas pode julgar sobre o que tiver sido provado.”[66]
Com uma legislação própria – e rigorosa –, era natural que houvesse uma centralização do poder, justo porque, aí, o regime já era absolutista (e o rei o suserano), o que vai suceder na Europa ocidental tão-só muito mais tarde. Era elementar, por outro lado, que surgissem choques com os barões (chamados grandes vassalos); e com a Igreja, que também possuía autonomia judiciária, negando-se a aceitar a submissão aos Tribunais reais, a ponto de Henrique II ser ameaçado de excomunhão, após a morte do bispo de Canterbury, Thomas Becket. Ademais, a estrutura de força pela aglutinação de poder foi possível, como parece óbvio, porque não só o regime feudal veio com duque da Normandia, Guilherme, dito o Conquistador – e, portanto, dentro de parâmetros distintos daqueles do continente –, como porque Henrique II retirou do exército o caráter feudal originário, dispensando os barões do serviço militar em troca do pagamento de um imposto que lhe permitia contratar mercenários e, assim, manter o seu poderio bélico, sob o argumento de que protegeria aqueles. A crise, não obstante, vai aparecer com conseqüências desastrosas à coroa com João Sem-Terra.
Usurpador do trono de Ricardo, Coração de Leão (1189-1199), o sucessor de Henrique II, João Sem-Terra não só perde feudos sob o domínio inglês na França como comete a ingenuidade de não reconhecer o bispo de Canterbury, Estevam Langton, motivo por que acaba excomungado, tendo o papa colocado a Inglaterra sob interdicto. Nesse quadro, acaba derrotado, juntamente com seus aliados, e submetido à vontade papal, de quem passa a ser vassalo. A João Sem-Terra, enfim, impõem os barões ingleses a Magna Charta Libertatum (1215), um dos documentos mais importantes da humanidade.
Foi, sem dúvida, uma vitória dos barões, mas, de reboque, a par do controle destes sobre o rei, veio regras que atingiam a todos – e fizeram nascer a consciência da cidadania –, como aquela que referia que “Nenhum homem livre será preso ou despojado ou colocado fora da lei ou exilado, e não se lhe fará nenhum mal, a não ser em virtude de um julgamentolegal dos seus pares ou em virtude da lei do país“. No constante conflito entre as forças, entre os barões e o rei, parece ter levado vantagem o povo, até assumir a consciência de ser o efetivo detentor do poder, pelo menos para efeito de não ter violado o seu espaço de intimidade, com uma cultura de respeito à cidadania.
O processo penal inglês, assim, dentro do common law, nasce como um autêntico processo de partes[67], diverso daquele antes existente. Na essência, o contraditório[68] é pleno; e o juiz estatal está em posição passiva, sempre longe da colheita da prova. O processo, destarte, surge como uma disputa entre as partes que, em local público (inclusive praças), argumentavam perante o júri, o qual, enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dictum. É elementar que um processo calcado em tal base estruturasse uma cultura processual mais arredia a manipulações, mormente porque o réu, antes de ser um acusado, é um cidadão e, portanto, senhor de direitos inafastáveis e respeitados. Por isto, “incentivado pela ideologia liberal que se desprendi já da Magna Charta Libertatum de João-sem-Terra (1215) e acentuado sobretudo pelo Bill of Rights (1689) e pelo Act of Settlement (1701), ele ganha o seu maior e vivaz florescimento, a ponto de ainda hoje se manter aí essencialmente imodificado”[69]
A par da gestão da prova não estar nas mãos dos juízes, mas ser confiada às partes – aqui existentes na sua concepção mais radical –, outras características dão ao sistema acusatório uma visão distinta daquele inquisitorial. Deste modo, com Barreiros[70], é possível referir que o órgão julgador é uma Assembléia ou jurados populares (Júri); que há igualdade das partes e o juiz (estatal) é árbitro, sem iniciação de investigação; que a acusação nos delitos públicos é desencadeada por ação popular, ao passo que nos delitos privados a atribuição é do ofendido, mas nunca é pública; que o processo é, por excelência e obviamente, oral, público e contraditório; que a prova é avaliada dentro da livre convicção; que a sentença passa em julgado e, por fim, que a liberdade do acusado é a regra, antes da condenação, até para poder dar conta da prova a ser produzida. 
Da reunião dos dois sistemas, Napoleão vai fazer surgir um processo misto, também conhecido como reformado ou napoleônico. Em 17 de novembro de 1808 nasce o Code d’instruction criminelle, em vigor desde 1º de janeiro de 1811.
Em verdade, depois que a Lei de 11.08.1789 aboliu os foros privilegiados e a Lei de 08.10.1789 deu publicidade às audiências, a Assembléia Constituinte (sob a inspiração de Danton), não só confirma a referida publicidade na Constituição de 03.09.1791, como, pela Lei de 16-29.09.1791, reestrutura a organização judiciária[71], importando técnicas inglesas[72]: um juiz de paz é encarregado da investigação do crime; um juiz togado (directeur du jury) colhe a prova a fim de que o júri de acusação (8 membros) decida sobre a procedência dela (s’il y a lieu) ou não (s’il n’y a pas lieu), de modo a que, em caso de decisão positiva, fosse o acusado submetido a um novo órgão, o júri de julgamento, agora composto de 12 membros, o qual decidiria sobre o mérito.[73]
Como se vê, antes do “terror” havia espaço para uma tentativa de reconhecimento da democracia processual, inimaginável com Napoleão, um ditador como qualquer outro que, entre outras coisas, influenciou diretamente na direção de um retorno à estrutura do ancien régime (o espírito inquisitório seduz gente de tal porte, em qualquer lugar e época), mas só conseguiu acabar com o júri de acusação, o que, aparentemente, não iria produzir (embora tenha efetivamente produzido), um grande efeito. “Napoleão quis também acabar com o júri de julgamento, mas o Conselho de Estado, fiel aos princípios da Revolução, opôs-se”[74] Cordero, citando Esmein, dá uma pista das dificuldades que iriam sobressair-se mais tarde: “Jean Constantin, Charles Dumoulin, Pierre Ayrault, la giudicavano meno bene: c’è un abisso, nota l’ultimo, dall’instruction secrète alla palese; il est facile à huis clos d’adjouster ou de diminuer, de faire brigues ou impressions; l’udienza pubblica garantisce lavoro pulito; il y aura toujours quelque chose à redire sui giudizi non allestiti in pubblico, da capo a fondo; cette face composée de plus d’yeux, de plus d’oreilles, de plus de testes que chelle de tous les monstres et géants des poètes, a plus de force… pour pénétrer jusques aux consciences et y faire lire de quel côté gît le bon droit, que nostre instruction si secrèt.“[75]
Ainda que se possa verificar novas fórmulas, não há um sistema processual novo[76], a não ser no aspecto formal. Para ser mais preciso, como já sustentei em minha tese defendida em Roma, da maneira como se pretende, os sistemas inquisitório e acusatório não podem conviver “não só porque a ‘contaminatio’ é irracional no plano lógico, como também porque a prática desaconselha uma comistão do gênero”[77]: “Tale il prezzo richiesto dal tentativo di un’impossibile conciliazione degli opposti: l’idea del processo a due tempi – inquisitorio il primo e accusatorio il secondo – ripugna alla ragione, per quanto possa sedurre i ricercatori del compromesso per vocazione.”[78] Ademais, talvez fosse o caso de, singelamente, recordar que a “mistura” há de ser vista com cautela em qualquer ramo do direito processual, a começar do direito processual civil, como anotou Liebman.[79]
De qualquer forma, é preciso estar atento para o fato de que o Código Napoleônico informou a grande maioria das legislações da Europa continental e, de conseqüência, aquelas as quais estas influenciaram, entre outras a nossa, hoje em vigor.
A diferença marcante, não obstante, é que, na Europa, com o retorno das democracias, no pós-guerra, as Cortes Constitucionais – ainda que de forma imperfeita – puderam, paulatinamente, ir adaptando o processo penal a um modelo mais aceitável, mormente com a ampliação do contraditório à fase preliminar. A Itália é um bom exemplo, com a Sentenza nº 86, de 05.07.68[80], embora isso não fosse suficiente, razão pela qual os italianos aportaram no novo Codice di Procedura Penale, de essência acusatória.
Da nossa parte, a situação é ainda pior.[81] Por um compromisso político – como sói acontecer –, entre liberais e conservadores, fez-se introduzir, na nossa legislação (Lei nº 2033, de 22.11.1871), o inquérito policial, ao qual cabe dar conta da primeira fase da persecução penal. Sem embargo de não ser menos ruim que o chamado juizado de instrução (ambos são inquisitoriais: e aí está o defeito!), tem a grande desvantagem de ser administrativo e, de consequência, inviabilizar a extensão, para si, do contraditório, até porque a CR de 88 só o impôs como  um direito individual quando houvesse processo: art. 5º, LV, o que não é o caso, a não ser que se force a situação, mesmo porque, na prática, não se precisa frequentar as delegacias de polícia para verificar a sua inviabilidade.
A solução, repito, parece estar na superação da estrutura inquisitória e, para tanto, há de se dar cabo do inquérito policial, não para introduzir-se (como ingenuamente querem alguns menos avisados) o chamado juizado de instrução (juízes ou promotores de justiça, como parece primário e demonstrou a história, não serão menos inquisidores que as autoridades policiais: basta estar naquela situação!), mas para, aproximando-se da essência acusatória, permitir-se tão-só uma única instrução, no crivo do contraditório. No mais, já estamos em um estágio onde a acusação pode ser formulada com base em investigação realizada pela polícia, função para a qual existe e está preparada mais que ninguém. Sob as penas da lei, um Ministério Público consciente não deduziria acusação – imaginando-se uma instituição engajada à democracia – por mera elucubração mental. Mas se isto ainda não fosse suficiente para alterar o excesso de medo dos senhores do garantismo[82] (conscientes, não poucas vezes, como diria Freud, que a falta é constitutiva e está lá desde o início), basta passar os olhos para o queacontece hoje: quem garante que estamos garantidos no sistema atual? Entre o velho (sem garantia que não virtual) e o novo, com este temos pelo menos uma oportunidade: a de mudar para melhor!
3.4. A superação da estrutura atual de neutralidade e imparcialidade do juiz: seu novo papel no processo penal
Problema de essência que se enfrenta no âmbito do direito é o que se refere à neutralidade e imparcialidade do juiz. Para que se possa analisar convenientemente esta questão, faz-se necessário buscar elementos basilares de crítica no arsenal teórico da epistemologia.
Durante determinado período da história do pensamento, acreditou-se que era possível ao homem, enquanto sujeito cognoscente, anular-se completamente nas relações de conhecimento. Com isto, procurava-se obter um tipo de saber que não estivesse eivado de qualquer imperfeição humana. Daí o método perfeito para a consecução deste desiderato, proposto pelo empirismo. Para este, “o método consiste em um conjunto de procedimentos que por si mesmos garantem a cientificidade das teorias elaboradas sobre o real. Como o sujeito se limitaria a captar o objeto, essa captação seria tanto mais eficaz e neutra quanto mais preciso e rigoroso fosse o método utilizado”[83]. Assim, a elaboração científica se limitaria ao cumprimento rigoroso de certas técnicas preestabelecidas, que conteriam o poder quase miraculoso de conferir cientificidade aos conhecimentos elaborados através delas. A busca desta neutralidade do sujeito tinha alguns motivos determinantes: 1º, a crença em uma razão que tivesse validade universal, servindo de paradigma para todos (crença esta que, de certa forma, seguiu todo o pensamento da história moderna no Ocidente, desde o discurso da Igreja – por influências platônicas –, passando pelo pensamento de Descartes, Bacon, Kant, até chegar em Augusto Comte); 2º, a necessidade de legitimar o discurso do Estado moderno nascente, que vinha falar em nome de toda a nação, uma vez que os sujeitos da história passaram a ser “iguais” e não era mais possível sustentar os privilégios do clero e da nobreza: o Estado agora é de todos e, finalmente; 3º, a urgência em ocultar que os interesses do Estado, ao contrário do que se acreditava, eram de classes; e não do povo como um todo.[84]
Tais necessidades e crenças não apenas fazem estrada na instância da história moderna, como acompanham todo o discurso científico e filosófico da época e, de conseqüência, o jurídico.
Assim, por mais que muitos soubessem que geralmente se tratava de uma farsa – não obstante a importância histórica do seu discurso e até alguns avanços materiais –, passaram os juristas e jusfilósofos a pensar em termos de igualdade jurídica: todos são iguais perante a lei. E o Estado, enquanto pertencente a todos (mas ao mesmo tempo sem pertencer a ninguém), deveria assegurar tal igualdade. Isto se reflete no discurso dos civilistas, penalistas e, até mesmo, no incipiente desenvolvimento do direito processual que começava a ganhar foros de autonomia em relação ao direito material.
Exemplo que reflete tal pensamento é a visão que se começa a ter sobre a ação e o processo. A ação não é mais um direito material violado que se põe em movimento, de cunho marcadamente individualista; e o processo não é mais sinônimo de meros ritos. Passa-se a falar em um “interesse público” na resolução dos conflitos. O Estado preocupa-se com a manutenção da igualdade e o papel do juiz passa a ser mais efetivo na relação processual, reforçando, com isto, aparentemente, a ideia de Búlgaro do Iudicium accipitur actus as minus trium personarum: actoris intendentis, rei intentionem evitantis, iudicis in medio cognoscentis, ou, na fórmula sintética antes referida, Iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei, mas agora com outra conotação em decorrência das mudanças do discurso no desenvolver histórico.
Corolário desta concepção, que chega até os dias atuais, é o de que o juiz constitui-se um órgão super et interpartes ou, em outra acepção, super omnia, como supracitado.
Sabe-se que, com esta visão, o que se pretende é a preservação da ideia do juiz como um órgão neutro e imparcial, que por não ter interesse direto no caso, tutelaria a igualdade das partes no processo. Com isto, estar-se-ia buscando a manutenção do seu escopo último:  a pacificação dos conflitos de interesses e a justiça.[85]
Cabe indagar, entretanto, até que ponto essa neutralidade e imparcialidade são reais? Qual o interesse em manter vivas, como estão, essas categorias?
Há quem afirme que o judiciário só existe porque é imparcial e sujeito à lei e que a justiça consiste em um método de decisões imparciais. Cumpre salientar, entretanto, que, não obstante a possibilidade de se vislumbrar certa importância neste tipo de afirmação, principalmente no plano de uma dogmática processual em que a atividade do Estado é substitutiva, faz-se necessária uma tomada de posicionamento crítico em relação a ela.[86]
A época de aceitar os discursos universalistas, com o devido respeito de quem possa pensar o contrário, passou. O Estado se desenvolveu. Os sujeitos renovaram suas necessidades e interesses e agora, ao contrário do que já se sustentou, sabem que são capazes de construir sua história, social e pessoal. Em outras palavras: os sujeitos vão tomando consciência de que podem construir seu mundo, traçar certos projetos e mudar o rumo da história para o vetor que optarem, de acordo com as escolhas axiológicas que tomarem por referência.
Não por outro motivo as epistemologias contemporâneas, principalmente as críticas, vêem o sujeito do conhecimento como um agente participativo, construtor da realidade, que não tem mais motivos para esconder sua ideologia e escolhas diante do mundo.[87] Torna-se, então, insustentável a tese da neutralidade do sujeito e vige, para todos os efeitos, a idéia de dialética da participação.[88]
Neste sentido também caminham as epistemologias trabalhadas pelo “Movimento do Direito Alternativo”.
Constata-se que todo conhecimento é histórico e dialético. Histórico porque é sempre fruto de determinado momento de uma certa sociedade. Dialético porque, além de ser reflexo das condições materiais de seu tempo, atua sobre esta materialidade, alterando-a. Em outras palavras: todo saber é condicionado e condicionante.[89]
O saber enquanto elemento condicionado foi muito explorado pelas doutrinas marxianas, que viam os discursos científicos como meros reflexos da materialidade social. Tal posicionamento não é de todo falso. Mas o que se tem que ter em mente é que os discursos, de modo geral, também atuam sobre a realidade, como  reconheceu Gramsci[90],  Poulantzas[91], entre outros. E o que se retira disto, inicialmente, transportando tal pensamento para o direito, é que o juiz não é mero “sujeito passivo” nas relações de conhecimento. Como todos os outros seres humanos, também é construtor da realidade em que vivemos, e não mero aplicador de normas, exercendo atividade simplesmente recognitiva. Além do mais, como parece sintomático, ele, ao aplicar a lei, atua sobre a realidade, pelo menos, de duas maneiras: 1º, buscando reconstruir a verdade dos fatos no processo e, 2º, interpretando as regras jurídicas que serão aplicadas a esse fato  ou, em outras palavras, acertando o caso que lhe é posto a resolver.
Não bastasse estas afirmações para afastar o primado da neutralidade do juiz, urge reconhecer que o direito, de modo inegável, é ideológico.[92] Tutela nas suas regras interesses que podem facilmente ser identificados dentro de cada sociedade e que, muitas vezes, tomam caráter de ocultação dos conflitos existentes no seu interior, ou seja, toma uma dimensão alienante. Categorias linguísticas genéricas como “bem comum”, “interesse coletivo”, “democracia” e “igualdade”, por exemplo, mostram bem esta situação. Quantos de nós não acredita que há uma efetiva igualdade de todos perante da lei?; ou então que o Estado está sempre buscando o “bem comum”? Ora, isto é inescurecível discurso ideológico.De acordo com exaustiva produção teórica de Norberto Bobbio[93], a democracia exige, sob um enfoque estritamente formal, uma prévia delimitação das regras do jogo – e aqui não se pode negar a contribuição do positivismo jurídico para uma noção de democracia que teve seu momento e importância histórica –, ciente todos, salvo os ingênuos, da necessidade da “lei” à própria sobrevivência (melhor seria Lei, com maiúscula), como demonstra a psicanálise.
Mas isto, a delimitação das regras, não basta! É preciso que se saiba, para além dela, contra quem se está jogando e qual o conteúdo ético e axiológico do próprio jogo. Como referido no início, alcançar tal patamar só é possível quando os agentes em cena, no palco social, assumem sua face ideológica. Não é possível jogar uma partida honesta ou justa contra quem se esconde sob máscaras tais como as de “objetividade” ou “neutralidade”. Até mesmo porque se sabe que tais referenciais têm como função principal a ocultação dos conflitos socioeconômico-políticos.[94]
Em outras palavras: democracia – a começar a processual – exige que os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que não se exige que o legislador, e de conseqüência o juiz, seja tomado completamente por neutro[95], mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais.[96] Exige-se não mais a neutralidade, mas a clara assunção de  uma  postura  ideológica,  isto é, que  sejam  retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o que começa pelo domínio da dogmática, apreendida e construída na base da transdisciplinariedade.
O novo juiz, ciente das armadilhas que a estrutura inquisitória lhe impõe, mormente no processo penal, não pode estar alheio à realidade; precisa dar uma “chance”  (questionando pelo seu desejo) a si próprio, tentando realizar-se; e a partir daí aos réus[97], no julgamento dos casos penais. Acordar para tal visão é encontrar-se com seu novo papel.
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Notas e Referências:
[1] CORDERO, Franco. Risposta a monsignore. Bari: De Donato Editore, 1970, p. 29 e ss., especialmente p. 84 : “Ora sono chiare le ragioni della Sua ripugnanza per il mio metodo. Lei lo trova ‘certamente corrosivo sul piano della fede’ e forse lo è se per ‘fede’ s’intende uno stato ipnotico al cui sviluppo, secondo un’altra Sua frase, giova piú il ‘pius credulitatis affectus’ che l’intelligenza. Resta da stabilire quanto valga questo prodotto di serra stentatamente cresciuto nel dormiveglia della ragione, a colpi d’imbrogli verbali e di falsi storici. Io conosco un’altra fede, che non teme i discorsi in regola con la logica: accecare l’intelligenza è un’ingiuria a Dio.”
[2] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Direito alternativo e criminologia, tese apresentada no I Encontro Internacional sobre Direito Alternativo, Florianópolis, 1991, inédito.
[3] BAGGIO, André; CARVALHO, Amílton Bueno. Jusnaturalismo de caminhada: uma visão ético-utópica da lei. Magistratura e direito alternativo, AJURIS, São Paulo: Acadêmica, n. 47-48, p. 56, 1992.
[4]. ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Direito Alternativo – notas sobre as condições de possibilidade. Lições de direito alternativo, São Paulo: Acadêmica, pp. 72-3, 1991: “Com efeito, o ‘uso alternativo do direito’ não é manifestação individual de juízes, nem tampouco fenômeno restrito à magistratura. Trata-se de um inusitado movimento social. A reação passional, leviana, teoricamente débil e politicamente reacionária dos juristas do status quo é um sinal positivo da desestruturação dos graus de mediações – via instância jurídica – que aqueles intelectuais orgânicos do bloco histórico dominante costuravam e ainda hoje tentam manter escoimados num empedernido positivismo. Tais leguleios, ventríloquos de todo poder estabelecido já não têm tanto preparo para o contorcionismo retórico. O Rei está nu.”
[5] BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos da sentença penal. São Paulo: RT, 1980, p. 72 e ss.
[6] Sobre tais conceitos, v. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 5. ed. Lisboa: Gulbenkian, 1979, pp. 173-8; LARENZ, Karl. Metodologia de la ciencia del derecho. (trad. de Marcelino Rodriguez Molinero) Barcelona: Ariel, 1980, pp. 289-93. Para uma posição diante do problema, v. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O direito em relação. Curitiba: Gráfica Veja, 1983, p. 26. Para uma postura desmitificadora de tais conceitos, v. LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar direito, hoje?. Brasília: Nair, 1984, pp.10-11.
[7] COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 318.
[8] COELHO, L. F.. Teoria crítica do direito. Curitiba: HDV Editora, 1987, p. 365 e ss.
[9] AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989, pp.26-28. O autor, nesta obra excepcional, vai buscar em Haesaert, J. Théorie générale du droit, Bruxelles, Bruylant. Paris: Sirey, 1948, p. 20, 27, o eixo da sua construção: “… ‘consiste na descrição das regras jurídicas em vigor’, tendo por ‘objeto a regra positiva, considerada como um dado real’, cuja existência constata, buscando, a seguir, seu sentido, através dessas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, para estabelecer seu significado atual e incluí-la ‘em um sistema tão coerente quanto possível, de modo a orientar a solução dos novos casos que venham a apresentar-se'; da ‘normologia geral’, na medida em que constitui  ‘a teoria das regras gerais ou, antes, das diretivas que orientam uma determinada ordem jurídica’, chegando à determinação dos princípios gerais em que assenta e, por isto, aplicáveis à solução de cada um e de todos os casos.”
[10] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Por um direito da libertação ou uma libertação do direito. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, Curitiba,  n. 16, p. 134 e ss., 1990; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Introdução ao estudo do direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 74; v. a posição de MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. (trad. de Ana Prata) 2. ed. Lisboa: Estampa, 1989, p. 61: “Assim pois, a interdisciplinaridade não pode fornecer resposta à nossa busca de uma ciência do direito que não seja outra coisa que não uma descrição das técnicas jurídicas. É preciso procurar para lá da pluridisciplinaridade; na direção daquilo que eu chamarei transdisciplinaridade, quer dizer, a ultrapassagem das fronteiras actuais das disciplinas.”
[11] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Direito alternativo e marxismo – apontamento para uma reflexão crítica. Revista de direito alternativo, São Paulo: Acadêmica, n. 1, p. 39, 1992.
[12] Basta ver como Oskar Von BÜLOW começa sua clássica obra Die Lehre von den Processeinreden und die Processvoraussetzungen, publicada em 1868 por Emil Roth, em Giesen, onde era professor: “Nunca se ha dudado que el derecho procesal civil determina las facultades y los deberes que ponen en mutua vinculación a las partes y al tribunal. Pero, de esa manera, se ha afirmado, también, que el proceso es una relación de derechos y obligaciones recíprocos, es decir, una relación jurídica.//Esta simple, pero, para el derecho científico, realidad importantísima, desde todo punto de vista, no ha sido hasta ahora debidamente apreciada ni siquiera claramente entendida. Se acostumbra a hablar, tan sólo, de relaciones de derecho privado. A éstas, sin embargo, no puede ser referido el proceso. Desde que los derechos y las obligaciones procesales se dan entre los funcionarios del Estado y los ciudadanos, desde que se trata en el proceso de la función de los oficiales públicos y desde que, también, a las partes se las toma en cuenta únicamente en el aspecto de su vinculación y cooperación com la actividad judicial, esa relación pertence, con toda evidencia, al derecho público y el proceso resulta, por lo tanto, una relación jurídica pública.” (La teoría de las excepciones procesales e los presupuestos procesales. (trad. de Miguel Angel Rosas Lichtschein)Buenos Aires: EJEA, 1964, pp. 1-2).
[13] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro-São Paulo: Forense, 1961, p. 395.
[14] MARQUES, J. F.. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980, vol. II, p. 168.
[15] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1990,  vol. II, p. 367.
[16] BÜLOW, O.V.. La teoria…cit., p. 2. V., por todos, no direito brasileiro, TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 5 e ss.
[17] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989, p. 134 e ss.
[18] MARQUES, J.F.. Tratado…cit., p. 211.
[19] PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p.412 e ss.
[20] MARQUES, J.F.. Tratado… cit., p. 212-3; Elementos… cit., vol. II, p. 8.
[21] MARQUES, J.F.. Tratado… cit., p. 213-4; Elementos… cit., vol. II, p. 8 e ss.
[22] BREDA, Antônio Acir. Efeitos da declaração de nulidade no processo penal. Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 183, 1980.
[23] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1981, p. 322-3: “Daí que desde há muito se tenha considerado, com inteira razão, como puro corolário daquela exigência de legalidade a afirmação do princípio do ‘juiz natural’ ou do ‘juiz-legal’, através do qual se procura sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente. A tanto vincula a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração. Para corresponder a tais exigências importa assinalar ao princípio um tríplice significado: a) Ele põe em evidência, em primeiro lugar, o plano da fonte: só a lei pode instituir juiz e fixar-lhe a competência. b) Em segundo lugar, procura ele explicitar um ponto de referência temporal, através deste afirmando um princípio de irretroactividade: a fixação do juiz e da sua competência tem de ser feita por uma lei vigente já ao tempo em que foi praticado o facto criminoso que será objecto do processo. c) Em terceiro lugar, pretende o princípio vincular a uma ordem taxativa de competência, que exclua qualquer alternativa a decidir arbitrária ou mesmo discricionariamente.”
[24] DIAS, J.F.. Direito… cit., p. 305 e ss.
[25] CARNELUTTI, Francesco. Crisi della giustizia penale. Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, pp. 334-5, 1958.
[26] Por todos, v. a noção de AMARAL, Leopoldino Marques do: “Os tribunais e os juízes vivem em estado de crise como os anjos vivem em estado de graça./ Salvo Deus, somente os juízes têm critérios – a faculdade de julgar.” -gn-. (Não há crise no Poder Judiciário. Gazeta do Povo, Curitiba, p. 6, 19.03.93).
[27] LEGENDRE, Pierre. Los amos de la ley: estudio sobre la función dogmática en el régimen industrial. Derecho y psicoanalisis: teoría de las ficciones y función dogmática, Buenos Aires: Hachette, p. 167, 1987: “Es un hecho, la trasmisión jurídica opera bajo todas las máscaras y maquillajes politicos. La lección más fuerte que se puede extraer de la desalentadora experidencia jurídica, desgraciadamente menoscabada en los medios de la gestión, es que la meta de los sistemas de instituciones es reproducirse, ésa es la primera de sus funciones.”
[28] MIAILLE, M.. Introdução… cit., p. 16 e ss., oferece-nos uma visão da questão: “E isto vale, por maioria de razão, quando se trata de introduzir alguém num universo social como o universo jurídico: o direito não tem a consistência material de uma casa, não é delimitado no espaço por paredes e portas. Quanto eu tomo a iniciativa de vos introduzir no direito, tomo a responsabilidade de abrir certas portas, de conduzir os vossos passos num determinado sentido, de chamar a vossa atenção para este elemento e não para um outro. Ora, quem saberá dizer se as portas que eu abri eram as boas? Se o sentido da visita era instrutivo para o visitante? (…) Este risco é real e tanto mais insidioso quanto a nossa universidade liberal não afirma nenhuma ortodoxia precisa a respeitar: tudo é aparentemente possível, tudo pode ser dito. Não há introdução oficial. Assim, todos os estudantes e a maioria dos professores podem pensar que abriram todas as portas, em desmascarar guias desonestos; trata-se de saber porque a visita se faz sempre no mesmo sentido, porque é que são sempre as mesmas portas que são abertas e outras fechadas.”
[29] Para uma noção mais ampla envolvendo o conceito, v. CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. (trad. A. Menezes Cordeiro) Lisboa: Gulbenkian, 1989, 311p.
[30] Não há como aprofundar, neste restrito trabalho, tais noções, sem embargo da importância que têm, mas não é demais recordar que os autores do processo civil começam a questionar, com mais vagar, vários aspectos do problema e, para um início de leitura, v. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: RT, 1987, p. 478.
[31] V., por todos, PISAPIA, Gian Domenico. Compendio de procedura penale. 4. ed. Padova: Cedam, 1985, pp. 20-21: “Ocorre precisare subito che in nessun Paese oggi è più accolto né il sistema accustorio puro né quello inquisitorio. È possibile tuttavia constatare in via di massima, che i Paesi anglosassoni presentano dei tipi di processo ispirati alla strutura accusastoria, mentre i Paesi dell’Europa occidentale presentano dei processi a struttura tendenzialmente inquisitoria.” (p. 21). Mas é essencial observar que o autor tem precisa a razão pela qual estuda o tema já no início do seu trabalho, considerando sua importância na reforma do CPP italiano: “Prima di passare all’esame analitico del processo penale italiano vigente, è opportuno precisare a quale tipo di processo esso può ricondursi: anche perché tale precisazione può consentire di meglio valutare i diversi orientamenti che si sono delineati in ordine alla riforma del codice di procedura penale.” -gno-. Os autores de reformas da legislação processual penal no Brasil deveriam ter sempre presente, até por honestidade científica, a mesma noção, o que não é uma constante.
[32] V., aqui, pela importância do autor no processo penal brasileiro, a correta noção de Rogério Lauria Tucci: “Do mesmo modo, a necessidade de que, inquisitivo na essência  (como o é toda a persecução penal), assuma, na segunda fase desta, correspondente à da instrução criminal, ou, mais especificamente, da ação penal, a forma acusatória, assemelhando-se a um processo de partes, marcado pela efetividade de contraditório indisponível, determinante da perquirição da verdade material.” (TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo legal e tutela jurisdicional. São Paulo: RT, 1993, p. 39.
[33] Verificar o sentido pejorativo da expressão, até porque entendida a partir dos romanos, embora a origem da palavra fosse grega e usada, na Grécia, para os estrangeiros (“barbáros”), ou seja, balbuciantes, no sentido de incapacidade para se fazer entender. Bárbaros, assim, eram os outros, desconsiderando-se, aqui, tudo o que de formidável à humanidade veio deles. Veja-se a alquimia, a psicologia, entre outras matérias, já então conhecidas dos árabes, por exemplo. A assertiva serve para demonstrar como o nosso pensar é totalitário, tendo a Europa como seu centro. Sobre o assunto, v. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. (trad. de Luiz João Gaio) São Paulo: Loyola, s/d, p. 58. Mais recentemente, v., do mesmo autor, La introducción de la  ‘transformación de la filosofía’ de K.O. Apel y la filosofia de la liberación (reflexiones desde una perspectiva latinoamerica), Fundamentación de la ética y filosofía de la liberación. México: Siglo Veintiuno Editores, 1992, p. 45 e ss.
[34]CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 32 e ss, em trabalho absolutamente singular. Basta ver como desmitifica a prova na fórmula ordálica, deixando entrever que, não obstante a rigidez prevista à sua produção, depende sempre, em sendo prova, dos homens e, portanto, é manipulável: “Molto praticata ai bassi livelli sociali, l’ordalìa è una scommessa contro la costanza delle serie causali. In quanto tale, lascerebbe pochi spiragli al paziente se ogni tanto non fosse addomesticata: a Nagyvárad, al cui santuario spetta il monopolio delo iudicium ferri candentis, sappiamo dal Regestum Valadiense, anni 1208-35, come 78 volte lo sperimento sia finito male (‘combustus est’), uscendo benissimo in 130 casi (‘iustificatus est’); bisogna supporre che l’esperimento fosse guidato, come nel rito biblico delle acque amare.” (p. 40) V., do mesmo autor, Riti e sapienza del diritto. Roma-Bari: Laterza, 1985, p. 261 e ss.; na parte indicada, especialmente p. 468 e ss.
[35] Para uma maior aprofundamento desta matéria, v. LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. (trad. de Antonio de Padua Danesi) São Paulo: Martins Fontes, 1992, 235p..
[36] CORDERO, F.. Guida… cit., p. 43.
[37] As questões jurídicas, políticas, sociais, econômicas e religiosas estão, nesse estágio dos acontecimentos,  traspassadas por completo. A repressão no campo jurídico era quase que tão-só uma forma de escamotear o motivo real que  movia aquele atuar desastroso. Os cofres dos feudos, todos sabem, estavam esvaziando com uma velocidade ímpar. Com isso, era natural o resultado negativo de uma campanha verbal anti-herética (efetivamente colocada em prática), quiçá levada a cabo sabendo-se de antemão que não iria produzir os efeitos aparentemente desejados, até porque as cruzadas já haviam se iniciado (a primeira começa em 1095), parecendo inequívoco seu escopo econômico (THORAVAL, Jean et alii. Les grandes etapes de la civilisation française. Paris: Editora Bordas, 1976, p. 18 e ss.). Por isso, sob o argumento do combate à heresia – mas com o intuito visível de servir de exemplo e, também, propiciar o saque -, Inocêncio III ordena uma cruzada contra os Albigenses, a qual inicia-se em 1209. É interessante notar, a propósito, o que diz o Petit Larousse Illustré a respeito dos Albigeois ou Cathares: “secte apparentée à la doctrine manichéenne, répandue au XIIe s. dans le Languedoc, la région de Toulouse, l’Albigeois, et contre laquelle le pape Innocent III ordonna une croisade (1209). Les croisés, commandés par Simon IV, sire de Montfort, saccagèrent Béziers, Carcassonne, et, malgré la protection du comte de Toulouse Raimond VI, vainquirent les albigeois à Muret (1213) et à Toulouse (1218). Cette guerre désastreuse pour le Midi, à laquelle Louis VIII de France prit part, se termina, sous la régence de Blanche de Castille, par le traité de Paris (1229), et la secte cathare disparut progressivement après la destruction de Montségur (1244). “-gn-. (Paris, Librairie Larousse, 1985, p. 1101). Para uma mais profunda avaliação do problema v. GODES, Jesús Mestre. Los cátaros: problema religioso, pretexto político. (trad. de M. Dolors Gallaert) Barcelona: Ediciones Península, 1995, 270 p., especialmente p. 163 e ss. Veja-se, ademais, os efeitos sociais que o novo pensamento causa o século XII, por exemplo, em relação ao amor (KRISTEVA, Julia. Histórias de amor. (trad. Leda Tenório da Motta) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 163 e ss., especialmente p. 182 ).
[38] BARREIROS, José António. Processo penal. Coimbra: Almedina, 1981, p. 30.
[39] NOVINSKY, Anita Waingort. A inquisição. 10.  ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 16: “As heresias medievais, pondo em dúvida os dogmas do catolicismo e a infalibilidade da Igreja, abalavam o poder e a força da Santa Sé. Além da cruzada religiosa empreendida contra os hereges nos séculos XII e XIII está também a luta contra a ameaça ao poder.”
[40] VÉLEZ MARICONDE, Alfredo. El proceso penal inquisitivo. Scritti giuridici in memoria de Piero Calamandrei, Padova: Cedam, 1958, v. II, p. 510: “Desde entonces (inquisitio significa pesquisa que se cumple por escrito y secretamente, y al término de la cual se dicta la sentencia),  el proceso cambia fundamentalmente de fisionomía; lo que era un duelo leal y franco entre acusador y acusado, armados de iguales poderes, se torna en lucha desigual entre juez y acusado. El primero abandona su posición de árbitro y asume la activa de inquisidor, actuando desde el primer momento también como acusador, es decir, se confundem las actividades del juez y del acusador; por su parte, el acusado pierde la condición de verdadero sujeto procesal y se convierte en objeto de una dura persecusión.”
[41] CORDERO, F.. Ideologia del processo penale. Milano: Giufreè, 1966, p. 168.
[42] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra, 1981, p. 62.
[43] CORDERO, F.. Guida… cit., p. 47: “è falso che metodo inquisitorio equivalga a processo senza attore: nell’ordonnance criminelle 1670, monumento dell’ingegno inquisitoriale, il monopolio dell’azione spetta agli hommes du roi (“les procès seront poursuivis à la diligence et sous le nom de nos procureurs”: Tit. III, art. 8).”
[44] CORDERO, F.. La riforma dell’istruzione penale. Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano: Giufreè, 1963, p. 715.
[45] DIAS. J.F.. Direito… cit., p. 247.
[46] FOUCAULT, M.. Vigiar e punir. (trad. Ligia M. Pondé Vassallo) 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 36.
[47] CORDERO, F.. Guida… cit., p. 51: “La solitudine in cui gli inquisitori lavorano, mai esposti al contraddittorio, fuori da griglie dialettiche, può darsi che giovi al lavorìo poliziesco ma sviluppa quadri mentali paranoidi. Chiamiamoli ‘primato dell’ipotesi sui fatti': chi indaga ne segue una, talvolta a occhi chiusi; niente la garantisce più fondata rispetto alle alternative possibili, né questo mestiere stimola cautela autocritica; siccome tutte le carte sono in mano sua ed è lui che l’ha intavolato, punta sulla ‘sua’ ipotesi. Sappiamo sua quali mezzi persuasivi conti (alcuni irresistibili: ad esempio, la tortura del sonno, caldamente raccomandata dal pio penalista Ippolito Marsili); usandoli orienta l’esito dove vuole.” -gno-.
[48] ALMEIDA, Angela Mendes de. O gosto do pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 11 e ss.: “Ao contrário do que se pensa usualmente, nem sempre a confissão existiu entre os cristãos: não enquanto sacramental e obrigatória, e não enquanto confissão privada do fiel ao padre. Na verdade a confissão católica – obrigatória uma vez por ano apenas a partir do século XIII – só veio a ganhar seu contorno sacramental contemporâneo no Concílio de Trento (1545-1563). (…) Nos tempos da Igreja primitiva, era a eucaristia que exercia sobre os pecadores o papel de controle, semelhante ao que posteriormente a confissão iria desempenhar. (…) O século XII foi fundamental para o processo de transição da confissão pública para a privada. Neste período os teólogos multiplicaram suas definições, com o objetivo justamente de conciliar a teoria da predestinação pela graça com o “poder das chaves” sacerdotal, concretizado na função de absolver, em nome de Deus, os pecados humanos. Mas foi o Concílio de Paris (1198) que marcou o momento da generalização da confissão privada, também atestada pelas instruções saídas do Concílio de Londres, de 1200. Em seguida o Concílio de Latrão (1215-1216), sob a condução do Papa Inocêncio III, deu o passo decisivo, tornando obrigatória a confissão anual.” -gn-.
[49]. FOUCAULT, Michel. Vigiar…cit., p. 37-8: “A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras rigorosas, é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado. E por essa mesma razão, embora no estrito direito isso não seja necessário, esse procedimento vai necessariamente tender à confissão. Por duas razões: em primeiro lugar, porque esta constitui

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