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1 NOTA O leitor terá notado que os versos dos Hinos se encontram numerados. Tal prática visa facilitar a referência a alguma passagem específica dos poemas. O mesmo sucede com os restantes textos clássicos, mesmo os em prosa. Nem sempre, porém, estamos perante uma simples contagem de versos ou linhas, estas últimas, aliás, variáveis de edição para edição. Qualquer tradução cuidada de uma obra grega ou romana terá, na margem, estes números, estranhos, por vezes, para o não-iniciado, mas essenciais ao trabalho académico. Por ser sobejamente mais prático, todas as referências no Posfácio a textos clássicos serão feitas com base neste sistema, completas com a indicação do nome do autor e da obra (quando mais do que uma), para os quais existem abreviaturas acordadas. Assim, por exemplo, o ínicio do Timeu de Platão é dado como Pl. Tim. 17a (a numeração pode incluir letras). O código pode tornar-se verdadeiramente complexo, em especial quando falamos de fragmentos: Safo fr. 96.6-11 L-P refere-se ao fragmento 96 da poetisa lésbia na edição de Lobel e Page (para os fragmentos é sempre necessário indicar a edição usada), versos 6 a 11. As siglas para papiros tendem a mencionar o local de origem dos mesmos ou onde se encontram guardados: P. (ou Pap.) Oxy., por exemplo, indica os descobertos em Oxirrinco, no Egipto. Outra fonte importante de informações para os estudiosos são os escólios, comentários marginais mais ou menos exaustivos aos textos clássicos, feitos na Antiguidade ou em Bizâncio. Referências aos escólios são feitas indicando o passo da obra comentado pelo escoliasta: schol. ad P. N. 2.1 identifica a nota do comentador ao primeiro verso da segunda Nemeia de Píndaro. Para ajudar os leitores, segue-se uma lista das abreviaturas usadas no Posfácio, com a indicação da tradução em português europeu das obras (caso ela exista, já que parte importante do acervo clássico continua inacessível na nossa língua). D. S. = Diodoro Sículo, Biblioteca Histórica h. Aphr. = Hino a Afrodite h. Dem. = Hino a Deméter Il. = Ilíada, de Homero (tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia: 2005) Isoc. = Isócrates Od. = Odisseia, de Homero (tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia: 2003) P. = Píndaro P. = Odes Píticas, de Píndaro (tradução de António de Castro Caeiro, Lisboa, Quetzal: 2010) N. = Odes Nemeias, de Píndaro Pl. = Platão Hipparch. = Hiparco, de Platão 2 Ion = Íon, de Platão (tradução de Victor Jabouille, Inquérito: 2000) Phdr. = Fedro, de Platão (tradução de José Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70: 2009 [reimpressão]) Po. = Poética, de Aristóteles (tradução de Eudoro de Sousa, Lisboa, INCM: 20088) X. = Xenofonte Mem. = Memoráveis, de Xenofonte (tradução de Ana Elias Pinheiro, Coimbra, Classica Digitalia: 2009) Smp. = Banquete, de Xenofonte (tradução de Ana Elias Pinheiro, Coimbra, Classica Digitalia: 2008) L-P = edição de Lobel e Page (Poetarum Lesbiorum Fragmenta. Oxford, OUP: 1955) Snell = edição de Snell (Pindari Carmina Cum Fragmentis. Berlim, Teubner: 1954) Radt = edição de Radt (Tragicorum Graecorum Fragmenta. Vol. 4: Sophocles. Göttingen, Vandenhoeck und Ruprecht: 1999) Gomperz = edição de Gomperz (Philodem. Über Frömmigkeit. Leipzig, Teubner: 1866) V = edição de Voigt (Sappho et Alceus. Amesterdão, Athenaeum: 1971) West = edição de West (Greek Epic Fragments. Cambridge MA, HUP: 2003) 3 POSFÁCIO §1 OS HINOS: O QUE SÃO? Tucídides, o famoso historiador do século v a.C., autor da Guerra do Peloponeso, cita na sua obra, no Livro III [104], os versos 146-50 e 165-72 do Hino a Apolo. Não lhe chama porém hino, mas prooímion [προοίμιον]: proémio; à letra, o que antecede [pró: πρό] o canto [oîmê: οἶμη]. O proémio é, assim, o canto anterior ao canto. Os hinos, pelo que deixa entender Tucídides, seriam pequenas peças recitadas antes da declamação de outros poemas, consideravelmente superiores em extensão. Sabemos, por exemplo, de uma versão da Ilíada cujo primeiro verso Càssola, o editor italiano dos Hinos, considera não tanto um incipit alternativo do Poema mas antes o que sobra de um hino maior, depois perdido, que o antecederia [lviii]. Na Odisseia, Demódoco também principia por «preludiar o deus,/ revelando depois o seu canto»1 [8.499-500]. Hesíodo, o mais antigo poeta grego, dos séculos viii-vii a.C., inicia as suas duas obras, a Teogonia e os Trabalhos e Dias, com, respectivamente, um hino às Musas [1-115] e um pequeno hino a Zeus [1-10]. Píndaro, o maior dos líricos gregos, do século v a.C., refere que os Homéridas [§2] abriam as suas recitações com um proémio a Zeus [N. 2.1-3]. Muitos dos Hinos, de facto, concluem com a declaração explícita de que o rapsodo avançará para a declamação de outro poema (2, 3, 4, 5, 6, entre outros). Os Hinos a Hélio e a Selene anunciam mesmo a matéria do canto seguinte: os feitos dos heróis mortais. Também o Hino a Apolo identifica este como o procedimento padrão: depois de cantarem hinos [hymnêsôsin: ὑμνήσωσιν] em louvor de Apolo, Leto e Ártemis, as raparigas délias celebrarão em canções os homens e mulheres de antigamente [158-161]. Muitos estudiosos recusam considerar os hinos maiores da colecção autênticos proémios, tendo em conta a sua extensão (aproximam-se, em número de versos, de alguns cantos da Ilíada ou da Odisseia). Hinos, na verdadeira acepção da palavra, seriam apenas as composições mais pequenas; as outras seriam peças auto-suficientes que de hinos teriam tão-só o nome e o assunto (os deuses), desenvolvimentos monumentais dessa forma poética primitiva, semelhantes, no seu género, ao canto de Demódoco sobre os amores adúlteros de Ares e Afrodite, na Odisseia [8.266-367]. Nada obriga, porém, a desposar semelhante teoria. Outros autores, aliás, sugerem o inverso: que os hinos menores não são senão ecos de outros, maiores, o que, de facto, acontece, mesmo dentro da colecção (a título de exemplo, cotejem-se o Hino 4 e o Hino 18). 1 Tradução de Frederico Lourenço (Lisboa, Cotovia: 2003). 4 §2 OS HINOS: QUEM OS «ESCREVEU»? Os Hinos – todos, opinião que favorecemos, ou, pelo menos, os menores dentre eles – eram recitados, como já se disse, antes de outros poemas maiores, em concursos poéticos, no âmbito de festivais sagrados. Os próprios Hinos dão disso testemunho: Tucídides cita o Hino a Apolo para atestar a antiguidade do festival de Delos, que os atenienses restauraram depois da peste que assolou a cidade em 426 a.C. [D.S. 12.58.6-7]. O segundo Hino a Afrodite conclui com um pedido à deusa para que esta conceda a vitória ao poeta na competição e os versos finais do Hino 26 apontam para a existência de um festival anual. A época arcaica (776-480 a.C.) viu a emergência de uma classe de recitadores itinerantes profissionais que ganhavam a vida participando nestes vários festivais: os rapsodos. O termo rapsodo vem de rháptô [ῥάπτω], coser: o rapsodo era o que «cosia» os versos uns aos outros (ainda hoje, em português, o termo rapsódia designa uma mistura de músicas). Platão deixou-nos um retrato maravilhosamente cómico de um destes personagens, Íon, o interlocutor de Sócrates no diálogo homónimo, uma das principais fontes de informação de que dispomos para a reconstrução da actividade destes profissionais na segunda metade do século v a.C. Os rapsodos levavam uma vida itinerante, de festival em festival [530a-b]. Apresentavam-se perante o público num plataforma elevada [535e], com roupas vistosas e uma coroa de ouro [535d]. As suas performances eram, por vezes, exageradas: Íonconfessa chorar nos passos mais dramáticos [535c] e Aristóteles critica um certo Sosístrato pela sua gesticulação excessiva [Po. 1462a5-7]. Os rapsodos eram vistos como os intérpretes por excelência – mas também superficiais, quando não mesmo estúpidos [X. Smp. 3.6] – dos poemas que recitavam [Pl. Ion 535a], nomeadamente os de Homero, a que estavam particularmente associados [X. Mem. 4.2.10]. Heródoto, o historiador do século v a.C., conta como, durante a Primeira Guerra Sagrada (595-585 a.C.), Clístenes de Sícion, em guerra com Argos, suspendeu as competições rapsódicas na sua cidade por os poemas homéricos elogiarem o inimigo (em Homero, os Gregos são chamados de Argivos) [5.67]. Já Hiparco, tirano de Atenas entre 527- 514 a.C., obrigou a que os rapsodos, revezando-se, recitassem na íntegra a Ilíada e a Odisseia nas Panateneias, o grande festival de Atenas [Pl. Hipparch. 228b], o que contribuiu decisivamente para o estabelecimento do texto homérico. Na difusão do legado de Homero destacou-se uma guilda de rapsodos, os Homéridas (à letra, os descendentes de Homero), que tiveram um papel central na criação da lenda homérica (e.g. Isoc. 10.65). Há inclusive quem defenda que o próprio Homero não é senão uma criação do grupo, uma figura imaginária (como Orfeu ou Museu) a quem atribuíam os poemas que faziam parte do seu reportório. O Hino a Apolo é um bom exemplo desse procedimento: composto, pelo menos nos moldes em que nos chegou, por Cineto, um dos Homéridas, o hino anuncia-se explicitamente como uma criação de 5 Homero. Apesar de casos como estes, os rapsodos distinguiam-se precisamente dos aedos (os antigos poetas, como Demódoco ou Fémio, da Odisseia), por, ao contrário destes, não serem os autores dos textos do seu reportório e por os recitarem, em vez de cantarem (aedo, de aoidós [ἀοιδός], significa cantor/bardo). Vários estudiosos, de facto, defendem que Cineto se limitou a agregar, para uma ocasião especial, dois hinos pré-existentes: um verdadeiro cosedor de versos. Seria, porém, ingénuo subscrever esta distinção simples. As escolas rapsódicas eram centros de criação poética: sob o nome de Hesíodo, por exemplo, começaram a circular novas composições como O Escudo de Héracles ou o Catálogo das Mulheres, e Platão fala num «stock de versos» dos Homéridas [Phdr. 252b], que aponta para a existência de outras composições «do» Poeta (e de que nos chegaram fragmentos). Simplesmente, como acima ficou dito, os rapsodos não assumiam as composições como criações suas, mas atribuíam-nas ao seu antepassado comum. É-nos, por isso, impossível saber quem compôs os vários hinos. Se a partir de indicações dos poemas podemos tentar datá-los e adivinhar para que circunstância específica foram compostos, tal exercício é de todo vão no que diz respeito à identificação do autor, tanto mais que este, longe de procurar afirmar a sua individualidade, esforçava- se por filiar o seu poema na tradição oral herdada, que funcionava fundamentalmente à base de frases- feitas (fórmulas, epítetos e motivos que se repetem, tantas vezes ipsis verbis – só assim, de resto, era possível a improvisão, marca distintiva da poesia falada). O facto de os hinos serem um produto da tradição oral não implica necessariamente que não tenha sido usada a escrita na sua composição, mas tão só que esta era secundária, um auxiliar mais do que um elemento constitutivo do próprio texto. §3 OS HINOS: ESTRUTURA E METRO Os hinos são uma forma poética com uma estrutura mais ou menos definida. Dificilmente algum hino da colecção, porém, exemplifica de forma perfeita o esquema que se segue, modelado no de Richard Janko2, um dos principais estudiosos dos poemas. A introdução dos hinos, em que se indica o assunto do canto (o nome do deus), se invocam as musas e se listam alguns, não muitos, dos epítetos da divindade (com uma possível referência ao local de nascimento ou à genealogia), estende-se até ao primeiro pronome relativo, que marca a transição para a secção do meio. Esta pode ser atributiva ou narrativa. Os hinos atributivos não contam nenhum mito associado ao deus, mas apenas o seu quotidiano, o presente eterno do Olimpo (veja-se o Hino a Ártemis 27): também por isso nunca vão para lá dos vinte e cinco versos, pois seria difícil estender essa descrição. Um hino desta natureza pode, porém, ser prolongado com recurso ao que os filólogos chamam um priamel, palavra alemã que designa um recurso estilístico que consiste na acumulação de uma série de alternativas, rejeitadas em favor do 2 Richard Janko (1981), «The Structure of the Homeric Hymns: A Study in Genre». Hermes 109: 9-24. 6 verdadeiro tema do poema (um dos melhores exemplos na nossa colecção são os versos 206-215 do Hino a Apolo). O priamel permite o salto para a secção narrativa do hino, que se foca normalmente ou no nascimento e acolhimento no Olimpo do deus ou na aquisição por parte da divindade dos poderes que lhe são conhecidos (por vezes, as duas linhas temáticas não se distinguem: é o que sucede, por exemplo, no Hino a Hermes). Não raro, há ainda uma preocupação etiológica: o Hino a Deméter será o caso mais explícito, ao narrar a fundação dos Mistérios de Elêusis. Janko chama a atenção, e bem, para o facto de existir uma tendência para encerrar esta secção do hino com as palavras do próprio deus que se louva [1981: 14]. A conclusão pode constituir-se como um breve retorno ao momento atributivo do poema ou resumir-se a uma simples fórmula, tantas vezes igual, de despedida, em que o poeta promete continuar a louvar, no futuro, o deus, pede o favor deste e anuncia que partirá para outro canto. Os Hinos estão escritos em hexâmetros dactílicos, o metro usado na Ilíada e na Odisseia (e daí também os Hinos serem conhecidos como Homéricos). Trata-se de um tipo de verso com seis pés (a unidade-base de medida do metro), em que o quinto é obrigatoriamente um dáctilo, ou seja, um pé composto por uma sílaba longa e duas breves. A diferença entre longas e breves desapareceu na evolução do português, mas era a base da métrica clássica, em que a poesia não se encontrava desligada da música (convém relembrar que o grego clássico era tonal, o que conferia desde logo à língua uma qualidade musical). §4 ANÁLISE INDIVIDUAL DOS HINOS HINO A DIONISO. Do Hino a Dioniso não nos chegaram senão fragmentos. Diodoro Sículo, historiador grego do século i a.C., na sua Biblioteca Histórica [3.66.3], conservou-nos os primeiros nove versos do hino, retirados, muito provavelmente, do início do poema (o nascimento do deus era um dos motivos tradicionais abordados nas primeiras linhas dos hinos, quando não mesmo o tema central: §3). O manuscrito M, descoberto em 1777 [§6], contém os dez últimos versos do hino (e uma variante). O poema não está preservado na íntegra porque desapareceu do manuscrito o fólio imediatamente anterior. Através da densidade de texto nos outros fólios, estima-se que tivesse cerca de 411 versos. Desde o primeiro editor de M que se aceita que os dois fragmentos fazem parte de um mesmo todo: seria improvável existir mais do que um Grande Hino a Dioniso na colecção. M. L. West, um dos mais importantes classicistas vivos, sugeriu3 que um fragmento de Crates de Malos (gramático do século ii a.C., director da biblioteca de Pérgamo e autor do primeiro globo) citado por Ateneu [653b], autor do 3 M. L. West (2001), «The Fragmentary Homeric Hymn to Dionysus». Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 134: 8. 7 século ii, pertence também ao hino. O seu argumento é simples: o verso, que Crates diz ser dos «hinos antigos», não é de nenhum dos outroshinos e tem, apropriadamente, um imaginário dionisíaco. Em 1992, André Hurst4 deu a conhecer o texto do Papiro de Génova 432, que contém os versos citados por Diodoro e os catorze seguintes. Para uma dezena destes não conseguimos senão recuperar uma palavra ou outra, mas é possível reconstruir na íntegra quatro linhas, porque foram utilizadas, quase sem alterações, pelo autor das Argonáuticas Órficas (poema do século iv-v), o que testemunha a popularidade do hino mesmo num período já tardio. O poema parece ter sido, de facto, importante: o Papiro de Génova, do século ii ou i a.C., é uma cópia de um aluno (no verso está a tabuada), o que mostra que o texto era estudado nas escolas. Outro papiro contém, segundo alguns autores, mais fragmentos do hino, não traduzidos nesta edição. O Pap. Oxy. 670, do século iii, descoberto em 1904 e entretanto perdido, contém vinte e cinco versos, que só a custo é possível reconstruir. Zeus dirige-se a Hera, aprisionada, vítima de uma armadilha de Hefesto, a quem o pai dos deuses promete enviar Ares e Dioniso. Este pequeno passo é o bastante para identificar o mito que seria desenvolvido no resto do poema. Hera, horrorizada com a deformidade de Hefesto, atirou-o do Olimpo, tendo a criança sido acolhida pelas ninfas. Depois de desenvolver a sua técnica metalúrgica, desenhou um trono profusamente trabalhado que enviou como presente à mãe. Hera, quando se sentou nele, de imediato se viu presa. Nenhum deus foi capaz de a libertar. Ares foi então enviado a Hefesto, para o trazer para o Olimpo, mas o deus afastou o irmão com o fogo (elemento com que era identificado). Dioniso tentou então a sua sorte: embebedando o deus, levou-o depois consigo para o Olimpo, ambos montados no seu burrinho. Como recompensa pelo serviço prestado, Hera, que causara a morte da mãe de Baco, acedeu a recebê-lo no Olimpo, onde foi acolhido. O primeiro a sugerir que o texto do Pap. Oxy. 670 pertencia ao hino foi Reinhold Merkelbach em 1973.5 Já em 1872, porém, Theodor Bergk, na sua História da Literatura Grega, aventava a hipótese de existir um hino com o mito acima, no que foi seguido, em 1895, por Wilamowitz, o gigante da filologia alemã. A estória foi muito popular no período arcaico, na literatura e na pintura, e Wilamowitz argumentava, por exemplo, que Alceu, um dos principais poetas líricos gregos, que viveu na transição do século vii para o vi a.C., escrevera o seu poema sobre o tema com base no hino que o classicista alemão supunha ter existido, mas cria dedicado a Hefesto. Foi Bruno Snell, autor do importante A 4 A. Hurst (1992), «Un Nouveau Papyrus du Premier Hymne Homérique: Le Papyrus de Genève 432» in A. Bülow- Jacobsen (ed.) (1994), Proceedings of the 20th International Congress of Papyrologists, Copenhagen, 23-29 August, 1992. Copenhaga, Museum Tusculanum Press: 317-21. 5 R. Merkelbach (1973), «Ein Fragment des homerischen Dionysos-Hymnus». Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 12: 212-5. 8 Descoberta do Espírito6, quem primeiro avançou a possibilidade de o hino ser em honra de Dioniso: afinal, é ele o herói do mito. As portas estavam abertas à inclusão do fragmento do papiro de Oxirrinco no Hino a Dioniso. Nem todos os autores, porém, subscrevem esta tese (veja-se a presente tradução), por verem no segundo verso do último segmento uma referência ao desmembramento de Dioniso-Zagreu7 pelos titãs: o hino narraria, nesse caso, essoutro mito. É um verso corrupto, que, por isso, se abre a diferentes interpretações. Independentemente daquilo a que se refira, o objectivo seria explicar a instituição de um culto bienal a Dioniso. É difícil datar o hino, mas os estudiosos tendem a apontar para a segunda metade do século vii a.C.: West diz que o hino ajudaria a explicar o surto de interesse que se regista a partir de 600 a.C. pelo mito do acolhimento de Dioniso [2003: 7]; Càssola, ainda que com muita prudência, deduz a data dos conhecimentos geográficos do poeta [16]. HINO A DEMÉTER. O Hino a Deméter é talvez o mais importante, o mais perfeito e o mais belo dos hinos. Devemos a Christian Friedrich Matthäi o seu conhecimento: o filólogo alemão recuperou em Moscovo o único manuscrito com o hino [§6]. O texto está, em certos passos, algo corrupto. Certas hipóteses de correcção avançadas pelos classicistas têm sido confirmadas por papiros entretanto descobertos. Em boa medida, a importância do hino deriva de ser o documento mais antigo que possuímos sobre os Mistérios de Elêusis. Elêusis era uma pequena localidade da Ática onde todos os anos se celebravam os ritos sagrados de Deméter e Perséfone, que prometiam aos iniciados (mysthês [μύστης], daí mistérios: as coisas reservadas aos iniciados) um destino melhor no Além.8 Os Mistérios de Elêusis, em que inicialmente só os Atenienses podiam participar, viriam a abrir-se a todos os Gregos, tendo mais tarde aceite até imperadores romanos, o último dos quais Juliano, o Restaurador. O templo foi fechado na sequência do decreto de Teodósio que obrigava ao encerramento dos locais de culto pagãos, em 391. Por fim, Alarico, rei dos Visigodos, cristão ariano, destruiu em 396 o santuário, na sua invasão da Grécia. O voto de silêncio a que os fiéis estavam sujeitos (e que o hino atesta: 478-9), guardado zelosamente, impede-nos de saber com precisão o que acontecia no telestério, a sala de iniciação. As (poucas) informações que temos derivam sobretudo dos escritos dos Padres da Igreja, os únicos 6 Bruno Snell (1992), A Descoberta do Espírito. Lisboa: Edições 70 (trad.: Artur Morão). 7 A figura de Dioniso é das mais complexas de toda a mitologia. É-nos impossível aqui narrar em detalhe o mito em questão, que levanta uma série de problemas. Aconselhamos o leitor curioso a consultar, para uma noção muito geral, a entrada Zagreu, no Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal (Lisboa, Difel: 2004). 8 Na escatologia grega primeira não opera a distinção cristã entre «bons» e «maus»: a todos estava reservado o Hades, lugar de sombras e de uma existência menor (leia-se o Canto XI da Odisseia, e a confissão de Aquiles nos versos 488-491). Parte do atractivo dos Mistérios residia na promessa de um outro destino para o fiel. 9 (compreensivelmente) a violar o segredo. O nosso conhecimento certo, porém, restringe-se ao que acontecia fora do santuário. Não é nosso objectivo descrever aqui em pormenor as celebrações, pelo que destacaremos apenas os momentos de que o mito do hino faz eco. Tal como a deusa [195-98], os iniciados, no rito de purificação (não era admitido ninguém nos Mistérios que tivesse cometido homicídio – e que não soubesse grego), sentavam-se numa cadeira coberta com a pele de uma ovelha, de cabeça velada. Sabemos que as tochas com que Deméter percorreu a terra em busca da filha [48] tinham um lugar nesta cerimónia. No cortejo de Atenas para Elêusis, ocorria troca de insultos e ditos obscenos entre os participantes. Trata-se de um ritual apotropaico de fundo agrário, associado a Iambe [202-205], figura epónima do iambo, o metro grego da poesia satírica. À chegada a Elêusis, os mysthai, que, com(o) Deméter [49-50], se abstinham do alimento durante esse dia, bebiam o kykeôn [κυκεών], uma bebida feita de cevada, água e poejo [208-211]. Todos estes paralelos entre o ritual dos Mistérios e o hino fazem muitos supor que o poema teria sido composto para as Eleusínias, o festival associado aos Mistérios. Outros classicistas, porém, sustentam que foi apresentado no festival em honra de Demofoonte a que se alude nos versos 265-7. Indicador da antiguidade do hino é o facto de não se mencionar Iaco, a divindade dionisíaca (porvezes identificada com o próprio deus) invocada pelos iniciados na procissão para Elêusis, figura atestada a partir do século v a.C. Triptólemo e Eumolpo9, personagens centrais da mitologia eleusina clássica, são, no poema, figuras marginais, apesar de primeiros iniciados e sacerdotes dos Mistérios [474-7]. O papel menor de Triptólemo, em particular, ele que viria a tornar-se um dos principais heróis atenienses, merecedor de um culto próprio em Elêusis (o seu mito começa a desenvolver-se a partir do terceiro quartel do século vi a.C.), sugere que o hino é anterior ao surto de interesse ateniense pelos Mistérios, no tempo dos Pisístratos (546-510 a.C.).10 Outros autores, com base no mesmo argumento, defendem que o hino antecede a anexação de Elêusis por Atenas, que querem reportar ao final do século sétimo. É, porém, discutível se o Anschluss se deu nessa altura: o sinecismo é provavelmente muito anterior e o hino só não refere Atenas por se reportar a um tempo mítico pré-Teseu (o herói lendário que unificou a Ática, acontecimento conservado apenas na memória estórica, o que denuncia a sua antiguidade). Têm também sido avançados, na tentativa de fixar a data do hino, argumentos de ordem arqueológica (na primeira metade do século vi a.C. o santuário foi ampliado), com base nas 9 Triptólemo teria aprendido de Deméter a arte da agricultura e ensinado esta aos Gregos. Eumolpo dava o nome à família sacerdotal mais importante do santuário, os Eumólpidas, de onde era escolhido o hierofanta, que proclamava os mistérios. 10 Num contexto pan-helénico, a figura de Triptólemo era instrumental na propaganda ateniense: Isócrates, célebre orador do século v-iv a.C., no Panegírico 28-29, dirá que a agricultura (junto com os Mistérios) é precisamente um dos principais dons que a Hélade deve à Ática. 10 indicações que Deméter fornece para a construção do templo [270 e ss.], mas os resultados são contraditórios. De maneira geral, ainda que divergindo nas razões que alegam, os comentadores tendem a colocar de forma quase unânime o hino entre 650 e 550 a.C., sendo que a análise linguística parece favorecer uma data mais antiga. Pelo tema, a grande maioria dos estudiosos defende uma origem ática para o poema, o que concorda com os resultados das investigações de Janko, que filia o hino na tradição beócia, na linha da poesia de Hesíodo, reconhecendo, porém, as suas particularidades, que atribui a uma possível escola ática [1982: 182-3]. O poema, riquíssimo do ponto de vista literário (por isso objecto de leituras de escola: veja-se a exegese feminista de Foley11 ou a abordagem de Arthur12 pelo filtro da psicanálise), levanta problemas também a esse nível, devido a certas incoerências na narrativa, como o facto de a primeira referência aos ritos ser em 273 mas a instituição dos Mistérios só acontecer em 474. Os críticos no século xix chegaram a postular a existência de vários autores, mas hoje poucos colocam em questão a unidade do poema, o que não significa que não seja possível identificar (mas não destrinçar) dois temas centrais, autónomos, reunidos pelo poeta: o Rapto de Perséfone e a Fundação dos Mistérios. Càssola chegou a propor uma tese que nos parece sobremaneira improvável: que o autor não conhecia os Mistérios, mas apenas tinha ouvido falar deles, e recolheu num hino todo o material de que dispunha, sem se preocupar excessivamente com a coerência do produto final [34].13 Outros autores argumentam que os destinatários do hino, ao contrário do leitor moderno, não precisavam de saber a motivação das acções da deusa, apenas os resultados: «Demeter would cease to be Demeter if she had to explain herself to Wilamowitz»14. O argumento não colhe: é passar um atestado de menoridade aos ouvintes primeiros de uma das obras maiores da Grécia Arcaica. Não se confunda a criatividade do poeta com incompetência. O hino, de facto, pode deixar perplexo o leitor mais acomodado. Em pontos importantes, não coincide com a versão regular do mito: o rapto e regresso de Perséfone não influencia o ritmo das estações (já no verso 54 Deméter é chamada ôrêfóre [ὡρηφόρε], aquela que traz as estações) e os Mistérios não são instituídos como recompensa aos habitantes de Elêusis pelas informações que estes forneceram sobre o paradeiro de Perséfone. Tais divergências em relação à tradição (pressupondo que esta não é posterior) são propositadas: Clay, por 11 Helene Foley (19933), The Homeric Hymn to Demeter. Princeton: Princeton University Press. 12 Marylin Arthur (1977), «Politics and Pomegranates: an interpretation of the Homeric Hymn to Demeter». Arethusa 10: 7-47. 13 Vide também K. Clinton (1986), «The Author of the Homeric Hymn to Demeter». Opuscula Atheniensia 16: 43-49. 14 Parker 1991: 11. Também Foley: «Oral narratives are often more interested in results than motives: that is, Demeter goes to earth simply because her cult is there and the poem aims to explain its origin» [1993: 101]. 11 exemplo, cuja obra15 sobre os grandes hinos é de leitura essencial, apresenta uma interpretação coerente e fecunda do hino. Se dúvidas restassem da arte do poeta, veja-se a forma como este trabalha o mito em torno do motivo tradicional da ira do herói16, segundo o mesmo padrão da Ilíada (importa reler o Canto IX, em particular): a desonra (a perda da filha) provoca a ira (materializada no afastamento do Olimpo). A retirada do herói causa a devastação (a fome). São-lhe então enviadas embaixadas [314-330], para o ganhar de novo para a causa do poder, em vão. Satisfeitas enfim as suas exigências, o herói acede e regressa.17 O maior testemunho, contudo, em favor do hino é a influência que este exerceu: o Hino à Terra Mãe parece copiá-lo, a tempos, e os poetas helenísticos demonstram familiariedade com ele (pense-se, a título de exemplo, em como uma das secções mais contestadas, a de Demofoonte, inspirou precisamente o episódio semelhante, mas bem mais célebre, da tentativa de Tétis de imortalizar Aquiles nas Argonáuticas [4.869 e ss.] de Apolónio de Rodes). HINO A APOLO. O Hino a Apolo é, muito provavelmente, o mais discutido de todos. Antes da descoberta do manuscrito M [§6], era o que abria a colecção e já os Antigos o tinham em especial consideração: é o hino mais citado e o primeiro a que encontramos referência na literatura [§1]. A polémica moderna em torno do poema começou em 1782 com David Ruhnken, que defendeu que o que nos chegou como um só texto esconde, na realidade, dois hinos, um a Apolo Délio (até 178) e outro a Apolo Pítico. A comunidade académica permanece desde então dividida entre unitaristas e analistas, havendo bons argumentos em defesa de ambas as posições. Os analistas afirmam que os versos 177-8 em nada divergem da típica fórmula de despedida do deus com que tantos outros hinos se encerram [§3] e aduzem em seu favor o testemunho de Tucídides, que dá a entender ser esse o final do poema (tal interpretação, porém, assenta na tradução de uma pequena palavra do texto do historiador, cujo sentido não é claro). Os unitaristas, por sua vez, sublinham o significado literal dos versos em questão. A seu ver, o poeta despede-se apenas das raparigas de Delos (todo o elogio a estas não seria mais que um excurso), não do deus. Os analistas invocam ainda argumentos geográficos e linguísticos em defesa da sua causa; os unitaristas, como forma de resposta, concentram-se no todo literário que o texto constitui, mostrando a 15 Jenny Clay (20062), The Politics of Olympus. Londres: Bristol Classical Press. 16 Um poema órfico decalcava mesmo o incipit da Ilíada: «a ira, canta, deusa, deDeméter do fruto em-luz» [Orphicorum Fragmenta 48]. 17 Os cinco momentos foram identificados por Robert Nickel (2003), «The Wrath of Demeter: Story Pattern in the Hymn to Demeter». Quaderni Urbinati di Cultura Classica 73.1: 67. 12 unidade entre as suas duas partes.18 Entre os analistas, por sua vez, há várias correntes. Ruhnken considerava que estávamos perante dois hinos autónomos justapostos, tese que hoje poucos subscrevem (é quase unânime que o início do Hino Pítico foi eliminado). Wilamowitz defendeu que o Hino Pítico seria uma continuação consciente do Hino Délio. Pelo contrário, West e Burkert, dois dos nomes maiores da filologia clássica no nosso século, são da opinião de que o Pítico é o original e o outro um apêndice. A maioria dos críticos concorda, porém, que, se o hino amalga dois poemas, o segundo foi composto em diálogo com o primeiro (cada um adapta depois o argumento conforme considere o Délio ou o Pítico anterior). Há também divisões entre os analistas em relação à integridade da cada uma das partes: vários autores têm apontado possíveis interpolações, sendo o caso mais discutido o episódio de Tífon [305-54]. A estrutura do hino continua a desafiar os classicistas: não há sequer consenso entre os analistas em relação ao verso que marca o final do Hino Délio. Esta não é, porém, a única controvérsia a entreter os estudiosos. O debate em torno da data do hino é igualmente aceso. Há quem considere o Hino Délio o mais antigo da colecção, do início do século vii a.C. ou mesmo anterior. No Certame entre Homero e Hesíodo, texto anónimo que recicla, de acordo com Nietzsche e West [2003: 298], o Museion (O Templo das Musas) de Alcidamante, professor de retórica do século iv a.C., conta-se que o poema teria sido depositado no templo de Ártemis em Delos. O expectável seria que a tabuinha com o hino tivesse sido guardada no templo do deus, mas esse é posterior ao da sua irmã. O facto de o poema ter sido conservado neste último, o único na ilha em tempos mais recuados, parece atestar a grande antiguidade da composição, na opinião de alguns classicistas. A forma como Apolo é retratado no verso 67, como atásthalos [ἀτάσθαλος] (implacável, nesta tradução), palavra de uma violência que desconcerta os comentadores, e o quadro inicial, em que a sua entrada no Olimpo (ou a primeira ou a habitual: o texto não é claro) inspira o medo nos outros deuses, levam alguns estudiosos a considerar que estamos perante os ecos de um estádio primeiro, mais arcaico, da figura do deus, e depois esquecido, com a consagração de Apolo como o deus da medida e da ordem (o Apolo clássico, ou nietzschiano). Esta análise mitológica parece corroborar a data recuada que a maioria dos comentadores reserva para o Hino Délio. O hino, porém, parece pressupor que Apolo tem um templo em Delos, o que, como vimos acima, só sucede num período mais tardio (540/30 a.C.). Já a chamada suite pítica é quase unanimemente tida como obra do século vi a.C. As palavras ominosas do oráculo final de Apolo [540-3] têm sido lidas por muitos como uma referência à Primeira Guerra Sagrada (595-585 a.C.), em que Crisa, que detinha o controlo do templo e abusava dessa prerrogativa, foi derrotada e destruída pelas cidades da Anfictionia de Delfos (uma das primeiras 18 Para uma boa leitura unitarista do hino vide Jenny Clay, op. cit. Para uma interpretação na mesma linha, vide também Andrew Miller (1986), From Delos to Delphi. Leida: Brill. 13 guerras biológicas de que temos registo). Estaríamos perante uma profecia ex eventu, tese que, porém, nem todos os estudiosos subscrevem. Por causa do conselho de Telfusa em 262-66, há quem defenda que o poema foi composto antes do início dos novos Jogos Píticos, instituídos em 582 a.C., depois da expedição vitoriosa contra Crisa, uma vez que estes incluíam corridas de carros. Alguns contestam este raciocínio, pois o hipódromo encontrava-se distante o suficiente do templo para não perturbar o deus. West, aliás, sugere que foi precisamente quando o festival foi renovado pela Anfictionia que o hino foi apresentado [2003: 10]. Certos autores chamam a atenção para o facto de no verso 296 se falar de um templo de pedra, que só se encontra atestado a partir de meados do século vii a.C., o que nos forneceria um terminus post quem. Não deve ser aceite, porém, a data de 548 a.C. como terminus ante quem, por o templo ter ardido nesse ano. Como vários comentadores sublinham, diz-se do templo que terá fama eterna [299], não que ele mesmo durará sempre. Para o texto como ele nos chegou – uma unidade, melhor ou pior conseguida, que louva Apolo Délio e Pítico – é geralmente aceite a sugestão de datação de Burkert e Janko19, que chegaram à mesma conclusão de forma independente. O hino, na sua presente forma, terá sido apresentado em 532 a.C., nos jogos Délio-Píticos organizados por Polícrates, tirano de Samos, após a conquista de Reneia, pequena ilha junto a Delos. É o único festival de que temos registo em que o deus foi celebrado na sua associação com os dois locais que lhe eram mais santos, Delos e Delfos, circunstância que teria inspirado o poeta, talvez Cineto de Quios. O escólio da segunda Nemeia de Píndaro atribui-lhe a composição do hino, mas a fiabilidade do testemunho continua a ser debatida. O escoliasta afirma, citando Hipóstrato, historiado siciliano, que foi este Cineto quem primeiro recitou os poemas de Homero em Siracusa, em 504/1 a.C.20 Em 1957 foi descoberto em Gela, na Sicília, um pedestal, provavelmente do século vi a.C, de uma estátua de um Cineto. O nome é algo raro, pelo que não é impossível que se trate do nosso poeta, dada até a proximidade geográfica entre Gela e Siracusa. De acordo com o escólio (mas as interpretações divergem), Cineto seria um dos Homéridas, que, como sabemos [§2], foram instrumentais na criação da lenda de Homero (os versos 169-173 19 Walter Burkert (1979), «Kynaithos, Polycrates, and the Homeric Hymn to Apollo» in Walter Burkert (2001), Kleine Schriften I. Homerica. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht: 189-197. Richard Janko (1982), Homer, Hesiod and the Hymns. Cambridge: Cambridge University Press: 112-3. 20 Esta informação não deve ser aceite prima facie e exige um esclarecimento. Os poemas homéricos já eram conhecidos antes na Sicília: Estesícoro (c. 630-555 a.C.) é profundamente influenciado por Homero. Vários autores têm por isso procurado explicar a afirmação de Hipóstrato. Para West [1975: 166], Cineto terá sido o primeiro vencedor registado de uma competição rapsódica. Burkert, no artigo citado supra, explica o «primeiro» do texto de Hipóstrato no âmbito do movimento de recuperação (ou construção) do legado homérico a que então se estava a assistir. Também Platão, no Hiparco [228b], diz que foi este tirano de Atenas (527-514 a.C., poucos anos depois da data aqui discutida) quem «primeiro» introduziu os poemas homéricos na cidade. 14 reforçam o mito do poeta cego e consolidam o seu estatuto de clássico, cantor insuperado) e na difusão da sua poesia (por isso encontramos Cineto em Siracusa, reavivando o legado do Poeta na ilha). Se Cineto compôs alguma das duas secções em que os analistas dividem o hino, é algo impossível de saber, porque o escoliasta, ao contrário de Tucídides, não cita nenhum verso que nos permita identificar qual o hino a que se refere. Podemos, porém, com alguma probabilidade, afirmar que terá sido ele a apresentar em Delos, em 532 a.C., o hino na sua forma actual. HINO A HERMES. O Hino a Hermes é um dos favoritos de muitos dos leitores da colecção, pelo seu tom coloquial e cómico, que prenuncia a comédia ática. Reconhecido universalmentecomo o mais tardio dos hinos maiores (exceptuando o oitavo, que integra a recolha por erro, e o a Pã, influenciado pelo presente), é normalmente datado do final do século vi a.C ou inícios do v a.C. Do ponto de vista linguístico, há a destacar a ocorrência de vários vocábulos não-homéricos,21 o que denuncia o afastamento do poeta em relação à tradição arcaica. Outros elementos parecem confirmar a data de composição apontada: segundo Görgemanns22, na sua defesa face a Apolo, Hermes utiliza o argumento da probabilidade [265-273] teorizado por Córax e Tísias, os pais fundadores da retórica grega, ambos da primeira metade do século v a.C. O autor defende também que a intervenção do pequeno deus frente ao seu pai contém todas as partes em que os dois retóricos dividiam o bom discurso de defesa. O conhecimento que o poeta demonstra das novas técnicas de argumentação forneceria assim um terminus post quem. O mesmo estudioso encontra ainda ao longo de todo o hino ecos da teorização musical do início do século v a.C., estabelecendo relações com passos de Píndaro. A lira de Hermes dá- nos pelo menos a certeza de que o hino é posterior à segunda metade ao século vii a.C.: a lira de sete cordas, a que o hino alude, é uma invenção de Terpandro, poeta da primeira metade do século. Humbert, o editor francês dos Hinos, sugere que a riqueza de Delfos que Hermes cobiça [178- 181] deriva fundamentalmente das dádivas de Creso, o famoso rei da Lídia (560-547 a.C.), baseando nisso a sua datação do hino (último terço do século vi a.C.) [115]. Janko serve-se também de Creso para corroborar a data [1982: 141]. A seu ver, os versos 541-549 são uma tentativa de justificação do oráculo de Delfos pela sua falha em prever a derrota de Creso face aos Persas: a alusão aos «presentes» deixaria claro o destinatário do aviso. Outros autores, defensores de uma origem ática do poema, encontraram 21 Isto em nada colide com a forte influência da Odisseia que o poema revela. Os paralelos com o poema homérico ajudam a elucidar alguns dos passos mais difíceis do Hino a Hermes. Sobre o assunto, vide Susan C. Shelmerdine (1986), «Odyssean Allusion in the Fourth Homeric Hymn». Transactions of the American Philological Association 116: 49-63. 22 Herwig Görgemanns, «Rhetorik und Poetik im homerischen Hermeshymnus» in Görgemanns & Schmidt (eds.) (1976), Studien Zum Antiken Epos. Meisenheim am Glan: Anton Hain: 113-128. 15 no hino reflexos das lutas sociais pós-Pisístratos (510 a.C. em diante), com Apolo a representar a aristocracia e Hermes, o deus do comércio, a burguesia ascendente, sendo o hino o símbolo da sua reconciliação (tese de Gräfe), ou referências ao culto aos doze deuses instituído em 522/21 a.C. (tese de Brown), ignorando o facto de este já existir anteriormente em Olímpia, onde, segundo alguns autores, o hino, de natureza etiológica, teria sido primeiro apresentado (versos como 125-126 aludiriam a formações rochosas visíveis no local do sacrifício). Esta, de facto, é a tese defendida por West [2003: 14] e Burkert. Este último descreve o trajecto de Hermes no hino como «dall’Olimpo, verso Olimpia» e chama a atenção para o facto de Hermes partilhar aí um altar com o seu irmão Apolo, o que explicaria a proeminência deste no poema.23 Outros comentadores são de opinião diversa (o exacto significado do sacrifício de Hermes, de resto, é um dos principais quebra-cabeças do poema). Há quem defenda24 que o hino foi composto para ser recitado nas Hermeias, festivais atléticos para os jovens, em honra de Hermes. O hino representaria miticamente a passagem da infância à idade adulta, assunto de interesse directo para os espectadores. Certos autores vão mais longe, afirmando que o hino descreve uma prática real, um ritual de transição que marca a entrada do jovem na comunidade dos adultos. Adele Haft, num artigo importante,25 procurou demonstrar como o roubo do gado no Hino a Hermes se processa segundo os moldes ainda hoje em vigor na ilha de Creta, onde a tradição foi preservada. Alguns estudiosos, entre eles Janko [1982: 149], sustentam que o hino foi apresentado em Delfos, muito com base no final [513 e ss.], em que a figura de Apolo assume o protagonismo e se afirma claramente a superioridade de Delfos sobre o misterioso oráculo das Donzelas-Abelhas de Hermes. Os defensores desta tese vêem a sua convicção reforçada pelas semelhanças do poema com o Hino a Apolo Pítico (se o aceitarmos como peça autónoma), tido, razoavelmente, por um produto de Delfos. Referem como pontos de contacto entre os dois hinos a proximidade à Odisseia, certas marcas linguísticas e a importância, sem razão aparente dentro da economia narrativa, de Onquesto (o que leva alguns a supôr que o poeta era da Beócia, mobilizando também argumentos linguísticos) no trajecto, parcialmente partilhado, dos dois deuses. Independentemente de se subscrever esta hipótese ou não, há que conceder a proximidade entre os dois hinos. Apolo, no seu hino, reclama para si, logo ao nascer, a lira, o arco e o oráculo [131-2]: Hermes, no nosso poema, oferece a lira a Apolo [496], há o perigo de lhe roubar o arco [515] e ainda 23 Walter Burkert (1984), «Sacrificio-Sacrilegio: Il “trickster” fondatore» in Walter Burkert (2001), Kleine Schriften I. Homerica. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht: 178-188. 24 Sarah Iles Johnson (2002), «Myth, Festival and Poet: The Homeric Hymn to Hermes and its Performative Context». Classical Philology 97.2: 109-132. 25 Adele Haft (1996), «The Mercurial Significance of Raiding: Baby Hermes and Animal Theft in Contemporary Crete». Arion 4.2: 27-48. 16 exige dele o dom da profecia [533]. Este último pedido levanta problemas particulares. É que, se é certo que o texto está, nalgumas partes, fortemente corrompido, faltando até vários versos, a verdade é que em nenhuma parte do hino Hermes pede a Apolo que partilhe com ele os seus dons oraculares, ao contrário do que o filho de Leto diz. Incoerências como esta (pense-se, também, na variação na descrição da gruta de Maia, que tanto é um antro quanto um quase-palácio com pátio central, inclusive) levaram os filólogos no século xix a esquartejar o hino, propondo múltipla autoria para explicar as contradições. Actualmente, tende-se a considerar o hino uma unidade. Só uma parte pode ainda ser, com legitimidade, questionada: precisamente o que se segue ao verso 512, onde se encontra o passo em discussão, estranho pelo papel central de Apolo nele e por toda a agenda que parece mover o poeta. Neste final encontra-se ainda a referência ao oráculo das Donzelas-Abelhas. A discussão sobre a identidade destas prossegue. Há quem sublinhe a associação corrente entre a poesia/profecia e a abelha (Píndaro chama à pitonisa «a abelha pítica», em P. 4.59-60), não encontrando no hino senão mais uma instância dessa metáfora (o mel fermentado podia ser a substância que induzia o transe da profetisa); outros procuram identificar estas misteriosas figuras com as Trias, as amas de Apolo, que haviam inventado a adivinhação por pedrinhas, respondendo a quem lhes oferecesse mel; outros ainda defendem que no oráculo de Hermes junto ao Parnaso um grupo de abelhas sagradas revelava o futuro, pela direcção do seu voo. Um dos inícios alternativos do Hino a Hermes (a saber: as primeiras palavras do Hino 18, que não é senão uma variação sobre o outro: eu canto Hermes: Hermên aeídô [Ἑρμῆν ἀείδω]) surge num lécito de c. 470 a.C., fornecendo um terminus ante quem em tudo compatível com as datações acima apresentadas. Os testemunhos iconográficos corroboram a data: a flauta de Pã, que Hermes inventa no final do Hino [511-12], apareceassociada ao deus de 580/70 a.C. em diante, mas com o virar do século começa a ser insistentemente colada ao deus-cabra da Arcádia (que lhe daria o nome). Vasos com Hermes acompanhando o gado são particularmente populares no mesmo período e há a destacar um de c. 530 a.C. que o mostra no berço, com os animais, Apolo e Maia. É importante referir, porém, que a história não é uma criação do autor do hino, ainda que este a tenha moldado para os seus fins próprios. Sabemos que Alceu escreveu um poema sobre o mesmo tema, do qual nos chegou a primeira estrofe [fr. 308(b) L-P]. West sugere que o hino seja uma evolução de um outro, mais primitivo, que Alceu conhecia e que o teria inspirado [2003: 14]. A história continuaria a gozar de grande sucesso, tendo estado na base de um drama satírico de Sófocles, os Ichneutai (algo como os que seguem as pistas, ou os detectives), do qual nos chegaram largos fragmentos. HINO A AFRODITE. O Hino a Afrodite é, dos grandes hinos, o mais bem-comportado, produto de um poeta inteligente e refinado. O texto não apresenta dificuldades de maior, tendo-nos chegado quase 17 incorrupto. A coerência e limpidez da acção fizeram com que nem no hipercrítico século xix abundassem as teses analistas: os filólogos severiores limitaram-se a expurgar do texto as várias digressões (como os pequenos hinos do proémio) que hoje, pelo contrário, são tidas, e com justiça, como próprias do estilo do poeta. A grande maioria dos autores tende a datá-lo do século vii a.C., o que faria dele o mais antigo dos hinos (a datação do seu único concorrente, o Hino a Apolo Délio, é como vimos, controversa), juízo que baseiam sobretudo em argumentos linguísticos: nenhum outro está tão próximo da linguagem homérica. Vinte versos são integralmente copiados de Homero, mais vários hemistíquios e outras expressões formulares. Não há, porém, uma subserviência cega ao modelo original: o poeta demonstra o seu talento nas pequenas alterações, por vezes significativas, que introduz nos versos que toma de empréstimo ou no uso que faz deles. O mesmo sucede, por exemplo, no pequeno hino a Hera [40-44]: em 42 o poeta utiliza a fórmula homérica «filha de Cronos de conselhos retorcidos», ignorando a primeira parte do verso da Ilíada: «e a mais velha filha de Cronos de conselhos retorcidos» [4.59]. Trata- se de uma omissão deliberada: em 22, no pequeno hino a Héstia [21-32], o poeta diz que a deusa é a mais velha, seguindo nesse pormenor a Teogonia de Hesíodo [454], cujo mito sobre Cronos aproveita para reconciliar as posições antagónicas de Homero e Hesíodo. Como o poeta explica [22-23], Héstia é simultaneamente a mais velha, por ter sido quem primeiro Reia deu à luz, e a mais nova, pois quando Zeus forçou o seu pai a vomitar os irmãos que antes tinha engolido, estes saíram de Cronos em ordem inversa: primeiro Hera (a imediatamente anterior a Zeus) e, por fim, Héstia, nesse sentido a mais nova. O trabalho teológico por detrás destes versos, primeiro estudado por Solmsen26, prova o carácter pós- homérico do poema. Janko, que reconhece a dívida do poeta para com a Teogonia, defende, porém, que o Hino influenciou os Trabalhos e Dias, de Hesíodo, fazendo dos dois autores contemporâneos [1982: 169]. Para este classicista, o hino teria sido composto c. 675-660 a.C. Apesar de haver estudiosos que subscrevem esta datação, colocando o hino na primeira metade do século vii a.C. (ou mesmo, mas são raros, nos finais do século anterior), a maioria tende a considerá- lo da segunda metade do século vii a.C., com o Hino a Deméter, claramente influenciado por este, fornecendo um terminus ante quem. A proximidade do hino com a poesia lésbia parece favorecer uma data mais tardia dentro do século vii a.C. O voto de virgindade de Héstia [26-29] lembra o de Ártemis num poema atribuído a Safo [44(a) V] ou a Alceu [304 L-P], os dois grandes poetas de Lesbos. A história de Titono, possivelmente uma invenção do poeta, nos moldes em que nos é apresentada (nem Homero nem Hesíodo conhecem o mito da imortalidade envenenada do amante de Aurora), é também mencionada por Safo [Pap. Köln 21351]. Em Safo ainda [fr. 96.6-11 L-P] encontramos o mesmo símile dos versos 89-90, em que a deusa coberta de jóias brilha «como a lua» (imagem que acusa influência 26 Friederich Solmsen (1960), «Zur Theologie im grossen Aphrodite-Hymnus». Hermes 88: 1-13. 18 oriental: vide infra). Não é estritamente necessário, em vista destes paralelos, postular empréstimos de uma parte a outra e procurar estabelecer qual tem precedência (o hino é obviamente anterior). É mais fácil supôr a existência de um corpus comum de poesia ao dispor de todos estes poetas, o que os aproxima cronologicamente.27 Apenas Freed e Bentman28 ousaram romper com a opinião generalizada ao defender que o hino datava do período alexandrino, argumentando com a sofisticação literária do texto, que, a seu ver, pressupõe uma audiência lida, capaz de admirar os jogos do poeta. A própria proximidade a Homero não seria um indicador de antiguidade mas o resultado de uma tentativa consciente de imitar a linguagem do Poeta (e daí o recurso a versos inteiros dos seus poemas). Os dois classicistas chamaram também a atenção para um conjunto de marcadores linguísticos próprios do período helenístico. Por fim, o estado incorrupto do texto apontaria para uma redacção escrita tardia. A sua tese radical não colheu adeptos, mas sublinha a riqueza de estilo e elevação literária do poema. Por outro lado, não é de todo improvável que o hino tenha sido composto com auxílio da escrita, o que, efectivamente, ajudaria a explicar o bom estado em que nos chegou ou o cuidado da sua composição. As proximidades (que são também linguísticas) acima registadas entre o hino e a poesia lésbia levam muitos a supôr como local de composição do poema a Ásia Menor. A referência em 113-6 ao bilinguismo (a primeira em toda a literatura ocidental) aponta na mesma direcção, uma nota realista que denuncia familiaridade com a região, rica em contactos entre gregos e bárbaros. O argumento mais popular e controverso a favor de tal origem prende-se, porém, com a profecia em 196-7, que levou muitos comentadores a suporem que o hino teria sido composto para uma casa real na Tróade, cujos monarcas se apresentavam como descendentes de Eneias (tese que remonta a Matthäi, no seu comentário aos Hinos em 1800). Esta passagem do hino é normalmente discutida em conjunto com outra da Ilíada [20.300-8], onde Posídon faz uma profecia muito semelhante. Wilamowitz, no seu Die Ilias und Homer (1916), defende que o autor do Canto XX da Ilíada e do hino são o mesmo; Jacoby vai mais longe e argumenta que a Ilíada como um todo e o hino foram compostos pelo mesmo poeta, tese recuperada por Reinhardt em 1956 (o Hino a Afrodite seria assim o único hino verdadeiramente homérico). Hoekstra, mais atento, chama a atenção para as diferenças entre a profecia da Ilíada e a do hino: a primeira aponta 27 De facto, «the tradition of the Hymns had close links with that of Lesbian lyric hymns» [Richardson 2010: 30]. Sabemos de fragmentos de hinos de Alceu que abordam os mesmos mitos narrados nos Hinos Homéricos a Dioniso [fr. 349 L-P], a Hermes [fr. 308(b) L-P] e aos Dióscuros [fr. 34 L-P]. West (vide supra) sugere, a propósito do Hino a Hermes que Alceu conhecia, tratar-se de uma versão mais antiga do Hino 4, ou a matéria-prima para este. Se alargarmos a hipótese e aceitarmos a existência de um conjunto de hinos mais antigos (base de inspiração de Alceu e dos poetas dos nossos hinos), não é de excluir que o Hino a Afrodite, em virtude da sua antiguidade, fizesse parte dessegrupo primeiro, perdido. A sua preservação excepcional ter-se-ia ficado a dever ao uso da escrita. 28 G. Freed & R. Bentman (1955), «The Homeric Hymn to Aphrodite». The Classical Journal 50.4: 153-159. 19 para uma casa real ainda reinante, a segunda limita-se a assegurar a continuação da linhagem de Eneias. No seu entender, o hino teria sido composto já depois de os patronos do poeta, a casa real dos Eneíadas, terem perdido o poder. O classicista, na esteira de Wilamowitz e outros, com base no testemunho de Estrabão [13.1.52- 3], localizava esta família real em Esquépsis (Kurşuntepe, na Turquia), que sabemos ter-se tornado uma oligarquia no século vi a.C. (o que explicaria a perda de poder da casa real, cujos príncipes, porém, não perderam o título de rei, à semelhança do arconte-dito-rei em Atenas). Um escólio ao passo da Ilíada aqui em discussão explica que alguns acreditavam que a casa real dos Eneíadas tinha sido expulsa aquando da colonização eólia da Tróade (finais do século viii a.C. ou inícios do vii). Peter Smith, porém, num importante artigo de 1981,29 analisou exaustivamente todas as provas a favor da existência de uma dinastia de Eneíades em Esquépsis e chegou à conclusão de que, na realidade, estas são muito débeis e a suposta casa real da cidade era fundamentalmente uma ficção útil dos classicistas, inferida a partir daquilo que era suposto explicar: as profecias nos dois poemas. De facto, Estrabão refere que Esquépsis era uma diarquia, em que um dos reis era descendente de Heitor: como, pois, explicar que o hino louve apenas uma das linhas reais? Na cidade os arqueólogos não encontraram qualquer vestígio de um culto a Afrodite ou a Eneias ou ao seu filho; pelo contrário: a divindade patrona da pólis era Atena, uma das que escapam ao poder da Afrodite, como o hino proclama [8-15]. Apesar de alguns comentadores terem abandonado a tese dos patronos Eneíadas depois do artigo de Smith, outros, igualmente respeitáveis, como Janko, Càssola, West ou Faulkner, mantêm ser razoável supor, a partir dos poemas, a existência de uma tal casa real (mas não em Esquépsis), tanto mais que a profecia da Ilíada é única (não há mais nenhuma do género em Homero). A colonização eólia da região da Tróade, onde reinaria essa dinastia, explicaria a partilha de um mesmo corpus poético pelo autor do hino, Alceu e Safo. Os motivos orientais na narrativa favorecem também uma localização nos limites da zona de influência grega, como a Ásia Menor. Dois poemas sumérios parecem ter inspirado alguns passos do hino. Num, que narra a descida de Ishtar ao Submundo, a deusa cobre-se de uma série de joías (existe uma coincidência notável com os itens de que Afrodite se reveste) que são depois retiradas uma a uma pelo guardião dos Infernos (cf. h. Aph. 161-165). Noutro texto sumério, a deusa Inanna, para seduzir o seu amado, Dumuzi, um pastor, toma banho, unge-se e decora-se com jóias que brilham «como a luz da lua» (cf. 89-90 para a expressão, Od. 3.464-8 para o padrão do banho e Il. 14.180-5 para as joías como instrumento de sedução). O motivo de que quem dorme com uma deusa está sujeito a um castigo divino (veja-se os receios de Anquises ao perceber a identidade da sua companheira de leito, em 188-190) 29 Peter Smith (1981), «Aineiadai as Patrons of Iliad XX and the Homeric Hymn to Aphrodite». Harvard Studies in Classical Philology 85: 17-58. Aqui encontrámos a história filológica das relações entre a profecia do Canto XX da Ilíada e o Hino a Afrodite, de Matthäi a Hoekstra, que acima resumimos. 20 encontra ecos no poema épico de Gilgamesh, em que este recusa deitar-se com Ishtar, relembrado do destino fatal dos antigos amantes da deusa (os Poemas Homéricos apontam no mesmo sentido: Hermes avisa Ulisses para a possibilidade de Circe lhe retirar a sua virilidade em Od. 10.301 e Calipso lamenta os amantes das deusas, castigados pelos deuses, em Od. 5.118-29). A antiguidade do hino ajuda a perceber o significante peso ainda exercido pelas mitologias do Próximo Oriente na narrativa. Importa, por fim, chamar a atenção para algumas características deste hino que o separam dos restantes da colecção. Destaque para o proémio excepcionalmente longo [1-44] e irregular: o poeta promete cantar não a deusa mas as suas obras e, depois de referir o seu poder, de imediato lista, e com alguma atenção individual, três divindades que lhe escapam. O hino, aliás, é diferente na medida em que não louva necessariamente a deusa: o episódio narrado é até embaraçante para a própria (note-se, porém, que já na Ilíada a deusa é de algum modo menorizada quando entra na batalha e é vencida nos Cantos II, V e XXI; também na Odisseia, o Canto de Demódoco [8.266 e ss.] retrata a deusa numa situação constrangedora). O hino, ao contrário de outros, também não explica a instituição de nenhum culto. Os versos 100-2 foram por vezes lidos como tendo esse sentido, mas hoje essa interpretação foi justificadamente abandonada. Impõe-se assim a pergunta pelo objectivo último do hino. Os que recusam reduzi-lo a um elogio de uma qualquer casa real da Tróade, consideram que o propósito fundamental é explicar por que razão no presente, ao contrário do que sucedia nos tempos antigos, não existem mais heróis, filhos de deuses e mortais: depois da humilhação de Afrodite por Zeus, esta não mais ousaria instigar nos imortais paixões humanas.30 Um último mistério suscitado pelo Hino (vem à memória o fim do Hino a Apolo) tem que ver com o aviso final de Afrodite [282-290]. Há comentadores que, apelando para 194-195, recusam a ideia de que este se tenha vindo a concretizar. Sabemos, porém, que em séculos posteriores se consideraria a ameaça cumprida: o nosso primeiro testemunho é um fragmento do Laocoonte de Sófocles [fr. 373 Radt] e é-nos dito que o tragediógrafo se baseou na Pequena Ilíada, um poema do Ciclo Épico (a tradição de poesia épica que se desenvolveu em torno da matéria troiana e tebana). Anquises teria ficado cego ou coxo como consequência de ter revelado a verdadeira mãe do filho. Se este era o destino reservado pelo poeta para o personagem masculino do hino, é algo que nunca saberemos com certeza, mas, pessoalmente, cremos provável. HINO MENOR A DIONISO. O episódio narrado neste hino foi representado na célebre taça ática de figuras negras de Exéquias, de c. 530 a.C., em que Dioniso surge reclinado junto ao mastro de um navio, por onde sobe o pé de uma videira que espraia os seus ramos, carregados de cachos, pelo topo da taça. 30 Van Der Ben (1986), «Hymn to Aphrodite 36-291. Notes on the Pars Epica of the Homeric Hymn to Aphrodite». Mnemosyne 39.1-2: 1-41; e Clay 2006: 165-170. 21 Em torno do barco, no mar, nadam sete golfinhos. Há quem creia que Exéquias foi influenciado pelo hino; outros, pelo contrário, defendem o movimento inverso. West julga-os grosso modo contemporâneos, considerando o hino pouco anterior a Píndaro (c. 522-438), que narra também o mito [fr. 236 Snell] [2003: 16]. Há pouca unanimidade na matéria, ao que acresce o facto de o hino ser pequeno e escasso em indicações. Allen e Sikes, os responsáveis pela primeira edição inglesa dos Hinos, fazem remontar o poema ao século vi ou mesmo vii a.C. [230] (esta última data, ainda que tentativamente, é apoiada por alguns comentadores, entre eles Janko [1982: 184]); outros, como Humbert, situam-no no final do século v a.C. ou inícios do seguinte, no período em que o estilo épico estava já esgotado, longe do fulgor de outrora (Humbert não tem o hino em grande conta) [170]; outros ainda, como W. Gemoll, tomam-no como um produto do período alexandrino, com base nalguns traçoslinguísticos [apud Allen & Sikes loc. cit.]. Há quem tenha associado o hino à Ática. Otto Crusius defendia [ibid.] que este fora composto para as festas dionisíacas de Bráuron, em honra de alguns jovens raptados por piratas tirrenos, cuja lenda é narrada em Heródoto [6.137-140]; outros ligaram o hino às Antestérias, festival também em honra de Dioniso, em Atenas, sublinhando o papel da cidade no combate à pirataria no Egeu. O tema marítimo, contudo, tem levado a maioria dos comentadores a pensarem na Iónia como zona de origem do poema. Versões tardias do mito dizem que Dioniso parte de Ícaro ou Quios e que a sua meta é Naxos, todas ilhas do Egeu. A região era aliás afectada por frequentes ataques de piratas. Os Tirrenos referidos no hino foram associados por muitos a Lemnos e a Imbros (outras ilhas do Egeu, numa aparente corroboração da opinião estabelecida sobre a origem do poema). Cecilia Nobili, em artigo recente e convincente,31 chama porém a atenção para o facto de essa associação ser tardia: todas as fontes em que se baseia tal identificação são do século iv a.C. ou posteriores. Na época clássica, os Tirrenos são os Etruscos. Estes mantinham relações comerciais privilegiadas com Corinto, cidade de onde a autora considera originário o hino, sublinhando o rico imaginário dionisíaco dessa pólis, em cujos mitos a ligação entre Dioniso e os golfinhos é corrente. Particularmente importante para a classicista é o mito de Árion, o criador do ditirambo (o estilo de poesia dionisíaco por excelência), que coincide, em muitos pontos, com o narrado no hino (e não era raro, na Antiguidade, fabricar a biografia dos poetas a partir dos seus poemas: teria Árion cantado o rapto de Dioniso?). O poeta trabalhou para Periandro, tirano de Corinto na transição do século vii para o vi a.C. responsável pelo alargamento do culto do deus na cidade: assim, o período do seu reinado fornece uma data verosímil para a composição do hino. A natureza desta introdução impede-nos uma exposição detalhada dos argumentos de Nobili, mas reenviamos o leitor curioso para o artigo da autora, 31 Cecilia Nobili (2009), «L’Inno Omerico a Dioniso (Hymn. Hom. VII) e Corinto». ACME 62.3: 3-35. 22 que vai ao ponto de, com base na análise de outros mitos e das rotas comerciais entre Corinto e a Etrúria, localizar o cenário da acção do hino: o Cabo Málea, no fundo do Peloponeso. HINO A ARES. O Hino a Ares claramente não pertence à colecção original dos Hinos Homéricos: até o leitor em tradução reconhecerá a diferença entre o poema e o resto da antologia. É unanimemente aceite que se trata do produto de uma época tardia: Ares nunca foi um deus muito querido entre os Gregos (nenhuma cidade o adoptou como patrono: foi necessário esperar por Roma para Marte ser reabilitado como deus maior) e o poeta faz dele uma divindade benévola, longe do Ares carniceiro, pai do Medo e do Terror, da mentalidade tradicional helénica. O facto de o deus ser identificado com o planeta homónimo [6-8] aponta também para uma data tardia, certamente posterior ao século i a.C. Duas questões se impõem, portanto: primeiro, saber, se possível, quem o seu verdadeiro autor; segundo, explicar por que razão acabou incluído na nossa colecção. As respostas confundem-se: não é, de facto, possível averiguar o poeta por detrás do hino sem ter em consideração a história da transmissão do texto. Sabemos que Ω, o arquétipo de todos os manuscritos que nos chegaram [§6], continha, para lá dos Hinos Homéricos, os Hinos de Orfeu, Calímaco e Proclo. Os comentadores, na sua generalidade, têm-se dividido em dois campos: os que defendem que o Hino a Ares é uma produção órfica e os que sustentam que Proclo é o seu autor. Humbert, na senda de Ruhnken, defende a primeira hipótese, chamando a atenção para o paradoxo de pedir a paz ao deus da guerra ou o controle de si mesmo ao deus por excelência impetuoso: estes paradoxos, diz, são típicos dos poemas órficos (compare-se, por exemplo, o Hino Órfico a Ares) [180]. O hino, a seu ver, teria sido introduzido por um compilador para incluir um hino a Ares, em falta na colecção. Outra possibilidade, na sua opinião, é que, na transmissão manuscrita, tenha havido um exemplar que começava com os Hinos Órficos e o a Ares (que seria o último) teria sido por engano anexado aos Homéricos, que se seguiriam no manuscrito. A opinião predominante, porém, é a de que o hino deve ser associado, de alguma forma, a Proclo, filósofo neoplatónico do século v. Matthäi e Pfeiffer [apud Càssola: 297] consideram-no anterior ao filósofo (Gelzer32 sugeriu Porfírio e o seu círculo), outros obra de um imitador menor. West33 foi o primeiro a propôr ser Proclo o autor do hino. Efectivamente, certos traços do poema parecem não se coadunar com a sua inclusão na colecção dos Hinos Órficos: estes poemas são textos litúrgicos, para serem recitados em cerimónias (o título indica sempre, por exemplo, que aroma deve ser oferendado à divindade), não preces pessoais, como os Hinos de Proclo e o Hino a Ares. A colecção órfica inclui já um outro Hino a Ares e, fora Dioniso, deus especial e ainda assim invocado sempre com nomes diferentes, 32 Thomas Gelzer (1987), «Bemerkungen zum Homerischen Ares-Hymnus (Hom. Hy. 8)». Museum Helveticum 44: 150-167. 33 M. L. West (1970), «The Eighth Homeric Hymn and Proclus». The Classical Quarterly 20.2: 300-4. 23 não há repetição de dedicatórias. Para além do mais, é duvidoso que os órficos estivessem familiarizados com a identificação entre planetas e deuses que, vimos acima, trai a idade tardia do hino. Parece mais razoável supor, seguindo West, que Proclo é o autor do hino. West explica a sua inclusão na colecção dos Hinos Homéricos em termos semelhantes a Humbert: no manuscrito primeiro, os Hinos de Proclo precederiam imediatamente os Homéricos (como de resto sucede em vários dos códices que nos chegaram). O original ter-se-ia começado a desfragmentar e, quando reconstruído, o poema do filósofo acabaria incluído na nossa antologia. West faz uma descrição pormenorizada e, ainda que hipotética, particularmente convincente do processo, a partir das adivinhadas características físicas de Ω, o que dá ao seu argumento uma força totalmente ausente do de Humbert, mera especulação sem sequer grandes bases reais (nenhum dos manuscritos que nos chegou tem os Hinos Órficos antes dos Homéricos, por exemplo). HINO A PÃ. O Hino a Pã é o último hino de extensão considerável na colecção. Pã é uma divindade que só tardiamente é acolhida no cânone pan-helénico. Originário da Arcádia, o deus é introduzido em Atenas depois da batalha de Maratona, em 490 a.C. [Heródoto 6.105], e ao longo do século v a.C. o seu culto vai-se difundindo pela Hélade. Por essa razão, a maioria dos comentadores tende a datar o hino desse século (Janko é mais específico, situando-o na primeira metade [1982: 185]), mesmo se não é possível excluir a possibilidade de ter sido composto na Arcádia para uma festividade local em honra do deus e, nesse caso, pode bem ser anterior, mas não muito: o hino parece ter sido influenciado pelo Hino a Hermes, o que nos fornece um terminus post quem (há ainda quem suponha inspiração do Hino a Ártemis 27). Alguns críticos preferem uma data mais tardia, salientando a atenção dada à natureza e a sua descrição cuidada, incomum no género épico. Aproximam por isso o hino da poesia bucólica alexandrina: Humbert sugere mesmo o Egipto como local de redacção e um poeta da geração de Teócrito e Calímaco (século iii a.C) como possível autor [209]. O raciocínio, porém, revela desatenção. Na épica e lírica arcaicas encontramos igualmente o gostopela natureza: lembremos as descrições, na Odisseia, dos jardins de Calipso ou da Esquéria. A data tradicional parece-nos, por isso, a mais sensata. Quanto ao local de composição, não é de excluir a possibilidade de uma origem ática, devido a certos aticismos,34 mas o argumento não nos parece conclusivo. OUTROS HINOS. Os outros hinos da colecção são demasiado curtos para que possamos dizer algo de concreto sobre eles. Limitamo-nos, por isso, a algumas breves considerações, sendo que seguimos, na 34 Ana Seiça Carvalho (2007), «Hino Homérico a Pã: tradução e recolha de algumas características linguísticas». Boletim de Estudos Clássicos 48: 19-35. 24 maioria, sugestões de West, na sua edição dos Hinos. O Hino 6, a Afrodite, é muito provavelmente de origem cípria: o poeta dá grande ênfase ao poder da deusa na ilha e a decoração de Afrodite lembra certos passos dos Cypria [fr. 5 e 6 West], poema épico originário do Chipre. É possível que o hino tenha sido apresentado em Pafos (hoje Kouklia), nos festivais associados ao santuário local de Afrodite, o principal centro de culto da deusa, a que já a Odisseia alude [8.362-3]. O Hino 9, a Ártemis, terá sido apresentado em Claros, local de um importante oráculo de Apolo, sob o controlo de Colofonte. Wilamowitz interpretou a viagem da deusa de Esmirna para Claros como um sinal de prioridade desta última cidade em relação à primeira, o que forneceria um terminus post quem para o poema: 688 a.C., data em que Esmirna é conquistada por Colofonte [Càssola: 303]. Se esta é uma hipótese arriscada, assente numa leitura política do trajecto da deusa, não sobram, porém, dúvidas de que o poema é anterior ao século sexto: Esmirna foi destruída c. 600 a.C. pelo rei lídio Aliates II, pai de Creso, e só refloresceria com Alexandre, que a reconstruiu. O Hino 10, de novo a Afrodite, deve ter sido composto para recitação em Salamina, a cidade cípria destacada no poema. O Hino 12, a Hera, poderá ter sido apresentado em Samos, o mais importante centro de culto da deusa na época clássica. O Hino 14 é dedicado à Mãe dos Deuses, figura identificada pelos comentadores com Reia (nalguns manuscritos surge mesmo o nome da mulher de Cronos), Gaia (chamada «mãe dos deuses» no Hino 30), Cibele (divindade oriental importada, associada à natureza selvagem) ou mesmo Deméter. O Hino 15, a Héracles, não antecede o século vi a.C., pois só a partir de então o herói conquista o estatuto divino (provavelmente uma inovação ática). É possível que o poema tenha sido apresentado no festival quadrienal de Maratona, em honra do filho de Zeus. No Hino 16 não é claro se o poeta considera Asclépio um herói mortal ou um deus. Se um deus, o hino é do século v a.C. ou posterior, pois só então se começa a difundir o culto deste filho de Apolo, que viria depois a conhecer grande sucesso. O poema, porém, não deverá ter sido composto para o festival de Epidauro, onde ficava o principal santuário do deus. Càssola chama a atenção para o facto de o poeta não aceitar a tese de que Asclépio seria oriundo das vizinhanças da cidade [344]. Caso o hino se dirija a Asclépio como herói apenas, nada impede que seja anterior: Humbert, de facto, data-o do século vi a.C., com base em frágeis critérios linguísticos [205]. O Hino 20, a Hefesto, data provavelmente da segunda metade do século v a.C.: a ideia do progresso da humanidade é tipicamente sofista, associada particularmente a Protágoras (veja-se o diálogo homónimo de Platão). O hino deve ser originário de Atenas: não só a cidade era, então, o centro do movimento sofístico, como a associação entre Atena e Hefesto é, ela própria, muito ateniense. O Hino 21, a Apolo, é, de acordo com Humbert [78], anterior às Aves (414 a.C.), de Aristófanes, comédia que nos versos 771-2 parodia os dois primeiros do hino (na mesma peça, em 575, alude-se ao Hino a Apolo 114). O Hino 22, a Posídon, poderá ter sido recitado no festival pan-iónico no monte Mícale, em honra do 25 deus, onde era adorado como helikônios [ἑλικώνιος], do monte Hélicon, nome pelo qual o poeta o parece conhecer. Já Humbert, na senda de Gemoll, aproxima o texto dos Hinos Órficos [218]. O Hino 24, a Héstia, parece ter sido composto para a consagração de um qualquer edifício; qual, porém, é uma incógnita. O Hino 25, às Musas e a Apolo, foi influenciado pela Teogonia (confrontem-se os versos 2-5 do hino e 94-7 do poema de Hesíodo). É possível, porém, que estejamos perante uma expressão formular: de facto, os comentadores são quase unânimes em reconhecer que os versos em questão não encaixam de forma feliz no poema de Hesíodo, que os teria ido buscar à tradição. O Hino 27, a Ártemis, parece posterior ao Hino a Apolo, influenciado pela entrada de Febo no Olimpo no início do Hino Délio [1-13] e pela dança dos imortais no começo do Hino Pítico [189-206]. O Hino 28, a Atena, teria sido apresentado, de acordo com Wilamowitz [apud Humbert 231], nas Panateneias. Humbert data-o da segunda metade do século vi a.C., com base na informação de um escólio às Argonáuticas de Apolónio de Rodes, em que se afirma que o primeiro a tratar o tema do nascimento de Atena da cabeça de Zeus foi Estesícoro [ib.]. Càssola, porém, desmonta este argumento, relembrando que existem representações iconográficas anteriores do tema, pelo que o hino pode ser mais antigo que o poema do Siciliano [421]. O Hino 29, a Héstia, tal como o outro dedicado à deusa (o 24), deve ter sido recitado antes da inauguração de um novo edifício, eventualmente um ginásio (Hermes era patrono dos desportos juvenis) ou um templo comum às duas divindades (os dois eram por vezes associados). Os Hinos 31 e 32, quase unanimemente considerados do mesmo autor ou, pelo menos, da mesma escola rapsódica, são dos mais tardios da colecção, possivelmente da época alexandrina, pelo pormenor mitológico. Estes destacam-se ainda por o poeta anunciar explicitamente que se lhes seguirá um canto sobre heróis mortais. O Hino 33, aos Dióscuros, é anterior a Teócrito (século iii a.C.), que se inspira nele para o prelúdio do seu Dióscuros. Não há referências à constelação com que eles são normalmente identificados a partir do século v a.C., o que aponta para uma data anterior. O hino apresenta alguns pontos de contacto, a nível da expressão linguística, com o Hino Menor a Dioniso, o que, a juntar ao facto de Alceu ter conhecido um hino com razoavelmente o mesmo material, favorece uma data no século vi a.C. Por fim, há que notar que alguns hinos não são senão versões condensadas ou variações sobre outros. É o caso dos Hinos 13, 17 e 18, abreviados, respectivamente, dos hinos a Deméter (2), aos Dióscuros (33) e a Hermes (4). §5 A FORMAÇÃO DA COLECÇÃO Em Diodoro Sículo surge a primeira menção explícita à nossa colecção: «...e Homero dá testemunho destas coisas nos Hinos» [4.2.4]. É legítimo supor, com base neste passo, que no seu tempo existia já uma edição dos Hinos, grosso modo semelhante à nossa, talvez resultado do labor filológico alexandrino. Filodemo, filósofo epicurista do mesmo século, em Acerca da Piedade [p. 42, tab. 91, 12 ss. 26 Gomperz], reforça a hipótese, ao referir também ele a colecção: «Também Homero, nos Hinos, [diz ser] [Hécate] “serva e companheira” [= h. Dem. 440]». O escólio ao manuscrito genovês da Ilíada [ad 21.319] indica que Apolodoro (século ii a.C.), discípulo de Aristarco da Samotrácia, o responsável pela primeira edição crítica da Ilíada e da Odisseia, conheceu os Hinos, que, portanto, circulavam em Alexandria. Os manuscritos registam versões alternativas de certos passos, o que aponta para um trabalho de edição: confrontado com textos divergentes, o compilador dos
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