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Cursinho Metamorfose História da Arte 2 C O N S I D E R A Ç Õ E S I N I C I A I S (W A T T E R S O N , B . C al vi n & H ob be s. ) Esta apostila foi concebida com o intuito de trazer informações básicas sobre a História da Arte, bem como sobre o que é Arte. Não se pretende, no entanto, esgotar o tema: as informações aqui contidas, longe de trazerem todos os movimentos, artistas e obras dessa extensa história, devem servir para dois objetivos, quais sejam, apresentar o conteúdo cobrado pelos vestibulares e, principalmente, trazer à tona uma visão amigável da Arte que possa servir como primeiro passo a partir do qual cada um possa seguir com suas próprias descobertas. Vale dizer que quando nos referimos a “História da Arte” não estamos a tratar da Arte como um todo (isto é, de todas as suas espécies: música, literatura, escultura, arquitetura etc.), mas, sim, tratamos apenas da pintura — arte de aplicar pigmentos em forma líquida a uma superfície, a fim de colori-la, atribuindo-lhe matizes, tons e texturas —, de modo que a história aqui abordada não considerará as outras manifestações artísticas que o homem concebeu ao longo de sua existência. Por fim, note-se que os capítulos que se seguem contêm somente os aspectos teóricos dos principais estilos de pintura, além de seus autores fundamentais. Suas obras, no entanto, não comporão o corpo desta apostila — em virtude de alguns motivos, dentre os quais a questão do espaço. Por isso, as pinturas serão apresentadas em aula e enviadas a todos via e-mail. Cursinho Metamorfose História da Arte 3 Capítulo I A ARTE (W A T T E R S O N , B . C al vi n & H ob be s. ) O dicionário Houaiss (2009) define “arte” como a “produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”. Por essa curta definição (uma de muitas possíveis) pode-se apreender que “arte” é toda criação humana com valores estéticos (beleza, harmonia, equilíbrio) que sintetiza as emoções de um artista, sua história, seus sentimentos, sua cultura, sua visão de mundo (e, consequentemente, um panorama de sua época). Pode, a Arte, apresentar-se sob variadas formas, sendo passível de ser percebida pelo ser humano a partir de três modos distintos: visualizada (pintura, escultura, literatura), ouvida (música) ou mista (cinema). Afora a definição apresentada acima, se tivermos em mente que “o mundo do homem é o mundo do sentido”, como escreveu o poeta Octavio Paz, poderemos entender que a Arte tenciona apresentar ao homem maneiras de conhecer e interpretar a realidade e a si mesmo. Mas, contrariamente à Ciência (que ambiciona dar ao ser humano um conhecimento objetivo da realidade), a Arte permite a realização de tal empreitada de modo subjetivo. Isso significa que, se por um lado a Ciência nos dá uma perspectiva real da realidade, a Arte nos traz um ponto de vista ficcional dessa mesma realidade. Nesse sentido, as manifestações artísticas são pontes entre a objetividade e a subjetividade: com a libertação da consciência humana pela Arte, o intelecto é liberto de seu calabouço lógico, abrindo espaço para uma constante criação da imaginação. Fato é que o ser humano, por natureza, necessita de ficção (ou melhor, de uma espécie saudável de ficção): como escreveu o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “a Arte existe para que a verdade não nos destrua”. Com essa frase pode- se notar que a Arte é um modo outro de nos conhecer e conhecer o que nos cerca, de nos entender e de entender o mundo em que vivemos. Em outras palavras, sucumbiríamos à realidade se tivéssemos contato ininterrupto apenas com suas características reais; não suportaríamos viver sem que tivéssemos a oportunidade de “escapar”, em determinados momentos, das agruras e das amarras do cotidiano. É a Arte, pois, que permite a consumação de tal fuga (que, se analisarmos bem, não é exatamente uma fuga, pois não podemos escapar totalmente da realidade, mas a tomada de uma perspectiva mais viva, mais humana do que vivemos). É claro que a ficção mencionada é feita a partir de uma espécie de mentira; mas é válido lembrar que existem ao menos dois tipos: a mentira que não se diz mentira e a mentira que deixa claro ser mentira. No primeiro caso temos, por exemplo, as promessas dos políticos (promessas mentirosas que nos fazem acreditar serem verdadeiras); no segundo caso, temos a ficção, que é uma mentira honesta, ou seja, uma mentira que se assume como mentira, que se mostra, sem máscaras, como tal. Esse tipo de mentira, de ilusão, de ficção, é a que serve como matéria da Arte, uma ilusão que avisa ser ilusão. E a necessidade de ilusão que temos para enfrentar a existência é uma espécie de subterfúgio ante o frio deserto do real, ante, também, a impossibilidade de, objetivamente, comunicarmos algo (como um sentimento, por exemplo): como escreveu Hans-Georg Gadamer, “a arte, com efeito, constitui o meio privilegiado pelo qual se compreende a vida, já que, situada ‘nos confins do saber e da ação’, ela permite que a vida se revele a si mesma em uma profundidade onde a observação, a reflexão e a teoria já não têm acesso”. Diria-nos outro filósofo alemão, Friedrich Schelling, que “a arte entra em ação quando o saber desampara os homens”. É evidente que, se tomarmos como base o mundo contemporâneo, teremos que nos defrontar com a necessidade de explicação da finalidade da Arte. Todavia, como sabemos (porque vivemos isso), acabamos por entender como “válido” ou “útil” apenas aquilo que gera lucro. A Arte, no entanto, a verdadeira Arte, não aspira a essa finalidade. (W A T T E R S O N , B . C al vi n & H ob be s. ) Cursinho Metamorfose História da Arte 4 Em linhas gerais, para sermos sinceros devemos dizer que, de acordo com a lógica contemporânea, a Arte é inútil; inútil porque não está de acordo com os moldes capitalistas, porque não se coloca como objeto de lucro. É claro que, em contrapartida, há aquele tipo de arte feita exatamente para venda, que não se preocupa em ser artística, mas, sim, em ser rentável e lucrativa, um tipo de arte que se insere em uma cultura na qual foi depreciada e convertida em mera mercadoria. Ainda que tal substituição dos valores estéticos pelos financeiros impere na atualidade, não significa que a Arte esteja morta (como muitos gostam de pensar) ou em crise. De certo modo, a questão é que a Arte não está em crise, mas é crise, tensão, conflito, pois também é um meio útil para a crítica e para a reflexão. Daí que podemos conceber a necessidade humana pela Arte, posto que sua função não é apenas a de “decorar” o mundo: a Arte pode servir, também, para espelhar nosso mundo (visão naturalista), para nos ajudar no dia a dia (visão utilitária), para explicar e descrever a História, para ajudar a explorar o mundo, para nos fazer mais críticos etc. Prova disso é que, muitas vezes, podemos nos desagradar ao ouvir uma música, ler um romance ou observar uma pintura. Isso porque as manifestações artísticas não necessariamente traduzem nossa visão da realidade, e, colocados em contato com outras perspectivas diferentes da nossa, podemos facilmente nos ofender, nos chocar. Seja qual for nossa reação, provamos, ao vivenciá-la, um importante objetivo da Arte: nos comover, nos fazer pensar. É necessário, com isso, que tenhamos uma postura de tolerância diante das manifestações artísticas (concordar com elas ou discordar delas são apenas resultados possíveis a que chegamos porque a Arte nos permite isso), evitando posturas intransigentescomo às vezes ocorrem. Um exemplo disso pode ser notado na notícia abaixo, de 5 de abril de 2011. Veja, primeiramente, o quadro “Duas taitianas”, do pintor francês Paul Gauguin, e, a seguir, a nota de jornal: (G A U G U IN , P . D ua s ta it ia na s. ) “Mulher diz que tentou destruir obra de Gauguin por mostrar nudez. Uma mulher que tentou destruir um dos quadros mais célebres de Gauguin — ‘Duas Taitianas’ — em um museu de Washington explicou que sua reação ocorreu devido ao fato de a obra mostra ‘nudez e homossexualidade’, revelaram documentos judiciais nesta terça-feira. Na sexta-feira, a mulher bateu no quadro do impressionista francês, exposto na National Gallery. Aparentemente, não causou danos à obra. ‘Para mim, Gauguin é o mal. Reproduziu a nudez e isso é ruim para as crianças. Em sua pintura, representa duas mulheres e isso é muito homossexual’, declarou a mulher aos agentes de segurança que a prenderam, segundo os documentos divulgados pelo tribunal em Washington. ‘Tentei retirá-lo. Acho que deveria ser queimado’, afirmou a mulher, segundo um oficial da polícia citado nos documentos”. Posturas como essa provam duas coisas: que o ser humano muitas vezes não consegue conviver com a diferença e, o mais importante, que de fato a Arte nos incita, nos provoca. Visto isso, e relembrando que a Arte é uma manifestação humana, não um produto de máquinas, surge a questão: quem faz arte? Ora, o artista. Todavia, essa resposta não esclarece. Sejamos, pois, mais claros e mudemos a questão: quem é o artista? É aquele que, a partir de certa técnica, ambiciona nos comunicar algo: uma ideia, uma sensação, um sentimento, uma perspectiva de mundo, a consciência de sua época... O homem, durante toda a sua história, criou artefatos para satisfazer as suas necessidades práticas (como as ferramentas para cavar a terra, para caçar etc.), mas não apenas objetos práticos foram criados: outros objetos foram concebidos por serem interessantes ou possuírem um caráter instrutivo. É o caso dos objetos artísticos, criados pelo homem para que o mundo saiba o que pensa, para divulgar as suas crenças, para estimular e distrair a si mesmo e aos outros, para explorar novas formas de olhar e interpretar a realidade. O artista, então, enquanto sujeito, cria obras de arte, objetos, a fim de nos comunicar algo. E tais obras de arte, depois de criadas, podem ser consideradas também sujeitos que passam a “falar” do mundo, de si, de alguma coisa, mostrando-se como um artifício a partir do qual podemos ter acesso ao indizível. Mas, ainda que seja um meio de exploração da realidade humana, a convergir tanto para dentro (ao adquirir uma postura metalinguística) quanto para fora de si, a obra de arte deve ser vista, antes de tudo, como uma finalidade em si mesma, como um fim que se basta, de maneira que, para explicá-la de modo estritamente formal, não se faz necessário recorrer a mais nada: uma obra de arte é capaz de se explicar por si mesma, a partir de seus próprios meios. E os artistas, que “são as antenas da raça”, como escreveu Ezra Pound, utilizam-na como um instrumento que não perde seu poder ao se fechar como uma ostra, fazendo com que tudo Cursinho Metamorfose História da Arte 5 aquilo que fica para fora não seja necessário para fazer e dar sentido ao que ela é. Ao se fechar, ao se bastar, a Arte, ostra no fundo do oceano da realidade, adquire a possibilidade de gerar pérolas... (S IE B E R , A . S em t ít ul o. ) Em termos formais, portanto, as obras de Arte apresentam estilos diferentes, técnicas diferentes de composição, a depender do artista que as fez e do movimento estético em que esteve inserido. Quando aprendemos a reconhecer tais estilos, podemos descobrir quem e quando pintou determinada pintura, mas para isso precisamos saber “ler” uma pintura, analisá-la, interpretá-la. Para isso, temos que ter em mente alguns aspectos passíveis de reconhecimento em um quadro, como os eixos visuais, a composição, os pesos visuais, o equilíbrio, as tensões dinâmicas etc. Vejamos mais detidamente esses aspectos. A composição. Uma pintura é uma representação do espaço, portanto, dentro dela, regem-se conceitos básicos da Natureza e sabemos que esta tende ao equilíbrio e à simplicidade. Sabemos, também, que existe o em cima e o embaixo, a esquerda e a direita. O suporte da obra, o qual chamamos “plano básico” (a tela em si), segundo as investigações do pintor Wassily Kandinsky (1866–1944), é, geralmente, retangular. O que chamamos de “composição pictórica” não é mais do que a maneira que o artista elegeu para distribuir os elementos da sua representação nesse plano básico. Os pesos visuais. Kandinsky propôs dividir o plano básico em quatro partes iguais, atravessando por um eixo vertical e outro horizontal, cuja interposição marca exatamente o centro do quadro. A primeira relação que poderemos estabelecer é a que divide o “em cima” e o “embaixo”: a zona superior é a que menos peso visual tolera, e a inferior a que maior peso tolera. Por “peso visual” entendemos o efeito ótico que produz uma figura grande e maciça ou uma cor intensa; trata-se de zonas que intuitivamente reconhecemos como “pesadas”. Não é difícil relacionar a divisão em cima/embaixo com a realidade: a força da gravidade mantém as pessoas e as coisas bem assentes na terra, enquanto que em cima encontramos com o ar e o céu aberto. A segunda relação é a que divide “esquerda” e “direita”: como a divisão anterior, também nos conduz a uma zona densa e outra menos densa. A conclusão é que à zona mais pesada da obra corresponde ao setor inferior direito, em oposição à zona mais leve, a esquerda superior, como se pode ver no esquema abaixo. Esses conceitos servem para identificar os pesos visuais dentro do quadro e a relação que têm as figuras no seu interior. Isso não significa que o maior peso visual fique sempre no setor inferior direito: muitas vezes podemos encontrá- lo no centro ou até mesmo num setor superior. Em tais casos o efeito de peso é mais evidente, pois a figura ocupa um setor “leve”, chamando muito mais a atenção e obrigando a vista a fixar-se nela uma e outra vez. Percebe-se, pois, que em Arte toda fuga do “padrão” deve ser motivada, isto é, ter um porquê para ter sido realizada, e é nosso trabalho descobrir tal motivação. O conteúdo: denotação x conotação. Se toda obra de arte deve expressar algo, isso significa, em primeiro lugar, que o conteúdo da obra deve ir mais além da apresentação dos objetos individuais que a constituem. Esses objetos individuais são os representativos e denotados, ou seja, aqueles que se identificam sem esforço (uma pessoa, uma árvore, uma ponte etc.); também são denominados de “signos icônicos”. Usemos um exemplo: a “Monalisa”, de Leonardo da Vinci (abaixo). Nela, os signos icônicos são a figura da mulher e a paisagem atrás dela. Num quadro abstrato, um signo icônico pode ser a forma de um círculo colorido ou uma mancha sem forma específica, mas para analisar uma pintura é importante afastarmo-nos o mais possível da impressão do puramente denotativo ou óbvio: se nos guiarmos unicamente pelos signos icônicos, o máximo que podemos chegar a dizer sobre a “Monalisa” é que representa uma mulher sentada. Quando, diante de uma obra de arte, nos cingimos ao seu significado explícito (o mais claramente denotado) estamos renunciando ao (talvez mais importante) desafio: o entendimento do que está implícito, “escondido”. Esse desafio consiste em descobrir o que a obra conota, o que ela nos quer transmitir para além daquilo que mostra. Cursinho Metamorfose História da Arte 6 (D A V IN C I, L . M on al is a. ) Os centros. Por centros entendemos aquelas partes da obra que consideramos mais importantes.Existe sempre um centro de interesse, podendo haver centros secundários. Conseguimos identificá-los porque nos chamam a atenção de imediato. Na “Monalisa” é, sem dúvida, o rosto da mulher e o seu sorriso. Os eixos. São linha imaginárias, horizontais, verticais e oblíquas, ao redor das quais se distribuem os elementos da pintura. São traçados em relação à posição que ocupam os centros dentro da obra. Assim, o eixo mais evidente no quadro acima é o vertical, que atravessa a figura da mulher e que a divide em duas metades. Também encontramos um eixo horizontal na altura dos ombros. O equilíbrio. Trata-se da sensação de estabilidade que nos transmite uma pintura, por mais que o seu conteúdo seja caótico. Toda boa obra de arte está perfeitamente equilibrada. Trata-se, então, da possibilidade de distribuir os elementos visuais dentro do espaço de maneira a obter uma harmonia do conjunto. Entender o equilíbrio numa pintura é um ato puramente intuitivo o qual só se se compreende conscientemente ao analisá-la. As linhas. São os contornos das figuras, os traços que as delimitam, podendo ser angulosas ou arredondadas, grossas ou finas, as quais por si só podem ser muito eloquentes: pense que uma linha sutil na horizontal pode marcar o horizonte, ou que uma simples linha obliqua em perspectiva pode dar à obra uma grande sensação de profundidade. As tensões dinâmicas. Com esse nome designamos as forças que criam movimento na obra. A “Monalisa” representa uma mulher parada, mas não inerte, ou seja, entendemo-la viva. As tensões expressam-se por meio de numerosos meios visuais. Em primeiro lugar, o movimento depende da proporção: num círculo as forças dinâmicas movem-se do centro para todas as direções na sua margem, enquanto que na elipse ou no retângulo, a tensão existe ao longo do seu eixo maior. O conteúdo da obra definirá o local para onde se dirige esse eixo, se para cima, se para baixo, se para a esquerda ou se para a direita. Outros recursos para criar movimento são a obliquidade das linhas ou formas, a deformação das figuras e, também, a interação das cores que contrastam. A dinâmica da composição é alcançada quando o movimento de cada um dos detalhes se adéqua ao movimento do conjunto. A obra de arte organiza-se em torno de um tema dinâmico a partir do qual o movimento se propaga por toda a área da composição. Os elementos plásticos: textura, forma, cor. Esses três elementos, de que se valem todos os pintores, são imprescindíveis para compreender a força expressiva de uma obra. Nenhum deles, isoladamente, poderá valer de algo, mas, ao utilizá-los dentro do contexto de uma obra, carregam-na de sentido. Assim, uma composição cheia de cores vivas e luminosas nos transmite alegria e vivacidade; por outro lado, uma pintura com cores escuras e apagadas, que nos dão pouco contraste, pode transmitir-nos tristeza. A textura de que o artista se vale para criar pode, também, produzir diversas emoções: estas podem ser criadas por efeito das cores ou diretamente pelo traço do pincel; um traço grosso e enérgico pode representar inquietude, mas um traço suave e fino nos transmite calma. Quando se fala de forma como signo plástico não nos referimos à figura em si, mas ao modo em que esta foi organizada e à maneira em que interatua com as demais: elas podem estar em harmonia ou contrastar duramente; podem ser violentas ou suaves, grandes ou pequenas, soltas ou firmes. Os pintores sabem que o estilo com o qual desenrolam as suas formas constituirá o cunho da expressão da obra. Vários autorretratos de van Gogh, por exemplo, estão carregados de uma forte expressividade, não tanto pelas cores empregues ou pela forma do seu rosto, mas pelas formas convulsivas e onduladas com as quais preencheu o fundo. Essas ondulações, por si só, nada significariam, mas situadas atrás do rosto conferem à obra uma enorme carga de movimento e exaltação. Vê-se, pois, que depois de identificar o icônico (o que é mostrado, representado, em suma, o conteúdo), então há que se procurar como ele foi modificado pelo plástico (pela forma) e de que maneira a força expressiva se transmite por meio de ambos. Para exemplificar os aspectos vistos acima, analisemos brevemente o quadro “Mãe e filho”, de Pablo Picasso. Cursinho Metamorfose História da Arte 7 ( P IC A S S O , P . M ãe e f ilh o. ) Primeiramente teremos de identificar o que ele nos transmite emocionalmente (o que, nesse caso, é tristeza, desolação): apesar de a mãe e o filho se encontrarem juntos, os vemos “separados”. É certo que para isso contribui o fato de que estão a olhar para pontos opostos; mas vejamos, para além do desenho, quais outros elementos poderemos descobrir. O centro do quadro é constituído pelas figuras da mãe e do filho, mas há um centro secundário: o do prato de comida. Existe uma predominância dos eixos verticais que atravessam ambas as figuras. Destaca-se que o eixo vertical que divide a obra pela metade divide ou separa, também, a mãe do filho, reforçando o distanciamento entre ambos. O rosto da mãe está situado na zona mais “leve” do plano básico, e seu peso aí é bem tolerado graças à suavidade das linhas e à ausência de contrastes fortes em relação ao resto do quadro. Já a figura do menino, ocupando a zona centro-direita, equilibra a presença da mãe. Os espaços vazios sobre o menino reforçam a sua pequenez e magreza: o espaço vazio à sua direita contribui para que o seu olhar se perca para além dos limites da obra. Quanto às cores e à luminosidade, o quadro nos apresenta grandes contrastes, dando-lhe certo clima de abatimento, de languidez. Destaca-se a roupa do menino de cor azul, diferenciando-se das cores que predominam no todo da obra e, em particular, na roupa da mãe. Já sobre a forma, temos por esse elemento o que mais evidencia a separação patente na pintura. Observemos a figura do menino: seus braços cruzados, seu peito e a linha de seus ombros formam um quadrado; as linhas, com as quais está contornado, são quase retas; seu pescoço está tenso e direito. Observemos, agora, a mãe: seu manto cai suavemente em linhas curvas, suas formas são suaves. Esquematicamente, enquanto o menino é um quadrado, a mãe é uma elipse. Com o contraste das formas e a utilização das linhas, Picasso nos mostra que mãe e filho são diferentes e, por isso, mantêm-se distantes. Mesmo que não façamos esse percurso analítico, poderemos entender o quadro em seus aspectos gerais: uma mulher e uma criança com semblante triste ou preocupado, um prato de comida, uma atmosfera carregada. Mas só poderemos entendê-lo, de fato, se retirarmos da pintura as características formais que a compõem. Apenas aí é que poderemos compreendê-la, e retirar, dessa compreensão, toda a sua carga emotiva. Disso se segue que o valor expressivo de uma pintura se encontra, é claro, nela mesma, mas só podemos descobri-lo de um modo: experimentando-a. É importantíssimo notar que toda obra de arte (não apenas a pintura) é uma representação da realidade. Isso significa que ela reproduz algo do real, mas não é o real e não o produz. O quadro abaixo, de René Magritte, é um exemplo claro disso. Abaixo do cachimbo se lê “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo), e, de fato, não é um cachimbo o que vemos; é, antes, a representação pictórica de um cachimbo. (M A G R IT T E , R . C ec i n’ es t pa s un e pi pe .) Diante da representação de alguma coisa, que são os quadros, a postura que precisamos ter é, em primeiro lugar, a da curiosidade (incitar-se a entender o que vemos); em segundo lugar, a da análise (estudar o quadro e seus aspectos constitutivos); e, em terceiro lugar, a da interpretação (considerar o quadro analisado e, disso, extrair uma possível compreensão). É necessário, não obstante, um processo de diálogo com o trabalhodo artista. Este tem uma mensagem, seja qual for, e cria algo (a obra de arte) para comunicá-la a alguém (você, eu, nós), e de nós a obra exige esforço, dedicação e diálogo com o trabalho, diante do qual podemos perguntar: Qual é seu tema? Quais são os materiais utilizados? A obra tem um título? Quando e onde foi feita? Qual é o seu tamanho? Quais são as suas cores? Como são as Cursinho Metamorfose História da Arte 8 suas formas? Já vi algo parecido? Ela me agrada? Por quê? Ela me desagrada? Por quê? Como ela me faz se sentir? O que ela me faz pensar? Disso se segue que o modo como admiramos e interpretamos uma obra de arte dependerá de nossa própria vivência, de nossa história, de nossas expectativas, de nossos pensamentos, de nossos conhecimentos, de nossa imaginação. E como as pessoas não são iguais nesses aspectos, uma boa obra de arte será aquela que conseguir ser plural a ponto de fazer com que o máximo possível de pessoas (e suas diferenças) seja provocado, instigado. Vistas essas questões teóricas (a fim de nos ajudarem a compreender os próximos capítulos), comecemos um percurso histórico para percorrer a linha do tempo da pintura e todas as suas manifestações, estilos e técnicas, a fim de vermos as transformações do mundo por meio das mudanças da Arte e as transformações da Arte por meio das mudanças do mundo. Veremos, pois, em cada época, que tipo de arte foi feita, onde foi feita, como foi feita e por que foi feita. Tenhamos em mente que, assim como ocorre no estudo da História, da Filosofia e de outras ciências, os historiadores de arte, críticos e estudiosos classificam os períodos, estilos ou movimentos artísticos separadamente, para facilitar o entendimento das produções artísticas. É o que veremos a partir de agora. (W A T T E R S O N , B . C al vi n & H ob be s. ) Cursinho Metamorfose História da Arte 9 Capítulo II A R T E P R É - H I S T Ó R I C A (G O N S A L E S , F . N íq ue l N áu se a. ) Um dos mais fascinantes períodos da História humana é a pré-História. A arte desse período refere-se ao início da História da Arte e à mais antiga produção artística de que se tem conhecimento. Somente no início do século XX foram feitas as primeiras descobertas de achados pré-históricos; considerava-se, até então, que a primeira semente artística teria sido lançada no Antigo Egito e na Mesopotâmia. Embora ainda hoje persistam dúvidas quanto ao efetivo objetivo das peças de arte da pré-História, a verdade é que a qualidade e a criatividade que revelam são inegáveis e de extrema importância para a compreensão da mentalidade do homem do período (mentalidade que a Arte sempre permitiu descobrir: para qualquer época que se olhe, as manifestações artísticas dizem muito sobre quem eram e como pensavam os homens que nela viveram). Como dito, as motivações e a relação que o homem pré-histórico tinha com os objetos artísticos são impossíveis de se definir com certeza. Pode-se, no entanto, formular hipóteses e efetuar um percurso para apoiá-las cientificamente. A Arte nesse período pode ser inferida como algo que não pudesse ser separado das outras esferas da vida, da religião, da economia, da política (esferas que, também, não eram separadas entre si), pois a vida humana nesse período convergia para um todo em que tudo tinha que ser artístico, ter uma estética, pois nada era puramente utilitário (como é hoje um abridor de latas): tudo era ao mesmo tempo mítico, político, social, econômico e estético. Portanto, para uma abordagem mais próxima das primeiras criações artísticas é essencial relacioná-las com o seu plano de fundo cultural, geográfico e social. Indissociável do meio ambiente, o qual nem sempre é propício à vida humana, o homem foi por ele extremamente influenciado, daí que surgem, como uma consequência, os temas da Arte Pré-histórica a focarem, acima de tudo, elementos do seu meio, como o reino animal (principalmente os alvos das caças). Com o surgimento dos primeiros hominídeos nômades a viverem da caça de animais e da coleta de frutos e raízes, tendo o auxílio de instrumentos de pedra, madeira e ossos, como facas e machados, desenvolveu-se a pintura, cuja principal característica é o naturalismo: pintavam-se os seres (um animal, por exemplo) do modo como os homens os viam, reproduzindo a Natureza tal qual a visão humana a captava. Aos poucos, o homem compreendeu que a Arte lhe possibilitava uma relação mais estreita com a Natureza, e que ele próprio podia usar a sua representação para exercer influência sobre o mundo: por meio da imagem, os fatores essenciais à sua existência podiam ser “dominados”, e o homem poderia revelar as experiências dos seus sentidos. Ou seja, o artista dessa época supunha ter poder sobre um animal desde que possuísse a sua imagem; acreditava que poderia matar o animal verdadeiro desde que o representasse ferido mortalmente num desenho. Por isso, a representação de vários animais (cavalos, mamutes, bois) é comum. Mais tarde, quando começa a refletir sobre si próprio e sobre o mundo que o envolve, passa progressivamente a representar imagens idealizadas, ao invés de simplesmente imagens observadas. De modo geral, a hipótese mais defendida sobre o objetivo da Arte Pré-histórica é a de que os primeiros objetos artísticos não eram utilitários ou simples adornos, mas uma tentativa de controlar forças sobrenaturais e, segundo especulam os arqueólogos, obter a simpatia dos deuses e bons resultados na caça. Considerando que as pinturas descobertas em cavernas se encontram em locais de difícil acesso, pode-se supor que o objetivo não era o de proporcionar uma imagem impressionante acessível a todos, mas, antes, seguir um ritual mágico. Porém, é importante uma ressalva: precisamos pesar as ações do homem, no caso do campo da representação em imagens, como não estritamente vinculadas às representações religiosas ou a uma busca transcendental de “um algo maior”. Assim como uma criança que brinca com lápis de cor e papel, com formas e cores de forma lúdica, não podemos descartar a Arte Pré-histórica como uma atividade lúdica, um descobrir formas sem maiores pretensões. De qualquer modo, não se pode eliminar totalmente a hipótese de um objetivo estético consciente. Talvez existisse uma tênue linha divisória entre a realidade e a representação, e que, ao se pintar um animal, fosse necessário recriá-lo com o maior realismo possível, para que a caça bem sucedida na pintura se transportasse para a realidade, ou, ainda, que a criação pictórica de uma manada resultasse na sua criação real, e que o homem pudesse se beneficiar de muito alimento e prosperidade. Aproveitando-se das irregularidades naturais das pedras, o homem pré-histórico chega, com suas pinturas, próximo das formas reais da Natureza. Utiliza para os seus trabalhos diversos materiais como carvão, terra e sangue, além de pincéis e osso oco como instrumento de sopro (para pulverizar o contorno da mão obtendo um negativo). Utilizavam-se as pinturas rupestres, isto é, feitas em rochedos e paredes de cavernas (como a de Altamira, na Espanha, as cavernas de Lascaux e Chauvet, ambas na França, e a gruta da Rodésia, na África). Mais tarde, com a fixação do homem em determinado lugar, garantida pelo êxito em domesticar animais e a dar os primeiros passos na agricultura, ocasionou-se um aumento rápido da população e o desenvolvimento das primeiras instituições, como a família e a divisão do trabalho. Conseguiu-se, ainda, produzir o fogo por meio do atrito, e se deu início ao trabalho com metais. Todas essas conquistas técnicas tiveram um forte reflexo na Arte: o homem, que se tornaraCursinho Metamorfose História da Arte 10 um camponês, não precisava mais ter os sentidos apurados do caçador de antes, e o seu poder de observação foi substituído pela abstração e pela racionalização. Como consequência surgiu um estilo simplificador e geometrizante, sinais e figuras que mais sugerem do que reproduzem os seres. Os próprios temas mudaram: começaram as representações da vida coletiva. De um modo geral, e de acordo com os achados arqueológicos, a produção artística começará a se caracterizar pelo surgimento de parâmetros geométricos, relacionada a uma suposta evolução do padrão naturalista-realista para um abstracionismo na representação das formas. Mas os achados que têm sido feitos ainda não dizem muito da evolução da mentalidade do homem do período e das suas motivações artísticas. Isso não significa que haja uma produção de peças em quantidade reduzida, mas que talvez estas tenham sido feitas em materiais frágeis, como a madeira, e que não tenham resistido ao tempo. Cursinho Metamorfose História da Arte 11 Capítulo III A R T E A N T I G A Arte egípcia Uma das principais civilizações da Antiguidade foi a que se desenvolveu no Egito. Era uma civilização já bastante complexa em sua organização social e riquíssima em suas realizações culturais. A religião invadiu toda a vida egípcia, interpretando o universo, justificando sua organização social e política, determinando o papel de cada classe social e orientando toda a produção artística desse povo. No Antigo Egito, os artistas estavam mais interessados na arquitetura e na escultura, por isso muitas das pinturas que ainda permanecem são decorações de tumbas. Além de crer em deuses, que poderiam interferir na história humana, os egípcios acreditavam, também, numa vida após a morte, considerando-a mais importante do que a que viviam no presente. Daí que o fundamento ideológico da arte egípcia é a glorificação dos deuses e do rei defunto divinizado, para o qual se erguiam templos funerários e túmulos grandiosos (as célebres pirâmides), nos quais a decoração colorida era um poderoso elemento de complementação das atitudes religiosas. Vale dizer que a pintura do Antigo Egito significou um ressurgimento da pintura, o que ocorreu muito tempo após o surgimento das pinturas rupestres. Suas características gerais são a ausência de três dimensões (portanto, de profundidade), traços estilizados e rígidos e a lei da frontalidade (que determinava que o tronco da pessoa fosse representado sempre de frente, enquanto sua cabeça, suas pernas e seus pés eram vistos de perfil). Ademais, a pintura egípcia é essencialmente simbólica, e segue rígidos padrões de representação: as áreas espaciais são bem definidas e o tamanho e posição das figuras no espaço são estipulados segundo regras hierárquicas (eram representadas maiores as pessoas com maior importância no reino, ou seja, nesta ordem de grandeza: o rei, a mulher do rei, o sacerdote, os soldados e o povo). Por terem criado pinturas para fazer da vida pós-morte um lugar agradável, os antigos egípcios retrataram temas como a jornada para o outro mundo, as atividades que o morto gostava de fazer quando era vivo e que, certamente, gostaria de continuar fazendo por toda a eternidade. Arte grega Enquanto a Arte egípcia é uma arte ligada ao espírito, a arte grega liga-se ao gozo da vida presente, à inteligência, pois os seus reis não eram deuses, mas pessoas. Contemplando a Natureza, o artista se empolga pela vida e tenta, por meio da Arte, exprimir suas manifestações, quais sejam, o racionalismo, o amor pela beleza, o interesse pelo homem, a democracia etc. Na sua constante busca da perfeição, o artista grego criou uma arte de elaboração intelectual em que predominou o ritmo, o equilíbrio, a harmonia ideal. A pintura grega encontra-se na arte cerâmica: os vasos gregos são também conhecidos não só pelo equilíbrio de sua forma, mas, também, pela harmonia entre o desenho, as cores e o espaço utilizado para a ornamentação. Além de servirem para rituais religiosos, esses vasos eram usados para armazenar, entre outras coisas, água, vinho, azeite e mantimentos. A pintura na Grécia antiga foi em geral associada a outras formas de Arte, como a cerâmica, a estatuária e a arquitetura. Ao contrário do caso da pintura cerâmica, restam pouquíssimos exemplos de pintura mural ou de painel, e a maior parte do que se sabe sobre esta forma de expressão plástica deriva de fontes literárias antigas e algumas cópias romanas. Os gregos são reputados como os precursores da pintura ocidental em diversos aspectos, tendo desenvolvido a representação com ilusão de tridimensionalidade (com o uso do sombreado e de elementos de perspectiva), inovações aparecidas por volta do século V a.e.c. Até então, a representação da figura era basicamente plana e linear, com a cor meramente preenchendo áreas definidas por um contorno. É importante notar que na Grécia Antiga a visão que se tinha de Arte diferia radicalmente da perspectiva que temos atualmente. A bem dizer, pelo menos até a fase helenística não existia o conceito de “Arte pela Arte”, pois tudo o que se fazia antes tinha um propósito eminentemente funcional (como oferenda aos deuses, comemoração de algum evento histórico ou de algum ato heroico, recordação de algum personagem ilustre etc.). Na verdade sequer existia uma palavra específica para Arte, chamada simplesmente de τέχνη (techné, técnica); em suma, era um dos diversos ofícios manuais, mas isso não impedia que os artistas fossem orgulhosos de seus trabalhos e muitos assinassem suas obras para eternizar sua própria memória, algo inédito na história da Arte ocidental. Arte romana A pintura da Roma Antiga, ávida consumidora e produtora de Arte, é um tópico da História da pintura ainda pouco compreendido, pois seu estudo é prejudicado pela escassez de relíquias. Ainda assim, a pintura romana exerceu influência significativa na evolução da pintura ocidental. Assimilando os princípios artísticos de duas importantes civilizações (dos etruscos, voltada para a expressão da realidade vivida, e dos gregos, orientada para a expressão de um ideal de beleza), os romanos sentiam-se livres para copiar diretamente elementos formais prontos de várias fontes para a criação de uma composição nova, ou os alteravam à vontade para satisfazer o gosto de seus patronos. De fato, eles mantinham em geral uma opinião altamente positiva a respeito da cópia. Mas também a fantasia era indispensável: por exemplo, quando se retratavam os deuses, de quem não havia protótipos autênticos conhecidos, não havia um objeto “real” que pudesse ser imitado, e assim o recurso tanto à imaginação como aos autores da Antiguidade, que fixaram tipos canônicos, era compulsório. Sua influência perdurou até o século XIX, e, sob uma atmosfera romântica, exemplos da Antiguidade romana ainda eram fonte de inspiração para os pintores e decoradores, continuando essa voga até o fim do século. Arte paleocristã Com o surgimento do Cristianismo surgiu a Arte paleocristã (ou Arte cristã primitiva), isto é, a arte produzida por cristãos ou sob o patrocínio cristão. Os primeiros indícios claros na afirmação de um estilo cristão próprio surgem no início do século II, sendo seu expoente as pinturas murais nas catacumbas romanas, lugar de culto e refúgio dos cristãos. Normalmente, os primeiros cristãos representavam o corpo humano de maneira proporcional e bidimensional, por vezes adaptando elementos da arte pagã, obviamente harmonizando-os com os ensinamentos cristãos, bem como também desenvolveram sua própria iconografia, por exemplo, símbolos como o peixe. Enquanto os romanos desenvolviam uma artecolossal e espalhavam seu estilo por toda a Europa e parte da Ásia, os cristãos começaram a criar uma arte simples e Cursinho Metamorfose História da Arte 12 simbólica executada por pessoas que não eram grandes artistas. Em oposição à arte romana pagã, a Arte paleocristã baseou seu conteúdo nos textos sagrados da bíblia, cunhando os manuscritos com ilustrações (as iluminuras) de elevada importância no processo de manutenção e propagação das escrituras. Poucas são as iluminuras que sobreviveram até os nossos dias, mas o pouco que se conhece a partir do século V apresenta uma rica variedade cromática que recebeu, inicialmente, muita da influência da estrutura espacial e geometrizante da pintura greco-romana. Arte bizantina A pintura bizantina tem suas raízes na arte paleocristã. Graças à localização do Império Bizantino (Constantinopla), a Arte bizantina sofreu influências de Roma, da Grécia e do Oriente, e a união de alguns elementos dessas culturas formou um estilo novo. A arte bizantina foi dirigida pela religião, e ao clero cabia, além das suas funções próprias, organizar também as artes, tornando os artistas meros executores. Mas, em 726, um édito imperial proibiu as imagens religiosas no Império, dividindo a população em dois grupos: os iconófilos e os iconoclastas (estes últimos, destruidores de imagens e que seguiam uma interpretação rigorosa da bíblia, que tentavam evitar a idolatria a representações). O édito reduziu a produção de imagens sagradas, mas não completamente: a iconoclastia despertou uma renovação de interesse pela Arte secular, de motivos clássicos. Essa volta aos clássicos fez com que a Arte bizantina representasse, quando possível, figuras mais humanas de Cristo, o que influenciou grandemente a Arte posterior. Vale notar que o mosaico é a expressão máxima da Arte bizantina, e não se destinava apenas a enfeitar as paredes e abóbadas, mas, também, a instruir os fiéis mostrando- lhes cenas da vida de Cristo, dos profetas e dos vários imperadores. Nos mosaicos, as pessoas são representadas de frente e verticalizadas para criar certa espiritualidade; a perspectiva e o volume são ignorados e o dourado é demasiadamente utilizado devido à associação com o maior bem existente na terra, para eles: o ouro. Arte islâmica De origem nômade, os muçulmanos demoraram certo tempo para estabelecer-se definitivamente e assentar as bases de uma estética própria com a qual se identificassem. Ao fazer isso, inevitavelmente devem ter absorvido traços estilísticos dos povos conquistados, ainda que tenham sabido adaptar tais traços ao seu modo de pensar e sentir, transformando-os em seus próprios sinais de identidade. Foi assim que as cúpulas bizantinas coroaram suas mesquitas, e os esplêndidos tapetes persas, combinados com os coloridos mosaicos, as decoraram. Nenhuma tradição pictural existia entre os árabes e, por isso, a pintura religiosa só podia se inspirar em fontes estrangeiras: os árabes aceitaram a arte figurativa secular dos territórios conquistados. Só mais tarde, por influência de judeus convertidos, se encontram censuras severas à figuração (imaginava-se que ao representar seres vivos o artista usurpava um poder criador reservado só a Deus). Aparentemente sensual, a Arte islâmica foi na realidade, desde seu início, conceitual e religiosa. No âmbito sagrado evitou-se a arte figurativa, concentrando-se no geométrico e abstrato, mais simbólico do que transcendental: a representação figurativa era considerada uma má imitação de uma realidade fugaz e fictícia. Uma das mais importantes obras da pintura islâmica é a “Ascensão de Maomé”: a composição mescla elementos orientais (dourado flamejante) e cristãos (movimento agitado da composição), o rosto do profeta está em branco, por se entender que seria uma heresia representá-lo. Estreitamente ligada à pintura encontra-se a arte dos mosaicos, tornando-se uma das formas mais importantes na decoração de mesquitas e palácios, junto com a cerâmica. Ainda assim, no início as representações eram completamente figurativas, semelhantes às antigas, mas paulatinamente foram se abstraindo, até se transformarem em folhas e flores misturadas com letras desenhadas artisticamente, o que é conhecido como “arabesco”. Assim, complexos desenhos multicoloridos, calculados com base na simbologia islâmica, cobriam as paredes internas e externas dos edifícios, combinando com a decoração de gesso das cúpulas. Cursinho Metamorfose História da Arte 13 Capítulo IV A R T E M E D I E V A L Arte românica A pintura do românico não teve um desenvolvimento súbito e revolucionário, tal como aconteceu na arquitetura românica. Ela seguiu a tradição pictural, sobretudo nas iluminuras de manuscritos, e praticou-se, sobretudo, em duas modalidades: a pintura de grandes dimensões, utilizada na decoração de interiores, principalmente nas igrejas; e a pequena pintura, para ornamento e ilustração em livros (as iluminuras). A temática dominante é a religiosa, baseando-se na narração de feitos bíblicos, como a vida de Cristo. Numa época em que poucas pessoas sabiam ler, a Igreja recorria à pintura e à escultura para narrar histórias bíblicas ou comunicar valores religiosos aos fiéis. A pintura românica desenvolveu-se, sobretudo, nas grandes decorações murais, por meio da técnica do afresco, que originalmente era uma técnica de pintar sobre a parede úmida. A diversidade formal e técnica da pintura do românico é identificada pela prevalência do desenho, pela falta de rigor anatômico nas figuras (representadas com proporções disformes e deformadas com tendência para a geometrização dos corpos), pelas posições demasiado desarticuladas, pelas cores aplicadas a cheio (ou seja, planas e sem sombreados ou outros efeitos) e pelos cenários abstratos e sem grande importância e cuidado (normalmente lisos ou inexistentes). As características essenciais da pintura românica foram a deformação e o colorismo. A deformação, na verdade, traduzia os sentimentos religiosos e a interpretação mística que os artistas faziam da realidade; a figura de Cristo, por exemplo, é sempre maior do que as outras que o cercam. O colorismo realizou-se no emprego de cores chapadas, sem preocupação com tonalidades ou jogos de luz e sombra, pois não havia a menor intenção de imitar a Natureza. Estas características, por conseguinte, não conferem realismo às pinturas românicas, mas, antes, um poder simbólico e sobrenatural. Arte gótica A Arte gótica pertence aos últimos três séculos da Idade Média, sendo, pois, um período artístico entre o Românico e o Renascimento. No começo desse período, a Arte era produzida principalmente com fins religiosos: muitas pinturas eram recursos didáticos que faziam o Cristianismo visível para uma população analfabeta; outras eram expostas como ícones, para intensificar a contemplação e a prece. Os primeiros mestres do gótico preservaram a memória da tradição bizantina, mas, também, criaram figuras persuasivas, com perspectiva e com maior apuro no traço. A característica mais evidente da Arte gótica é um naturalismo cada vez maior, qualidade que surge pela primeira vez na obra dos artistas italianos de fins do século XIII e que marcou o estilo dominante na pintura europeia até o término do século XV. A pintura (a representação de imagens numa superfície) durante o período gótico era praticada em quatro principais ofícios: painéis, iluminura de manuscritos, vitrais e afrescos (que continuaram a ser utilizados como o principal ofício pictográfico narrativo nas paredes de igrejas no sul da Europa, como continuação de antigas tradições cristãs e românicas). Tendo como principal particularidade a procura do realismo na representação dos seres que compunham as obras pintadas, a pintura gótica desenvolveu-senos séculos XIII, XIV e no início do século XV, quando começou a ganhar novas características que prenunciavam o Renascimento. Por isso, pode-se dizer que os principais pintores góticos são os verdadeiros precursores da pintura renascentista. ▪ Giotto di Bondone (1266–1337). A característica principal do seu trabalho foi a identificação da figura dos santos com seres humanos de aparência “normal”. E esses santos, com ar de homem comum, eram os seres mais importantes das cenas que pintava, ocupando sempre posição de destaque em suas pinturas, que vêm ao encontro de uma visão humanista do mundo e que vai cada vez mais se firmando até ganhar plenitude no Renascimento. ▪ Jan van Eyck (1390–1441). Esse artista procurava registrar os aspectos da vida urbana e da sociedade de sua época. Foi um pintor caracterizado pelo naturalismo, imperando na sua obra meticulosos pormenores e cores vivas, além de uma extrema precisão nas texturas e na busca por novos sistemas de representação da tridimensionalidade. Nota-se em suas pinturas, portanto, um cuidado com a perspectiva, procurando mostrar os detalhes e as paisagens. Para levar a termo sua intenção de espelhar a realidade em todos os pormenores, van Eyck teve que aperfeiçoar a técnica pictórica: segundo alguns estudiosos, foi ele o inventor da pintura a óleo, mas há controvérsias; o que ele realizou, de fato, foi uma receita para a preparação de tintas antes de elas serem usadas. Vale dizer que os pintores daquela época não compravam cores prontas em tubos ou outros recipientes: tinham que preparar seus próprios pigmentos, sobretudo extraídos de plantas e minerais, depois os pulverizavam e, antes de os usarem, adicionavam algum líquido a fim de converterem o pó numa espécie de pasta. Cursinho Metamorfose História da Arte 14 Capítulo V A R T E M O D E R N A Arte renascentista Além de reviver a antiga cultura greco-romana, ocorreram nesse período muitos progressos e incontáveis realizações no campo da Arte e da Ciência que superaram a herança clássica. O ideal do humanismo foi sem duvida o móvel desse progresso e tornou-se o próprio espírito do Renascimento: esse ideal pode ser entendido como a valorização do homem e da Natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural (conceitos estes que haviam impregnado a cultura da Idade Média). O artista do Renascimento não via mais o homem como simples observador do mundo e a expressar a grandeza de Deus, mas como a expressão mais grandiosa do próprio Deus, e o mundo era pensado como uma realidade a ser compreendida cientificamente, não apenas admirada. Por isso, características como a racionalidade, a dignidade do ser humano e o rigor científico são vistos nessa época. O estilo da pintura renascentista surge na Itália durante o século XV, fundando um espírito novo, forjado de ideais novos e em novas forças criadoras. Suas raízes, como dito, baseiam-se na Antiguidade Clássica (tomadas a partir da cultura e da mitologia greco-romana) e na Idade Média (captadas, sobretudo, da obra de Giotto). Suas principais características repousam na perspectiva, fiel aos princípios da matemática e da geometria; na conquista de um espaço cênico, agora suportado por princípios matemáticos e pela perspectiva linear científica; no tratamento real do espaço e da luz (uso do claro-escuro); na representação realista da Natureza, dos animais e, especialmente, do homem (com grande naturalidade e realismo anatômico); no início do uso da tela e da tinta a óleo (que possibilitava novas associações e graduações da cor); no uso de novos suportes, como a tela, que facilitaram a difusão das correntes estéticas uma vez que permitiram uma circulação mais fácil das obras. Não se pode dizer, no entanto, que a Arte renascentista seja um estilo na verdadeira acepção do termo, mas, antes, uma arte variada, de características estilísticas, técnicas e estéticas plurais, definida pelo surgimento de artistas com um estilo pessoal diferente dos demais (já que o período é marcado pelo ideal de liberdade e, consequentemente, pelo individualismo). ▪ Sandro Botticelli (1445–1510). Os temas de seus quadros foram escolhidos segundo a possibilidade que lhe proporcionavam de expressar seu ideal de beleza que, para ele, estava associada ao ideal cristão. Por isso, as figuras humanas de seus quadros são belas porque manifestam a graça divina, ao mesmo tempo em que são melancólicas porque supõem que perderam esse dom de Deus. ▪ Leonardo da Vinci (1452–1519). Apesar do recente interesse e admiração por Leonardo como cientista e inventor, durante mais de quatrocentos anos seu grande reconhecimento apoiou-se nos seus feitos como pintor. Suas pinturas ficaram famosas por uma série de qualidades que foram muito imitadas por estudantes e discutidas extensivamente por conhecedores e críticos. Entre algumas das qualidades que tornam sua obra única estão as técnicas inovadoras que ele usou na aplicação da tinta, seu conhecimento detalhado de anatomia, luz, botânica e geologia, seu uso inovador da forma humana em composições figurativas, o uso da graduação sutil das tonalidades e o jogo de luz e sombra. ▪ Michelangelo Buonarroti (1475–1564). Um dos maiores criadores da história da Arte do Ocidente, pintou grande número de cenas do Antigo Testamento. Sua carreira se desenvolveu na transição do Renascimento para o Maneirismo, e seu estilo sintetizou influências da Arte da Antiguidade Clássica e dos ideais do Humanismo e do Neoplatonismo, centrado na representação da figura humana, que retratou com enorme pujança. Para a posteridade Michelangelo permanece como um dos poucos artistas que foram capazes de expressar a experiência do belo, do trágico e do sublime numa dimensão cósmica e universal. Em suas pinturas há um tratamento cada vez mais livre das pinceladas e um crescente dinamismo e expressividade das figuras, chegando a dimensões de tragédia em alguns personagens, o que ilustra com clareza a passagem do equilíbrio clássico do Renascimento para o mundo agitado do Maneirismo. ▪ Rafael Sanzio (1483–1520). Mestre da pintura e da arquitetura, Rafael foi notável pela perfeição e pela suavidade de suas obras, que comunicam ao observador um sentimento de ordem e segurança, pois os elementos que compõem seus quadros são dispostos em espaços amplo, claros e de acordo com uma simetria equilibrada. Maneirismo Paralelamente ao Renascimento, desenvolve-se em Roma um movimento artístico que se afastou conscientemente do modelo da Antiguidade Clássica, o Maneirismo, que evidenciava uma tendência para a estilização exagerada e um capricho nos detalhes, extrapolando as rígidas linhas dos cânones clássicos. Pode-se dizer que o Maneirismo foi uma consequência da decadência do Renascimento: os artistas se viram obrigados a partir em busca de elementos que lhes permitissem renovar e desenvolver todas as habilidades e técnicas adquiridas durante o período anterior. Uma de suas fontes principais de inspiração foi o espírito religioso reinante na Europa nesse momento; não só a Igreja, mas todo o continente estava dividido após a Reforma Protestante. Daí que surgiram sentimentos de desolação e incerteza, pois os grandes impérios começam a se formar e o homem já não era visto como a única medida do universo. Nesse contexto, o Maneirismo revisou os valores clássicos e naturalistas prestigiados pelo Humanismo renascentista e, em linhas gerais, caracterizou-se pela deliberada sofisticação intelectualista, pela valorização da originalidade e das interpretações individuais, pelo dinamismo e complexidade de suas formas e pelo artificialismo no tratamento dos seus temas (a fim de se conseguir maior emoção, elegância, poder ou tensão). Numa abordagem que contextualize suas causas e significados em termos econômicos, políticos e sociais, o estilo foi reconhecidocomo uma tentativa de romper a regularidade e a harmonia excessivas e, no fundo, artificiais do Renascimento, introduzindo uma prática que era mais verdadeira em relação ao tumultuado contexto social e cultural daquele tempo e que espelhava melhor suas angústias e incertezas, substituindo o idealismo impessoal, que tendia a pairar acima do humano, por visões mais pessoais, subjetivas e sugestivas. Nesse sentido, o Maneirismo foi uma arte de protesto e de oposição à autoridade clássica e às estruturas sociais coletivas de atribuição de valor. Por outro lado, o período não foi de negação completa dos referenciais clássicos, já que muito de suas feições dinâmicas refletem justamente uma aguda consciência da perda e da ausência daquela harmonia, mesmo que ideal e fictícia. De certa forma, o Maneirismo foi uma tentativa de conciliar a espiritualidade da Idade Média com o realismo da Renascença. Talvez a mudança mais dramática introduzida pelo movimento seja a transformação da noção de espaço: o Renascimento conseguiu construir a representação visual do espaço de modo notavelmente homogêneo, coerente e Cursinho Metamorfose História da Arte 15 lógico, baseando-se na perspectiva clássica, colocando os personagens contra um cenário uniforme e contínuo e de acordo com uma hierarquia de proporções que simulava com grande sucesso o recuo gradual do primeiro plano para o horizonte ao fundo; mas o Maneirismo rompe essa unidade com diferentes pontos de vista coexistindo em um mesmo quadro e com a ausência de uma hierarquia lógica nas proporções relativas das figuras entre si, de modo que, muitas vezes, a cena principal é posta à distância e elementos secundários são privilegiados no primeiro plano. Assim, as relações naturalistas são abolidas e o resultado é uma atmosfera de sonho e irrealidade, na qual os relacionamentos formais e temáticos são arbitrários. Ademais, nota-se forte tendência ao horror vacui (horror ao vazio), cercando-se a cena principal com uma profusão de elementos decorativos que adquirem grande importância por si mesmos. ▪ El Greco (1541–1614). Seu estilo dramático e expressivo foi considerado estranho por seus contemporâneos, mas encontrou grande apreciação no século XX, sendo considerado um precursor do Expressionismo e do Cubismo. El Greco é considerado pelos estudiosos modernos como um artista tão individual que não o consideram como pertencente a nenhuma das escolas convencionais. É mais conhecido por suas figuras tortuosamente alongadas e pelo uso frequente de pigmentação fantástica ou mesmo fantasmagórica, unindo tradições bizantinas com a pintura ocidental. O primado da imaginação e da intuição sobre o caráter subjetivo de criação foi um princípio fundamental de seu estilo: descartou critérios clássicos como medidas e proporção, acreditando que a graça seria o supremo objetivo da Arte, mas um pintor somente a alcança quando consegue resolver os problemas mais complexos com a obviedade do simples. Barroco Com o predomínio das emoções e não do racionalismo da Arte renascentista, a Arte barroca originou-se na Itália (século XVII) mas não tardou a irradiar-se por outros países da Europa, numa época de conflitos espirituais e religiosos em que o homem se colocou em constante dualismo (paganismo x cristianismo, espírito x matéria). Suas obras romperam o equilíbrio entre o sentimento e a razão, ou entre a Arte e a Ciência, que os artistas renascentistas procuram realizar de forma muito consciente, além de buscarem efeitos decorativos e visuais com o uso de curvas e violentos contrastes de luz e sombra. Vale dizer que a pintura barroca é uma pintura realista, concentrada nos retratos no interior das casas, nas paisagens das naturezas-mortas (gênero de pintura em que se representam coisas ou seres inanimados) e nas cenas populares, abrangendo todas as camadas sociais. Por outro lado, a expansão e o fortalecimento do Protestantismo fizeram com que os católicos utilizassem a pintura como um instrumento de divulgação da sua doutrina: na Itália e na Espanha a Igreja Católica, em clima de militância e da Contrarreforma, pressionava os artistas para que buscassem o realismo mais convincente possível. ▪ Michelangelo Caravaggio (1571–1610). O que melhor caracteriza a sua pintura é o modo revolucionário como ele usou a luz, que não aparece como reflexo da luz solar, mas é criada intencionalmente para dirigir a atenção do observador; esse efeito de iluminação recebeu o nome de “tenebrismo”. Caravaggio tomava emprestada a imagem de pessoas comuns das ruas de Roma (comerciantes, prostitutas, marinheiros) para retratar cenas e personagens bíblicas. Esta é, pois, a mais importante característica de suas pinturas: retratar o aspecto mundano dos eventos bíblicos usando o povo comum das ruas. Não obstante, note-se a dimensão e o impacto realista que ele deu aos seus quadros, ao usar um fundo sempre raso, obscuro, muitas vezes totalmente negro, e agrupar a cena em primeiro plano com focos intenso de luz sobre os detalhes, geralmente os rostos. Caravaggio reagiu às convenções do Maneirismo e opôs a elas uma pintura natural, direta e até mesmo brutal que renovou as cenas profanas e os temas religiosos. ▪ Rembrandt van Rijn (1606–1669). O que dirige nossa atenção nos quadros desse pintor não é propriamente o contraste entre luz e sombra, mas a gradação da claridade, os meios-tons, as penumbras que envolvem áreas de luminosidade mais intensa. Os maiores triunfos criativos de Rembrandt são exemplificados especialmente nos retratos de seus contemporâneos, autorretratos e ilustrações de cenas da bíblia. Tanto na pintura como na gravura, ele expõe um conhecimento completo da iconografia clássica, que moldou para se adequar às exigências da sua própria experiência; assim, a representação de uma cena bíblica era baseada no conhecimento de Rembrandt sobre o texto específico, na sua assimilação da composição clássica e em suas observações da população judaica da Holanda, onde viveu. Rembrandt pintava em camadas de tintas, construindo a cena da região mais afastada até a sua frente, com o uso de vernizes entre essas camadas, que eram bem espessas, o que permitia uma ilusão de ótica graças à qualidade tátil da própria tinta. ▪ Johannes Vermeer (1632–1675). Seus quadros são admirados pelas suas cores transparentes, composições inteligentes e brilhantes, com o uso da luz. Depois de Rembrandt, é considerado o pintor holandês mais importante do século XVII. ▪ Diego Velázquez (1599–1660). Além de retratar as pessoas da corte espanhola do século XVII, também procurou registrar em seus quadros os tipos populares do seu país, documentando o cotidiano do povo espanhol num dado momento da História. Seu diferencial era não se prender apenas ao cômico ou ao grotesco dos personagens, retratando todos respeitosamente e destacando a individualidade de cada um. ▪ Peter Rubens (1577–1640). Além de um colorista vibrante, notabilizou-se por criar cenas que sugerem, a partir das linhas contorcidas dos corpos e das pregas das roupas, um intenso movimento. Em seus quadros, é geralmente no vestuário que se localizam as cores quentes (vermelho, laranja e amarelo) que contrabalançam a luminosidade da pele clara das figuras humanas. Rococó O Rococó surgiu na França como um desdobramento do Barroco, mas mais leve e intimista que aquele e usado inicialmente na decoração de interiores. Caracterizou-se acima de tudo por sua índole hedonista e aristocrática, manifesta na delicadeza, na elegância, na sensualidade, na graça e na preferência por temas leves e sentimentais em que a linha curva, as cores claras e a assimetria tinham um papel fundamental na composição da obra. A pintura do Rococó divide-se em dois campos nitidamente diferenciados. Parte da produção é um documento visual intimista e despreocupado do modo de vida e da concepção de mundo das elites europeiasdo século XVIII, e outra parte, adaptando elementos constituintes do estilo à decoração monumental de igrejas e palácios, serviu como meio de glorificação da fé e do poder civil. Além disso, a pintura do Rococó apresenta o uso abundante de formas curvas e a profusão de elementos decorativos, tais como conchas, laços e flores, possuindo leveza, caráter intimista, elegância, alegria, frivolidade e exuberância. Começou a ser Cursinho Metamorfose História da Arte 16 criticada com a ascensão dos ideais iluministas, neoclássicos e burgueses, sobrevivendo até a Revolução Francesa, quando então caiu em descrédito completo, acusada de ser superficial, imoral e puramente decorativa. A partir de 1830, voltou a ser reconhecida como testemunho importante de uma determinada fase da cultura europeia e como um bem valioso por seu mérito artístico único e próprio, em que se levantam questões estéticas que floresceriam mais tarde e se tornariam centrais para a Arte posterior. ▪ Jean-Antoine Watteau (1684–1721). Suas figuras e cenas se converteram em modelos de um estilo bastante copiado que, durante muito tempo, obscureceu a verdadeira contribuição do artista para a pintura do século XIX. As suas paisagens campestres são palco de festas, encontros e representações teatrais nas quais suas pinceladas representam os prazeres cotidianos da sociedade burguesa associados a uma grande variedade de trajes que fizeram moda. Seus quadros são um retrato vivo e em movimento de uma época considerada decadente, mas extremamente elegante e requintada. ▪ François Boucher (1703–1770). As expressões ingênuas e maliciosas de suas numerosas figuras de deusas e ninfas em trajes sugestivos e atitudes graciosas e sensuais não evocavam a solenidade clássica, mas a alegre descontração do estilo rococó. Além dos quadros de caráter mitológico, Boucher pintou, sempre com grande perfeição no desenho, alguns retratos, paisagens e cenas de interior. A inspiração para o seu trabalho provinha de Watteau e de Rubens. ▪ Jean Fragonard (1732–1806). Pintor francês, cujo estilo rococó foi distinguido por sua notável exuberância e hedonismo. Destacou-se, sobretudo, como pintor do amor e da Natureza, de cenas galantes em paisagens idílicas. Foi um dos últimos expoentes do período Rococó, caracterizado por uma arte alegre e sensual. Entre suas obras mais populares estão as pinturas de gênero, que transmitem uma atmosfera de intimidade e erotismo. Neoclassicismo Nas duas últimas décadas do século XVIII e nas três primeiras do século XIX, uma nova tendência estética predominou nas criações dos artistas europeus, a saber, o Neoclassicismo (ou Academicismo, em virtude da sujeição aos modelos e às regras ensinadas nas escolas ou academias de belas-artes), que expressou os valores próprios de uma nova e fortalecida burguesia e assumiu a direção da sociedade europeia após a Revolução Francesa (principalmente com o Império de Napoleão). Após a Revolução Francesa, houve uma necessidade geral de ruptura com o passado próximo e com a sua estética associada, o Barroco. Também a nova prioridade dada ao racionalismo e ao novo modo de percepção do mundo, que emergiu com o Iluminismo, abalou a fé religiosa e relegou para segundo plano as temáticas artísticas relacionadas com o espiritual; por isso, desaparecem quase por completo as cenas religiosas para dar lugar ao gosto pelo historicismo (principalmente da Roma Antiga) e aos temas do cotidiano. Mas esta interpretação do passado vai assumir características diferentes daquelas assumidas durante o Renascimento. Os artistas neoclássicos vão basear-se em sua estética, mas vão atribuir-lhe um novo significado e um novo conteúdo, usando-a como invólucro da mensagem da nova visão de mundo e da sociedade. Ademais, a concepção que a sociedade tem da Arte transforma-se progressivamente, e passa, cada vez mais, a ser uma atividade pública exposta aos olhos de todos. Também a figura do artista ganha mais liberdade: não é mais obrigado a seguir um repertório iconográfico pré-definido, do qual todas as obras originam; ele próprio tem o poder de escolher o objeto da sua pintura e ordená-lo como mais lhe aprouver, de modo a transmitir a sua ideia. A pintura neoclássica é uma pintura descritiva de forte realismo, na qual o traço linear assume maior importância que a aplicação da cor (ao contrário da expressividade pictórica do Romantismo); as cenas vivem da composição formal, refletindo racionalismo dominante, e são harmoniosas; os elementos possuem contornos bem definidos e são dispostos em planos ortogonais equilibrados. De um modo geral, as figuras assumem uma postura rígida, em que a luz artificial direcionada (em foco) ajuda na criação de um ambiente teatral, resultando numa imagem sólida e monumental. Essa frieza, conseguida pelo artificialismo da composição, distancia o observador, tornando a pintura numa imagem simbólica. A partir dessa altura, em finais do século XVIII, vários estilos desenvolvem-se em paralelo, chegando a um ponto no qual se torna difícil apontar com precisão as diretrizes condutoras de cada um; e, dentro de cada estilo, cada artista segue o seu próprio caminho, finalizando a unidade na Arte e abrindo caminho para a arte romântica. ▪ Jacques-Louis David (1748–1825). Foi considerado o pintor da Revolução Francesa e, mais tarde, tornou-se o pintor oficial do Império de Napoleão, registrando fatos históricos ligados à vida do imperador. Suas obras expressam um vibrante realismo, mas algumas delas exprimem fortes emoções. Romantismo O estilo do Romantismo foi um feixe heterogêneo de estilos encontrados na pintura ocidental num período de mais de cem anos, entre o fim do século XVIII e o fim do século XIX, como uma reação ao equilíbrio, à impessoalidade, à racionalidade e à sobriedade do Neoclassicismo, e cuja ênfase estava na expressão de visões pessoais fortemente coloridas pela emoção dramática e irracional. Em outras palavras, não foi um estilo unificado em termos de técnica ou temática, já que a diversidade de contextos nos vários países onde essa corrente floresceu deu margem à formação de escolas regionais bastante características e por vezes centradas em temas ou abordagens específicos, tais como os fatos reais da história da vida dos artistas e a Natureza revelando um dinamismo equivalente às emoções humanas. Ainda assim, alguns entendem que o elo unificador dos pintores românticos foi a característica de libertação das convenções acadêmicas em favor da livre expressão da personalidade do artista, de sua individualidade, do intenso, do subjetivo, do irracional, do espontâneo e do emocional, do visionário e do transcendente, antes do que o impessoal, o lógico, o moderado e o claro, o equilibrado e o pré-programado que estruturaram o ideal clássico. Por isso, muitas vezes a expressão do gênio individual gerou projetos que buscavam primariamente chocar, cortejando o dramático, o bizarro, o não convencional, o exótico e o excêntrico, beirando o melodramático, o mórbido e o histérico. Suas ideias individualistas favoreceram o nascimento da liberdade de escolha, de um senso de integridade e independência do artista e de um espírito avesso às convenções estilísticas de sistemas de valores genéricos e impessoais como os sustentados pelo Neoclassicismo. Naturalmente, essa postura se chocava contra a ordem estabelecida, e não admira a proliferação de imagens dramáticas, uma das marcas dessa escola, expressando a solidão e a angústia do criador diante de uma sociedade incompreensiva, só encontrando consolo na Natureza, representada com uma face ora épica e heroica, ora lírica e terna, ora patética e aterrorizante, como um espelho de sua alma atormentada, mas em união mística com a Criação em seu estado virgem. Também esses sentimentos muitas vezes se mostravam como uma profunda compaixão para com o sofrimento do homem, ou como umarevolta contra a Cursinho Metamorfose História da Arte 17 opressão e as desigualdades, tendo muitas vezes servido a pintura para defender o povo contra a tirania do sistema (vide a contribuição de Goya e de Delacroix). Embora comumente concebida em oposição à pintura neoclássica e acadêmica, a romântica delas depende em termos de técnica, tomando de empréstimo muitos de seus modelos formais e, ocasionalmente, seus temas, sendo por vezes uma tarefa inglória definir fronteiras de estilo (pois ambas coexistiram durante um bom tempo). Como distinção genérica, os românticos dão maior ênfase à cor, seu desenho é menos exato e linear, privilegiando a mancha e a pincelada expressiva na construção da forma, suas composições são mais movimentadas e sua luz tem contrastes mais poderosos; a paisagem está convulsionada por tempestades ou mares agitados, com efeitos impactantes de atmosfera e iluminação, realçando a sensação de grandioso na vista de altas montanhas, de vales profundos e do horizonte infinito. Mas a violência e majestade da Natureza, o sofrimento do homem e o arroubo místico não foram as únicas linhas de trabalho românticas, e imaginar que o Romantismo é feito apenas de drama é privá-lo de boa parte de seu interesse e força; visões introspectivas, mais líricas e contemplativas, também são elementos típicos e essenciais dessa escola. ▪ Francisco José de Goya (1746–1828). Considerado por alguns como “o Shakespeare do pincel”, suas produções artísticas incluem uma ampla variedade representativa de retratos, paisagens, cenas mitológicas, tragédia, comédia, sátira, farsa, homens, deuses e demônios, feiticeiros e um pouco do obsceno, trabalhando temas diversos como os retratos de personalidades da corte espanhola e de pessoas do povo, os horrores da guerra, a ação incompreensível de monstros, as cenas históricas e as lutas pela liberdade. ▪ William Turner (1775–1851). Considerado por alguns um dos precursores do Impressionismo, em função dos seus estudos sobre cor e luz, representou grandes movimentos da Natureza. ▪ Eugène Delacroix (1798–1863). É considerado o mais importante representante do Romantismo francês. Na sua obra convergem a voluptuosidade de Rubens e a expressividade cromática de Turner. O pintor, que como poucos soube sublimar os sentimentos por meio da cor, entendia que nem sempre a pintura precisava de um tema (ideia que seria de vital importância para as pinturas vanguardistas). Suas obras, que representavam assuntos abstratos, personificando-os, apresentam forte comprometimento político, e o valor da pintura é assegurada pelo uso das cores, das luzes e das sombras, dando-nos a sensação de grande movimentação. Realismo Entre 1850 e 1900 surge, nas artes europeias, sobretudo na pintura francesa, uma nova tendência estética, o Realismo, que se desenvolveu ao lado da crescente industrialização das sociedades. O homem europeu, que tinha aprendido a utilizar o conhecimento científico e a técnica para interpretar e dominar a Natureza, convenceu-se de que precisava ser realista, inclusive em suas criações artísticas, deixando de lado as visões subjetivas e emotivas da realidade. Por conseguinte, a pintura do Realismo começou por manifestar-se no tratamento da paisagem, que se despiu da exaltação e da personificação românticas para se ater, simplesmente, na reprodução desapaixonada e neutra do que se oferece à vista do pintor. Passou, depois, aos temas do cotidiano, que tratou de forma simples e crua. Por essas características, os quadros realistas causaram escândalo por seus temas banais, por vezes ofensivos, pelas cores excessivamente mortas, pela falta de elaboração e conceitualização das composições. No entanto, para os seus defensores, a representação fiel da realidade era a última palavra em audácia artística. O Realismo manteve-se dentro dos preceitos acadêmicos no que diz respeito à exatidão do desenho e ao perfeito acabamento do quadro: os pintores realistas executavam, no exterior, breves esboços e apontamentos que trabalhavam, depois, de forma cuidadosa, nos ateliês. Seus quadros resultavam num instantâneo da realidade, como uma fotografia nítida, concreta e sólida, trabalhando a pintura enquanto politização a denunciar as injustiças e as imensas desigualdades entre a miséria dos trabalhadores e a opulência da burguesia. O cientificismo, o sóbrio, o minucioso, a expressão dos aspectos descritivos, a representação da realidade com a mesma objetividade com que um cientista estuda um fenômeno da Natureza foram características desse movimento, que entendia que aos seus artistas não cabia melhorar artisticamente o meio natural, pois a beleza estaria na realidade tal qual ela é. ▪ Jean-François Millet (1814–1875). É conhecido como precursor do Realismo, pelas suas representações de trabalhadores rurais. Sua obra foi uma resposta à estética romântica, de gostos um tanto orientais e exóticos, e deu forma à realidade circundante, sobretudo a das classes trabalhadoras. Sensível observador da vida campestre, criou uma obra na qual o principal elemento é a ligação atávica (características de ascendentes remotos) do homem com a terra. ▪ Gustave Courbet (1819–1877). Foi, acima de tudo, um pintor de paisagens campestres e marítimas nas quais o romantismo é substituído por uma representação da realidade que é fruto da observação direta. Essa busca da verdade é transposta para a tela em pinceladas espontâneas que não deixam de lado os aspectos menos estéticos do que é observado. Foi considerado o criador do “Realismo social” na pintura, pois procurou retratar em suas telas temas da vida cotidiana, principalmente das classes populares. Manifestou simpatia pelos trabalhadores e pelos homens mais pobres da sociedade do século XIX. Impressionismo O Impressionismo foi um movimento artístico que surgiu na pintura europeia do século XIX, revolucionando-a e dando início às grandes tendências artísticas do século XX. O termo “impressionismo” surgiu devido a um dos primeiros quadros de Claude Monet, “Impressão, nascer do sol”, por causa de uma crítica feita ao quadro pelo pintor e escritor Louis Leroy: “‘Impressão, nascer do sol’, eu bem o sabia! Pensava eu, se estou impressionado é porque lá há uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel! Um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha”. Como se nota, a expressão foi usada originalmente de forma pejorativa, mas Monet e seus colegas adotaram o título, sabendo da revolução que estavam iniciando. Os pintores impressionistas não mais se preocupavam com os preceitos do Realismo ou da academia. A busca pelos elementos fundamentais de cada arte levou-os a pesquisar a produção pictórica, não mais interessados em temáticas nobres ou no retrato fiel da realidade, mas em ver o quadro como obra em si mesma. Utilizando pinceladas soltas, viam na luz e no movimento os principais elementos da pintura, sendo que geralmente as telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor pudesse capturar melhor as variações de cores da Natureza. Havia algumas considerações gerais, muito mais práticas do que teóricas, que os artistas seguiam em seus procedimentos técnicos para obter os resultados que caracterizaram a pintura impressionista. São elas: a pintura deve mostrar as Cursinho Metamorfose História da Arte 18 tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz do sol num determinado momento, pois as cores da Natureza mudam constantemente, dependendo da incidência da luz do sol; é também, por isso, uma pintura instantânea (captar o momento); as figuras não devem ter contornos nítidos, pois o desenho deixa de ser o principal meio estrutural do quadro, que passa a ser a mancha/cor; as sombras devem ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam, o preto jamais é usado em uma obra impressionista plena; as cores e tonalidades
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