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11 MARA REGINA TRIPPO KIMURA AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS – A VIDA EMBRIONÁRIA E O PATRIMÔNIO GENÉTICO HUMANO – À LUZ DA REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL DOUTORADO EM DIREITO PUC/SP SÃO PAULO 2006 12 MARA REGINA TRIPPO KIMURA AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS – A VIDA EMBRIONÁRIA E O PATRIMÕNIO GENÉTICO HUMANO - À LUZ DA REGRA DA PROPORCIONALIDADE PENAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito (área de Direito das Relações Sociais, sub-área de Direito Penal), sob a orientação do Professor Doutor Dirceu de Mello. PUC/SP SÃO PAULO 2006 13 Banca Examinadora ______________________________ Professor Doutor Dirceu de Mello (orientador) ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ 14 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a meu filho, muito esperado e muito amado. 15 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, sempre. Agradeço ao meu Mestre, Professor Doutor Dirceu de Mello, pelo incentivo, pela confiança e pelos ensinamentos. Com carinho, agradeço ao parceiro de todas as horas, meu marido, Alexandre. Minha gratidão à minha família, especialmente à minha mãe. 16 RESUMO A genética evolui rápido, com ênfase na manipulação de genes e de células, facilitada pela reprodução assistida. Ao lado de benefícios (ou expectativas), agrega novos riscos, porque as técnicas são experimentais. Para controle das atividades, o Direito Penal é reclamado e, a fim de coibir excesso, apresenta-se a regra da proporcionalidade, mediante seus elementos: necessidade, adequação e proporcionalidade estrita. Na aplicabilidade desta regra, a noção central é o bem jurídico. Entre eles, destaca-se a vida, cuja tutela a partir da fecundação se afigura mais razoável em face da atualidade científica. Atrelados à dignidade humana, emergem novos bens, como a integridade genética. Iniciado pelo conceito de bem, o juízo da necessidade penal é complementado pelas exigências da subsidiariedade e da fragmentariedade. Na adequação, perquire-se a idoneidade da norma para evitar infrações e suas vantagens e desvantagens perante a impunidade. Nas conexões com a pesquisa científica, estes juízos aceitam a atuação preventiva da lei penal, imposta pela importância dos bens, irreversibilidade e dimensão imensurável do dano e dificuldade probatória do nexo causal. A proporcionalidade estrita preocupa-se com a justiça da pena para o delito, valendo-se, na comparação entre as categorias, de subsídios de ordem prática. Palavras-chave: Bioética – Biodireito – Manipulação Genética - Proporcionalidade – Bem jurídico – Vida - Patrimônio Genético 17 ABSTRACT Genetics develops rapidly, with emphasis on genes and cells manipulation, facilitated by assisted reproduction. Besides its benefits (or expectations), new risks are added, because it deals with experimental techniques. In order to control such activities, an appeal is made to Criminal Law, which in order to control abuse or excess, makes use of the proportionality theory, through its basic elements, such as need, adequacy and strict proportionality. While applying this rule, the main point is the tutelage of legally protected rights, among which, human life should be pointed out, whose protection, starting from fecundation, seems to be more reasonable in view of the current scientific trends. From the human dignity concept, new approaches emerge, such as genetic integrity. Starting from life protection concept, the judgement of Criminal Law requirement is complemented by subsidiary and fragmentary demands. While adjusting the situation to the norm, an analysis is made on the suitability of the norm to avoid infringements, as well as its advantages and disadvantages before impunity. While connecting such judgements with scientific research, they admit the Criminal Law preventive action, imposed by the importance of such rights, as well as by the irreversibility and immeasurable extent of damage therefrom, as well as the difficulty of proving the causality link. Strict proportionality concerns with justice of the penalty to be imposed to the tort or delict, taking advantage of comparisons among the various categories, of subsidies taken from practise. Key words: Bioethics – Biolaw – Genetic Manipulation – Proportionality – Legal right – Life – Genetic heritage. 18 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11 1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO .....14 1.1 A ciência da vida e a ética ................................................................................................14 1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco” ......................................................14 1.1.2 Conceitos científicos básicos ..................................................................................20 1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade..................................................................23 1.2 A bióetica...........................................................................................................................26 1.2.1 A origem da bioética................................................................................................26 1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos .......................................................30 1.2.3 As relações da bioética com o Direito.....................................................................32 1.3 Formas de controle das ciências biomédicas ..................................................................34 1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional...................................................................34 1.3.2 A tutela administrativa das atividades.....................................................................36 1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina .....................................................................40 1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina ....................................................................40 2. AS MODERNAS TÉCNICAS DA GENÉTICA E SUAS APLICAÇÕES NA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA......43 2.1 A experimentação no homem...........................................................................................43 2.1.1 Experimentação terapêutica....................................................................................44 2.1.2 Experimentação não-terapêutica ............................................................................46 2.1.3 Experimentação pura ..............................................................................................46 2.2 A terapia gênica ................................................................................................................47 2.2.1 Terapia genética em células somáticas ..................................................................49 2.2.2 Terapia gênica nas célulasda linha germinal.........................................................50 2.3 A reprodução humana assistida .......................................................................................51 2.3.1 O indivíduo e as distintas fases do seu desenvolvimento ......................................51 2.3.1 Noções gerais ..........................................................................................................55 2.3.2.1 Inseminação artificial (IA) ..........................................................................56 2.3.2.2 Fecundação in vitro (FIV) ..........................................................................57 19 2.3.2.3 Variantes comuns da fecundação in vitro .................................................58 2.3.2.4 Pontos controvertidos ................................................................................59 2.4 A manipulação genética aplicada às técnicas de reprodução humana...........................61 2.4.1 A seleção genética: eugenia ...................................................................................61 2.4.2 A clonagem..............................................................................................................63 2.4.2.1 Clonagem reprodutiva................................................................................65 2.4.2.2 Clonagem terapêutica e as células-tronco................................................66 2.4.3 Hibridação, quimeras e partenogênese..................................................................74 3. A PROPORCIONALIDADE ...............................................................................76 3.1 Os princípios e as regras como normas jurídicas ............................................................76 3.2 A proporcionalidade como regra.......................................................................................79 3.3 A nomenclatura .................................................................................................................81 3.4 A origem e a evolução histórica da proporcionalidade ....................................................83 3.5 A consagração constitucional ...........................................................................................87 3.6 A proporcionalidade e os direitos fundamentais ..............................................................90 3.7 Conteúdo da regra da proporcionalidade no direito penal ...............................................94 4. A SUB-REGRA DA NECESSIDADE ..........................................................98 4.1 Linhas gerais .....................................................................................................................98 4.2 A exclusiva proteção dos bens jurídicos ..........................................................................98 4.2.1 Considerações preliminares....................................................................................98 4.2.2 Breve evolução histórica .......................................................................................101 4.2.3 O enfoque sociológico: a fragilização do conceito ...............................................104 4.2.4 O enfoque constitucional: a recuperação do conceito..........................................110 4.2.5 Nossa posição .......................................................................................................114 4.3 A intervenção mínima.....................................................................................................116 4.3.1 Os postulados: a fragmentariedade e a subsidiariedade .....................................116 4.3.2 A concretização: os conceitos de dignidade e carência de tutela penal..............122 4.3.3 As funções do direito penal...................................................................................124 4.3.3.1 A função promocional ..............................................................................125 4.3.3.2 A função simbólica...................................................................................127 4.3.3.3 A função de satisfação de expectativas sociais......................................128 4.3.3.4 Relações com a genotecnologia: nossa posição....................................129 4.4 O bem jurídico supra-individual ......................................................................................132 20 5. A SUB-REGRA DA ADEQUAÇÃO ...........................................................138 5.1 Seus traços comuns........................................................................................................138 5.2 Os obstáculos no exame da idoneidade penal ..............................................................141 5.3 O delito de perigo ............................................................................................................144 5.4 As normas penais em branco.........................................................................................148 6. OS BENS JURÍDICOS (1): CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIGNIDADE HUMANA E A VIDA ..............................................................152 6.1 A dignidade humana .......................................................................................................152 6.1.1 Ponderações preambulares ..................................................................................152 6.1.2 O plano do direito positivo .....................................................................................156 6.1.3 A relação com os direitos individuais e a impossibilidade da sua identificação como bem jurídico................................................................................................160 6.2 A vida...............................................................................................................................162 6.2.1 As teorias sobre o começo da vida .......................................................................163 6.2.1.1 As posições clássicas: gregos e romanos ..............................................163 6.2.1.2 A doutrina da Igreja Católica: a teoria da animação ...............................164 6.2.1.3 A teoria da fecundação ou formação do genótipo ..................................168 6.2.1.4 A teoria da nidação..................................................................................172 6.2.1.5 A teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central.........179 6.2.1.6 Nossa posição..........................................................................................181 6.2.2 Perfil internacional .................................................................................................184 6.2.3 Perfil constitucional................................................................................................186 6.2.4 Parâmetros para a intervenção penal ...................................................................192 6.2.4.1 A vida humana “in vivo”: algumas considerações sobre o aborto ..........194 6.2.4.2 A vida humana “in vitro”...........................................................................199 7. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O DIREITO À VIDA..................203 7.1 A seleção pré-implantatória ............................................................................................203 7.2 A fecundação de óvulos com fins distintos da procriação .............................................212 21 7.3 A criopreservação de embriões ......................................................................................217 8. OS BENS JURÍDICOS (2): CONSIDERAÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO GENÉTICO ...............................................................................230 8.1A dupla faceta: a individual e a coletiva .........................................................................230 8.2 Perfil internacional...........................................................................................................235 8.3 Perfil constitucional .........................................................................................................237 8.4 Parâmetros para a intervenção penal ............................................................................239 9. AS TÉCNICAS BIOMÉDICAS E O PATRIMÔNIO GENÉTICO .........................................................................................................................242 9.1 A manipulação genética..................................................................................................242 9.2 A clonagem humana.......................................................................................................251 9.2.1 Clonagem reprodutiva: aspecto individual ............................................................251 9.2.2 Clonagem reprodutiva: aspecto supra-individual..................................................256 9.2.3 Clonagem terapêutica ...........................................................................................260 9.3 A seleção de gametas e de embriões: a escolha do sexo.............................................264 9.4 Os híbridos e as quimeras....................................................................................................267 10. A SUB-REGRA DA PROPORCIONALIDADE ESTRITA.......271 10.1 Considerações gerais ...................................................................................................271 10.2 Proporcionalidade das penas e os delitos referentes à genotecnologia .....................274 10.3 Relação entre os ilícitos disciplinar, administrativo e penal.........................................280 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ........................................ 288 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................294 22 INTRODUÇÃO A busca pelo conhecimento motiva continuamente a humanidade para mudanças, que nem sempre representam formas de progresso. A ciência da vida ou biomedicina, em virtude da interferência da tecnologia em incessante evolução, amplia, com celeridade, seus horizontes. Nessas circunstâncias, atormenta conceitos pouco questionados, como o começo da vida humana e o padrão genético da espécie. Os riscos relacionados às práticas científicas são, em certas ocasiões, obscurecidos, em razão de interesses escusos movidos pelo egoísmo, pelo interesse no lucro ou pela vaidade. Em outras ocasiões, são dramatizados, graças ao sentimento social de insegurança, não constantemente calcado na realidade. O medo, porém, não pode inibir a criação científica, porquanto, do contrário, muitas melhoras à saúde nunca teriam sido conquistadas, como se notou no passado com as vacinas. No esforço pelo equilíbrio, o Direito é chamado para disciplinar os comportamentos. Partindo de dados científicos, o jurista, sob lente cultural, formula normas que, no âmbito penal, objetivam proteger subsidiariamente bens jurídicos, sem prejuízo de promoverem valores. Posta assim a questão, o presente estudo se propõe à análise da tutela jurídico-penal sob o prisma da proporcionalidade, noção que remotamente adentrou neste ramo jurídico. Assentados na Constituição Federal brasileira, os seus elementos serão introjetados nas práticas biomédicas, a fim de que se apure a legitimidade da intervenção penal. 23 O ponto de partida se resume à discussão do formato atual da sociedade abalada por novas modalidades de risco, da responsabilidade no exercício da atividade científica, do papel da bioética e das formas de controle, institucionalizadas ou não. A seguir, para ampliar a esfera de conhecimento e, portanto, de compreensão sobre as novas técnicas da biomedicina, serão traçadas suas linhas gerais, sem a pretensão de esgotar o tema. A fim de estabelecer nosso entendimento acerca da idéia de proporcionalidade, será explicitada a correlata categoria normativa que ocupa, qual seja a de regra, bem como serão expostos seus elementos: a necessidade, a adequação e a proporcionalidade estrita. Decodificando o juízo da necessidade, ingressaremos no conceito de bem jurídico e, aspirando a alcançar seu sentido material, será percorrido o caminho de sua evolução histórica e das teorias atuais. Na complementação do raciocínio, serão examinados os postulados da intervenção mínima (subsidiariedade e fragmentariamente) e de suas noções concretizadoras (dignidade penal e carência de tutela). Fixada a proteção de bens jurídicos como função primária do direito penal, serão explanadas as paralelas, dotadas de crucial importância na seara da biotecnologia. Dada a insuficiência da positividade da necessidade penal para a tipificação legítima do comportamento, será ponderado o juízo de adequação, quando se esquadrinharão as bases para a suscetibilidade da conduta à tutela penal, sob o ângulo das condições reais do sistema jurídico e da sociedade. Delineados tais parâmetros, a etapa seguinte compreenderá a identificação dos bens jurídicos afetados pela engenharia genética em si mesma, bem como em suas relações com a reprodução assistida. Seriam infindáveis as 24 discussões se todos os bens fossem abordados neste trabalho. Por isso, com base no quadro vivenciado atualmente, marcado pela preocupação em torno do estatuto do embrião e das conseqüências provenientes da alteração do genoma humano para a espécie, o debate restará restrito aos bens que os afligem diretamente. Ato contínuo, mister se faz embrenhar no estudo da dignidade humana à vista do conceito de bem jurídico e, após, da vida, suporte ontológico de todos os demais bens, com destaque para as teorias explicativas de seu início. Para não perder de vista as ponderações, será, após, demarcada a relação entre a vida e as técnicas biomédicas, sempre sob o enfoque das sub-regras da proporcionalidade. A seguir, a análise adentrará na integridade genética humana, um novo bem jurídico. Como procedido com a vida, também será abordada a relação entre o genoma humano e a biomedicina. Ainda na investigação da vida e do patrimônio genético, serão descritos os perfis internacional e constitucional dos respectivos bens, como também os parâmetros para ius puniendi. Finalizando, não podemos olvidar do juízo da proporcionalidade estrita, em que se almeja a justa resposta ao crime para combatê-lo, e cuja análise consignará sua relação com os delitos referentes à tecnologia genética. A importância de um estudo mais acurado sobre a presente temática salta aos olhos face ao estágio da ciência atrelado à postura da sociedade perante ele, ora entusiasmada, ora temerosa. Ao aceitar os avanços ou ao pugnar por medidas restritivas, o indivíduo, o Estado e a humanidade, num plano mais abrangente, exteriorizam a postura diante de fatores essenciais para a existência e a dignidade humana. 25 1. A REVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, A BIOÉTICA E O DIREITO 1.1 A ciência da vida e a ética 1.1.1 A revolução científica e a “sociedade de risco” O impulso pelo conhecimento, a ânsia pela cura de enfermidades ou por uma melhor qualidade de vida, a imposição de interesses financeiros e políticos ou até mesmo a vaidade humana conduziram o homem a inovações científicas que, paulatinamente, dissiparam a distinção entre o natural e o artificial.1 Nesse contexto, está situada a biomedicina ou ciência da vida, que se ocupa doestudo científico da vida e de sua qualidade, com destaque para a medicina e a biologia, sobretudo na área da genética.2 Trata-se de campo do conhecimento radicalmente marcado por duas transformações, a saber: I) a revolução terapêutica que, deflagrada com a descoberta das sulfamidas,3 em 1936, e da penicilina, em 1946, decorreu da aplicação de novos medicamentos na prevenção, no tratamento de doenças e na pesquisa clínica; II) a revolução biológica que, processada por meio de descobertas sobre os genes, tem propiciado alternativas para a reprodução humana, além de, em paralelo à 1Cf. CANABARRO, Nelson Souza. Prefácio. In: BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. e pref. por Nelson Souza Canabarro. Bauru/SP: EDUSC, 1997. p. 11. 2Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Do gene ao direito: sobre as implicações jurídicas do conhecimento e intervenção. São Paulo: IBCCrim, 1999. p. 4. 3As sulfamidas são medicamentos eficazes contra infecções e foram descobertas por Domagk, na Alemanha, e por Tréfouel, em França (1936-1937). 26 prevenção e à cura, almejar a eliminação de propensões a enfermidades agregadas à composição genética.4 A última das revoluções foi impulsionada em 1944, quando Oswald Avery, Mc Lead e Mac Carty descobriram o DNA (ácido desoxirribonucléico), que é o mensageiro molecular responsável por toda a informação genética do indivíduo. A estrutura do DNA, em dupla hélice de quatro bases nitrogenadas, foi descrita por James Watson e Francis Crick, em 1953, quando se revelou que cada espécie carrega patrimônio genético próprio e que cada ser vivo é formado por um patrimônio único, salvo no caso de gêmeos monozigóticos. Na atualidade, sobressai o “Projeto Genoma Humano” que, iniciado em meados de 1980, nos Estados Unidos, tinha como primeiro objetivo o estudo do efeito da exposição dos genes humanos a baixas intensidades de radiação. Mais adiante, em razão das visíveis vantagens das pesquisas, especialmente para a medicina preditiva, que está centralizada em investigações sobre a predisposição genética a doenças, seguiram propostas de outros estudos, voltados para a cartografia dos genes, os quais impulsionaram, mais e mais, o projeto, quando países desenvolvidos decidiram se incorporarem a ele. Entre eles estão Canadá, Japão, vários países da União Européia e, recentemente, o Brasil. Na Europa, simultaneamente, foram lançados os projetos “Biomed” e “Biomed 2”. Graças aos estudos empenhados, vários “mapas” foram elaborados com diferentes qualidades de resolução, trazendo a localização de genes responsáveis por enfermidades, bem como a seqüência de fragmentos de DNA medicamente relevantes. Em 14 de abril de 2003, os pesquisadores do 4Cf. BERNARD, Jean. Da biologia à ética. Trad. por Reina Castilho. Campinas/SP: Psy II, 1994. p. 29. 27 “Projeto Genoma Humano” anunciaram oficialmente o seqüenciamento de 3.000.000.000 de bases do DNA da espécie humana. Atualmente, grandes esforços são despendidos na aquisição de técnicas e instrumentos para o traçado de mapas, com o fim de reduzir o custo e aumentar a eficácia da investigação, quando a contribuição da informática desponta como decisiva.5 O contexto científico contemporâneo acena para a concretização de antigas idéias de ficção científica de Aldous Huxley, reveladas na obra Admirável mundo novo, cuja primeira edição remonta ao ano de 1932. Mais importante, demonstra que o progresso da genética deriva da aproximação entre a ciência e a técnica, e desnuda o fenômeno cultural intitulado tecnociência, caracterizado pela tendente homologia entre o conhecer - pesquisa ou investigação pura (ciência) - e o fazer - emprego dos resultados das descobertas, consumado mediante a aplicação técnica do conhecimento.6 Nesta seara, situa-se a biotecnologia que significa o conjunto de técnicas em que são usadas as propriedades do material biológico para múltiplos fins, como segurança ambiental, alimentar, agronegócio, terapia gênica, alimentos geneticamente modificados, vacinas e clonagem. Sem embargo dos benefícios que apresenta para a sociedade presente e das inúmeras expectativas para o porvir, a biotecnologia agrega novos riscos, porque as descobertas, além de idealizarem um contexto até então apenas cogitado, não poucas vezes estão calcadas em procedimentos que trafegam pela fase experimental, com projeção de efeitos não dominados ou inimagináveis. 5Cf. ROMEO CASABONA, Carlos María. Genética e direito. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). Biotecnologia, biodireito e bioética: perspectivas em direito comparado. Trad. por José Carlos Sampaio Rodarte. Belo Horizonte: Del Rey; PUC-MG, 2002. p. 24-25. 6A palavra técnica provém do grego teknicas , que significa fazer bem algo. 28 Preocupado com o tema, Ulrich Beck debruçou-se sobre o modelo macrosociológico da era pós-industrial, desenhando seus caracteres, entre os quais, por ora, são pontuados os mais enfáticos. O primeiro reside na diferenciação entre a causa e o potencial dos grandes perigos atuais e os de épocas pretéritas. Enquanto outrora os perigos decorriam de desastres naturais ou pragas, no presente são marcados pelo artificialismo, pois fabricados pelo homem, dependentes de sua decisão e atuação. A par disso, porque ligados à exploração da energia nuclear, de produtos químicos, de recursos alimentícios, ecológicos ou, frise-se, genéticos, os novos riscos afetam a humanidade como um todo e, sendo assim, tendem a uma difusão avassaladora, incluindo possibilidades de autodestruição coletiva, acentuadas pelo fenômeno da globalização.7 A segunda peculiaridade, também apontada por Beck, está nas conseqüências dos riscos da modernização, posto que, além das primárias, se verificam outras, secundárias (Nebenfolgen), que correspondem a efeitos indesejados, não previstos ou imprevisíveis, desencadeados nas esferas social, econômica e política, os quais, na opinião do sociólogo, correspondem ao potencial político das catástrofes. Na sua ótica, os perigos anteriores à industrialização eram passíveis de imputação ao destino, às forças da natureza, aos deuses, enfim ao fatalismo, e por isso nenhuma resposta se esperava do Direito, ao passo que, nos perigos artificiais, onde as respectivas decisões partem do ambiente industrial ou técnico-econômico, abre-se margem para a responsabilidade pela conseqüência indesejada, campo onde, ao lado das 7Ulrich Beck, Risikogesellschaft Auf dem Weg in eine andere Moderne, Frankfurt am Main 1986, p. 31, 48, 52 e 103, e Revista de Occidente, n. 150, nov./93, p. 25-33, apud MENDONZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 24-28. 29 pessoas individualizadas, figuram, como possíveis alvos, as autoridades administrativas e as empresas implicadas. 8 Não são poucas as dificuldades a serem trabalhadas no universo jurídico, porque, como ainda adverte Beck, são insuficientes as regras tradicionais de causalidade e de responsabilização, o que se denota na maioria das atividades que exigem a inter-relação de tecnologias, em funcionamento dentro de contextos coletivos intricados, quando, muitas vezes, a multiplicidade das ações confere azo à irresponsabilidade. 9 Baseado em tais ponderações, Beck distingue três sociedades: I) a tradicional, em que a origem e os efeitos dos riscos são individualizados e facilmente constatáveis; II) a industrial, em que a ordemdos riscos segue individualizada, mas os efeitos são coletivos; III) a de risco, referente à etapa atual (pós-industrial), em que, além dos perigos tradicionais e industriais, se instalam outros, cuja origem é, desde logo, generalizada e os efeitos são coletivos, residindo, nesses atributos, os seus principais entraves.10 Em decorrência da nova ordem, a sociedade atual, para Jesús María Silva Sánchez, padece de sensação de insegurança subjetiva (“sociedade do medo”), que pode advir independentemente de riscos reais, seja em razão da velocidade das mudanças, seja em função do acesso quase que instantâneo de sua ocorrência, em virtude da evolução dos meios de comunicação, o que se traduz numa demanda pública ascendente por normas de controle.11 8MENDONZA BUERGO, Blanca. op. cit. 9Id. Ibid. 10Ulrich Beck, Die Erfindung des Politische, Frankfurt am Main 1993, p. 39-41, apud LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, Jacob. El moderno derecho penal para una sociedad de riesgos. Poder Judicial, Madrid, n. 48, 3. época, p. 293, 1997. 11Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión de derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999. p. 21-28. 30 Essas reflexões revelam, na precisa lição de Figueiredo Dias, a superação de uma era em que os riscos provinham de forças da natureza ou de ações individualizadas, próximas e definidas, para a contenção das quais era bastante a tutela dispensada aos bens clássicos (vida, corpo, saúde, patrimônio). É anunciada uma nova sociedade, exasperadamente tecnológica, massificada e global, onde os riscos, globais ou tendentes a tanto, podem ser produzidos em tempo e lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e podem gerar, como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção da vida.12 A mudança instiga reformas nas estruturas política e jurídica que, se efetivadas, provocariam a passagem do Estado Liberal Clássico para o Estado de Prevenção, que é mais permeável à expansão desmedida do direito penal, como admoesta Alessandro Baratta.13 A grande missão do penalista está na busca do equilíbrio, para, de um lado, evitar a exclusão do direito penal em questões fundamentais, como a preservação do Planeta e das espécies, e, de outro, para banir ingerências meramente simbólicas, inócuas na prática, e que conferem às normas penais o papel equivocado de compensar o déficit estatal e social de controle da tecnologia. A noção de proporcionalidade apresenta-se como aparato valioso na tarefa, auxiliando no balanceamento de bens. 12Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal. Sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., 2001. p. 158. 13BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del derecho penal: una discusión en la perspectiva de la criminología crítica. Trad. por Mauricio Martínez Sánchez. Pena y Estado: función simbólica de la pena, Barcelona, n. 1, p. 44-45, sept./dic. 1991. 31 1.1.2 Conceitos científicos básicos O controle jurídico das atividades científicas depende do manejo de certos conceitos inerentes à biologia, porque são com freqüência importados pelo legislador diretamente do campo fenomênico para o mundo normativo. Desde logo, são expostos os mais usuais. O cromossomo consiste em estruturas cuneiformes situadas no núcleo de uma célula que armazenam e transmitem informação genética: é a estrutura física portadora dos genes. Está composto essencialmente de DNA ou ADN.14 Cada espécie tem um número próprio de cromossomos. O gene é a unidade de informação hereditária, situada no cromossomo, e que determina as características de um indivíduo.15 O genoma é o conjunto de genes, ou seja, o conjunto da informação genética do cromossomo. O genótipo significa a constituição genética do indivíduo, isto é, a classe de genes que pessoalmente herdou, formando uma espécie em particular. Da interação do genótipo com as condições ambientais, resulta o fenótipo, que configura o aspecto ou aparência do indivíduo em relação à espécie.16 14O DNA é um filamento alongado, formado por dois filamentos paralelos, enrolados em eixo imaginário, em forma helicoidal de escada. Cada filamento é composto por uma cadeia de moléculas ou bases nitrogenadas seqüenciais, quais sejam A, T, C e G (adenina, tinina, citosina e guanina). Cada base de filamento se emparelha de forma precisa e determinada com a base de outro filamento ou cadeia, ou seja, A-T, T-A, C-G e G-C. Não é possível a combinação, por exemplo, A-G, quando se está diante de erro ou mutação. No DNA humano, há cerca de três milhões de pares de bases. A linguagem (estrutura química) é a mesma, pois, como ensina Dussaut, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1980: “É apenas a ordem com que estas quatro letras se sucedem o que diferencia a roseira ou o milho de uma bactéria, de um elefante ou de um homem”. 15Recorrendo à representação gráfica de agrado dos biólogos, pode-se dizer que o código genético seria um dicionário; as bases nitrogenadas do DNA seriam as letras; os aminoácidos, compostos por três bases agrupadas que, combinadas, formam as proteínas, corresponderiam às palavras. 16Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal. São Paulo: IBCCrim, 1998. p. 23-24. 32 O certo grau de maleabilidade que caracteriza o genoma permite nova combinação de genes mediante dois mecanismos naturais: a recombinação genética e a mutação. A recombinação genética cons titui o intercâmbio de informação hereditária entre 2 dois organismos independentes, o que acarreta combinação diferenciada de genes e facilita o aparecimento de organismos variantes dentro de uma espécie. Opera nos ciclos de reprodução humana, de modo que o novo ser possuirá 50% (cinqüenta por cento) da informação genética de cada um dos seus progenitores. A mutação genética é o mecanismo pelo qual um gene sofre uma transformação repentina, que resultará em nova forma.17 A recombinação e a mutação podem ocorrer artificialmente graças aos avanços tecnológicos da genética, entre os quais avulta a manipulação genética que assume dupla acepção. Em sentido estrito, corresponde à engenharia genética ou à manipulação genética molecular, cujo material de trabalho está nas seqüências de DNA onde se encontram os genes. A engenharia genética engloba o conjunto de técnicas do DNA recombinante, conforme o art. 3º, V, da Lei Federal n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995 18 e o art. 3º, IV, da atual Lei Federal n. 11.105, de 24 de março de 2005.19 17MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23-25. 18Cf. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo. Direito ambiental e patrimônio genético. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 151. 19Em 31 de outubro de 2003, foi apresentado Projeto de Lei de autoria do Executivo à Câmara dos Deputados, estabelecendo novas regras sobre a segurança e a fiscalização de organismos geneticamente modificados. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro de 2004. Enviado ao Senado, a Casa aprovou o projeto substitutivo do senador Ney Suassuna, em 6 de outubro daquele mesmo ano, por 53 (cinqüenta e três) votos a favor, 2 (dois) contra e 3 (três) abstenções. Retornando a Câmara, em 3 de março de 2005, foi aprovado o substitutivo do deputado Darcísio Perondi, por 352 (trezentos e cinqüenta e dois) votos a favor, 60 (sessenta) contrários e 1 (uma) abstenção. Finalmente, foi sancionado em 24 de março daqueleano, e consubstancia a Lei n. 11.105/05, que atualmente regula a matéria. 33 Descobertas em 1972 por Paul Berg, as técnicas do DNA recombinante são operacionalizadas pela modificação, inserção, substituição ou supressão de genes (fragmentos de DNA). A inserção ou adição consiste na introdução na célula de um gene ausente no genoma. A modificação transforma o gene defeituoso. Na substituição, extrai-se o gene anômalo e coloca-se o normal em seu lugar. Na supressão, o gene é retirado ou neutralizado.20 Em sentido amplo, a manipulação genética inclui, ao lado da manipulação molecular, a análise dos genes e as intervenções não-moleculares, que se consumam sobre as células, os tecidos e os órgãos, especialmente na fase embrionária, com destaque para a hibridação e clonagem.21 Em outro posto, estão as técnicas de reprodução assistida que, em si mesmas, não alteram o patrimônio genético humano nem o recombinam fora dos padrões naturais da espécie. Promovem, exclusivamente, o manuseio de gametas e embriões, para a concepção de um ser humano por meios não- naturais, pelo que são chamadas, em seu todo, de manipulação ginecológica.22 Entretanto, é patente a proximidade entre as técnicas em apreço e a manipulação genética, porquanto aquelas colocam, em laboratório, à disposição dos cientistas, os gametas, as células e os embriões, facilitando, à saciedade, a manipulação de suas propriedades biológicas. 20Cf. HOMS SANZ DE LA GARZA, Joaquin. Avances en medicina legal ingeniería genética, alteraciones psíquicas y drogas. Barcelona: Bosch, 1999. p. 22. 21Cf. BENÍTEZ ORTUZAR, Ignácio Francisco. Aspectos jurídico-penales de la reproducción asistida y la manipulación genética humana. Madrid: Edersa, 1997. p. 31-32. 22Cf. MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 23. 34 1.1.3 A ciência e a ética da responsabilidade Nos últimos 500 (quinhentos) anos, graças ao processo de secularização e modernidade, o homem paulatinamente passou a ser considerado como o sujeito, o senhor e o proprietário do mundo. Na percepção de Anselmo Borges, o giro consagrou a razão técnico-instrumental que, centrada no manejo de meios para o controle do universo, exclui considerações teleológicas, resumindo-se na lógica do domínio da ação.23 Sob tal ótica, as ciências da natureza, entre as quais a biomedicina, podem ser imaginadas de forma desapegada do meio social, como se estivessem numa redoma envolvida pelo manto da neutralidade. O pensamento estimula aventuras técnicas ilimitadas, como aquelas dirigidas à substituição da casualidade, em que as aleatórias combinações naturais cedem enorme espaço para a seleção intervencionista (escolha arbitrária de gametas ou embriões para a fecundação assistida, clonagem reprodutiva para cópia de uma determinada pessoa). Embora o determinismo mecanicista deposite nas mãos dos homens poderes antes impensáveis, o desprezo científico pelo fim é apenas provisoriamente sustentável. Conquanto a investigação pura (técnicas para as descobertas) seja, em princípio, imparcial porque voltada para o conhecimento, sempre está condicionada por certas finalidades, as quais integram um processo impregnado de escolhas. De fato, a seleção do objeto investigativo e a eleição de um entre múltiplos meios englobam uma opção valorativa entre os benefícios e os custos de dada pesquisa. 23BORGES, Anselmo. O crime económico na perspectiva filosófico-teleológica. Revista Portuguesa de Ciências Criminais, Coimbra, ano 10, fasc. 1, p. 13-15, jan./mar. 2000. 35 Em meio às preferências, a lógica do conhecimento interage com fatores históricos, culturais, financeiros e políticos, ou seja, com os caracteres do meio social. Destarte, não há ciência totalmente neutra e, ante a conscientização dessa realidade, a razão instrumental, porque em extrema penúria de fins e deserto de sentido, entra, nos dizeres de Anselmo Borges, em colapso.24 O embaraço nos dias de hoje é flagrante no âmbito das novidades genéticas, porque muitos dos riscos que provocam nunca foram pensados. Para superar a crise, o autor português propõe, com acerto, a conscientização de que as novidades científicas, se ameaçam, fazem-no a todos, cabendo à humanidade presente, se quiser ter futuro, portar-se como sujeito comum da responsabilidade pela vida.25 Via de conseqüência, no exercício de atividade científica, cada um dos seres humanos deve fiscalizar e ser fiscalizado, de maneira que delimite seu comportamento pelo binômio liberdade- responsabilidade, salientado por Maria Garcia.26 O binômio não se impõe para cercear o desenvolvimento científico, o que seria negativo para todos, senão para destacar critérios humanitários que orientem as pesquisas e a técnica e, nesse propósito, a ética ganha espaço. A palavra, dotada de forte carga emotiva, é empregada nos mais variados contextos, o que lhe confere aparente confusão de sentido27 que pode ser diluída pela diferenciação entre ética e moral. Segundo Marco Segre e Cláudio Cohen, a moral assume as seguintes características: “1. seus valores não são questionados; 2. eles são 24BORGES, Anselmo. op. cit., p. 23-24. 25Id. Ibid., p. 31. 26Cf. GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 260. 27Cf. NALINI, Renato. Ética geral e profissional. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 5. 36 impostos; 3. a desobediência às regras pressupõe um castigo”.28 Já a ética é recoberta por outros atributos: “1. percepção dos conflitos (consciência); 2. autonomia (condição de posicionar-se entre a emoção e a razão, sendo que essa escolha de posição é ativa e autônoma); 3. coerência”.29 Guy Durand apresenta a moral como termo que, associado à prática (ao comportamento), forma um sistema fechado de normas, de ordem religiosa ou confessional. A ética aparece como ciência da conduta, que tem por objeto a moral e opera em questionamento secular, pluralista, prospectivo e aberto.30 Pode-se afirmar que a norma moral é um imperativo de conduta, consagrado como tal, cuja violação redunda em sanção. A ética, por sua vez, é o estudo sobre as normas morais, que permite preencher vazios normativos ou questionar o motivo pelo qual uma conduta é considerada boa para dada concepção axiológica de partida e não para outra, a fim de que, expostos os fundamentos, seja possível externar objetivamente a preferência.31 Em meio à tensão valorativa despertada pela biotecnologia, toma assento a ética, ou melhor, a bioética, não a bio-moral, porque os comportamentos, conquanto envolvam opções valorativas, são social ou religiosamente controvertidos, bem como dificilmente reguláveis por ditames precisos e fechados. 28COHEN, Cláudio; SEGRE, Marco. Definição de valores, moral, eticidade e ética. In: SEGRE, Marco (Org.). Bioética. São Paulo: Edusp, 1998, p. 15-16. 29Id. Ibid., p. 17. 30DURAND, Guy. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumento. Trad. por Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2003. p. 74-75. 31Segundo Nicola Abbagnano, a palavra ética permite as seguintes acepções: 1ª) a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzido tanto o fim quanto os meios da natureza do homem (ética teleológica); 2ª) ciência do móvel da conduta humana, com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta (ética deontológica), cf. ABBAGNANO,Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 380 e 682. 37 O raciocínio é complementado por Peter Singer ao explicar que o desafio ético não está no oferecimento de ditames comportamentais para diferenciar o bem e o mal, mas em “preparar homens e mulheres para tomar a decisão”.32 O debate ético alimenta a esperança de que a sociedade não compreenda a genética “unicamente por su valor cognoscitivo (...) sino por lo que significa para el hombre y desde el hombre”.33 Enfim, as ponderações éticas atuam como suporte da ciência, com o intento de conscientizar pesquisadores, clínicos e pacientes sobre a essência humana, ao avultarem que a liberdade, retrato mais fiel da imagem humana, não se realiza no plano individual, mas na convivência entre as pessoas, no mundo naturalmente social, o que obriga cada um à atitude de respeito perante o outro e de solidariedade perante o todo, implicando atribuição de responsabilidade, postura essa que consubstancia a denominada ética da responsabilidade, defendida por Maria Garcia.34 1.2 A bióetica 1.2.1 A origem da bioética O termo Bioética deriva da fusão de vocábulos de origem grega – bio (vida) e ethos (ética). As raízes semânticas remetem às preocupações daquela civilização: a relação entre a natureza, criadora da força física, e a 32SINGER, Peter. Perito em dilemas de vida e morte. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 jan. 2005. p. J-3. 33GONZÁLEZ, Juliana. Valores éticos de la ciencia. In: VÀZQUEZ, Rodolfo (Comp.). Bioética e bioderecho: fundamentos y problemas actuales. México: Itam - Instituto Tecnológico Autónomo de México; Fondo de Cultura Económica, 1999. p. 28. 34Cf. GARCIA, Maria. op. cit., p. 213 e ss. 38 sociedade, artífice de regras de conduta. O vocábulo foi introduzido, no léxico contemporâneo, pelo oncologista Van Renssealer Potter, de Wisconin, ao escrever um artigo intitulado The science of survival, publicado em 1970 e, no ano seguinte, na obra Bioethics: bridge to the future, quando empregou o termo com sentido ecológico (“ciência da sobrevivência”). O pesquisador holandês André Hellegers, fundador do Kennedy Institute of Ethics, na Universidade de Georgetown, e o teólogo protestante Paul Ramsey contribuíram para o neologismo, introduzindo o significado atribuído na atualidade: ética da ciência da vida. O movimento bioético é recente, pois deflagrado há cerca de um século, embora suas bases sejam bem mais longínquas, sediadas na ética médica, na ética deontológica e na ética teleológica.35 Na ética médica, Hipócrates (460-370 a.C.), grego pertencente a uma das corporações médicas mais antigas, elaborou o primeiro código de comportamento médico. Em seu famoso juramento, com tom paternalista, concebeu o médico como “guardião inapelável, acima da lei e de qualquer suspeita”.36 Em maior consonância com o mundo contemporâneo, em 1901, na Prússia, foi editada a Instrução sobre intervenções médicas com objetivos outros que não diagnóstico, terapêutico ou de imunização, quando foi exteriorizada, de modo singelo, a preocupação com o respeito à autonomia da vontade do paciente, garantida pelo consentimento.37 Seguiram-se as Diretrizes para novas terapêuticas e pesquisas em seres humanos, publicadas na Alemanha, em 1931, 35Cf. DURAND, Guy. op. cit., p. 22. 36Cf. SGRECCIA, Elio. Manual de bioética: fundamentos e ética biomédica. Trad. por Orlando Soares Moreira. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. v. 1, p. 37. 37Proibia as intervenções médicas com objetivos outros que não diagnóstico, terapêutico ou de imunização quando: a) pessoa fosse menor e não estivesse completamente em sua capacidade; b) a pessoa não tivesse declarado de forma inequívoca que consentia com a intervenção; c) a declaração não tivesse sido dada com base em explicações apropriadas das conseqüências adversas que pudessem resultar das intervenções propostas (cf. DIAFÉRIA, Adriana. Clonagem: aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru/SP: Edipro, 1999. p. 221). 39 responsáveis pela pontuação da necessidade de balanceamento entre riscos e benefícios.38 Finda a “Segunda Guerra Mundial”, o holocausto estimulou a aprovação de vários códigos de ética médica. Entre eles, o Código de Nuremberg, de 1946, e o Código de Ética Médica, de 1948, publicado em Genebra pela Associação Médica Mundial. É celebre o Código ou Declaração de Helsinque, sobre a experimentação e as pesquisas biomédicas, igualmente emanado da Associação Médica Mundial em 1964, com as subseqüentes alterações ocorridas na 29ª Assembléia Médica Mundial, sediada em Tóquio, em 1975, na 35ª, sediada em Veneza, em 1983, na 41ª, sediada em Hong-Kong, em 1989 e na 48ª, sediada na África do Sul, em 1996.39 Associam-se as Diretrizes éticas internacionais para a pesquisa envolvendo seres humanos, publicadas em 1993, pelo Conselho Internacional da Organização Mundial de Ciências Médicas, em colaboração com a Organização Mundial de Saúde.40 Na ética filosófica, os pilares mais remotos da bioética são evidenciados sob três expressões. A primeira, ligada a Aristóteles e à sua obra Ética a Nicômacos, aproxima a ética da política, ao preconizar o atuar contínuo das virtudes no âmbito cívico.41 A segunda, de tradição anglo-saxônica 38Para as novas terapêuticas, exige-se: a) balanceamento entre risco e benefício; b) realização de testes prévios em animais; c) consentimento informado; d) emprego não consentido apenas para salvar vidas ou prevenir danos severos em circunstâncias especiais; e) especial consideração em casos que envolvam menores; f) rejeição à exploração de necessitados; g) cuidados especiais no uso de microorganismos vivo; h) aceitação da res ponsabilidade total do médico da instituição; i) documentação por escrito; j) publicação com respeito à dignidade dos pacientes. Para as pesquisas, acrescem-se aos anteriores, os seguintes pressupostos: a) prévia disponibilidade de dados em animais e de laboratório; b) não usar menores; c) não usar pessoas mortas (cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222). 39Cf. SGRECCIA, Elio. op. cit., p. 41-42; DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 222-250. 40Cf. DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 251. 41Para Aristóteles, as virtudes são uma excelência moral. Discorre que a excelência moral, quanto ao gênero, cuida de disposição, a qual significa “os estados da alma em virtude dos quais estamos bem ou mal em relação às emoções – por exemplo, em relação à cólera estamos mal se a sentimos moderadamente, e de maneira idêntica em relação às outras emoções”. Quanto à 40 (utilitarista), confere o valor à ação em proporção direta ao número de pessoas beneficiadas. A terceira, de índole kantiana, amarra-se à oposição entre coisa e pessoa: aquela com preço e esta com dignidade, de modo que impõe que a atuação de cada indivíduo seja produto de suas próprias leis, racionalizadas pela moral universal, isto é, pela possibilidade de se tornarem leis adotadas por todos.42 Ingressa, novamente, a codificação que adveio em resposta aos horrores chefiados por Hitler, a começar pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Convenção sobre o genocídio, ambas da Organização das Nações Unidas, datadas de 1948. Não obstante, o mundo continuou assistindo, nos anos seguintes, a experimentos desvairados em seres humanos, ocorridos, em especial, nos Estados Unidos da América,43 e que, em razão do escândalo, impulsionaram a retomada de reflexão filosófica na biomedicina, que fez do país o berço do movimento intelectual em apreço.44 Na reconstrução retrospectivada bioética, estão ainda as religiões, sobretudo a judaica, a cristã e a mulçumana, que trazem à colação a ampla valorização da pessoa humana e do amor ao próximo. natureza específica, decorre do “meio termo”, um equilíbrio entre dois vícios extremos, duas formas de deficiência moral (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego, introdução e notas de Maria da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1999. p. 40-41). 42O imperativo universal do dever, imperativo categórico, foi enunciado por Kant nos seguintes termos: “Age apenas segundo a máxima tal que possas querer ao mesmo tempo em que ela se transforme em lei universal” KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes . Textos sel. por Marilena de Souza Chauí e trad. por Tânia Maria Bernkopf, Paulo Quintela e Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 129-130. (Os Pensadores). 43Em 1963, no Hospital Israelita de Doenças Crônicas (Jewish Chronic Disease Hospital) do Brooklin, nos Estados Unidos, foram realizadas experiências com pacientes idosos, com injeção de células tumorais vivas em seus organismos, sem que houvesse o correspondente consentimento. Entre 1950 e 1970, o Hospital Estatal Willowbrook (Willowbrook State Hospital), de Nova York, promoveu uma série de estudos sobre hepatite, através da inoculação do vírus vivo em crianças com retardo mental que se encontravam internadas (cf. BARCHIFONTAINE, Christin de Paul de; PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioétieca. São Paulo: Loyola, 2000. p. 22-23 e 44). 44Cf. FROSINI, Vittorio. Derechos humanos y bioética. Santa Fé de Bogotá: Temis, 1997. p. 75. 41 1.2.2 A sua conceituação e seus princípios básicos Na Encyclopedia of Bioethics, resultado da colaboração de 285 especialistas e 330 supervisores, a Bioética foi conceituada como “estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais”.45 Transita entre a ética geral (filosófica) e a ética aplicada, configurando ferramenta de reflexão e de elaboração de critérios de orientação para a tomada de decisões oponíveis aos excessos estatais e aos poderes fáticos e difusos de pressão (financeiros, econômicos, industriais).46 A bioética principialista nasceu nos Estados Unidos, quando o governo, visando estatuir parâmetros pragmáticos destinados à prática clínica, criou a Comissão Nacional para proteção dos seres humanos em pesquisa biomédica e comportamental, a qual elaborou o Belmont Report, publicado em 1978, no qual estão os princípios mais difundidos: I) a beneficência, dirigida ao médico e destinada a garantir as máximas vantagens e os mínimos riscos, além de não causar dano (não-maleficência); II) a autonomia, que determina o respeito à vontade do paciente, à opção terapêutica mais adequada a seus valores culturais e aos custos e benefícios, bem como a tutela daqueles cuja liberdade de vontade é reduzida (vulnerabilidade); III) a justiça, que implica eqüidade na distribuição dos riscos, benefícios e enganos, decorrentes dos serviços de saúde em geral, o que encontra relevância nas sociedades do terceiro mundo, onde milhares de pessoas morrem de doenças com forma de cura consagrada, como a 45Reich, W.T. (Ed.). Encyclopedia of bioethics. New York- London: The Free Press-Collier Macmillan Publishers, 1978, apud CLOTET, Joaquim. Por que bioética? Bioética, Brasília, v. 1, n. 1, p. 15-16, 1993. 46Cf. LEGA, Carlo. Manuale di bioetica e deontologia medica. Milano: Giuffrè, 1991. p. 103. 42 diarréia. O Brasil acolheu expressamente e sem descriminação prévia de ordem de preferência os princípios em tela na Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional da Saúde, e, conforme seu art. 1º, eles refletem a eticidade na pesquisa.47 Em outubro de 2005, foi aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) a Declaração Universal sobre Bioética e Direito Humanos, texto que demandou 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de intensos debates diplomáticos. Os países ricos (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Reino Unido, Japão e China) queriam reduzir o documento a temas médicos e biotecnológicos, em razão do interesse no livre comércio de patentes de medicamentos e de tecnologia. O Brasil defendeu a ampliação do escopo além desse campo, para atingir o social e o ambiental, costurando acordo com os países latino-americanos e africanos, a Índia e a Síria, a fim de atingir uma posição mais larga que, finalmente, foi aprovada. Para a Unesco, havia a necessidade de que a comunidade internacional contasse pelo menos com "princípios universalmente aceitáveis" na vasta e mutável zona da bioética. Por isso, os temas mais delicados, que mobilizam imensos interesses políticos, econômicos, científicos, jurídicos, religiosos e sociais, como a clonagem, a eutanásia, os transplantes de órgãos e a pesquisa com embriões, foram excluídos da minuta da declaração já em janeiro de 2005. 47Diz o inciso III, do art. 1º: “A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia); b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se ao máximo de benefícios e o mínimo de danos ou riscos; c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência); IV) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização dos ônus para os sujeitos vulneráveis”. 43 O documento aborda "questões éticas colocadas pela medicina, as ciências da vida e as tecnologias associadas aplicadas aos seres humanos, tendo em conta suas dimensões sociais, jurídicas e ambientais", segundo a Unesco. O primeiro preceito enunciado é o "respeito à dignidade humana e aos direitos humanos", complementado pela prevalência dos "interesses e o bem- estar do indivíd uo" sobre "o interesse da ciência ou da sociedade". Está previsto que se a aplicação dos princípios enunciados e aclamados pela comunidade internacional tiver que ser limitada, sê-lo-á por lei. Estabelece ainda que a declaração deve ser compatível com as legislações nacionais. Outros direitos clássicos, tais como o respeito à privacidade, a confidencialidade ou à não- discriminação, e conceitos inovadores, como a "responsabilidade social”, prevista no art. 14, lembram que o progresso das ciências e das tecnologias tem como objetivo promover o bem-estar do indivíduo e da espécie humana. 1.2.3 As relações da bioética com o Direito A bioética e o Direito ostentam, como nota comum, o fato de estarem no plano deontológico do dever ser, pois servem para a formulação de programas destinados a cumprir certas finalidades a partir de dadas condutas. Contudo, não se confundem. A distinção está na forma de abordagem e na força. A bioética é a reflexão ética sobre o impacto da revolução tecnológica na vivência humana. Envolve meditação ontológica: o que é a vida? Qual o valor do homem? Qual o destino da humanidade? Suas considerações, abertas, servem, ao lado de outros fatores, como base de sentido (fonte material) para a elaboração ou a 44 aplicação de normas de comportamento, entre as quais estão as normas jurídicas, emparelhadas às morais e às sociais. A norma moral, segundo Norberto Bobbio, é “cumprida por nenhuma outrarazão além da satisfação íntima que nos leva à sua adesão, ou da repugnância à insatisfação também íntima que nos causa a sua transgressão”.48 A sanção é interna, porque se desenvolve no âmbito da consciência pessoal. A norma social, com possível fundo moral, é dotada de sanção externa, representada pela reprovação, eliminação do grupo, expulsão ou linchamento. É falha na proporção entre a violação e a resposta, uma vez que não é institucionalizada, ou seja, não é regulada por regras fixas nem executada por membros do grupo expressamente designados. Em contrapartida, a norma jurídica, além de externa, é institucionalizada, porque emanada do seio da organização estatal, e é dotada de caráter coercitivo.49 Nem todas as considerações sobre preceitos morais relacionadas à biomedicina necessitam ou têm dignidade jurídica. Não são todos os comportamentos que precisam ser resguardados por instrumento de controle social formal, como o Direito. “Uma coisa é a formação do pensamento ético comum que trace as pautas dentro das quais terão de caminhar a investigação e a experimentação nesse campo, e outra, totalmente diversa, é estabelecer a necessidade de atuação do direito, em seus diversos ramos, para assegurar a adequação da conduta dos cientistas a essas pautas aceitas por toda a sociedade”, escreve Stella Maris Martínez. 50 Os comportamentos de menor 48BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001. p. 156. 49Ib. Ibid., p. 157-161. 50MARTÍNEZ, Stella Maris. op. cit., p. 62. 45 importância para o convívio social são relegados à esfera em que se processam as normas morais. 1.3 Formas de controle das ciências biomédicas O controle das ciências biomédicas não advém para impedir ou dificultar o progresso, mas para estabelecer o que significa progresso, afinal conhecer algo novo não significa necessariamente avançar se o avanço não trouxer proveito para a humanidade. O aludido controle opera sob quatro vertentes: a) o autocontrole pessoal ou profissional; b) o controle da administração; c) as reparações civis; d) a criminalização. 1.3.1 O autocontrole pessoal ou profissional O autocontrole pode ser, em primeiro plano, realizado pelo próprio cientista, em sua intimidade, conforme os ditames de sua consciência. A transgressão à moral pessoal, no exercício do poder trazido pelo conhecimento especializado, restrito a alguns, acarreta remorso ou arrependimento, cuja ocultação social é fácil e, daí, sua fragilidade: “Siendo la natureza humana como es, no cabe esperar que el detentador o los detentadores del poder sean capaces, por autolimitación voluntaria, de liberar a los destinatarios del poder y a si mismos del trágico abuso del poder”, diz Karl Loewenstein.51 51LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. por Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1964. p. 149. 46 Em segundo plano, o autocontrole agrega-se a normas aplicadas pelo órgão de classe, ditas deontológicas, sob a forma estatuída no art. 22, da Lei Federal n. 3.268, de 30 de setembro de 1957, e no art. 17, do Regulamento do Conselho Federal de Medicina, aprovado pelo Decreto n. 44.045, de 19 de julho de 1958.52 Conforme esses dispositivos, o médico infrator fica sujeito às sanções disciplinares previstas em lei, quais sejam: a) advertência confidencial; b) censura confidencial; c) censura pública, com publicação oficial; d) suspensão do exercício profissional, por até 30 (trinta) dias; e) cassação do exercício profissional. As decisões do colegiado de classe são baseadas na Resolução n. 1.358, de 19 de novembro de 1992, também do Conselho Federal de Medicina, a qual funciona como Código de Ética Médica. O procedimento administrativo está regulado pelo Código de Processo Ético-Profissional (Resolução n. 1.464, de 6 de março de 1996, do Conselho Federal de Medicina), com direito a contraditório (apresentar razões, arrolar testemunhas, perguntar) perante a autoridade competente (Câmara do Conselho Regional de Medicina) e direito de recorrer para o Pleno do Conselho, caso a decisão não seja unânime.53 A decisão é vinculante, de maneira que, se o médico for cassado, o posterior exercício da profissão será ilegal. A obrigatoriedade da observância das regras do Código de Ética no julgamento, bem como da decisão para o condenado, confere ao controle o cunho jurídico, embora não jurisdicional, de modo que eventual vício da decisão poderá ser apreciado pelo Poder Judiciário, no exercício do amplo acesso à justiça. 52O Conselho Federal de Medicina constitui autarquia, isto é, pessoa jurídica de direito público, criada por lei, para desempenhar serviços públicos. 53Cf. SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade médica: civil, criminal e ética. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 291-293. 47 A sanção disciplinar pretende a tutela de interesses da categoria, com o intento de manter o decoro, o prestígio e a independência da profissão. A preocupação com o ressarcimento dos pacientes e com o impacto da atividade sobre os direitos do indivíduo e da coletividade, neste campo, é secundária. Por essa razão, precisa ser complementada por outros meios formais de controle, exercidos pelo Estado, para o resguardo cabal dos direitos fundamentais envolvidos. 1.3.2 A tutela administrativa das atividades A tutela administrativa de atividades sanitárias e investigativas consiste em exigências que disciplinam o exercício das profissões envolvidas, para que se mantenham harmônicas com os demais setores sociais, além de úteis. É concretizada, num primeiro plano, pelas garantias administrativo-processuais, de tonalidade manifestamente preventiva: I) a autorização para o funcionamento de clínicas e de centros de pesquisa (concessão, renovação ou cassação de licenças); II) a autorização e acompanhamento de pesquisas (protocolos e relatórios periódicos); III) a regulação da divulgação ou do sigilo de dados (disciplina dos seus registros); IV) o controle da capacitação técnica do pessoal biomédico.54 Em segundo plano, a tutela em epígrafe é efetivada pela disciplina da atividade em si mesma, com cunho preventivo ou repressivo. A aplicação de sanções administrativas, dotadas de coercibilidade, representa das 54Cf. GARCÍA GONZÁLEZ, Javier. Límites penales a los últimos avances de la ingeniería genética aplicada al ser humano. Prólogo de Jaime Peris Riera. Madrid: Edersa, 2001. p. 139. 48 mais importantes expressões do poder de polícia conferido à Administração Pública. A modalidade em epígrafe está consagrada na Constituição brasileira, onde é conferida competência ao poder público para regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde (art. 196), bem como as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (art. 225, §1º, II e V).55 A matéria foi originalmente regulamentada pela Lei n. 8.974/95 que, inspirada nas Diretivas 90/219 e 90/220, ambas da Comunidade Européia, autorizou a criação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), regulamentada pelo Decreto n. 1.752, de 20 de dezembro de 1995. Após, o aludido diploma legal foi revogado pela Lei n. 11.105/05 que, reestruturando a mencionada Comissão, inseriu-a no âmbito do Ministério da Ciência e da Tecnologia, resguardando sua competência consultiva e deliberativa, inclusive para propor a Política Nacional de Biossegurança.56A nova lei também criou o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBio), órgão de assessoramento vinculado à Presidência da República. Repetindo o equívoco da Lei de Biossegurança de 1995, a Lei n. 11.105/05 mescla as intrincadas questões éticas relativas aos embriões humanos às técnicas sobre plantas transgênicas. Os temas nem sequer são equiparáveis em sua operatividade. A transgenia envolve, principalmente, a manipulação do DNA de plantas para torná-las mais resistentes a herbicidas e a pragas, enquanto 55Na mesma linha, a Constituição espanhola incumbe aos poderes públicos a proteção da saúde (art. 43). A Constituição italiana reza, na mesma esteira, que à República cabe a tutela à saúde. 56Biossegurança é o conjunto de normas legais e regulamentares que estabelecem critérios e técnicas para a manipulação genética, no sentido de se evitarem danos ao meio ambiente e à saúde humana. O conjunto de normas é estabelecido pela CTNBio (cf. SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela penal do patrimônio genético. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 90, v. 790, p. 475- 494, ago. 2001). 49 as pesquisas com células-tronco abarcam o cultivo de células para pesquisas de doenças e possíveis tratamentos em seres humanos, sem desenvolvimento de engenharia genética. A junção dos assuntos num único texto obscureceu as implicações filosóficas, científicas e religiosas que permeiam biotecnologia relacionada à genética humana, como também as celeumas científica, ambientalista, de mercado e de saúde que rodeiam os transgênicos. Em contrapartida, atendeu aos interessados na liberação da soja transgênica, eis que poderiam contar com a dor das mães que têm crianças com deficiência e dos próprios enfermos que compareceram nas Casas Legislativas e que foram aos meios de comunicação propalar suas esperanças de cura. É inegável ainda que se colocou o interesse dos pesquisadores na aprovação do projeto da forma com que se encontrava, já que, separadas as matérias, quiçá fosse retardada a esperada autorização para pesquisas com células-tronco embrionárias congeladas. Nos incisos do art. 6º, da Lei n. 11.105/05, estão relacionados os ilícitos administrativos. A maioria refere-se aos organismos geneticamente modificados: I) implementação de projeto para sua obtenção sem manutenção de registro de seu acompanhamento individual (inciso I); II) sua destruição e seu descarte no meio ambiente, incluindo seus derivados, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização, ou sua liberação no meio ambiente ou no mundo comercial, sem aprovação da CTNBio (incisos V e VI); III) utilização e comercialização, registro, patenteamento e licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso, que se reportem a vegetais (inciso VII). O inciso II alude à engenharia genética de 50 organismo vivo que, segundo a lei, pode ser um vírus , e ao manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, punindo os casos que se façam em desacordo com a lei. No ramo específico da genética humana, a engenharia genética, em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano (inciso III); e a clonagem humana (inciso IV) restam punidas administrativamente . Entre todas as modalidades, apenas as previstas nos incisos I e II não estão tipificadas como ilícitos penais, o que implica reincidência do que se verificou com a Lei n. 8.974/95, que praticamente estabelecia equivalência entre os ilícitos administrativos e penais, previstos, respectivamente, em seus arts. 8º e 13. As sanções seguem a disciplina imposta pelo art. 21, da Lei n. 11.105/05, própria para pessoas jurídicas (salvo a advertência), variando entre a multa, a interdição ou intervenção no estabelecimento e a perda de possibilidade de contratação com a Administração Pública ou de incentivos fiscais. Nesse ponto, o diploma atual supera em muito o regime instituído pela Lei n. 8.475/95, que se restringia à multa. A par disso, a Resolução n. 196, do Conselho Nacional de Saúde, ligado ao Ministério da Saúde, ao disciplinar as pesquisas com seres humanos, regula a atuação dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS). A pesquisa relativa à genética ou à reprodução assistida está condicionada a parecer favorável do Comitê e à posterior aprovação pela referida Comissão (capítulos VII.13 e V III. 4.c.1). Ao Comitê cabe o acompanhamento dos projetos aprovados, o recebimento de denúncia de abuso ou notificação sobre fato adverso que possa alterar o curso do estudo, decidindo sobre a continuidade, modificação ou suspensão da pesquisa. Deve ainda requerer a instauração de sindicância à 51 direção da instituição em caso de denúncia de irregularidades de natureza ética nas pesquisas (capítulo VII.13). 1.3.3 Tutela civil no âmbito da biomedicina A tutela civil é exercida principalmente pela reparação do dano. Dentro de seus contornos, está o erro médico ou científico que, sob a ótica jurídica, corresponde ao mau resultado involuntário, oriundo de imprudência, imperícia ou negligência (Código de Ética Médica, art. 29). O direito brasileiro é expresso em relação aos organismos geneticamente modificados (OGMs), sobre os quais o art. 20, da Lei 11.105/05, na esteira do art. 14, da Lei n. 8.975/95, estabelece responsabilidade independente da existência de culpa para indenizar ou reparar danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados. 1.3.4 Tutela penal na seara da biomedicina Na seara da biotecnologia, é tendência mundial aquela segunda a qual o legislador opta pelo recurso ao direito penal, na medida em que os sistemas extrapenais revelam-se insuficientes ou inadequados na tutela dos bens jurídicos da mais alta hierarquia constitucional ameaçados, como lembra Silva Franco.57 57Cf. FRANCO, Alberto Silva. Genética humana e direito. Bioética, Brasília, n. 4, p. 3, 1996. 52 No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei n. 11.105/05 regula os crimes relativos à manipulação genética humana lato sensu, fazendo-o em 3 (três) artigos. O art. 25 tipifica a conduta de praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto ou embrião. A figura guarda relação com o art. 13, I, da Lei n. 8.974/95, onde se vedava a manipulação genética de células germinais humanas, embora o supere tecnicamente ao trazer o verbo praticar em substituição ao substantivo manipulação, além de contar com definição, em seu próprio texto, das expressões engenharia genética e, ainda, de célula germinal humana, melhor respeitando o princípio da taxatividade. No art. 24, a Lei n. 11.105/05 veda o uso de embrião em desacordo com seus preceitos e, em virtude de alteração promovida pelo Senado Federal, inova de modo bastante polêmico ao permitir a utilização, em pesquisas, do embrião inviável e do embrião já congelado por mais de 3 (três) anos. As primeiras pesquisas com as células-tronco embrionárias foram autorizadas em setembro de 2005, estreando porém de modo tímido, porquanto entre os 41 (quarenta e um) projetos aprovados, apenas 3 (três) trabalharão exclusivamente com células-tronco de embriões humanos.58 Finalmente, no art. 26, é vedada a realização de clonagem humana e, não obstante as várias definições do termo trazidas no art. 3º (clonagem, clonagem para fins reprodutivos, clonagem terapêutica), nenhuma delas abrange indubitavelmente a presente. A polêmica técnica, em seu todo, na 58Os 3 (três) projetos sobre células-tronco embrionárias
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