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1 A PESQUISA CIENTÍFICA E A PSICOLOGIA (*) M. Foucault - Uma das mais finas figuras da psicologia não gostaria de me ver citar um de seus propósitos: eu o fiz sem ironia, unicamente sob o impulso de minha surpresa; ele perguntou a um calouro se queria fazer a “psicologia” como o Sr. Pradines e o Sr. Merleau-Ponty, ou a “psicologia científica” como Binet e outros, mais recentes, que sua modéstia não designava. Eu estou seguro que ele não guardou a lembrança de sua questão, ou antes que ele não se lembrava de me tê-la posto; ela deve ser nele quotidiana e evidente, tanto para o professor como para o bom aluno: Letras ou Politécnica? Mas como muitas coisas que são evidentes, sua questão vai ao cerne, e ela se referia implicitamente a uma das estruturas mais fundamentais da psicologia contemporânea. Que essa clareza tenha me vindo de um psicólogo me espantara. Mas o paciente trabalho da verdade sempre resulta do espanto. Um dos a priori históricos da psicologia, na sua forma atual, é essa possibilidade de ser, sob o modo da exclusão, científica ou não. Não se pergunta a um físico se ele quer ser um cientista ou não, a um especialista da fisiologia dos gafanhotos alpinos se ele quer fazer ou não uma obra científica. Porque a física em geral e a fisiologia dos gafanhotos alpinos só emergem como domínios de possível pesquisa no interior de uma objetividade já científica. Que não me venham portanto dizer que o modo de reprodução dos moluscos de água doce pode concernir ao pescador, da mesma forma que ele chama, invoca e retém a atenção, talvez decenal, de um naturalista; pois não me perguntem se eu me interessaria por minha alma para assegurar sua felicidade e salvá-la, ou para explicitar o Logos. Não, falavam-me da psicologia, quem, nela própria, pode ser ou não científico. Como o químico que quis, desde o começo, exorcizar a alquimia. Mas é preciso ainda retificar a comparação; a química não se escolhe, no inicio, como estranha a alquimia; ela não repousa sobre uma escolha, pelo seu próprio desenvolvimento ela a torna derrisória. Essa possibilidade originária de uma escolha, o que ela pode significar? Que há uma verdadeira e uma falsa psicologia? Que há uma psicologia que faz o psicólogo e uma psicologia sobre a qual especula a filosofia? Uma psicologia que mede, conta e calcula e uma psicologia que pensa, reflete e desponta pouco a pouco à luz da filosofia? Eu não poderia dizer com todo rigor o que pensava meu psicólogo, no fundo de sua alma vestida de probidade cândida e de linho branco. O que é seguro, é que para ele a psicologia pode ser verdadeira ou falsa antes de começar, a escolha do cálculo ou da especulação antecipa-se sobre a psicologia que calcula e que especula, a pesquisa repousa sobre a opção, o risco e a aposta de uma psicologia científica. No limite: em psicologia a pesquisa não é cientifica de pleno direito, ou, mais exatamente, suas formas concretas não se articulam elas próprias sobre o horizonte de uma ciência, que se determinaria em seu próprio movimento como pesquisa; mas é a pesquisa que recusa ou escolhe em seu pleno grau um propósito cientifico e se situa ela própria sob a constelação da objetividade. O que merece atenção, não é tanto o dogmatismo com a qual define-se a “verdadeira psicologia”, quanto a desordem e o ceticismo fundamental que põe a questão. Espanto para a biologia aquele que dissesse: você * In Foucault, M., Dits et ecrits, vol.I pg. 137-158. Paris, Editions Gallimard, 1994. Texto traduzido do francês por PATRÍCIA NETTO ALVES COELHO. 2 gostaria de fazer da pesquisa biológica científica ou não? Ora o psicólogo do qual eu falo é um verdadeiro psicólogo... Um verdadeiro psicólogo que, desde o início da psicologia, reconhece que a pesquisa pode ser verdadeira ou falsa, cientifica ou não, objetiva ou não; que não é a ciência que se incorpora na pesquisa, mas a pesquisa que, desde o início do jogo, opta ou não pela ciência. O problema da pesquisa em psicologia recebe um sentido muito particular. Pode-se interrogar a pesquisa psicológica como se interroga outra forma de pesquisa, a partir de sua inserção no desenvolvimento de uma ciência ou a partir das exigências de uma pratica: a pesquisa precisa prestar contas da escolha de sua racionalidade; é preciso interrogá-la sobre um fundamento da qual se sabe, já que não é a objetividade constituída pela ciência; enfim, é preciso interrogá-la sobre o estatuto da verdade que ela própria confere a ciência, uma vez que é sua boa escolha que faz da verdadeira psicologia uma verdadeira psicologia. Enfim, é a pesquisa que precisa prestar contas à ciência; trata-se de considerá-la não como uma pesquisa no espaço de uma ciência, mas como o movimento no qual se busca uma ciência. Situamo-nos no ponto onde se encontram os principais paradoxos da pesquisa psicológica, quando se a considera no nível de suas instituições, de suas formas quotidianas e na dispersão de seus trabalhos. Há menos de cinqüenta anos, a psicologia, sob as espécies de um certificado de licença, representava a boa consciência positivista e naturalista dos programas filosóficos. E se a consciência é difícil de satisfazer, a boa consciência se contenta facilmente: Biran, Taine e Ribot eram os beneficiários de uma operação que resulta em fazer da psicologia uma filosofia e, por pior que seja, no nível de uma mitologia positivista. Durante (au rez-de-chaussée) celebrou-se esses ritos funerários, cujas universidades do interior e de importantes cidadelas nos conservam ainda a lembrança, trabalhou-se nos celeiros, para o nascimento da psicologia experimental. Binet tinha boas intenções, não tinha cadeiras na faculdade, mas tinha sobrinhas e algumas idéias; sonhando com os grandes chefes de estação de trem de Leipzig e Wutzbourg, ele dirigia um pequena locomotiva psicológica. Distribuída sobre o próprio solo de suas instituições, a psicologia ocupa agora uma superfície muito mais extensa. A suspeita de Binet torna-se um laboratório de psicologia experimental, seu grupo de estudos tem acento no instituto da universidade, onde uma direção policéfala - três professores de medicina, letras e ciências - assegura um judicioso ecletismo, e uma autonomia rigorosamente proporcional a amplitude das divergências. Sr. Pieron, um aluno de Binet, foi nomeado no Collège de France, onde seu mestre não pode entrar; durante mais de trinta anos imperou ali a fisiologia das sensações e um laboratório de pesquisa experimental, cujo L’Année psychologique oferecia incansavelmente as resenhas. Quanto a psicologia da criança, a orientação vocacional, as pesquisas sobre o desenvolvimento escolar e a pedagogia, que haviam colocado Binet no céu da imortalidade psicológica, foram retomadas e prosseguidos por Sr. Wallon e Pieron, que fundaram em 1927 o Instituto de estudos do trabalho e de orientação profissional, onde se constituiu um atendimento para crianças, um centro de orientação, onde lançou-se questionários a população escolar, onde formou-se orientadores e psicólogos escolares. 3 Enfim, a psicologia clinica, a qual Binet havia dado para sua escala de inteligência uma forma experimental e métrica, irá se associar a psicologia dos psiquiatras: vê-se criar centros de estudos de psicopatologia, nos serviços do Pr. Heuyer para as crianças, em Henri-Rousselle para os adultos, ao qual é preciso acrescentar o tradicional centro de estudo da afasia em Salpetrière. Enfim é preciso mencionar, além dos grandes laboratórios de psicologia industrial como aquele daS.N.C.F., o C.E.R.P., inteiramente consagrado às pesquisas psicofisiológicas do trabalho. Assim, deixamos de lado a atividade de todos os centros de orientação, de todos os grupos médico-escolares, e, por razões simétricas e inversas, a atividade de todas as universidades do interior 1 : não são institutos de pesquisa, mas centros de aplicação que absorvem o trabalho quotidiano, ou centros de ensino cujo sono é inteiramente quotidiano. Não é inútil ver com clareza esse progressivo aparecimento dos organismos oficiais da pesquisa psicológica. Considerados atualmente em toda sua extensão e complexidade, receberam, cada um, a recomendação oficial e o patrocínio das universidades ou de diferentes ministérios (Saúde pública, Educação nacional, Trabalho). Um único grupo de pesquisa e de formação escapa a essa integração, é a Sociedade francesa de psicanálise, mais exatamente suas duas metades, desde que a pêra, se ousamos dizer, foi cortada em duas. De uma maneira bastante paradoxal, a psicanálise só pode ser exercida na França por médicos, mas não há um único ensino de psicanálise ministrado na faculdade de medicina; os únicos membros da Sociedade de psicanálise que são titulares de uma cadeira ensinam como professores de psicologia na faculdade de letras: o que concede aos psicanalistas e a seus grupos uma independência total em seu recrutamento, em seus procedimentos de formação e ao espirito que dão a pesquisa psicanalítica. Quando se considera a importância dos conceitos, o número de temas, a diversidade das idéias experimentais que a psicanálise forneceu a psicologia desde meio século, não seria paradoxal vê-la a margem de uma ciência a qual doou vida e significação? Mas essa autonomia da psicanálise é apenas uma contradição aparente com as formas oficiais da pesquisa psicológica. Não se pode esquecer que na França a pesquisa nasceu a margem da psicologia oficial e, se é verdade que agora, na complexidade das estruturas, não se chega quase a fazer a separação entre o ensino oficial, a pesquisa e a aplicação prática, se é verdade que num organismo como o Instituto de psicologia se superpõe um ensino teórico, um laboratório de pesquisa e uma formação prática, não subsiste menos o fato que a pesquisa cientifica em psicologia se apresentou na origem como protesto contra a ciência oficial e como máquina de guerra contra o ensino tradicional. A situação marginal da psicanálise representa apenas um vestígio, ou antes, o signo sempre vivo dessa origem polêmica da pesquisa no domínio da psicologia. Eis aí um traço indubitável que pode caracterizar a situação de toda pesquisa em relação a pesquisa constituída: ela se faz sempre contra um ensino, às custas de uma objetividade reconhecida, ela morde um saber muito mais que o completa ou o encaminha para a sua realização; em seu nascimento, pelo menos, ela pertenceu mais ou menos as margens da heresia da ciência; toda a historia da biologia manifestou esse fato e o exaltou/elevou até as formas religiosas do anátema. Mas a intenção polêmica da pesquisa 1 Com a única exceção de Strasbourg. Se mencionamos o laboratório de Rennes, é apenas para a memória/posteridade, para restitui-lo do esquecimento do qual reclama. 4 em psicologia ganha um som particular e envolve uma decisão muito mais grave para o próprio sentido de seu desenvolvimento. Uma vez que a psicanálise, até em suas instituições, ainda apresenta vivamente esse caráter, ao mesmo tempo marginal e polêmico da pesquisa, que transparece menos nitidamente nas formas institucionalizadas da psicologia; é dela que nós retiramos um exemplo da maneira cujo progresso da pesquisa psicológica se destacou do horizonte constituído da ciência. Em um sentido, as pesquisas sobre o Inconsciente, sobre seu material, seus processos, suas manifestações que, desde a origem, constituem o essencial do trabalho psicanalítico, retomam num estilo experimental o que estava implicado de uma maneira obscura em todas as psicologias da consciência; a passagem a uma psicologia do inconsciente pode se apresentar logicamente como uma extensão, um alargamento da psicologia da consciência. A transposição por Freud de uma psicologia da associação, da imagem e do prazer, logo de uma psicologia da consciência clara na noite do inconsciente, bastaria para provar isso; poder-se-ia ver nesse alargamento da psicologia apenas uma dimensão de abertura de uma ciência que se estende sem cessar sobre as bordas de sua investigação, ao nível dos pressupostos que são evidentes, e desenha em linhas de sombra as margens da ignorância do saber. De fato, há ainda mais nessa orientação da pesquisa em direção ao inconsciente; o abandono de uma definição quase exclusiva do objeto e do método psicológicos pela consciência não constitui simplesmente a retomada da ciência numa investigação mais geral e mais radical. No caso, a pesquisa aparece antes como uma conduta de desvio, para a qual o conhecimento constituído se encontra em curto-circuito e invalidado em nome de uma redução da ciência a seu objeto por um deslocamento que faz da ciência, não mais o horizonte problemático da pesquisa, mas o objeto polêmico de sua investigação. De uma maneira mais precisa, a descoberta do inconsciente transforma em objeto da psicologia e tematiza em processos psíquicos os métodos, os conceitos e finalmente todo o horizonte científico de uma psicologia da consciência; à luz dessas pesquisas, esta aparece como conduta de defesa contra o inconsciente, como recusa de reconhecer que a vida consciente é transtornada pelas ameaças obscuras da libido, enfim como reflexão censurada. Essa maneira de situar o conhecimento psicológico em relação a pesquisa, essa empresa crítica como objeto da pesquisa das formas ultrapassadas do saber científico, apresenta o perfil mais agudo do lado polêmico de toda pesquisa em psicologia. As imputações de vínculo edipiano ou de fixação narcísica que se lançam entre os psicanalistas são apenas variações prazeirosas e quase picantes sobre esse tema fundamental: o progresso da pesquisa em psicologia não é um momento no desenvolvimento da ciência, é um destacamento perpétuo em relação às formas constituídas do saber, sob o duplo aspecto de uma desmistificação que denuncia na ciência um processo psicológico, e uma redução do saber constituído ao objeto que tematiza a pesquisa. A novidade da pesquisa não se inscreve numa critica do conteúdo, nem nessa dialética da ciência onde se realiza o movimento de sua verdade, mas numa polêmica contra o saber considerado no próprio nível de sua origem, numa redução primordial da ciência a seu objeto, numa suspeita crítica sobre o conhecimento psicológico. Objerta-se-á primeiramente que toda pesquisa psicológica não obedece necessariamente a essa vocação polêmica que aparece tão claramente na psicanálise. Mas, de fato, o texto que se escreve de forma rudimentar na história da pesquisa freudiana pode 5 se decifrar em caracteres mais finos em todo o desenvolvimento da psicologia. Ela não se faz como nas ciências que caminham por retificações sucessivas, segundo uma ultrapassagem sempre renovada do erro, mas por uma denuncia da ilusão: ilusão da subjetividade 2 , sofisma do elemento 3 , mitologia da terceira pessoa 4 , miragens aristotélicas da essência, da qualidade e do encadeamento causal 5 , pressupostos naturalistas e esquecimento do sentido 6 , obliteração da gênese pela estrutura e da estrutura pela gênese 7 . O movimento pelo qual a pesquisa psicológica confronta-se com si mesma não valoriza as funções epistemológicas ou históricas do erro científico,pois não há erro científico em psicologia, somente ilusões. O papel da pesquisa em psicologia não é então de ultrapassar o erro, mas de desvendar as ilusões; não fazer progredir a ciência restituindo o erro ao elemento universal da verdade, mas de exorcizar o mito esclarecendo-o através de uma reflexão desmistificada. Pode-se notar que as pesquisas históricas avançam com o mesmo passo e sobre caminhos paralelos; o ultrapassagem do erro não se realiza somente como a dialética próprio ao saber histórico; é assegurado por uma redução ao movimento do próprio objeto histórico. O historiador restabelece sua própria história, e é determinando seus métodos, seus conceitos, seus conhecimentos pelas estruturas e pelos eventos, pelas formas culturais de sua época que restitui à história sua verdade própria. O erro histórico também tem o aspecto do mito e o sentido da ilusão. Mas quando a ilusão torna-se objeto de análise histórica, ela encontra na própria história seu fundamento, sua justificação, e finalmente o solo de sua verdade. A crítica histórica desenvolve-se num elemento de positividade, uma vez que é a própria História que constitui a origem absoluta e o movimento dialético da história como ciência. Se a ciência histórica progride por desmistificações sucessivas, também é, e num mesmo movimento, pela tomada de consciência progressiva de sua situação histórica como cultura, de seu valor como técnica, de suas possibilidades de transformação real e de ação concreta sobre a História. Não há nada disso em psicologia: se se pode reduzir o erro psicológico a uma ilusão, e reduzir suas formas epistemológicas a condutas psicológicas, não é porque a psicologia encontra na psique seu fundamento e sua razão de ser como saber, é somente porque ela aí encontra obstáculos; a pesquisa histórica não tenta se colocar fora da História, enquanto que a pesquisa psicológica deve necessariamente se deixar conduzir pelo mito da exterioridade, do olhar indiferente, do espectador que não participa. A relação da verdade psicológica com suas ilusões só pode ser negativa, sem que se possa jamais encontrar na dialética própria da psique o esboço dos mitos da psicologia. A psicologia somente encontra na psique o elemento de sua própria crítica. A crítica da história pela História tem o sentido de um fundamento; a crítica da psicologia a partir da psique apenas ganha a forma de uma negação. Porque a pesquisa histórica, se ela se dá o aspecto de uma desmistificação, possui o mesmo valor de uma tomada de consciência positiva; a pesquisa psicológica sob as 2 Watson (J.B.), Psychology from the Stand point of a Behaviorist, Londres, J.B. Lippincott, 1919. 3 Guillaume (P.), La Psychologie de la forme, Paris, Flammarion, 1937. 4 Politzer (G.), Critique des fondements de la psychologie, t.I: La Psychologie et la Psychanalyse, Paris, Rieder, 1928. 5 Lewin (K.), Priciples of Topological Psychology, New York, Mac Graw-Hill, 1935. 6 A psicologia de “inspiração fenomenológica”. 7 Piaget (J.), La Psychologie de l’intelligence, Paris, A. Colin, nº. 249, 1947. 6 mesmas espécies da desmistificação só realiza um exorcismo, uma extradição dos demônios. Mas os deuses não estão aí. Por razões dessa ordem se obtém o espírito tão particular da pesquisa em psicologia: por sua vocação e sua origem, ela é crítica, negativa e desmistificadora; ela forma o inverso noturno de uma ciência psicológica que tem por vocação comprometer; as questões que ela coloca se inscrevem, não numa problemática do saber, nem numa dialética do conhecimento e de seu objeto, mas num questionamento e na redução do conhecimento a seu objeto. Entretanto essa origem, com tudo o que significa, esqueceu, ou antes ocultou, por esse fato que a pesquisa, como redução e desmistificação, é tornada a razão de ser, o conteúdo, o próprio corpo da psicologia, ainda que o conjunto dos conhecimentos psicológicos se justifique por sua própria redução à pesquisa, e a pesquisa como crítica e ultrapassagem do conhecimento psicológico se realize como totalidade da psicologia. Esse processo cresce nos organismos de pesquisa: nascidos à margem da ciência oficial, desenvolvidos contra ela, são reconhecidos agora como centros de formação e de ensino. O curso da psicologia teórica não passa de um rito: aprende-se e ensina-se a pesquisa psicológica, isto é, a pesquisa e a crítica da psicologia. A via do ensino do psicólogo é ao mesmo muito próxima e muito diferente daquelas que devem seguir os outros estudantes. Muito semelhante no que concerne a ineficácia total do ensino distribuído no quadro tradicional das faculdades, e sancionado pelos diversos certificados de licença. Todos convém que um licenciado em psicologia não sabe nada e nada pode fazer, uma vez que, dispõe de todos os seus certificados no jardim em duas tardes de verão: acordo tão geral e tão perfeito que se temeria perturbá-lo perguntando para que serve um diploma de psicologia. Mas tirante esse traço negativo, aos poucos comum a todos os segmentos do ensino superior, a carreira do estudante psicólogo é ainda diferente dos outros. O Instituto de psicologia distribui quatro diplomas: psicologia experimental, pedagogia, patologia e psicologia aplicada; todos compreendem um ensino prático (testes, psicometria, estatística), uma formação teórica, e estágios ou trabalhos de laboratório; os estudantes do instituto que não receberam o diploma devem substituí-lo por um ano de estudos preparatórios. O Instituto de orientação profissional é inteiramente independente desse ciclo de estudos universitários: é-se admitido após um exame, sai-se com um diploma de orientador profissional. Quanto ao ensino da psicanálise, é assegurado na França, como em muitos países, por um modo ao mesmo tempo rudimentar e esotérico: o essencial da formação de um psicanalista é garantido por uma psicanálise didática cujo princípio, depois da conclusão dessa análise, recebe a caução da Sociedade de psicanálise. Se o título de doutor em medicina é indispensável para empreender curas e receber a inteira responsabilidade de uma doença, o pertencimento a Sociedade de psicanálise não exige nenhuma formação determinada, a realização de nenhum ciclo de estudos. Somente a Sociedade, sob o aval daquele entre seus membros que recebeu o postulando em análise didática, faz juz a seu 7 nível de competência 8 . Acrescentemos que nem os médicos nem os professores recebem, no curso de seus estudos, qualquer ensino da psicologia; os próprios psiquiatras não tem nenhuma formação psicológica na medida em que a psiquiatria que se os ensina é de tal modo vetusta que eles ignoram os quase cinqüenta últimos anos da psicopatologia alemã, inglesa e americana, com todos os esforços que foram feitos por uma compreensão psicológica dos fenômenos da patologia mental. São então privados de toda formação teórica, as mesmas que são requeridas para uma prática quotidiana, enquanto que a situação é exatamente inversa no domínio da pesquisa propriamente dita. Com efeito, se o I.N.O.P. fornece o título de orientador profissional, se o instituto concede diplomas de “psicotécnicos”, cada um sabe, entre aqueles que os dão e entre aqueles que os recebem, que eles não abrem nenhum porta real. Muitos orientadores não chegam a se empregar; os postos de psicólogos escolares são pouquíssimo numerosos, enquanto que se distribui dezenas de diplomas de psicopedagogia; e eu não sei se atualmente há na França mais de dez postos de psicólogos clínicos, enquanto que há certamente mais de cento e cinqüenta titulares do diploma de psicopatologia. E osprofessores toleram a facilidade dos exames baseados no fato que, de qualquer modo, eles não servem para nada. Encontram-se numa situação paradoxal: de um lado, a prática real da psicologia - aquela que se exerce ou deveria se exercer na organização do trabalho, nas curas psicoterápicas ou no ensino - não se baseia em nenhuma formação teórica, e, por via de conseqüência, não chegam jamais a ganhar o sentido da pesquisa, nem mesmo definir suas exigências precisas em relação a pesquisa científica. De um lado, a aquisição das técnicas que podem garantir a psicologia concreta uma segurança prática e uma justificação teórica não dá acesso a um exercício da psicologia em que a prática e pesquisa se encontrem efetivamente ligadas. Ao contrário, o psicólogo que, no instituto, recebeu uma formação técnica suficiente para o exercício de um oficio psicológico, mas insuficiente certamente para se tornar um pesquisador, não tem outra opção, para praticar a psicologia, senão pedir uma bolsa ao C.N.R.S. e lançar-se na pesquisa. A pesquisa em psicologia não nasce então de exigências da prática, e da necessidade que ela encontra de se ultrapassar; ela nasce da impossibilidade em que se encontram os psicólogos de praticar a psicologia; ela não implica uma formação aperfeiçoada; figura somente como um recurso contra a ineficácia de uma formação inútil, o mal necessário de uma prática que não se exerce. Não se aborda a pesquisa com uma formação de pesquisador e após a aquisição de um horizonte teórico suficiente 9 ; fez-se do pesquisador um prático reprimido, para mostrar, antes de tudo, que a psicologia pode e deve ser praticada, que ela não é prisioneira de um contexto teórico, inútil e duvidoso, mas que, fora de todo postulado especulativo, ela é carregada de uma positividade imediata, e se a pesquisa se inscreve tão freqüentemente num contexto positivista, se ela reclama constantemente de uma prática real, por oposição a psicologia filosófica, é justamente na medida em que ela quer ser a demonstração de uma prática possível. Fazer a “verdadeira psicologia”, em oposição àquela de Pradines e de 8 A criação de um Instituto de estudos psicanalíticos por muito tempo foi uma questão. Notemos que a recente cisão na Sociedade francesa produziu-se sobre o tema preciso dessa criação e os princípios de uma formação analítica. A pedagogia será sempre a cruz da psicanálise. 9 Não é um dos menores paradoxos dessa situação ver uma formação médica, científica ou mesmo filosófica servir de caução e de garantia para o recrutamento de pesquisadores que querem fazer a psicologia positiva. 8 Merleau-Ponty, é pesquisar a eventualidade de uma prática cuja impossibilidade atual fez nascer a “psicologia verdadeira”, como pesquisa científica. Isto devido ao fato mesmo que a pesquisa em psicologia é, ao mesmo tempo, a mais desinteressada de todas as formas de pesquisas e a mais pressionada pela necessidade. A mais desinteressada, uma vez que, ela não é quase determinada pela resposta a uma exigência prática (salvo para alguns estudos precisos de psicologia do trabalho), e a mais interessada ao mesmo tempo, uma vez que é a existência da psicologia como ciência e do psicólogo como cientista e prático que dependem do desenvolvimento e do sucesso da psicologia como pesquisa científica. A não-existência de uma prática autônoma e efetiva da psicologia é tornada paradoxalmente a condição da existência de uma pesquisa positiva, científica e “eficaz” em psicologia. Assim, a pesquisa dimensiona suas possibilidades no desenvolvimento de técnicas que se confirmam umas pelas outras e se dispõe como a arquitetura imaginária de uma prática virtual. O exemplo mais decisivo disso é a psicometria e toda técnica dos testes: os testes psicométricos são estabelecidos para uma aplicação eventual, e sua validação deve sempre repousar, de uma maneira direta ou indireta, em de outros testes já validados, numa confrontação com a experiência concreta e os resultados obtidos na situação efetiva; mas essa validação empírica logo mostra que o trabalho de pesquisa só retira sua positividade de uma experiência que não é ainda psicológica, e que suas possibilidades de aplicação são antecipadamente determinadas por uma prática extra-psicológica que só retira de si mesma seus próprios critérios. A pesquisa psicológica aparece então como o arranjo teórico de uma prática que deve ser ultrapassada, para que essa própria pesquisa possa estar segura de sua validade. As relações da psicologia clínica com a prática médica se esgotam todas nessa fórmula: trazer a uma prática já constituída aperfeiçoamentos técnicos cuja validade será demostrada pelo fato que a clínica médica pode perfeitamente dispensa-los para chegar aos mesmos resultados. Pode-se medir agora as dimensões desse círculo de paradoxos em que se encontra encerrada a pesquisa psicológica: ela se desenvolve no espaço deixado vazio pela impossibilidade de uma prática real e não depende dessa prática a não ser sob um modo negativo; mas por esse fato mesmo, ela não tem razão de ser a não ser se ela for a demonstração da possibilidade dessa prática a qual ela não tem acesso e ela se desenvolve então sob o signo de uma positividade que ela reivindica: “positividade” que ela não pode conservar nem retirar do solo onde ela nasceu, uma vez que ela nasceu da própria ausência da prática, mas que é obrigada a requerer dessa prática que a exclui e se desenvolve numa indiferença total em relação a psicologia científica. Excluída desde a origem, e na sua própria existência, de uma prática científica da psicologia, a pesquisa é inteiramente dependente, em sua verdade e em seu desenvolvimento, de uma prática que não se quer nem científica nem psicológica. Prática e pesquisa não dependem uma da outra senão sobre o modo de exclusão; e a psicologia “científica”, positiva e prática se encontra assim reduzida ao papel especulativo, irônico e negativo de dizer a verdade discursiva de uma prática que a dispensa muito bem. A pesquisa não se insere num movimento mesmo do progresso técnico que vem pouco a pouco em sua própria luz, ela é o inverso especulativo de uma prática que não se reconhece mesmo como psicológica. Ela não pode se apresentar se não como a “vérité malgré elle” de uma prática; ela a desmistifica. Mas, essa verdade ela só a retira da realidade dessa prática, que, por esse fato, a mistifica. 9 Em suas relações com a pesquisa, como em suas relações com a ciência, a pesquisa psicológica não manifesta a dialética da verdade; ela segue somente os ardis da mistificação. Para considerar esses paradoxos, tentou-se inicialmente interrogar um fato histórico, digamos uma situação cronológica própria à psicologia. A rigidez das estruturas, o peso das tradições culturais, enfim a resistência que opõe a penetração das técnicas psicológicas à organização social, bastariam para dar conta do isolamento da pesquisa em relação a prática. Seguramente, o caráter relativamente recente da psicologia freqüentemente lhe dá um aspecto problemático, derrisório em face das técnicas que o tempo não cessou de tornar estúpido. Pode-se citar nesse sentido a estranha impermeabilidade da medicina à psicologia; sobre o espírito da medicina francesa reina ainda, de uma maneira mais ou menos obscura, a estranha dialética de Babinski: a ignorância do médico, a obscuridade na qual se ocultam, sob seus próprios olhos, os princípios de sua técnica só denunciam para ele a irrealidade da doença, como se o domínio técnico da cura fosse a medida da existência da doença. Ligado a esse equívoco, entre a técnica da cura e a realidadedo fato psicológico, encontra-se a idéia que o patológico se desenvolve como a manifestação concreta, como o fenômeno do anormal. O anormal é a essência da doença, cuja a terapêutica é a supressão efetiva; como redução da essência do anormal ao processo normal, a técnica de cura constitui a medida indispensável da existência da doença. Resistindo a penetração da psicologia, a medicina atual não se opõe somente a retificação de seus métodos e de seus conceitos, mas sobretudo a um questionamento do sentido real da doença e do valor absoluto do fato patológico. Não é somente sua técnica, seu ofício e seu ganha-pão quotidiano que os médicos defendem, permanecendo surdos a psicologia; isto do qual eles se fazem os defensores, isto do qual eles protegem a imprescritível essência, é a doença como conjunto de fenômenos patológicos; eles defendem a doença como uma coisa, como sua coisa. Esquivando-se do problema do anormal, valorizando instrumentos terapêuticos das condutas como a linguagem ou a realização simbólica, a psicologia desrealiza o anormal e “subutiliza” a doença; aos olhos dos médicos e no desenvolvimento histórico da medicina, a psicologia só pode ser efetivamente um empreendimento mágico. Ela é o inverso do que, durante séculos, constituiu a prática médica. Mas semelhantes fenômenos de retardo e de adesão acabam sempre por desaparecer com o tempo e a maturação das técnicas. Os paradoxos da pesquisa em psicologia devem-se a razões históricas mais profundas, do que à simples defasagens culturais. Consideremos o exemplo da psicologia do trabalho. De um lado, ela é essencialmente feita dos problemas de orientação e de seleção profissional e, por outro lado, é feita por problemas de adaptação individual ao posto, ao oficio, ao grupo de trabalho e a oficina. Mas é evidente que esse conjunto de considerações não pode ter importância, essas questões só podem ter, no sentido estrito do termo, existência em favor e graças a algumas condições econômicas. Orientação e seleção profissional só tem realidade em função da taxa de ocupação e do nível de especialização nos postos de trabalho. Somente um regime de pleno emprego, ligado a uma técnica industrial, exigindo uma alta especialização operária (o que até o presente é contraditório em nossa economia, em que o pleno emprego 10 repousa sempre sobre uma utilização massiva de uma mão-de-obra não especializada), somente esse regime poderia dar lugar a uma prática psicológica ligada diretamente a pesquisa científica. Fora dessa condição, para nós mítica, a orientação e a seleção só podem ter o sentido de uma discriminação. Quanto aos pesquisadores que consideram a adaptação do indivíduo aos postos de trabalho, eles são, por sua vez, ligados aos problemas econômicos da produção, da superprodução, do valor do tempo de trabalho e da organização das margens beneficiárias. Este é um traço característico da psicologia? O desenvolvimento de todas as pesquisas e de todas as ciências não se encontra ligado às condições da vida econômica e social? Digam-me tudo o que a balística ou a física atômica devem a guerra e acrescente que ocorre o mesmo para o teste “beta” da armada americana... Felizmente o problema é um pouco mais complexo. Pode ser que a ausência de condições econômicas favoráveis torne inútil em um momento dado a aplicação ou o desenvolvimento de uma ciência. Mas, mesmo fora de uma economia ou de uma situação de guerra, os corpos continuam a cair e os elétrons a girar. Em psicologia, quando as condições de uma prática racional e científica não estão reunidas, é a própria ciência que é comprometida em sua positividade; em período de ocupação e de superprodução, a seleção cessa de ser uma técnica de integração para tornar-se uma técnica de exclusão e de discriminação; em período de crise econômica e aumento do preço do trabalho, a adaptação do homem a seu ambiente de trabalho torna-se uma técnica que visa aumentar a rentabilidade da empresa e racionalizar o trabalho humano como puro e simples fator de produção; enfim, ela cessa de ser uma técnica psicológica para tornar-se uma técnica econômica. O que não quer dizer somente que ela é utilizada para fins econômicos ou motivada por propostas econômicas, é o destino de todas as ciências aplicadas. Queremos dizer, por exemplo, que a noção de aptidão, tal como ela é utilizada em psicologia industrial, muda de conteúdo e de sentido segundo o contexto econômico na qual é conduzida a se definir: ela pode significar tanto uma norma cultural de formação, um princípio de discriminação retirado de uma escala do rendimento, uma previsão do tempo de aprendizagem, uma estimativa da educabilidade ou, finalmente, o perfil de uma educação efetivamente recebida. Essas diferentes significações do termo aptidão não constituem tanto maneiras de considerar a mesma realidade psicológica, mas maneiras de dar um estatuto ao nível da psicologia individual à necessidades históricas, sociais ou econômicas. Não somente a prática da psicologia torna-se instrumento da economia, mas a própria psicologia torna-se a mitologia em escala humana. Enquanto que uma física ou uma biologia, cujo desenvolvimento e a aplicação são determinadas por razões econômicas e sociais, permanecem uma física e uma biologia, as técnicas psicológicas, pelo fato de algumas de suas condições, perdem sua validade, seu sentido e seu fundamento psicológico; elas desaparecem como aplicações da psicologia, e a psicologia, por cujo nome elas se apresentam, só forma a mitologia de sua verdade. As técnicas físicas, químicas ou biológicas são utilizáveis, e como a razão, “flexíveis em todos os sentidos”; mas, por natureza, as técnicas psicológicas são, como o próprio homem, alienáveis. Através dessas reflexões que parecem nos afastar de nosso problema, nós caminhamos pouco a pouco em direção as relações profundas da ciência e da prática psicológicas, que determinam o estilo próprio dessa ordem de pesquisa. É curioso constatar que as aplicações da psicologia não são jamais oriundas de exigências positivas, mas 11 sempre obstáculos sobre o caminho da prática humana. A psicologia da adaptação do homem ao trabalho nasceu das formas de inadaptação que seguiram o desenvolvimento do taylorismo na América e na Europa. Sabe-se como a psicometria e a medida da inteligência são oriundas de trabalhos de Binet sobre o retardo escolar e a debilidade mental; o exemplo da psicanálise e do que se chama agora a “psicologia das profundezas” fala por si mesma: elas são inteiramente desenvolvidas no espaço definido pelos sintomas da patologia mental. Há um traço especial na pesquisa psicológica? Uma pesquisa não nasce no momento em que uma prática alcança seu próprio limite e encontra o obstáculo absoluto que a desafia em seus princípios e em suas condições de existência? A biologia, como conjunto de pesquisas sobre a vida, não encontra sua origem efetiva e a possibilidade concreta de seu desenvolvimento na interrogação sobre a doença, numa observação do organismo morto? É a partir da morte que uma ciência da vida é possível, quando se sabe medir toda a distancia que separa a anatomia do cadáver da fisiologia do vivo. Da mesma maneira, é do ponto de vista do inconsciente que se torna possível uma psicologia da consciência que não seja pura reflexão transcendental, do ponto de vista da perversão que uma psicologia do amor é possível, sem que ela seja uma ética; do ponto de vista da besta que uma psicologia da inteligência pode se constituir, sem um recurso pelo menos implícito a uma teoria do saber; é do ponto de vista do sono, do automatismo e do involuntário que se pode fazer uma psicologia do homem desperto e percebedordo mundo, que evita se fechar numa pura descrição fenomenológica. A psicologia retira sua positividade das experiências negativas que o homem faz de si mesmo. Mas é preciso distinguir a maneira cuja pesquisa nasce a partir de uma ciência ou uma prática, e a maneira cuja pesquisa, prática e conhecimento se articulam a partir das condições efetivas da existência humana. Em psicologia, como em todos os domínios científicos, a prática não pode se interrogar e nascer dela própria como prática a não ser a partir de seus limites negativos e da sombra que envolve o saber e o domínio das técnicas. Mas, por um outro lado, toda prática e toda pesquisa científicas podem se compreender a partir de uma certa situação de necessidade, no sentido econômico, social e histórico do termo, enquanto que a pesquisa e a prática psicológicas apenas podem se compreender a partir das contradições nas quais se encontra capturado o homem enquanto tal. Se a patologia mental sempre foi e permanece uma das fontes da experiência psicológica, não é porque a doença revela estruturas ocultas, nem porque ela condensa ou destaca processos normais, não é, em outros termos, porque o homem reconhece mais facilmente o aspecto da verdade, mas, ao contrário, porque ele descobre a noite dessa verdade e o elemento absoluto de sua contradição. A doença é a verdade psicológica da saúde, na medida em que ela é a contradição humana. Consideremos, para sermos mais precisos, o exemplo do “escândalo” freudiano: a redução da existência humana ao determinismo do homo natura, a projeção de todo o espaço das relações sociais e afetivas sobre o plano das pulsões libidinais, o deciframento da experiência em termos de mecânica e dinâmica, são reveladores da essência de toda pesquisa psicológica. O efeito de escândalo só se deve a maneira pela qual essa redução foi operada; pela primeira vez na história da psicologia, a negatividade da natureza não era referida a positividade da consciência humana, mas esta era denunciada como o negativo da positividade natural. O escândalo não reside que o amor seja de natureza ou origem sexual, o que já havia sido dito antes de Freud, mas que através da psicanálise, o amor, as relações 12 sociais e as formas de pertencimento inter-humano apareçam como o elemento negativo da sexualidade, enquanto ela é a positividade natural do homem. Essa inversão, em que a natureza, como negação da verdade do homem, torna-se para e pela psicologia o solo de sua positividade, cujo homem, na sua existência concreta, torna-se a negação, essa inversão, operada pela primeira vez de um modo explicito por Freud, agora é transformada na condição de possibilidade de qualquer pesquisa psicológica. Considerar a negatividade do homem por sua natureza positiva, a experiência de sua contradição para o desenvolvimento de sua verdade mais simples, mais imediata e mais homogênea, é desde Freud o projeto, pelo menos silencioso, de qualquer psicologia. A importância do freudismo não consiste na descoberta da sexualidade senão de um modo derivado e secundário; reside, de uma maneira fundamental, na constituição dessa positividade, no sentido que nós dissemos. Nessa medida, toda pesquisa da psicologia positiva é freudiana, mesmo quando ela esta mais afastada dos temas psicanalíticos, mesmo quando ela é uma determinação fatorial das aptidões. Desde então, compreende-se porque a reivindicação de uma positividade pertence as escolhas originárias da psicologia; ela não se inscreve naturalmente no desenvolvimento espontâneo da ciência, da pesquisa e da técnica. A opção de positividade é necessariamente prévia, como condição de possibilidade de uma verdadeira psicologia que, ao mesmo tempo, seja uma psicologia verdadeira. Mas, uma vez que ela é a reivindicação de uma positividade do homem no próprio nível onde ele faz a experiência de sua negatividade, por um lado, a psicologia só pode ser o inverso negativo e mitológico de uma prática real, e, por outro lado, a imagem invertida em que se revela e se oculta um saber efetivo. Ocorre a essa idéia que a pesquisa psicológica constitui toda a essência da psicologia, na medida em que ela assume e realiza todas as pretensões positivas; com a condição que ela só possa se efetuar como pesquisa invertendo um saber, ou a possibilidade de um saber, que ela pretenda desmistificar desde que ela apenas esqueça a exigência absoluta; e que ela não possa se desenvolver como pesquisa científica a não ser se tornando a mitologia de uma prática que não se exerce. A pesquisa, como essência realizada da psicologia, é, simultaneamente, sua única forma de existência e o movimento de sua supressão. A pesquisa é para a psicologia tanto sua razão de ser quanto sua razão de não ser. Em um triplo sentido, ela constitui o momento “crítico”: ela revela o a priori conceitual e histórico, estabelece as condições nas quais a psicologia pode encontrar ou ultrapassar suas formas de estabilidade, enfim ela julga e decide sobre suas possibilidades de existência. As dificuldades contemporâneas da pesquisa psicológica não se inscrevem numa crise de juventude; elas descrevem e denunciam uma crise de existência. Desde o tempo que a psicologia é uma ciência “jovem”, ela teve o tempo de ganhar um pouco de idade. Não é preciso perguntar a cronologia, as razões da imortal infantilidade de uma psicologia que não é menos velha que a química, ou a embriologia. A história das ciências lhe proíbe de se desculpar pela sua idade mental, pela sua idade real. Eu ainda gostaria que a indulgência senil dos psicólogos pueris se divirta e consinta que a juventude envelhece. Mas, eis que o tempo da juventude passou, sem que a juventude tenha jamais passado. A infelicidade da psicologia não consiste nessa juventude, mas que ela 13 jamais tenha encontrado nem o estilo nem o aspecto de sua juventude. Suas preocupações são seculares, mas sua consciência é cada dia mais infantil; ela só é jovem através de uma juventude sem viço. Porque o surgimento da pesquisa no domínio da psicologia não consiste somente numa crise de maturidade. Um evento se produziu em todos os domínios do conhecimento que resultou em horizontes novos para a ciência contemporânea: o conhecimento cessou de se desenvolver a partir de um único elemento do saber para se tornar pesquisa; em outros termos, ela se destacou da esfera do pensamento em que encontrava sua pátria ideal para tomar consciência de si, como caminho no interior de um mundo real e histórico em que se totalizam técnicas, métodos, operações e máquinas. A ciência não é mais um caminho de acesso ao enigma do mundo, mas o devir de um mundo que agora faz simplesmente uma só e única coisa com a técnica realizada. Cessando de ser somente o saber para se tornar pesquisa, a ciência desaparece como memória para se transformar em história; ela não é mais um pensamento, mas uma prática, não é mais um ciclo fechado de conhecimentos, mas, para o conhecimento, um caminho que se abre onde se fecha. Essa passagem do saber enciclopédico à pesquisa constitui sem dúvida um dos eventos culturais mais importantes de nossa história. Não nos cabe discutir o lugar e o papel de uma psicologia num saber cuja pretensão fosse de pleno direito e desde sua origem, enciclopédico. O único problema que nos concerne é saber o que pode agora significar a psicologia como pesquisa, uma vez que, a psicologia transformou-se inteiramente em pesquisa. Vimos como ciência e prática psicológica se eqüivalem em nossos dias e se esgotam num único domínio da pesquisa, e podemos compreender como uma psicologia que pode inicialmente posicionar-se como “experimental” ou “reflexiva” não é verdadesenão quando é científica, positiva e objetiva; a pesquisa não é a condição do desenvolvimento da ciência e da prática psicológicas; ela forma, enquanto pesquisa empírica, destacada de todo horizonte teórico, pura de especulação, enunciada no nível de seus resultados experimentais, o a priori de sua existência e o elemento universal de seu desenvolvimento. Fazendo “pesquisa”, a psicologia não segue, como as outras ciências, o caminho de sua verdade, ela fornece as condições da existência de sua verdade. A verdade da psicologia como ciência não conduz a pesquisa, mas a própria pesquisa magicamente descortina o céu dessa verdade. A psicologia não deve portanto ser interrogada sobre sua verdade no nível de sua racionalidade científica, nem no nível de seus resultados práticos, mas no nível da escolha que ela faz ao se constituir como pesquisa. A pesquisa é transformada na razão de ser científica e prática da psicologia, a razão de ser social e histórica do psicólogo. No momento que se é psicólogo se pesquisa. O que? O que os outros pesquisadores vos deixam pesquisar, pois vós não pesquisais para encontrar, mas para buscar, para ter buscado, para ser pesquisador. Feitas de pesquisa, da pesquisa em geral, da pesquisa sobre o azeite não-maturado, sobre as neuroses do rato, sobre a freqüência estatística das vogais na versão inglesa da Bíblia, sobre as práticas sexuais da mulher do interior, no lover middle class exclusivamente, sobre a resistência 14 cutânea, a pressão sangüínea e o ritmo respiratório durante a audição da Symphonie des psaumes. Pesquisa de grande caminho e pequenos obstáculos, pesquisa de celerados 10 . E, como a racionalidade, o caráter científico, enfim a objetividade da pesquisa só podem garantir-se pela própria escolha da pesquisa, as garantias efetivas de sua validade só podem ser exigidas de métodos e de conceitos não psicológicos. Vê-se pesquisas inteiras fundadas sobre conceitos médicos duvidosos, mas que para o psicólogo são objetivos, porque simplesmente são médicos. Houve anos de trabalho durante os quais aplicou-se métodos fatoriais a um material experimental em que uma purificação matemática jamais poderia conferir a validade que inicialmente já não possui. Mesmo após a análise fatorial, um dado de introspecção permanece introspectivo. Não se vê muito bem qual forma de objetividade é adquirida quando, submete-se ao tratamento fatorial, um questionário aplicado a crianças em idade escolar que interroga sobre as suas próprias ilusões ou sobre aquelas de seus pequenos camaradas. Não obstante, é-se tranqüilizado pelo resultado: ensina-se que as crianças mentem sobretudo para evitar as punições, depois por presunção, etc. Conta-se com o próprio fato para que o método ainda seja objetivo. Mas então? Há maníacos da indiscrição que para olhar através de uma porta envidraçada tem a tendência a olhar o buraco da fechadura... Podemos sofisticar: era preciso páginas para enumerar os trabalhos que demonstram estatisticamente a não-validade de um conceito médico, ou, clinicamente, a ineficácia dos métodos psicométricos. Atinge-se o ápice da pesquisa psicológica: uma pesquisa que demonstra a si própria seu caráter científico pelo jogo de métodos e conceitos que são emprestados de outros domínios científicos e cuja objetividade interna é destruída. Não há então objetividade autóctone na pesquisa psicológica, mas somente modelos transpostos de objetividades vizinhas e que delimitam do exterior o espaço de jogo dos mitos de uma psicologia precária em matéria de objetividade e cujo único trabalho efetivo é a destruição secreta e silenciosa dessas objetividades. O trabalho real da pesquisa psicológica não é nem a emergência de uma objetividade, nem o fundamento ou o progresso de uma técnica, nem a constituição de uma ciência, nem a revelação de uma forma de verdade. Ao contrário, seu movimento é aquele de uma verdade que se desfaz, de um objeto que se destrói, de uma ciência que busca somente desmistificar-se: como se o desígnio de uma psicologia que se quer positiva, e solicitou a positividade do homem ao nível de suas experiências negativas, fosse paradoxalmente de só fazer uma tarefa científica inteiramente negativa. Que a pesquisa psicológica só possa manter com a possibilidade de um saber e a realidade de uma pesquisa relações negativas, está aí o preço que ela paga pela escolha da positividade desde o início feita e que constrange qualquer psicólogo desde a entrada no templo. Se a pesquisa, com todos os caracteres que nós descrevemos, é, em nossos dias, considerada a essência e a realidade de toda psicologia, entretanto não é o signo que a psicologia teria enfim atingido sua idade científica e positiva, ao contrário, é o signo que ela esqueceu sua vocação eternamente infernal. Se a psicologia quisesse encontrar ao mesmo tempo seu sentido como saber, como pesquisa e como prática, deveria se destacar desse 10 Na medida em que este artigo não tem intenção polêmica nós não reproduzimos o título exato das pesquisas em curso. Mas uma vez que, seu propósito é crítico, as modificações acrescidas a realidade são de pura polidez e não altera o essencial. 15 mito da positividade na qual hoje vive e morre, para reencontrar seu próprio espaço no interior das dimensões da negatividade do homem. Nesse sentido originário, ainda é um dos paradoxos e uma das riquezas de Freud ter percebido melhor que ninguém, contribuindo mais que ninguém para descobrí-la e a ocultá-la. Superos si flectere nequeo, Acheronta movebo 11 ... A psicologia não se salvará a não ser por um retorno aos Enfermos. 11 [N. Da T.]
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