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Resumo Direito da União Europeia Prof. Dra. MARIA LUISA DUARTE – 2011/2012 por Filipe Mimoso e Patrícia Ganhão 1.º. União Europeia e Direito da União Europeia: Terminologia e Enquadramento Desde a criação das três Comunidades Europeias, na década de cinquenta do século XX, a expressão Direito Comunitário tornou-se a fórmula mais comum de designação do conjunto de regras e princípios aplicáveis à existência e ao funcionamento da estrutura comunitária de poder. Com a assinatura da chamada Constituição Europeia, em Outubro de 2004, conquistou algum espaço a designação Direito Constitucional da União Europeia, mas a opção, com o abandono formal do Tratado Constitucional e o retorno ao modelo clássico do tratado internacional através do Tratado de Lisboa, revelar-se-ia, afinal, prematura. A expressão singela União Europeia, completada pela fórmula narrativa de estática e dinâmica da ordem jurídica eurocomunitária, será, quanto a nós, a mais adequada para descrever a nova realidade resultante do Tratado de Lisboa, em particular a extinção da Comunidade Europeia e a afirmação plena da União Europeia. A opção por uma ou outra designação reflecte, basicamente, um determinado critério metodológico e uma certa abordagem do modelo jurídico da integração europeia. A terminologia não é, no Direito, apenas uma questão de gosto ou de preferência pessoal. As expressões mais comuns do Direito Comunitário, Direito das Comunidades Europeias ou Direito da União Europeia assentam sobre o critério finalístico, porquanto se destaca o objectivo da integração como verdadeiro mote jurídico. Entre nos, esta expressão ainda associada aos aspectos jurídicos da integração económica e, nesta medida, não reflecte a pluralidade de fins, alguns deles claramente meta-económicos, que, há muito, passaram a orientar a actuação da União Europeia. Já a formula Direito Constitucional e Direito Administrativo da União privilegia o conteúdo regulador deste Direito; por outro lado, e será este, porventura, o traço mais distintivo e, em nossa opinião mais discutível, pressupõe uma determinada abordagem politico- ideológica que vê na União Europeia uma pré-formação de Estado, imputando-lhe características típicas da fenomenologia estadual, como sejam a existência de uma constituição e a afirmação de um poder constituinte próprio. A designação Direito Administrativo Comunitário, Direito Administrativo Europeu ou Direito Administrativo da União Europeia não é, seguramente, adequada como sinonimo de direito institucional geral. Note-se, alias, que o direito administrativo na União Europeia adquiriu autonomia no ensino do Direito da União Europeia, referindo-se ao 1 conhecimento “dos princípios e regras que regulam o exercício da função específica de execução administrativa das normas previstas nos tratados institutivos ou adoptados em sua aplicação”. No novo quadro definido pelo Tratado de Lisboa, que, recorde-se, extinguiu a Comunidade Europeia e eliminou do texto dos Tratados toda e qualquer referência ao termo comunitário e derivados, podermos continuar a falar de Direito Comunitário. Não temos dúvidas acerca da suficiência e adequação da expressão Direito da União Europeia para descrever o conjunto de regras e princípios conformadores do estatuto jurídico da União Europeia. A expressão Direito Comunitário designa o direito criado e aplicado segundo o método comunitário que não só sobreviveu ao Tratado de Lisboa como nele se viu reforçado. Sem por em causa a natureza adquirida da expressão comunitário no processo de construção da União Europeia, mas com o objectivo de sublinhar a sua adaptação a esta nova etapa encetada com o Tratado de Lisboa, temos proposto a formula compósita eurocomunitário que, com inteira propriedade, descreve a singularidade do modelo jurídico da União, de génese comunitária e de base europeia. O Direito da União Europeia não é um ramo do Direito; ele é, com todas as características, um ordenamento jurídico autónomo e pluridimensional. Uma característica identitária do Direito da União Europeia é a sua expansibilidade, de tal modo que, no estádio actual de evolução, deparamos com normas eurocomunitárias sobre os mais variados aspectos da regulação jurídica da vida social. A vocação de crescimento do normativo comunitário é, diríamos, tentacular. A normatividade de fonte comunitária insinuou-se em quase todos os espaços típicos de regulamentação interna. O Direito da União Europeia designa o conjunto de regras e princípios que regem a existência e o funcionamento da União Europeia. O Direito da União Europeia, enquanto expressão de uma ordem jurídica própria e autónoma, corresponde a um bloco de legalidade, plural nas suas fontes, abrangente em relação aos destinatários das respectivas normas e muito amplo no seu escopo de regulação material. No conjunto deste universo normativo, podemos distinguir, pelo menos, duas acepções de Direito da União Europeia: • Em sentido lato – o Direito da União Europeia abrange todas as disposições aplicáveis à estrutura institucional da União Europeia, incluindo as regras e princípios definidos pelo decisor eurocomunitário com vista à regulação de aspectos relevantes da vida social, directa e indirectamente relacionados com os objectivos de integração; • Em sentido restrito – o Direito da União Europeia, despido de qualquer outra adjectivação, sói identificar o chamado Direito 2 Institucional, porque relativo ao funcionamento da estrutura decisória da União Europeia. Nesta obra, a selecção e o tratamento das diferentes matérias seguiu a representação do que entendemos ser, no estádio actual de evolução da União Europeia, o Direito Institucional ou, com maior propriedade, o Direito Funcional, por oposição a Direito Material, da União Europeia, que molda e delimita o exercício das funções da União Europeia, como entidade decisora (função politica, função legislativa, função judicial, função administrativa). Para melhor vincar o significado da distinção proposta, diremos, então, que a ordem jurídica da União Europeia pode ser representada como uma árvore, dotada de um bem definido sistema radicular, que suporta um tronco forte e robusto a partir do qual se desenvolvem, em crescente multiplicação, ramos de corpo proporcionado à respectiva função vital. Legendando a metáfora da árvore: os valores fundamentais e identitários da União Europeia (comuns a todos os Estados membros), tal como descritos pelos Tratados, são as raízes do sistema 1 ; o tronco congrega as regras e princípios aplicáveis ao funcionamento da estrutura decisional da União Europeia (tratados institutivos ou constitutivos); finalmente, os ramos desta árvore imaginária correspondem à metáfora comum dos ramos do Direito, porque identificam as diferentes áreas de regulação material de fonte comunitária (inicialmente com pendor económico; seguidamente de integração política e social; extendeu-se depois a quase todos os domínios do Direito). 1 As raízes representam o modelo de Estado de Direito: - Submissão do poder político à lei; - Representatividade democrática No nosso estudo, embora centrado nas matérias que, vastas e complexas, se reconduzem à noção do tronco da árvore, não deixaremos de valorizar uma perspectiva de conjunto, com referências, por um lado ao núcleo inspirador e paramétrico dos valores fundamentais e, por outro lado, a certas regras de disciplina material cujaespecificidade nos possa ajudar na compreensão da singularidade genética do sistema jurídico da União Europeia. A “comunitarização” dos ordenamentos jurídicos nacionais, condicionada, mas não travada pelo princípio da subsidiariedade, torna inevitável que o Direito Material da União Europeia, de incidência horizontal, passe a integrar os conteúdos específicos das várias disciplinas jurídicas, de acordo com um princípio fundamental de complementaridade funcional entre o ordenamento comunitário e os ordenamentos nacionais. O chamado Direito Institucional (Constitucional na versão prospectiva de alguns) compreende o estatuto jurídico do poder na União Europeia, incluindo as matérias relativas aos meios de tutela jurídica (Contencioso da 3 União Europeia) e à protecção dos direitos fundamentais. Esta é uma área do saber jurídico cuja filiação juspublicista não deve suscitar dúvidas. O Direito da UE coexiste com o DIP e o Direito Interno de cada Estado- membro. O DIP Clássico é Direito Internacional de génese europeia. O Direito Internacional Moderno é de génese extra-europeia. 2. Os Fundamentos Históricos do Desígnio Europeu A. Até à I Guerra Mundial A Europa sob o domínio da Roma Imperial A palavra Europa nasceu com a mitologia. O grego Hesíodo, no poema Teogonia (O Nascimentos dos Deuses), por volta de 700 A.C, terá sido o primeiro autor a referir expressamente o nome Europa. Os sábios gregos caracterizaram a Europa como um espaço geográfico distinto, que se estendia do Atlântico aos Montes Urais. Limitada pelo Mediterrâneo. Um espaço assimétrico em virtude da sua (in) definição geográfica na relação com a Ásia e, sobretudo, um espaço formado de identidades múltiplas, apresentado como um mosaico de paisagens, climas, povos, línguas e culturas (pluralidade e versatilidade). A geografia não imporia uma individualização continental específica da Europa, uma vez que as suas costas ocidentais e meridionais, que a separam de África e da América, seriam apenas o prolongamento do grande continente asiático – uma espécie de península da Ásia na expressão poética de Paul Valéry. Independentemente da maior ou menor relevância dos “acidentes geográficos” que fundamentam a distinção entre os dois continentes, é importante reconhecer que, na sua origem, a Europa exprime uma vontade de autodeterminação cultural e política. Um certo paradoxo resulta, afinal, deste continente de geografia incerta, guiado por um código civilizacional tendencialmente comum, seja no que se refere à ascendência cultural (tradição clássica, de origem greco- romana) seja no que se refere à mundividência religiosa (Cristianismo). A adesão de toda a Europa, desde a Lusitânia, sobre o Atlântico, até aos povos acantonados a leste do Elba, desde a Grécia à Britânia, ao modelo romano de cultura e de civilização, permitiu que num vasto espaço geográfico, sensivelmente coincidente com a Europa Ocidental e Central dos dias de hoje, se desenvolvessem sociedades humanas que embora etnicamente distintas, se subordinaram a leis e instituições comuns. Surge, assim, uma primeira noção política de Europa: uma Europa conquistada, sem dúvida, mas tomada una, depois de submetida pelas legiões romanas, por virtude da superior civilização do conquistador e sobretudo da ordem jurídica com vocação unificadora de que este era portador. A unidade europeia sob o domínio de Roma não haveria, porém, de resistir muito 4 tempo aos factores de desagregação interna e ao assalto das sucessivas vagas de bárbaros que, desencadeadas na periferia, rapidamente convergiram para o coração do Império. (MC) A Europa sob a égide da Roma papal Mas, ultrapassada a fase de profundas convulsões que acompanharam e se seguiram à derrocada do Império Romano, é ainda sob a égide de Roma, apoiada agora não na força das legiões mas, antes, no prestígio e autoridade que o Papado romano conseguira salvaguarda e impor, que a Europa vai ser organizada e a sua unidade de civilização preservada.(MC) Numa Europa, submetida à religião cristã, a Igreja de Roma exerce uma influência e consegue mesmo um acatamento tão generalizado no domínio temporal que mau grado as vicissitudes sofridas ao longo dos séculos, conseguiu impor à Europa uma unidade espiritual e formas de unidade política que ficaram a marcar para sempre a sua história.(MC) A história multi-secular da Europa cruza-se com uma constante: a procura da unidade, a recondução das partes ao todo. Este desígnio tem sido perseguido por efeito de duas forças, de modo alternativo ou conjugado: a força das armas, que engendra os Impérios (Império Romano; Império de Carlos Magno; Império dos Habsburgos (Sacro Império Romano-Germânico); Império Napoleónico; III Reich) e a força das ideias, alimentada pela visão politica e filosófica de uma escola de pensadores que, ao longo dos tempos e quase sempre em contradição com o pensamento dominante da época, acreditaram na energia propulsora da razão dos homens que, a seu tempo, desperta a razão das nações. Na génese da construção europeia prevaleceu a força motivadora das ideias. E, hoje em dia, refere a Regente, também pela força da moeda. A unidade da Europa apenas tinha ocorrido, principalmente, com a existência de Impérios. O Império de Carlos Magno surge, neste especial ambiente da Europa Medieval, como uma magnífica representação da «Civitas Dei» na concepção de Santo Agostinho, assente como esteve num vasto território europeu submetido a uma autoridade dual — política e religiosa, mas que no topo da hierarquia, na pessoa do Papa, reencontrara transitoriamente uma certa forma de unidade. De igual modo, o Sacro Império Romano-Germânico conforma-se ainda, em larga medida, com o modelo político de uma Europa unificada sob o signo da Igreja de Cristo. Neste contexto político-religioso, o movimento das Cruzadas, que dominou um longo período histórico em que eram ainda bem frouxos os conceitos de soberania nacional, apresenta-se como a expressão inequívoca de uma Europa una que, mobilizando as energias colectivas, surge perante os «infiéis» a defender ideias e objectivos comuns a povos e príncipes 5 submetidos todos, espiritual e temporalmente, à autoridade voluntariamente acatada dos Papas de Roma. A caracterização da Europa como “entidade histórico-cultural e política” terá sido um dos legados do Humanismo renascentista, por oposição ao período medieval que valorizava o sentido geográfico de Europa. A desvalorização do papel político da Igreja (MC) Não obstante a vitória alcançada sobre os Imperadores alemães, que permitira reafirmar a soberania temporal da Igreja, esta saiu consi- deravelmente enfraquecida das lutas que do século X ao século XIII os Papas se viram obrigados a sustentar. A partir do século XIV é com os Reis de França que se reacende a longa batalha entre o poder de Roma e o poder de Príncipes que, arrogando-se a qualidade de representantes directos de Deus na Terra, pretendiam eximir- se a qualquer ingerência do Papado no domínio temporal. A Igreja é agora, porém, nesta segunda fase da luta, a grande vencida, com enorme prejuízo do seu anterior poder político e mesmo da influência espiritual que até então exercera. A transferência dos Papas para Avinhão (1309), o Cisma do Ocidente (1378-1429) e, sobretudo, a Reforma Protestante (1517), representam os momentos culminantes da decadência do prestígio e da autoridade de Roma sobre a Europa Cristã. O despertar das modernas soberanias europeias e a quebra da unidade políticae religiosa da Europa As relações entre os diversos Estados europeus são dominadas por um clima de rivalidade permanente a exprimir-se frequentemente em luta armada. À medida que no quadro das diversas nações europeias se robustece o poder central e se afirma o princípio da unidade nacional, acentua-se o risco de confrontos directos, que o Papado deixara de ter autoridade para arbitrar, entre Estados que emergem, cada vez mais coesos, fortes e senhores dos seus destinos, de complexos processos de integração nacional e de afirmação do poder absoluto dos respectivos soberanos. As guerras religiosas, que representam um momento crucial do processo de afirmação da independência nacional em face do Papado e de elaboração de um novo mapa político da Europa — dando ocasião a prolongadas e esgotantes provas de força, marcam também a época histórica em que se inicia um esforço sistemático na busca de fórmulas de equilíbrio das potências europeias, 6 independentes e soberanas dentro dos limites territoriais do Estado. A comunidade da civilização mantém-se certamente. Mas a unidade religiosa e política da Europa, que o Papado preservara durante um milénio, essa parecia definitivamente perdida. (MC) A Europa evoluiu da contestada unidade política da “Res Publica Christiana” para o período pós-medieval da pluralidade de Estados soberanos. Com o advento do Estado soberano, independente nas relações internacionais, supremo nas relações internas, ficou, definitivamente, prejudicado o ideal de unidade europeia baseada na tutela política do Império ou na autoridade temporal do Papa. Perdurou, contudo, uma tradição de “nostalgia de unidade” que se alimentou, numa primeira fase, das referências à unidade de base religiosa (“Res Publica Christiana”). A República Cristã foi, de facto, à época um princípio de comunidade internacional. É preciso, no entanto, estabelecer comparações até aos dias de hoje: O conceito de Sociedade Internacional é assente numa soberania Estadual. As Organizações Internacionais assentam num método Intergovernamental (assente numa mera cooperação e não numa integração de soberanias; mera articulação). No entanto, a Comunidade Internacional que hoje “outra vez” vigora (UE), é aquela em que os Estados abdicam cada vez mais de alguns poderes externos (modelo comunitário, de integração de soberanias: existem entidades supranacionais que decidem no âmbito do interesse comum; existe uma integração de soberanias, com uma entidade supraestadual). O Direito da UE é cada vez mais parâmetro de validade do Direito Interno. Uma vez concretizada a Reforma e com ela a divisão religiosa da Cristandade ocidental, a “nostalgia de unidade” reinventa-se como imperativo ético e político através de modelos teóricos e idealistas de “paz perpétua”, subordinados ao supremo objectivo de neutralizar e prevenir as guerras fratricidas de conquista territorial entre os Estados europeus. À excepção dos planos, entre outros, de Pierra Dubois (De recuperatione Terrae Sanctae, 1304) e de Dante Alighieri (De Monarquia, 1308), os projectos mis importantes são concebidos para uma Europa de soberanias nacionais, cuja referência política e normativa seria ordem jurídica interestadual consagrada pela chamada Paz de Vestefália (1648). O cumprimento, noutros continentes, de uma «missão de civiliza- ção» em que os Estados europeus se auto-investiram, permitiu assim, por algum tempo, preservar a convivência pacífica dos povos da Europa. O «Balance of Power» e o «Concerto Europeu» No epílogo da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), conflito de causas políticas e religiosas, a celebração do Tratado de Paz reconhece a igualdade 7 entre Estados soberanos e enquadra o aparecimento de uma pluralidade de Estados independentes em clara ruptura com o paradigma anterior da autoridade partilhada, e disputada, entre o Papa e o Imperador (Sacro Império Romano-Germânico). Dominados por um espírito mais ou menos visionário, são vários os autores que conquistaram o seu lugar na galeria honorífica dos precursores do movimento europeu, uma espécie de “tetravós fundadores” da União Europeia: Antoine Marini (1461), que inspirou Jorge Podiebrad, rei da Boémia com o seu “Pacto Confederal”, com uma proposta de aliança entre os reinos cristãos para travar o avanço dos turcos; Duque de Sully e o “Grande Desígnio” (princípios do século XVII); William Penn e o seu “Ensaio para a paz presente e futura da Europa”, publicado em 1693; Abade Saint-Pierre que publica em 1716-1717 o “Projecto de tratado para fazer com que a paz seja perpétua entre os soberanos cristãos”, obra extensa e difícil que seria mais tarde retomada e divulgada por Jean-Jacques Rousseau através do seu “Extracto do projecto de paz perpétua do Abade de Saint-Pierre e juízo sobre a paz perpétua” (1768); Jeremy Bentham que idealizou um “Plano para a Paz Universal de Perpétua” (1789); Emmanuel Kant que, no acaso da sua vida, escreve “Pela Paz Perpétua” (1795), estudo breve e denso que Grangeia, de imediato, grande notoriedade. O filósofo alemão sustenta um princípio de paz que não depende apenas da celebração de um pacto de federação entre os Estados europeus (a “Sociedade Europeia” de Saint-Pierre) ou de associação entre os pequenos Estados para contrabalançar a hegemonia dos grandes Estados (Jean-Jacques Rousseau). Kant propõe uma “Federação de Estados livres”, de acordo com o modelo de constituição republicana baseada na separação de poderes e na igualdade perante a lei. O filósofo de Konisberga não se limita a defender um modelo federal. O traço mais distintivo, e notavelmente contemporâneo, da sua proposta é a ênfase que coloca na relação necessária entre a forma democrática do poder estadual e a garantia de paz entre os povos. Advoga ainda a aplicação de um Direito Cosmopolítico, baseado no contrato de livre e permanente associação entre os Estados, tendo como pressuposto o respeito do “estado de direito” por oposição ao “estado de natureza”, e no qual podemos identificar a antevisão do actual Direito Comunitário. A Paz de Vestefália (1648) faz inscrever no Direito das Gentes o princípio da plena soberania dos Estados que actuam nas relações internacionais como titulares exclusivos do poder e que o exercem de modo livre e unilateral. A conquista passa a ser ilícita. A política do equilíbrio de forças (“balance of power”), orientada para impedir a prevalência hegemónica de um ou de vários Estados, foi, contudo, responsável pela insegurança permanente das relações entre Estados europeus ao longo dos séculos XVII e XVIII. O constante reagrupamento das nações, ao sabor das mais improváveis alianças, deveria impedir um Estado de atingir a supremacia política. A estratégia de alianças entre as Nações 8 mais poderosas reduziu os pequenos Estados ao pagamento do elevado tributo da submissão a desígnios e interesses alheios. A tentativa napoleónica de unificação do espaço europeu, fruto de um imperialismo apoiado na força de exércitos em movimento através do continente, só por um curto espaço de tempo interrompeu a aplicação, que desde o século XVI vinha a ser ensaiada, dos princípios e regras do «Balance of Power» baseado num sistema de alianças entre potências europeias, cujo eixo podia oscilar por razões conjunturais mas sem alteração profunda do peso das coligações em presença.(MC) A Santa Aliança, que emerge do Congresso de Vienaem que se procedera à liquidação por via diplomática da aventura imperial da França e a política do «Concerto Europeu» que se lhe seguiu, expri- mem o pleno triunfo das soberanias nacionais em que o continente se achava retalhado; soberanias que, forçadas a coexistir num estreito quadro geográfico, buscam fórmulas de convivência possível, moderam as irrupções de agressividade ocorridas aqui e além, arbitram autoritariamente, se necessário pela força das armas, os conflitos pontuais a nível interno ou internacional e retocam paulatinamente, atentas ao princípio das nacionalidades, o mapa político da Europa. (MC) O “Concerto Europeu” assentou em conferências diplomáticas, que serviram como instrumento institucional de prevenção da guerra. A Revolução Francesa (equilíbrio europeu é quebrado por ela: pela força e pelas ideias) e o desígnio expansionista de Napoleão Bonaparte provocaram uma alteração radial deste modus vivendi: por um lado, as forças francesas pelejaram por toda a Europa com o objectivo de substituir o antigo equilíbrio e, em vez dele, impor a autoridade imperial da França; e, por outro lado, as novas ideias sobre a igualdade e a liberdade como princípios fundadores da sociedade humana mostraram-se tão perigosas para as monarquias europeias quanto o eram os exércitos napoleónicos. Encerrado o ciclo bélico das invasões napoleónicas, as quatro grandes potências vencedores (Áustria, Inglaterra, Prússia e Rússia) estabeleceram a Santa Aliança. O Congresso de Viena, que reuniu entre Outubro de 1814 e Junho de 1815, consagrou a nova estratégia de coexistência das soberanias nacionais. Do lado das iniciativas individuais, o século XIX oferece múltiplos exemplos de projectos que revigoram a associação entre o ideário pacifista e a necessidade de congregar as nações e os povos europeus. Neste período da democracia liberal na Europa, são vários os “avós fundadores” da unidade europeia, dos destacamos: 1) Conde de Saint-Simon que, em 1814, preconiza no estudo intitulado “Da Reorganização da Sociedade Europeia” uma Europa de estrutura federal que deveria girar em torno da 9 França, Grã-Bretanha e a futura Alemanha reunificada. Saint-Simon foi, por isto, um precursor da tendência institucionalista que no século XX vigará sob a forma dos Tratados Institutivos das Comunidades Europeias. Como defendera Kant, também Saint-Simon postula o princípio democrático de organização da futura “sociedade europeia”; 2) Benjamin Constant rejeita frontalmente a política de conquista e de subjugação militar, bem como a concepção jacobina da nação centralizada; em alternativa, propõe no texto, significativamente designado como “Do espírito da Conquista e da Usurpação nas suas relações com a civilização europeia” (1815), um federalismo assente na União pacifica dos povos europeus e no respeito da liberdade das nações federadas; 3) Ernest Renan sugere em 1870, em plena guerra franco-prussiana, a formação da federação europeia como meio de aproximar as duas nações tradicionalmente antagónicas. Sob esta perspectiva o plano de Renan antecipa algumas das linhas de força que serão apresentadas, oitenta anos depois, através da Declaração Schuman e serão concretizadas com a instituição da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. A veia premonitória de Ernest Renan também se pode vislumbrar na forma veemente como assinala os riscos de uma nação europeia hegemónica, antevendo assim o sentido da História inscrito no epílogo das Duas Grandes Guerras, em particular a segunda, que tornou definitiva a impossibilidade, no plano político, militar e civilizacional, de reeditar a experiencia do império. Numa carta datada de 15 de Setembro de 1871, Renan identificava a Europa como uma “Confederação de Estados reunidos por uma ideia comum de civilização”. Ainda segundo este pensador, importa respeitar a individualidade de cada nação, construída sobre a língua, a raça, a história, a religião, mas também sobre algo que é ainda mais tangível: o consentimento actual, a vontade das diferentes pessoas em viver juntas um determinado projecto político. A importância reconhecida ao consentimento como elemento fundamental de legitimação de qualquer comunidade política será, porventura, o contributo mais duradouro e actual de Ernest Renan para o processo de integração política da Europa – consentimento dos cidadãos no seio dos seus Estados; consentimento dos Estados, de todos os Estados, em relação ao acto fundador da Federação. A ampla projecção que o movimento federalista europeu conheceu ao longo do século XIX foi ainda devedora da realização de congressos internacionais que atraíram, senão a presença, pelo menos a atenção, da flor da intelectualidade europeia. Em meados de Oitocentos, têm lugar os chamados Congressos da Paz: 1848, em Bruxelas; 1849, em Paris; 1850, em Francoforte; 1851, em Londres. No congresso de Paris, Vítor Hugo, que colhia na época os louros de um merecido prestigio como poeta e dramaturgo, abriu os trabalhos com um empolgado discurso europeísta: “(…) Um dia virá em que existirão dois grupos imensos, os Estados Unidos da América e os Estados Unidos da Europa (…). No século XX haverá uma nação extraordinária e esta nação terá por capital Paris e não se chamará França, chamar-se-á 10 Europa (…)”. Vítor Hugo, o mais exaltado e eloquente dos profetas da união europeia, não resistiu, contudo, ao apelo do arreigado nacionalismo francês quando visionou Paris como futura capital europeia, quando confiou à França o papel de “nação-mãe” que moldaria a vida e o pensamento dos Estados Unidos da Europa. Mas existem diferenças entre os “Estados Unidos da Europa” e os Estados Unidos da América que têm que ser definidas: - As diferentes línguas (várias vs Inglês); - Existe um motivo “federalista” nos E.U.A. - a resistência/libertação do jugo britânico, vertente que nunca existiria tão assumida na Europa, de um inimigo externo comum; - Prevalecem assim as diferenças. Em 1889, inicia-se um novo ciclo de assembleias internacionais, os chamados Congressos Universais da Paz, legatários directos da ideia da paz perpétua propalado nos séculos XVII e XVIII e dos congressos de meados do século XIX. No discurso de abertura do Congresso Universal da Paz, que decorreu em Paris em 1889, o apelo é claro no sentido de garantir a paz no Mundo pela via da “união federal da Europa”, de modo a pôr termo à anarquia em que teriam caído as relações entre as nações europeias. Nesse mesmo ano, seria criada a União Interparlamentar (*), destinada a promover a cooperação entre os parlamentos nacionais como veículos privilegiados da ideologia pacifista. Já no século XX, no período entre as duas Grandes Guerras, os Congressos Universais da Paz não terão sido fonte de concepções originais sobre o destino da Europa, mas, o que foi muito relevante para a época, possibilitaram uma divulgação alargada das diferentes correntes europeístas e pacifistas em contraponto à ideologia nacionalista e crescentemente belicista que, pelo menos a partir dos finais da década de vinte, se tornou uma ameaça real de iminência de novo conflito armado. Nos finais do século XIX, os nacionalismos europeus entraram em rota de colisão. A partilha dos territórios coloniais da África e da Ásia agudizou tradicionais antagonismos e tornou-se um factor permanente de disputa. A pulsão centrífuga dos interesses inconciliáveis suplantou o objectivo de garantir um equilíbrio entre as grandes potências europeias. A derradeira política de alianças acabaria por definiro alinhamento de forças no conflito mundial de 1914-1918: de um lado, o Acordo (Entente) entre a França, a Rússia e a Grã-Bretanha; do outro, a Tripla Aliança entre a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Itália. (*) A União Inter-Parlamentar (UIP), com sede em Genebra, conta, actualmente, como membros 155 parlamentos nacionais (entre estes, a Assembleia da Republica) e 9 membros associados (parlamentos de organizações internacionais, como a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e o Parlamento Europeu). 11 B. No período entre as duas Guerras Mundiais Foi, porém, no período entre as duas guerras mundiais, em pleno século XX, que se assistiu à criação de um clima particularmente favorável à divulgação do velho sonho de unidade política; e a tragédia europeia de 1939-1945 viria a permitir a reposição, em novas bases, de projectos concretos de integração da Europa. Logo após a guerra de 1914-1918, LUIGI EINAUDI, que viria a ser Presidente da República Italiana, publicava uma primeira mensa- gem em que expunha a necessidade de congregar os povos europeus que acabavam de sair de uma luta prolongada e cruel e de os solidarizar na construção de uma Europa unida, capaz de desempenhar no mundo o tradicional e eminente papel que historicamente fora e deveria continuar a ser o seu.(MC) Esta ideia era já então compartilhada por muitos europeus de mérito. Mas os conflitos de interesses desencadeados na altura da assinatura do Tratado de Versalhes contribuíram largamente para exacerbar os nacionalistas reinantes, pouco propícios à aceitação imediata do generoso pensamento de EINAUDI e daqueles que o retomaram, como foi o caso do Conde COUDENHOVE-KALERGI, de HERRIOT, de Loucheur.(MC) A Guerra de 1914-1918 elevou a uma escala até então desconhecida todos os horrores resultantes de longos e sangrentos conflitos militares: a morte, a fome, as doenças, a devastação e a desesperança na humanidade do Homem. A tragédia da I Grande Guerra afectou, de modo determinante, as mentalidades e levou, intelectuais e estadistas, a redefinir prioridades. A união da Europa foi mesmo subordinada ao lema “Unir-se ou morrer” (Gaston Riou no livro “Europe, ma Patrie”, publicado em 1928). A Grande Guerra teve ainda o efeito de apressar o declínio da Europa face aos Estados Unidos da América. No rescaldo das calamidades da I Grande Guerra, germinava o pessimismo europeu. Foi uma guerra devastadora e com um nível de destruição enorme. Culminou no Armistício (1918) e iria servir de impulsionador dos movimentos Pan-Europeus. A Sociedade das Nações, criada em Genebra a 10 de Fevereiro de 1920 (com origem no Tratado de Versalhes de 1919), nasceu e viveu enfraquecida pelo paradoxo de uma época de transição: impulsionada pelas ideias e pela vontade do Presidente Woodrow Wilson, este não logrou, contudo, convencer o Senado das vantagens da participação dos Estados Unidos da América na nova Organização. Assim, lançada num período de crescente afirmação internacional deste Estado do outro lado do Atlântico, a Sociedade das Nações, pese embora a sua vocação mundial, acabou por 12 funcionar sob o domínio das potências europeias, em particular a Grã- Bretanha e a França. A acção de COUDENHOVE-KALERGI Como acontecera no século XIX, de novo as elites intelectuais assumem uma posição de vanguarda, por vezes marcada por um certo radicalismo político, de defesa da ideia europeia. No início da década de Vinte, contrariando a corrente do pessimismo europeu, numerosas associações e publicações periódicas promovem e divulgam as teses da unidade europeia. Entre estas iniciativas, sobressai distintivamente a obra e a pugnacidade de um Europeu: o Conde Coudenhove-Kalergi. O Conde COUDENHOVE-KALERGI, jovem aristocrata austro- húngaro, tornou-se o apóstolo da unificação da Europa, tarefa à qual iria consagrar a sua vida. KALERGI tinha várias nacionalidade e portanto uma visão + cosmopolita e – nacionalista. Os esforços de KALERGI alcançaram resultados encorajadores, sobre- tudo no tocante à formação de uma opinião pública mais aberta ao anseio de uma Europa unida. Em consonância com a luta de KALERGI, O então ministro dos Negócios Estrangeiros da França, HERRIOT, lançou em 1925, no Parlamento Francês, um primeiro apelo oficial à união da Europa. Logo em 1926, diversos economistas e homens de negócios exprimiram a sua adesão à ideia da criação de uma «União Económica e Aduaneira Europeia» cuja designação exprime um objectivo ainda hoje perfeitamente actual na medida em que se considere que uma sólida união económica constitui a base necessária da desejada união política. Em 1927, o ministro francês LOUCHEUR propunha, por seu turno, a criação de cartéis europeus do carvão, do aço e dos cereais. Desta forma, no curto espaço de cinco anos haviam sido lançadas as ideias, propostas de actuação e medidas fundamentais de um pro- jecto coerente de integração europeia: acção sobre a opinião pública, especialmente sobre a opinião parlamentar; e utilização da integração económica, ainda que inicialmente restringida a sectores bem delimitados, como instrumento da integração política.(MC) Em 1923, publicou, em Viena, o seu mais conhecido livro – Paneuropa. A ideia de base que registou no seu diagnostica é a da crise e a da decadência da Europa, ideia que, como vimos, já havia sido assinalada, antes de 1923, por outros pensadores. A terapia que propôs para a doença da Europa consistia na criação de uma nova entidade, a União Paneuropa, que não deveria, contudo, integrar nem a Rússia nem a Grã-Bretanha. A justificação da sua proposta respeitava tanto o objectivo de garantir a paz 13 nas relações entre as nações europeias como a necessidade de assegurar a defesa comum da Europa contra a política hegemónica da Rússia e o poderio económico dos Estados Unidos. No que se refere aos aspectos jurídico-institucionais, esta União Paneuropa, com sede em Viena e representações nacionais nos Estados- membros, teria um parlamento com duas câmaras (Conselho Federal, formado por um delegado de cada Estado e um Assembleia, composta por delegados designados pelos parlamentos nacionais), um tribunal federal e uma chancelaria controlada pelas duas câmaras. Defendia uma cidadania europeia vinculada à cidadania nacional, fazendo recair sobre a União o dever de respeitar a identidade cultural e nacional dos seus povos. A obra de Coudenhove-Kalergi tem suscitado reparos no que respeita a uma alegada ambiguidade ou insuficiência das suas propostas sobre a configuração jurídica da Paneuropa e o tema da soberania dos Estados. Na verdade, cumpre admiti-lo, não se trata de um óbice ou lacuna específica do seu programa paneuropeu. O problema relativo à forma jurídica da União, Confederação, Federação ou outra, e a natureza da limitação imposta à soberania dos Estados-membros permanece, até aos nosso dias, como a grande questão em aberto, à qual, e apesar de todos os avanços verificados no sentido da integração politica da Europa comunitária, ainda não foi possível dar uma resposta definitiva. Historicamente a Confederação é uma forma transitória: geralmente evolui para uma Federação, mas pode regredir se ocorrerem conflitos internos entre Estados dentro da própria Confederação. A acção de ARISTIDES BRIAND No período entre guerras, o passo de maior transcendência política foi dado pela proposta francesa de criação de uma federação chamada “União Europeia”, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, AristideBriand. Após ter sondado vários dos seus colegas europeus sem ter deparado com reservas sérias senão do lado da Grã-Bretanha; após ter conseguido a aprovação da sua iniciativa pelo Parlamento Francês na altura do voto sobre a sua declaração de investidura como Presidente do Conselho; e de ter anunciado as suas intenções em conferência de imprensa, BRIAND decide finalmente, em 5 de Setembro de 1929, submeter à Assembleia da SDN o seu projecto de União Europeia. “Eu julgo que entre povos que estão geograficamente agrupados, como os povos da Europa, deve existir uma espécie de laço federal. É este o laço que eu desejaria esforçar-me por estabelecer…” 14 A ideia foi aprofundada e desenvolvida num Memorando do Governo francês enviado aos governos europeus e, depois, a 8 de Setembro de 1930, formalmente apresentado à Sociedade das Nações. A proposta de BRIAND era sem dúvida bastante equívoca, na medida em que não é fácil ver como um laço federal entre Estados Europeus poderia ser compatibilizado com o total respeito da soberania dos Estados-Membros da organização a constituir. Mas, não obstante esta formulação prudente, as propostas de BRIAND foram acolhidas, após um primeiro movimento de simpatia, se não mesmo de entusiasmo, com grandes reservas, manifestadas sobretudo por parte da Grã-Bretanha. (MC) Ou seja, a ideia de um Estado Federal para a Europa – um “Estado de Estados” (um Estado composto). O plano francês repousava, sobre a ideia algo vaga de criar uma “espécie de vínculo federal”. A sua concretização suporia a aprovação de um pacto constituinte da “União Europeia”, com uma Conferencia Europeia, representativa de todos os Estados, um Comité Político Permanente, como órgão executivo, e um Secretariado. A união deveria basear-se no respeito da independência e soberania nacional de cada um dos seus Estados. Esta garantia sobre a intangibilidade das soberanias dos Estados visaria, certamente, sossegar os defensores da causa nacional, a começar pela própria opinião pública francesa, mas era, do ponto de vista político e jurídico, uma contradição insanável. Qualquer fórmula de união federal pressupõe e implica uma limitação efectiva de parcelas fundamentais da soberania, o que conduz a uma transformação do Estado soberano em Estado semi-soberano ou não-soberano. A relação necessária que se estabelece entre a instituição da federação e a perda da soberania é um dado objectivo, largamente comprovado pelas múltiplas experiencias de Estados Federais que nos é dado observar através do Direito Constitucional Comparado. Em suma: não existe, nem poderá existir, união federal de Estados soberanos. Ou seja, assentava numa defesa contraditória de um vínculo federal na Europa: Federação de Estados vs Soberania Estadual. Consequências da Federação: Criação de Estado supra-nacional. A proposta francesa de 1930, contudo, maior realismo quando se refere à vertente económica da União. Esta deveria promover “a aproximação das economias dos Estados europeus, realizada sob a responsabilidade política dos governos solidários”. Antes de 1930, já o objectivo económico do projecto de unidade europeia mobilizara esforços e vontades: em 1925, surge a “União Aduaneira Europeia”, gizada por conhecidos peritos com o intento de tornar 15 possível a criação de um grande mercado livre, aberto à circulação de pessoas, mercadorias e capitais. Em 1926, fora criada a “Associação para a União Económica Europeia”, presidida pelo insigne economista francês Charles Gide. O próprio Coudenhove-Kalergi criou um “Conselho Económico Paneuropeu franco-alemão”. As propostas no sentido de lançar uma união aduaneira e fundar as relações comerciais entre as nações europeias sobre uma base de livre comércio eram potenciadas pelo duplo objectivo de, por um lado, proteger a economia europeia e, por outro lado, garantir a sua maior competitividade na relação com o crescente poderio económico dos Estados Unidos da América. A crise económica dos anos 30 e o triunfo dos regimes autoritários de inspiração nacionalista baldaram qualquer possibilidade de concretização da proposta francesa, se é que uma tal possibilidade chegou a existir no plano estritamente político-diplomático. Em todo o caso, a percepção que temos, hoje, dos projectos federativos da década de Vinte põe em evidência dos aspectos só aparentemente contraditórios: por um lado, traduzem um certo idealismo político que não teve verdadeiro eco fora dos círculos intelectuais e diplomáticos; por outro lado, lançam determinadas ideias, como é a da cidadania europeia, e desenvolvem uma perspectiva a partir da dinâmica económica que, mais tarde, estarão na base da criação e aprofundamento das Comunidades Europeias. Com razão afirmava Henri Brugmans que “num empreendimento como o da união europeia só os visionários são realistas”. Entre 1930 e II Grande Guerra, a ideia da União politica na Europa soçobrou perante acontecimentos tão adversos como a crise económica e social e, em particular, a ascensão ao poder do partido nacional-socialista na Alemanha e a politica de agressão militar e conquista prosseguida pela Itália, Alemanha e União Soviética. De qualquer modo, a proposta de BRIAND não surgiu no melhor momento. Apanhada na lenta e entorpecedora engrenagem da SDN, só em Setembro de 1930 veio a ser designada uma «Comissão para o Estudo da União Europeia» presidida pelo próprio BRIAND que nela trabalhou devotadamente durante dois anos. Mas em fins de 1932 BRIAND morre; no ano imediato, HITLER con- quista o poder na Alemanha, consolidando assim o triunfo de um ideário inspirado num nacionalismo exacerbado e agressivo, oposto a qualquer projecto de unidade europeia assente na livre expressão da vontade dos diversos povos da Europa. Mesmo aos mais optimistas a iniciativa de A. BRJAND aparecia como uma ideia morta; bem morta, sobretudo, quando começaram 16 a manifestar-se no quadro europeu iniciativas alemãs que eram o claro prenúncio de uma nova guerra. (MC) C. Depois da II Guerra Mundial A situação da Europa no termo da II Guerra Mundial A situação económica - Quando a guerra chega ao seu termo, após seis anos de luta devastadora e sangrenta, a Europa não é mais do que um vasto campo de ruínas: exausta espiritualmente, dividida por ódios indizíveis, profundamente endividada e economicamente destroçada, defronta-se com a necessidade imediata de um ingente esforço de recuperação da sua capacidade de produção, destinado antes de mais a alojar, vestir e alimentar populações carecidas de meios para satisfazer necessidades elementares. Mas o aparelho europeu de produção, que durante seis anos fora em larga escala posto ao serviço do esforço de guerra ou destruído no decurso das hostilidades, não dispunha de equipamentos, nem de capital, nem de matérias-primas que lhe permitissem retomar a actividade normal. Ou seja, a Europa saiu fragilizada, devastada economicamente. A situação política - A par disso, o desfecho da guerra determinara a ocupação, pelos exércitos soviéticos, não só de uma vasta parcela do território alemão, como igualmente dos países da Europa do Leste e da Europa Balcânica. Submetidos a apertado controlo, que permitiu a subida ao poder de governos constituídos por elementos favoráveis aos desígnios soviéticos, esses Estados viram-se forçados a modelar a sua vida política, económica e social, bem como as suas própriasrelações exteriores, na conformidade da vontade e da própria imagem do ocupante; e a assumir rapidamente, tanto no plano interno como na cena internacional, a fisio- nomia e o comportamento de estados satélites de Moscovo. Mas os propósitos expansionistas da União Soviética parecia não se limitarem ao espaço europeu que a sorte das operações militares colocara directamente sob o seu domínio. Durante a guerra, haviam emergido dos quadros da resistência ao ocupante nazi, nos países do Ocidente Europeu, fortes e bem organizados partidos comunistas que, após o termo do conflito, tentaram apossar-se do poder pela força (como sucedeu na Grécia onde só com auxílio exterior foi possível ao govemo legal dominar, após prolongada luta, a rebelião armada) ou pelo menos participar no seu exercício (como se verificou na França, onde o Partido Comunista cedo veio a revelar-se como o mais forte, disciplinado e combativo dos partidos franceses). Também na Itália, o predomínio eleitoral da democracia cristã não impedia que o Partido Comunista, numeroso e bem estruturado, representasse uma ameaça permanente para as instituições democráticas. Cada um dos Estados do Ocidente Europeu sentia-se, pois, politicamente minado e ameaçado, no interior das suas próprias fronteiras, por uma «quinta coluna» soviética. 17 A situação militar - Por outro lado, as tropas soviéticas achavam-se a poucas horas de marcha das fronteiras francesas, e a Europa Ocidental sabia-se militarmente indefesa: os E.UA. haviam retirado, logo após o fim da guerra, mantendo no Continente Europeu forças pouco mais do que simbólicas a afirmar o seu direito de ocupação da Alemanha; a Grã- Bretanha, única potência europeia a dispor, no termo do conflito, de forças armadas eficazes, desmobilizara-as rapidamente. O resto da Europa do Ocidente não representava, militarmente, mais do que uma soma de fraquezas. Os desígnios hegemónicos da União Soviética — bem expressos no domínio total (militar, político e económico) a que sujeitara os países de Leste — faziam deste modo pesar sobre a Europa Ocidental uma ameaça permanente. (Esta parte sobre a situaão da europa na altura foi retirada do MC) Ou seja, a 2ª GM traduziu-se, politicamente e militarmente, na perda de hegemonia dos países europeus. A palavra de ordem: «Construir a Europa» Nestas condições, os europeus mais lúcidos sentem que a Europa só poderá fazer face à ameaça que sobre ela impende se conseguir organizar-se e fortalecer-se na unidade. «Construir a Europa» passa, por isso, a ser a palavra de ordem. A sujeição dos povos da Europa ao domínio alemão dera com efeito origem a contactos e favorecera a aproximação, no exílio, de dirigentes dos países subjugados, criando-se entre eles um estado de espirito que muito contribuiu para a aceitação, após o termo das hostilidades, de novos arranjos políticos e económicos. Ganhara-se consciência de que, isolados, os pequenos países eram particularmente vulneráveis à agressão; e que as dificuldades que iriam verificar-se no após-guerra, sobretudo no campo económico e social, exigiam soluções inovadoras de que todos pudessem tirar proveito. Foi assim, por exemplo, que o projecto da criação do BENELUX, união aduaneira entre a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, nasceu em Londres, durante a guerra, dos contactos entre os dirigentes exilados destes três países. (MC) Assim sendo, um projecto concreto de unificação triunfa, em plena guerra: os governos no exílio da Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo assinam em Londres, a 5 de Setembro de 1944, o Tratado da União Aduaneira, fundamento jurídico de uma união económica que começaria a funcionar em 1948 e se mantém até aos nossos dias (BENELUX). Terminada a guerra, a retórica europeísta é retomada no célebre discurso de Winston Churchill de 19 de Setembro de 1946, na cidade helvética de Zurique. Depois de evocar o drama do conflito que devastou toda a Europa, Churchill prescreve o que designa como “remédio supremo”: 18 dotar a família europeia “de uma estrutura que lhe permita viver e crescer em paz, em segurança e em liberdade. Devemos criar uma espécie de Estados Unidos da Europa (…). O primeiro passo a dar é criar um Conselho da Europa”. Neste celebrado discurso, Churchill referiu-se ao seu país como “amigo e protector da nova Europa”, apartando assim a hipótese de participação do Reino Unido no plano de integração política europeia. Em Maio de 1953, a propósito da recusa britânica em apoiar a projectada, e depois gorada, Comunidade Europeia da Defesa, Churchill resumia numa frase a posição da Grã-Bretanha em relação ao desígnio europeu e que, em larga medida, ainda nos ajuda a compreender o percurso do Reino Unido, já como Estado-membro, desde 1973 até à actualidade: “We are with them, but we are no tone of them…”. A atávica desconfiança da Inglaterra relativamente aos Estados europeus do Continente, especialmente a França, resumida nesta frase. Churchill defendia os “Estados Unidos da Europa”, que deviam servir como reconciliação entre a Alemanha e a França. O Reino Unido tinha uma forte ligação comercial, com todas as suas colónias (que não queria partilhar com os restantes países europeus). Churchill propunha essa “Federação” para os Europeus mas não para o UK. Os anos de 1947 e 1948 registam um conjunto de acontecimentos que, de modo consequente e directo, vão estar na origem do processo que há-de culminar em 1951 na criação pelo Tratado de Paris da primeira Comunidade Europeia. Em 5 de Junho de 1947, o Secretário de Estado norte- americano, o General George Catlett Marshall, avançou com um plano de ajuda económica à reconstrução europeia. Este programa de ajuda económica foi condicionado à existência de um acordo entre os Estados europeus sobre as necessidades de desenvolvimento, com a definição de um plano adequado de aplicação e repartição dos fundos financeiros disponibilizados. No mês seguinte, a proposta foi aceite por 16 Estados, reunidos em Paris. A administração do plano foi confiada à Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), fundada em 16 de Abril de 1948. O Plano Marshall (ver também pág. 27) não só proporcionou a recuperação das económicas europeias e a reorganização das suas estruturas produtivas e comerciais, como, atendendo à gestão europeia do Plano, criou novos laços institucionais de cooperação e solidariedade política entre os Estados europeus. O Plano Marshall (baseado na doutrina Truman, presidente dos EUA), pós 2ª GM foi assim: - Plano de auxílio para a reconstrução europeia; - Impedir a expansão do comunismo através do bloco soviético; - Liberalização do mercado económico, entre os países europeus; 19 - Exigem a reconciliação entre a França e a Alemanha. No entanto, a opinião pública francesa era avessa a “dar a mão” aos alemães, com medo que que este recuperassem os seu poder militar e industrial. O Congresso da Haia Entre 7 e 11 de Abril de 1948, a cidade de Haia acolheu o chamado Congresso da Europa que reuniu mais de 700 delegados, representantes as múltiplas correntes do movimento pró-europeu. Os debates foram dominados pela oposição entre “unionistas”, corrente formada, na sua maioria, pode delegados britânicos, e “federalistas”, com forte apoio entre os delegados franceses, italianos, belgas, holandeses e, no que respeita a categorias sociais, entre os sindicalistas. De um modo sumário, que não reflecte as várias sensibilidades dentro de uma e outra corrente e, bem assim, a especificidadede certas posições individuais: • os “unionistas” aparentemente mais realista ou mais prudente, agrupava os que, hostis aos abandonos de soberania por parte dos Estados, parecia acreditarem, sobretudo, nas vantagens dos contactos intergovemamentais e insistiam em que o objectivo último da unificação da Europa deveria ser alcançado progressivamente, através de uma cooperação cada vez mais estreita entre Estados soberano- acreditavam ainda na suficiência da cooperação intergovernamental; Ou seja, instituições de cooperação clássicas. • os “federalistas” sonhavam com uma integração de natureza federal. Mantendo-se fiel a uma concepção fortemente arreigada, os “federalistas” insistem no paralelismo, politico, jurídico e institucional, entre a unificação europeia e as mais conhecidas e bem sucedidas experiências federais, mormente a união aduaneira alemã de 1834 (Zollverein) e a Confederação Germânica de 1818-1866 que antecederam a unificação alemã; evocam, em particular, o exemplo dos Estados Unidos da América. Em 1948, o sonho antigo de um século sobre os Estados Unidos da Europa era, como em certa medida ainda o é, um exercício retórico, uma adesão emocional a um modelo de associação de Estados que não se coaduna com a realidade europeia de Estado-nação. Ou seja, a instituição de Estados europeus através de uma federação; integração de soberanias num poder central. O Federalismo era defendido pela França. O Unionismo era defendido pela Inglaterra (Churchill). 20 O consenso possível no Congresso da Europa permitiu a aprovação de uma moção final. No plano político, reclamava-se a convocação de uma Assembleia Europeia, eleita pelos parlamentos nacionais, que deveria analisar e aprovar as medidas adequadas à criação de uma União (confederação) ou de uma Federação. Também se preconizava a instituição de um Tribunal que iria assegurar o respeito de uma carta europeia de Direitos do Homem. No plano económico-social, ficou expressa a necessidade de realizar a união aduaneira, acompanhada da livre circulação de capitais e da unificação monetária. A respeito da natureza não governamental do Congresso da Europa, esta iniciativa gerou uma dinâmica que mobilizou as vontades dos homens de Estado e os esforços das chancelarias europeias, constituindo, por esta razão, o ponto de partida para a criação de organizações europeias nos anos seguintes, embora de matriz distinta: em 1949, o Conselho da Europa concretizava as aspirações da ala “unionista”; em 1951, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) vai ao encontro da corrente “federalista”, que, abandonando o anterior radicalismo político, se convertera ao método funcionalista (que defende o Federalismo a prazo e defende a integração económica, em que o que interessa é o fim, passos pequenos para a construção de uma Europa federativa). Unidos por um compartilhado apego a uma ideia-mito e ani- mados todos do mesmo empenho em fazer avançar o processo, os congressistas de Haia souberam habilmente camuflar as suas divergências doutrinais e chegar a uma moção final que seria votada por unanimidade e que, uma vez apreciada pelos responsáveis políticos dos Estados da Europa, permitiria a estes avançar numa das possíveis direcções. A par da aprovação desta moção — que não obstante a falta de unanimidade dos pontos de vista expressos no Congresso constituiu um indiscutível êxito, na medida em que se conseguira alcançar um hábil compromisso entre as diversas correntes de opinião — os congressistas decidiram a criação de um «Comité para a Europa Unida» sob cuja égide a maior parte dos movimentos pró- europeus acabaria, em 1948, por se federar no seio do «MOVIMENTO EUROPEU». A opinião pública europeia estava já, nesta altura, perfeitamente alertada e preparada para os esforços concretos, no sentido da edificação da Europa, que iriam desenvolver-se em duas frentes: a da cooperação — no pleno respeito da soberania dos Estados europeus; e a da integração — que acabaria por se impor — tendente à instituição entre os Estados participantes de um embrião de laço federal vocacionado para congregar um dia, no quadro dos Estados Unidos da Europa, um grupo de países que ao longo dos séculos se haviam periodicamente enfrentado nos campos de batalha. (MC) 21 A estrutura institucional e a natureza dos poderes confiados ao Conselho da Europa exprimem uma opção clara pela cooperação de tipo intergovernamental: apenas o Conselho de Ministros, composto pelos representantes dos Estados, dispõe de limitados poderes de decisão; a Assembleia Consultiva, que constitui o traço de maior originalidade do Conselho, ficou confinada, por imposição britânica, à condição de órgão consultivo, desprovida de poderes normativos ou de fiscalização política. Com sede em Estrasburgo, escolha que visou consagrar o novo relacionamento franco-alemão, o Conselho da Europa é uma organização de cooperação política que centrou a sua actuação na promoção e defesa dos valores relacionados com o sistema da democracia representativa e com os princípios fundamentais da liberdade individual, da liberdade política e do primado do Direito, se é certo que o Conselho da Europa ficou aquém das expectativas geradas em torno da sua criação, e para cuja relativa frustração contribuiu de modo decisivo o êxito do método comunitário de integração a partir de 1952, não é menos verdade que o seu papel convoca duas notas de particular reconhecimento: 1) A proclamação e garantia dos Direitos do Homem, por via da assinatura em 1950 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com a instituição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; (há que referir que esta Convenção ocorreu em consequência da entrada em vigor da Carta das Nações Unidas, em 1945). 2) A sua função, recortada pela prática politica, de antecâmara de adesão às Comunidades Europeias, submetendo os Estados neófitos em experiencia democrática a um controlo (pré e pós-admissão ao Conselho da Europa) que constitui uma espécie de certificado de autenticidade da verdadeira democracia (Preâmbulo do Estatuto) e do respeito pelos Direitos do Homem. Alargado a 47 Estados, o Conselho da Europa incarna o ideal político da Grande Europa que se afirma em torno de uma representação comum de valores e de herança cultural. Nesta organização europeia de natureza intergovernamental dominam os objectivos de cooperação politica e, nesta perspectiva, o Conselho da Europa, numa primeira fase, garantiu o necessário enquadramento politico às Comunidades Europeias de âmbito económico e, numa segunda fase, posterior à criação da União Europeia em 1993, facilitou a articulação entre os dois espaços europeus, parcialmente sobrepostos, de conformação da vertente política das soberanias dos Estados europeus: a Grande Europa, formada por 47 Estados, do Atlântico aos Urais, e a Pequena Europa dos 27 Estados que integram a União Europeia. A criação do Conselho da Europa pelo Tratado de Londres de 5 de Maio de 1949 consagrou a ruptura definitiva entre a corrente “unionista” e a corrente “federalista”. Os paladinos de uma Europa federal, como Jean 22 Monnet, tomam consciência do distanciamento assumido pelo Reino Unido e pelos Estados nórdicos em relação ao projecto federal e, por outro lado, reconhecendo a impossibilidade de enveredar de imediato pela integração política, passam a defender uma estratégia que confereprioridade à componente económica sobre a componente política no processo de integração europeia. Abre-se, assim, caminho para a criação das Comunidades Europeias. Notas complementares: A história do processo de construção europeia é apenas uma etapa da longa história da Europa como entidade politica e cultural. Com o objectivo de sistematizar a evolução do projecto de unidade europeia, propomos a divisão em três períodos: 1) Dos primórdios até à I Grande Guerra (a pré-história da União Europeia); 2) Do Tratado de Versalhes até ao final da década de quarenta do século passado (a proto-história da União Europeia); 3) De 9 de Maio de 1950, data de divulgação da Declaração Shuman, até aos nossos dias (a história da União Europeia). A expressão “Estados Unidos da Europa” – cuja paternidade se atribui aos escritores italianos Cattaneo e Gioberti no Congresso da Paz, realizado em Bruxelas no ano de 1848, mas verdadeiramente projectada para a ribalta do debate europeu por Vítor Hugo, um ano depois, no Congresso de Paris, conhece no período entre as duas Grandes Guerras uma assinalável aceitação junto da elite intelectual pró-europeia. Richard Coudenhove-Kalergi nasceu no Japão, filho de um diplomata austro-húngaro de ascendência grega e holandesa. A sua origem aristocrática entronca na nobreza austríaca (os Coudenhove) e veneziana (os Calergi). Estudou no ambiente cosmopolita e aristocrático do império austro-húngaro em declínio. Austríaco por nascimento e checo em virtude do Tratado de Saint-Germain, acabaria por se naturalizar francês em 1939. A sua profissão de fé no ideal europeu não será, seguramente, alheia à influência cosmopolita de um percurso pessoal marcado por acontecimentos que o vincularam a várias comunidades nacionais, propiciando uma simbiose perfeita de cidadania europeia. Em 1947, Coudenhove-Kalergi, o paladino do movimento paneuropeu, promoveu a criação da União Parlamentar Europeia, integrada por membros dos parlamentos de diferentes Estados europeus, embrião dos futuros órgãos parlamentares da Europa: primeiro, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, depois o Parlamento Europeu das Comunidades Europeias. 23 A importância reconhecida nos projectos europeístas dos anos Vinte à dimensão aduaneira e económica de um futuro modelo de Europa unida entronca na experiencia histórica alemã da união aduaneira (Zollverein). Criada em 1834 com a participação de 18 Estados alemães, aos quais se juntaram depois outros, a Zollverein institui um regime de livre comércio entre os Estados participantes, com isenção de direitos aduaneiros. A Zollverein tornou possível um maior desenvolvimento de circulação de mercadorias e pessoas e deu um impulso decisivo ao sector industrial emergente. O inegável sucesso da Zollverein esteve na base da integração económica dos Estados alemães que culminou na unificação política em 1870, seguida da unificação monetária em 1871. A ideologia nacional-socialista utilizou a ideia de uma “Europa ameaçada” para legitimar a sua política de agressão. Em Maio de 1941, Hitler sentenciava: “(…)esta não é uma guerra como as outras guerras, é uma revolução da qual sairá uma nova Europa, reorganizada e próspera”. Um dos mais proeminentes teóricos desta “Europa reorganizada” sob tutela nazi foi Carl Schmitt que publicou em 1939 e uma obra intitulada A teoria dos Grandes Espaços com Estado Director. Nela propunha a associação dos Estados europeus em torno da Alemanha que, na qualidade de Estado Director, faria frente ao inimigo bolchevique. Esta concepção fundamentou o Pacto tripartido de Berlim, de 27 de Setembro de 1940, que previa uma “nova ordem” na Europa sob a direcção da Alemanha e da Itália e, para o grande espaço asiático, do Japão. 3.º A Criação das Comunidades Europeias A criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço A questão alemã Vencida em 1945, a Alemanha, destroçada, dividida, privada mesmo de instituições representativas do Estado — não tivera qualquer intervenção nos esforços de construção europeia nem fora admitida a participar nos diversos acordos que haviam permitido dar-lhe expressão jurídica. A evolução da situação política na Europa e no mundo, que já obrigara os países europeus vencedores da II Guerra Mundial a refazer o seu sistema de alianças militares, ia porém aconselhá-los a ter em conta a existência da Alemanha Ocidental, subtraída ao domínio russo e que graças ao generoso auxílio americano iniciara uma fase de prodigiosa recuperação económica que em breve levaria o mundo surpreendido a falar do «milagre alemão». Em Setembro de 1949, fora proclamada a República Federal da Alemanha. A recuperação da economia alemã, conjugada com a definição da sua estrutura jurídico-institucional (Lei Fundamental de Bona), fizeram renascer a Alemanha Ocidental na cena internacional, com o apoio dos Estados Unidos da América. Ao 24 mesmo tempo, aumentavam os sinais de alarme em França sobre as implicações futuras desta recuperação rápida e tão bem apadrinhada. (MC) Situada no coração da Europa, da qual sempre constituiu uma parcela essencial, a Alemanha não podia mais ser ignorada nem excluída das grandes correntes do movimento europeu, sob pena de se criar uma situação anómala e cheia de riscos para uma Europa que nunca poderia considerar-se verdadeiramente integrada enquanto dela estivesse ausente a grande nação germânica.(mc) A FASE DA INTEGRAÇÃO DA DECLARAÇÃO SCHUMAN AOS TRATADOS DE PARIS E DE ROMA A adesão à proposta francesa Uma iniciativa ousada: a Declaração SCHUMAN (MÉTODO FUNCIONALISTA) O passo decisivo que pôs em marcha o processo de integração europeia, conducente à criação da CECA, a primeira das três Comunidades, foi a histórica Declaração Shuman. A 9 de Maio de 1950, na Sala do Relógio do Quai d’Orsay, Robert Schuman, ministro francês dos Negócios Estrangeiros, anunciou um plano que, tendo passado para a História ligado ao seu nome, teria sido concebido por Jean Monnet e elaborado com a ajuda de Etienne Hirsh, Pierre Uni e, em particular, Paul Reuter. Tal solução, que teria por efeito imediato permitir o controlo bilateral da produção de matérias-primas fundamentais para o desenvolvimento de qualquer futuro esforço de guerra ou prossecução de objectivos de domínio económico, consistia em «colocar o conjunto da produção franco-alemã do carvão e do aço sob o controlo de uma alta autoridade comum, numa organização aberta à participação de outros países da Europa». Para além disso, as propostas contidas na declaração Schuman cor- respondiam com grande oportunidade, clarividência e audácia, a três acutilantes questões com que a Europa se defrontava no início dos anos 50: • a questão económica — resultante da necessidade urgente de reorganizar a siderurgia europeia e, em geral, as indústrias de base; • a questão política — vital para a paz da Europa, como CHURCHILL lucidamente pusera em relevo no seu célebre discurso de Zurich, que consistia na necessidade imperiosa de regular em novas bases, adequadas a eliminar as causas de novos conflitos sangrentos, as relações franco-alemãs; e • a questão mais ampla da unificação europeia, que exigia a superação de fórmulas tradicionais de simples cooperação, manifes- tamente incapazes de promover a integração da Europa Ocidental. (mc) 25 O plano Shuman repousava sobre: • Um objectivo imediato de reconciliação franco-alemã e, para este efeito, propunha a gestão em comum do carvão e do aço. Com a gestãodestes dois produtos estratégicos subordinada aos poderes da Alta Autoridade, resolver-se-ia o problema premente dos níveis de produção da vasta região mineira do Ruhr e, aspecto de importância maior, submeter-se-ia a um controlo comum as condições de produção e de circulação de dois produtos que, tradicionalmente, alimentavam o esforço de guerra. Ou seja, a criação de uma autoridade comum, ceja competência seria a de gerir a comercialização de duas matérias-primas estratégicas: o carvão e o aço (e também de “enquadrar” a Alemanha). • Um outro objectivo, este de realização mediata, mas muito mais ambicioso, ficou para sempre associado à Declaração Schuman: a criação da federação europeia. As condicionantes deste objectivo foram expostas e para lhe dar uma resposta eficaz, que falhara até então, foi aventado um novo método de integração: “A Europa não se fará de um golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realização concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto” Em relação à proposta sobre a gestão comum do carvão e do aço, o Plano Schuman retoma ideias que eram conhecidas e objecto de estudo desde 1943. Em 1944, em entrevista concedida à revista norte-americana Fortune, Jean Monnet referia-se a um modelo de gestão conjunta da indústria pesada franco-alemã, mediante a transferência de poderes de soberania e a criação de um grande mercado. Ou seja, que comece pela integração económica. A proposta de criação de uma federação europeia também não trazia consigo o rasgo da inovação. Há mais de um século, a unidade europeia era pensada e preconizada sob diferentes modelos organizatórios, com a particularidade de quase todos eles reproduzirem o paradigma federal. Na verdade, o genuíno toque de inspiração do Plano Schuman reside no método proposto, é o chamado método de integração funcionalista ou comunitário ou dos “pequenos passos” (alternativa ao método clássico: Intergovernamental e Federalista). Contrariando as experiências anteriores de cooperação, preconiza-se a integração, com atribuição de poderes de soberania a um órgão de autoridade comum e independente (Alta Autoridade). Concedendo sobre a impossibilidade de avançar pelo caminho da união política, aposta-se na prioridade da integração dos mercados e, neste contexto, é preferida a abordagem sectorial e progressiva em detrimento da abordagem global e imediata da união económica e monetária. É o método dos pequenos passos: graduais nos avanços e irreversíveis nos efeitos de integração alcançados. 26 A Declaração Schuman é ainda a carta de apresentação de um novo e fluido conceito: o da supranacionalidade. Não o refere de modo expresso, mas estabelece as condições de existência e de funcionamento da Alta Autoridade como as de um órgão supranacional – as suas decisões serão vinculativas para a França, para a Alemanha e para os países aderentes e terão como objectivo uma gestão comum do interesse comum; a sua composição será assegurada por personalidades independentes e designadas numa base paritária pelos governos; o presidente será escolhido de comum acordo entre os governos; disposições adequadas deverão prever as vias de recurso das decisões da Alta Autoridade. De uma maneira necessariamente sumária e ainda algo indefinida, a Declaração Shuman anuncia, todavia, os ingredientes fundamentais e distintivos do modelo de integração comunitária que ainda podemos identificar, adicionados a outros, na actual União Europeia e, concretamente, no estatuto da Comissão: vinculação dos Estados-membros pelas decisões do órgão de autoridade comum; independência deste órgão, mas participação dos Governos dos Estados-membros na sua nomeação; instituição de mecanismos de tutela jurisdicional da legalidade dos actos adoptados pela autoridade comum. A reacção à Declaração Schuman de 9 de Maio de 1950 foi rápida e positiva. Em 13 de Junho de 1950, Konrad Adenauer, discursou no Parlamento de Bona e exprimiu o seu acordo à proposta de gestão comum do carvão e do aço vendo nela “o ponto de partida para a realização de uma estrutura federativa da Europa”. Por seu lado, os Países de BENELUX (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e a Itália decidiram aceitar o convite francês e participar na iniciativa. A primeira manifestação pública de vontade comum data de 3 de Julho de 1950 e tomou a forma de um comunicado publicado em simultâneo nas seis capitais: “Os povos francês, alemão, italiano, belga, holandês e luxemburguês, decididos a realizar uma acção comum de paz, de solidariedade europeia e de progresso económico e social, têm como objectivo imediato a gestão em comum das produções do carvão e do aço e a instituição de uma Alta Autoridade nova, cujas decisões vincularão a França, a Alemanha, a Itália, a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo e os países que venham a aderir”. A proposta do Governo francês teve imediato e favorável eco nas capitais europeias. O Chanceler alemão Konrad ADENAEUR acolheu-a com emoção, porque pressentiu claramente as fundas implicações futuras do projecto concebido por R. SCHUMAN, quer no tocante à reinserção da Alemanha no mundo ocidental quer, em particular, no respeitante às relações franco-alemãs. O acolhimento do Governo italiano e dos três países do BENELUX foi igualmente positivo, pelo que logo em 20 de Junho se iniciaram entre os seis países as negociações que haveriam de conduzir, em 27 18 de Abril de 1951, à instituição da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). E a Inglaterra? Pura e simplesmente recusou-se a participar. (MC) O texto do futuro tratado foi preparado por uma conferência de peritos dos seis Estados, a partir de 20 de Junho de 1950. O tratado institutivo da primeira Comunidade – a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), foi solenemente assinado em Paris no dia 18 de Abril de 1951 pelos representantes dos Seis. O Tratado de Paris entrou em vigor em 10 de Agosto de 1952, depois da última ratificação, notificada pela Itália só Governo francês. Destinado a vigorar pelo período de 50 anos, caducaria na data acordada de 23 de Julho de 2002. Um período transitório marcou o arranque das novas instituições, começando a funcionar primeiro para o mercado do carvão e do ferro (10 de Fevereiro de 1953) e, depois, para o mercado siderúrgico (1 de Maio de 1953). Jean Monnet foi o primeiro Presidente da Alta Autoridade. O Tratado de Paris de 18 de Abril de 1951 (MC) O projecto de construção europeia foi, essencialmente, económico. O Tratado que instituiu a COMUNIDADE EUROPEIA DO CARVÃO E DO AÇO (CECA) foi assinado em Paris em 18 de Abril de 1951. Ratificado pelos Estados participantes (França, República Federal da Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo), entrou em vigor em 25 de Julho de 1952 (*). O Tratado de Paris, fruto de amplas discussões e minuciosos estudos realizados no âmbito de uma conferência de especialistas presidida por Jean Monnet, consagra não só as soluções como o próprio espírito da declaração Schuman: • Os aspectos característicos de uma organização «parafederal» estão com efeito claramente marcados no Tratado: transferência de determinadas competências estatais para uma Alta Autoridade comunitária dotada de amplos poderes para agir tanto sobre os Estados-Membros como sobre as empresas nacionais dos sectores do carvão e do aço; produção legislativa autónoma e consequente sobre- posição de ordens jurídicas; possibilidades abertas
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