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O homem MEDITEMOS HOJE sobre o homem. O que é o homem? O que sou eu? Nesta questão, como em outras, o melhor método será começar com a constatação das propriedades do homem sobre as quais não há dúvida. Essas propriedades podem ser postas sob dois títulos: primeiro, o homem é um animal; segundo, é um animal especial, único. Antes de mais nada, o homem nos aparece como um animal e possuidor de todas as características de um verdadeiro animal. É um organismo, tem órgãos para os sentidos, nasce, cresce, alimenta-se, move-se, tem instintos poderosos, como o instinto de conservação, de luta, o instinto sexual e outros, como todos os animais. Se comparamos o homem com os animais superiores constatamos, sem sombra de dúvida, que ele é uma espécie entre as outras espécies de animais. Não há dúvida que os poetas exaltaram os sentimentos humanos com a mais maravilhosa das linguagens. Mas conheço cães cujos sentimentos, parece-me, são mais belos e profundos que os de muitos homens. Talvez nos desagrade, mas devemos conceber que pertencemos a uma mesma família, e que os cães e as vacas são, por assim dizer, nossos irmãos e irmãs mais jovens. Para afirmar isto não é necessário recorrer às eruditas teorias evolucionistas segundo as quais o homem descende - não do macaco, como muitas vezes se afirmou - mas certamente de um animal. Que o homem seja um animal é evidente mesmo sem qualquer zoologia erudita. Mas é um animal muito extraordinário. Tem em si muitas coisas que absolutamente não encontramos nos outros animais ou de que encontramos só pequenos vestígios. O que, antes de tudo, chama a atenção é que o homem, do ponto de vista biológico, absolutamente não teria o direito de se impor à totalidade do mundo animal, de explorá-lo e dominá-lo; comportando-se como o mais poderoso parasita da terra. Porque o homem é um animal muito imperfeito. Tem vista ruim, um olfato apenas perceptível, ouvido fraco; eis algumas de suas falhas. Armas naturais, como garras, faltam-lhe quase totalmente. Sua força é insignificante. Não é capaz de correr nem nadar com velocidade. Além disto é nu e morre muito mais facilmente que os outros animais de frio, calor, etc. Do ponto de vista biológico, não teria direito à existência. Desde há muito já deveria ter perecido como tantas outras espécies imperfeitas de animais. Mas sucedeu de modo bem diferente. O homem se tomou o senhor da natureza. Exterminou pura e simplesmente uma longa série de animais que lhe eram perigosos; outras espécies ele capturou e transformou em escravos domésticos. Mudou o aspecto do planeta; basta olhar a superfície da terra de um avião ou do alto de uma montanha para constatar como o homem modifica a face da terra. E agora ele começa também a interessar-se pelo espaço exterior, interplanetário. De uma extinção da espécie humana não se pode falar; antes teme-se que ela se torne numerosa demais. Como foi tudo isso possível ao homem? Todos sabemos a resposta: devido à sua razão. O homem embora seja fraco quase em tudo, possui uma arma terrível: sua inteligência. É incomparavelmente mais inteligente que qualquer animal, mesmo que se trate do mais elevado dentre eles. Sem dúvida, encontramos uma certa inteligência também nos animais, como macacos, gatos, elefantes. Mas é coisa insignificante, mesmo comparada com o mais idiota dos homens. Aí está a razão de seu sucesso na terra. Mas esta é ainda uma resposta provisória e superficial. Parece que o homem não só tem mais inteligência que os outros animais, mas que sua inteligência é também de outra natureza, demos-lhe o nome que quisermos. Esta natureza própria da inteligência humana se mostra no fato de ele, e só ele, possuir uma série de características que o distinguem de todos os outros animais. As que mais chamam a atenção são as cinco seguintes: a técnica, a tradição, o progresso, a capacidade de pensar de modo inteiramente diferente que os outros animais, e, finalmente, a reflexão. Antes de tudo a técnica. Esta consiste essencialmente em que o homem se serve de instrumentos que ele mesmo fabrica. Alguns animais fazem algo semelhante - por exemplo, os macacos se servem de bastões para derrubar frutas. Mas a fabricação consciente de instrumentos complicados por meio de um trabalho longo e árduo, é tipicamente humana. Mas a técnica nem de longe é a única coisa peculiar ao homem. Ela nem teria podido desenvolver-se como se desenvolveu, se o homem não fosse, ao mesmo tempo, um ente social, e social num sentido bem específico da palavra. Conhecemos outros animais que também são sociais – por exemplo, as térmites e as formigas possuem uma organização social que é verdadeiramente admirável. Mas o homem é social num sentido bem diferente. Ele cresce para a sociedade por meio da tradição. Esta não lhe é congênita e nada tem a ver com os instintos - o homem a aprende. E está em condições de aprendê-la porque possui – e só ele – uma linguagem altamente complexa. Só a tradição bastaria para distinguir claramente o homem de todos os outros animais. Graças à tradição, o homem é um animal progressivo. Aprende mais e mais; e não é só o indivíduo que aprende - o que acontece também com outros animais - mas a própria humanidade, a sociedade. O homem é inventivo: enquanto que os outros animais transmitem seus conhecimentos de modo fixo e rígido de geração em geração, entre os homens cada geração sabe mais que a anterior - ou pelo menos pode saber mais. Freqüentes vezes dentro de uma única geração aparecem grandes novidades. No decurso de nossa própria vida pudemos presenciar uma quantidade imensa de inovações no mundo. O que é mais digno de nota é que todo este progresso pouco tem a ver com o desenvolvimento biológico. Biologicamente em quase nada nos diferenciamos dos antigos gregos, mas sabemos incomparavelmente mais que eles. Tem-se, contudo, a impressão que tudo isto - técnica, tradição e progresso - depende de uma realidade muito mais profunda, que é a capacidade particular que o homem possui de pensar de modo inteiramente diferente dos outros animais. Este modo diferente de o homem pensar não é fácil de incluir em algumas fórmulas, porque consta de muitas facetas. Antes de mais nada, o homem tem a faculdade da abstração: enquanto que os outros animais sempre pensam em coisas particulares e concretas, o homem é capaz de pensar de modo universal. É a esta capacidade que ele deve justamente as maiores conquistas da técnica - pense-se, por exemplo, na matemática que é o instrumento mais importante da técnica. A abstração, entretanto, não se orienta só para o universal; ocupa-se de objetos ideais, como números e valores. Além disto, à capacidade de abstração está intimamente ligado o fato de o homem gozar de uma independência de todo especial frente à lei da utilidade biológica que domina todas as atividades do reino animal. Só quero aduzir aqui dois exemplos dessa notável independência: a ciência e a religião. Tudo o que o animal conhece tem utilidade imediata; vê e compreende somente aquilo que de algum modo lhe é útil ou à sua espécie. Seu pensar é inteiramente prático. Bem diferente é com o homem: investiga também objetos que não têm utilidade prática alguma - só para saber. É capaz de ciência objetiva, que de fato elaborou de modo grandioso. Mais notável ainda é a sua religião. Quando ficamos sabendo que no litoral sul do mar Mediterrâneo, onde o vinho facilmente poderia ser produzido, ele é, no entanto, pouco cultivado porque, os habitantes daquelas regiões são muçulmanos, e que, ao contrário, em regiões muito desfavoráveis, como no Reno e até na Noruega, é fabricado em grandes quantidades; quando observamos os grandes centros em pleno deserto agrupando-se ao redor de lugares de peregrinações budistas ou cristãs - então devemos confessar que tudo isto não tem sentido econômico ou biológico algum, e que, do ponto de vista meramente animal, é uma coisa totalmente sem sentido. Mas o homem se pode permitir tais coisas porque ele é, até certo ponto, independentedas leis biológicas do mundo animal. Essa independência vai mais longe ainda. Cada um de nós tem consciência imediata e direta de ser livre - de poder dominar todas as leis da natureza, pelo menos por alguns momentos. Com esta consciência está conexa uma outra propriedade do homem: ele é capaz de reflexão. Não só está voltado para o mundo exterior - como parece ser o caso dos outros animais - mas pode pensar também em si mesmo, pode preocupar-se com seu próprio eu, pode perguntar pelo sentido da própria vida. Parece ser também o único animal que tem consciência clara do fato de um dia precisar morrer. Quando se consideram todas essas peculiaridades do homem, não se pode estranhar que o fundador de nossa filosofia ocidental, Platão, tenha chegado à conclusão de que o homem é algo inteiramente distinto de todo o resto da natureza. Ele, ou antes aquilo que o faz ser homem - a psique, a alma, o espírito - está, sim, no mundo mas não é do mundo, não pertence a este mundo. Eleva-se acima de toda a natureza. As propriedades que enumeramos formam, entretanto, só um aspecto do homem. Já dissemos que ele é, ao mesmo tempo, um animal verdadeiro e pleno. E o que é mais importante, o espiritual no homem está estreitamente dependente do aspecto puramente animal e corporal. A menor perturbação no cérebro basta para aleijar o pensamento do maior dos gênios; meio litro de álcool é capaz de transformar o mais sensível dos poetas num animal selvagem. Ora, o corpo com seus processos fisiológicos e a vida animal com seus instintos constituem algo tão diferente do espírito, que surge necessariamente a questão de como é possível uma união de ambos num só ser. Esta é a questão central da filosofia sobre o homem, a antropologia. Diversas soluções foram apresentadas para esta questão. A mais antiga e a mais simples consiste em dizer que no homem não existe nada além do corpo e o movimento mecânico das partículas corporais. Tal é a solução do estrito materialismo. Hoje em dia são raros os seus representantes e isto devido a um argumento que contra o mesmo foi formulado pelo grande filósofo alemão, Leibnitz. Este sugeriu que se imaginasse o cérebro humano tão grande que fosse possível locomover-se dentro dele como num moinho. Neste caso só deveríamos encontrar nele o movimento de diferentes corpúsculos, mas nunca uma coisa parecida com o pensamento. Portanto, o pensamento deve ser alguma coisa inteiramente diferente do mero movimento do corpo. Poder-se-ia, naturalmente, dizer que nem existe o pensamento ou a consciência, mas isto é tão abertamente falso que os filósofos não costumam tomar a sério uma tal afirmativa. Afora este materialismo extremado existe ainda um outro - o materialismo moderado - segundo o qual existe uma consciência que, no entanto, nada mais é que uma função do corpo - função que se distingue somente por graus das outras funções animais. Esta é uma opinião que se deve tomar muito mais a sério. Antes de tudo, ela se aproxima bastante de uma terceira concepção da alma humana que devemos a Aristóteles e que, modernamente, parece receber uma grande confirmação do lado da ciência. Esta se distingue em dois pontos do materialismo moderado: afirma, em primeiro lugar, que não tem sentido contrapor unilateralmente as funções espirituais às corporais. O homem, ensina Aristóteles, é um todo e este todo tem diferentes funções: as que são meramente físicas, as vegetativas, as sensitivas e, finalmente, as espirituais. Todas estas são funções não do corpo, mas do homem, do todo. A segunda diferença está em que Aristóteles, como Platão, vê nas funções espirituais do homem alguma coisa particular que não existe nos outros animais. Finalmente, os platônicos de estreita observância - que nem em nossos dias faltam - são de opinião que o homem - como alguns de seus adversários maliciosos o formularam - é um anjo que habita numa máquina, um espírito, como já dissemos, é concebido 'como um ser inteiramente diferente de todo o resto que se encontra no mundo. Não só o filósofo francês Descartes, mas também muitos filósofos existencialistas mantêm, sob diferentes formas, essa doutrina de Platão. Segundo eles, o homem não é o todo, mas só o espírito, ou, como hoje se diz, a existência. Como se pode ver, trata-se aqui de duas questões diferentes: existe no homem alguma coisa que seja essencialmente distinta de tudo o que se encontra nos outros animais? E, como se relaciona esta realidade com as outras partes que compõem o ser humano? Sobre o homem existe ainda outra questão fundamental que foi posta em grande relevo pela filosofia dos últimos decênios, isto é, pela assim chamada filosofia da existência ou existencialismo. Consideramos já diversas peculiaridades do homem, e todas lhe conferem uma certa dignidade e poder, graças às quais ele está acima de todos os animais. Mas o homem não é só isto. É igualmente – e isto graças às mesmas propriedades, um ser inacabado, inquieto e profundamente miserável. Um cão, um cavalo come, dorme e é feliz; não terá outra necessidade que não a satisfação de seus instintos. Com o homem é diferente: sempre cria novas necessidades e nunca está satisfeito. Uma invenção bem própria do homem é, por exemplo, o dinheiro; deste, o homem nunca tem o suficiente. Parece que, pela sua própria natureza, o homem está determinado a um progresso sem fim e que só o infinito o pode saciar. Mas ao mesmo tempo o homem - e só ele está consciente de sua limitação e, sobretudo, de sua morte. Essas duas propriedades - desejo do infinito e consciência de sua limitação - produzem dentro do homem uma tensão em razão da qual ele aparece para si mesmo como um trágico enigma. Parece-lhe que existe para uma coisa que de modo algum pode alcançar. Qual é então o sentido da sua existência? Para dar uma solução a esse enigma envidaram todos os seus esforços os melhores pensadores, desde Platão. As soluções que nos propõem podem ser resumidas em três. A primeira, muito espalhada durante o século dezenove, afirma que a necessidade do infinito no homem é satisfeita pela identificação do mesmo com alguma coisa mais ampla, mais universal, e esta seria a sociedade. Estes filósofos dizem que pouco significa o sofrimento e a frustração dos indivíduos; a sociedade, o universo continuará e chegará à sua perfeição. Sobre esta solução falaremos mais tarde. Agora só queremos dizer que esta solução se afigura como insustentável para a maioria dos pensadores modernos, porque, em vez de solucionar o enigma, ela nega os fatos mais inconcussos, isto é, que o homem individual deseja para si, como indivíduo, e não para outros, o infinito. À luz da própria morte tal teoria aparece como um som oco e sem sentido. A segunda solução - muito espalhada hoje em dia entre os existencialistas - afirma de seu lado que o homem não tem sentido algum. É um erro da natureza, uma criatura falha, uma paixão inútil, como Sartre escreve. O enigma da existência humana não pode ser resolvido; é um absurdo. Seremos eternamente uma questão trágica para nós mesmos. Mas existem também filósofos que, seguindo Platão, não querem tirar uma tal conclusão. Não acreditam num absurdo tão completo. Dizem que deve haver uma solução para o enigma do homem. Em que pode consistir esta solução? Em que o homem pode alcançar de algum modo o infinito. Mas isto não é possível durante a vida neste mundo. Se, portanto, existe uma solução para o problema do homem, esta se deve achar fora da natureza, fora do mundo. Mas como? A imortalidade da alma é demonstrável, segundo muitos filósofos depois de Platão; outros a afirmam sem acreditar numa demonstração rigorosamente científica. Mas a imortalidade da alma não fornece, tão pouco, a resposta para a questão. Não é possível entrever de que modo o homem na vida além-túmulo possa alcançar o infinito. Platão disse uma vez que a resposta definitiva a esta questão só poderia ser dada por um deus, por uma revelação que viesse do além. Mas isto já não é mais filosofia, senãoreligião. O pensamento filosófico aqui, como em outros pontos, põe a questão - leva-nos até a fronteira para além da qual o homem só pode contemplar a impenetrável escuridão, onde não brilha nenhuma luz para sua razão. Bochenski, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. 6ª Ed, São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1977, 79-88.
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