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Direito-‐ UFOP IED II 2a Unidade: Positivismo Jurídico – A Teoria Pura do Direito Prof. Júlio Aguiar de Oliveira Dinâmica Jurídica (Capítulo V da Teoria Pura do Direito) 1. O fundamento de validade de uma ordem normativa: a norma fundamental a) Sentido da questão relativa ao fundamento de validade -‐ “Se o Direito é concebido como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens, surge a questão: O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? E esta questão está intimamente relacionada com esta outra: Por que é que uma norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de validade”? (p. 215). -‐ Como já vimos no primeiro capítulo, a questão acerca da validade de uma norma não pode ser respondida com a verificação de um fato da ordem do ser. O fato de uma norma ter sido posta por uma autoridade, por si só, não dá conta de responder à questão do fundamento de validade. Para Kelsen, o fundamento de validade de uma norma só pode ser a validade de uma outra norma. -‐ “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior”. (p. 215) -‐ A fim de ilustrar sua tese, Kelsen apresenta uma interessante interpretação da história de Moisés no Monte Sinai: -‐ “Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma com o fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-‐humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jehova, os ter dado no Monte Sinai; ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermão da Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso mas pressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aqueloutra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho”. (p. 215-‐216) -‐ Neste ponto, Kelsen propõe um silogismo: -‐ “Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever-‐ser que enuncia a norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de Deus, e cuja conclusão é a proposição de dever-‐ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos, a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos, constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém, apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever-‐ser, é conditio per quam relativamente à conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão”. (p. 216) -‐ “Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas. (...). Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas, a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-‐se no interminável. Tem de terminar numa norma que pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)”. (p. 216-‐217) -‐ “Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-‐se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de um pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”. (p. 217) -‐ Com isso, Kelsen responde às duas questões interconectadas que haviam sido apresentadas no primeiro parágrafo deste capítulo. A resposta para as duas questões (unidade de uma pluralidade de normas e fundamento de validade) é uma só: a norma fundamental (Grundnorm). Assim, na medida em que a norma fundamental (Grundnorm) é o fundamento de validade de todas as normas de uma mesma ordem jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade dessas normas. -‐ Agora, uma observação que me parece relevante: a teoria da norma fundamental responde a essas duas questões e – apenas – a essas duas questões. Não me parece razoável esperar da teoria da norma fundamental, no contexto da Teoria Pura do Direito, que ela dê conta da questão da legitimidade (conteúdo) do Direito que, a bem da verdade, para Kelsen, não é sequer uma questão a ser respondida pela ciência do Direito. b) O princípio estático e o princípio dinâmico -‐ “Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. (...). Esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica. Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático”. (p. 217-‐218) -‐ Kelsen, no entanto, não admite que o Direito tenha caráter essencialmente estático. Desse modo, logo após o parágrafo no qual expõe o sentido de um princípio estático, ele apresenta a seguinte objeção: -‐ “Só que a norma de cujo conteúdo outras normas são deduzidas, como o particular do geral, tanto quanto ao seu fundamento de validade como quanto ao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma fundamental quando o seu conteúdo seja havido como imediatamente evidente. (...). Dizer que uma norma é imediatamente evidente significa que ela é dada na razão, com a razão. O conceito de uma norma imediatamente evidente pressupõe o conceito de uma razão prática, quer dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é – como se mostrará – insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e o estabelecimento de normas é um ato de vontade”. (p. 218) -‐ Kelsen não admite a existência de uma razão prática. Para ele, a razão não se conecta à ação, mas exclusivamente ao conhecimento. Na sequência, Kelsen caracteriza o tipo dinâmico. -‐ “O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou -‐ o que significa o mesmo -‐ uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental”. (p. 219) -‐ A fim de ilustrar esse ponto, um exemplo: -‐ “Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade desta norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento da sua validade, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve ir à escola, não pode ser deduzido desta norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-‐se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. A norma que constitui o ponto de partida da questão não vale por força do seu conteúdo, ela não pode ser deduzida da norma pressuposta através de uma operação lógica. Tem de ser posta por um ato do pai e vale -‐ utilizando a formulação corrente -‐ porque foi posta dessa maneira ou, formulando corretamente, porque se pressupõe como válida uma norma fundamental que, em última linha, estatui este modo de fixar as normas”. (p. 219). c) O fundamento de validade de uma ordem jurídica -‐ “O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico. Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. (...). Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”. (p. 221). -‐ Como já vimos no primeiro capítulo (especialmente em relação à questão da impossibilidade de limitação do domínio material de vigência da norma), Kelsen – agora – apresenta um argumento forte no sentido da afirmação da tese de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. O Direito pode ter qualquer conteúdo porque é um sistema normativo de caráter essencialmente dinâmico. -‐ No parágrafo que transcrevo a seguir, Kelsen descreve o longo caminho no sentido da fundamentação da validade de um ato coerção até a norma fundamental: -‐ “A questão do fundamento de validade de uma norma jurídica que pertence a uma determinada ordem jurídica estadual pode pôr-‐se -‐ como já notamos num outro ponto -‐ a propósito de um ato de coerção, v. g., quando um indivíduo tira a outro compulsoriamente a vida, provocando a sua própria morte por enforcamento, e então se pergunta por que é que este ato é um ato jurídico, a execução de uma pena, e não um homicídio. Um tal ato apenas pode ser interpretado como ato jurídico, como execução de uma pena, e não como homicídio, quando é estatuído por uma norma jurídica, a saber, uma norma jurídica individual, ou seja, quando é posto como devido (devendo-‐ser) por uma norma que se apresenta sob a forma de sentença judicial. Levanta-‐se, assim, a questão de saber sob que pressupostos é possível uma tal interpretação, por que é que no caso presente se trata de uma sentença judicial, por que é que vale a norma individual por ela estabelecida, por que é uma norma jurídica válida, por que pertence a uma ordem jurídica válida e, portanto, deve ser aplicada. A resposta a esta questão é: porque esta norma individual foi posta em aplicação da lei penal que contém uma norma geral por força da qual, sob os pressupostos que no caso vertente se apresentam, deve ser aplicada a pena de morte. Se se pergunta pelo fundamento de validade desta lei penal, tem-‐se como resposta: a lei penal vale porque foi ditada pela corporação legislativa e esta recebe de uma norma da Constituição estadual o poder de fixar normas gerais. Se se pergunta pelo fundamento de validade da Constituição estadual, na qual se funda a validade de todas as normas gerais e a validade das normas individuais produzidas com base nestas normas gerais, quer dizer, se se pergunta pelo fundamento de validade das normas que regulam a criação das normas gerais enquanto determinam através de que órgãos e de que processos as normas gerais devem ser criadas, seremos talvez conduzidos a uma Constituição estadual mais antiga. Quer dizer: fundamentamos a validade da Constituição estadual existente no fato de ela ter surgido de conformidade com as determinações de uma Constituição estadual anterior pela via de uma alteração constitucional constitucionalmente operada, o que, por sua vez, significa: de acordo com uma norma positiva estabelecida por uma autoridade jurídica. Assim se chega finalmente a uma Constituição estadual que é historicamente a primeira, a qual já não surgiu por um processo idêntico e cuja validade, portanto, não pode ser reconduzida à de uma outra procedente de uma norma positiva fixada por uma autoridade jurídica, mas é uma Constituição estadual que surgiu revolucionariamente, quer dizer, rompendo com uma Constituição anteriormente existente, ou, então, veio a surgir com validade para um domínio que anteriormente não era abrangido pelo domínio de validade de uma Constituição estadual de uma ordem jurídica estadual sobre ela apoiada. Se se toma apenas em consideração a ordem jurídica estadual -‐ e não também o direito internacional -‐, e se se pergunta pelo fundamento de validade de uma Constituição estadual que foi historicamente a primeira, quer dizer, de uma Constituição que não veio à existência pela via de uma modificação constitucional de uma Constituição estadual anterior, então a resposta -‐ se renunciamos a reconduzir a validade da Constituição estadual e a validade das normas criadas em conformidade com ela a uma norma posta por uma autoridade metajurídica, como Deus ou a natureza -‐ apenas pode ser que a validade desta Constituição, a aceitação de que ela constitui uma norma vinculante, tem de ser pressuposta para que seja possível interpretar os atos postos em conformidade com ela como criação ou aplicação de normas jurídicas gerais válidas, e os atos postos em aplicação destas normas jurídicas gerais como criação ou aplicação de normas jurídicas individuais válidas. Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer, uma norma que é pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo. Como essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos coercivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela. (Em forma abreviada: devemos conduzir-‐nos como a Constituição prescreve.)”. (p. 222-‐224) -‐ Fábio Ulhôa Coelho, em “Para entender Kelsen”, faz uma interessante aplicação desse “método de reconstituição à norma fundamental (Grundnorm) no contexto específico do nosso Direito positivo. Recomendo a sua leitura. d) A norma fundamental como pressuposição lógico-‐transcendental -‐ “Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, (...) pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de Kant -‐, ser designada como condição lógico-‐transcendental desta interpretação”. (p. 225). -‐ Por fim, ainda em relação à norma fundamental, vale a pena destacar que, para a TPD, a norma fundamental (necessariamente pressuposta) pressupõe, por sua vez, uma ordem normativa eficaz em termos globais. Ou seja, ela fundamenta a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva e, isto é relevante, eficaz em termos globais. Desse modo, a norma fundamental, em termos cronológicos, não surge antes da Constituição em sentido jurídico positivo (e nem muito menos antes da ordem jurídica positiva). A pressuposição da norma fundamental, pela qual se responde à questão da fundamentação de validade de uma ordem jurídica positiva, pressupõe, por sua vez, a existência concreta de uma ordem jurídica positiva eficaz em termos globais. e) A unidade lógica da ordem jurídica; conflitos de normas -‐ A unidade de uma ordem jurídica também se expressa na possibilidade de descrição dessa ordem por meio de proposições jurídicas não reciprocamente contraditórias. No entanto, pode ocorrer conflitos entre normas: -‐ “Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. (...). Este conflito não é, como anteriormente mostramos, uma contradição lógica no sentido estrito da palavra, se bem que se costume dizer que as duas normas se ‘contradizem’. Com efeito, os princípios lógicos, e particularmente o princípio da não-‐contradição, são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas; e uma contradição lógica entre duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que, se uma é verdadeira, a outra tem de ser falsa. Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ou não válida. Contudo, a asserção (enunciado) que descreve um ordem normativa afirmando que, de acordo com esta ordem, uma determinada norma é válida, e, especialmente, a proposição jurídica, que descreve uma ordem jurídica afirmando que, de harmonia com essa mesma ordem jurídica, sob determinados pressupostos deve ser ou não deve ser posto um determinado ato coercivo, podem – como se mostrou – ser verdadeiras ou falsas. Por isso, os princípios lógicos em geral e o princípio da não contradição em especial podem ser aplicados às normas jurídicas. Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-‐se que duas normas jurídicas se ‘contradizem’ uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser, ao mesmo tempo, é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradição lógica algo de sem sentido”. (p. 228-‐229) -‐ Na sequência, Kelsen propõe soluções para resolver contradições entre normas por meio da interpretação, no entanto, antes de entrar nesse ponto, quero já registrar a resposta que a TPD apresenta para a possibilidade de não ser possível a solução de um conflito entre normas: -‐ “Quando nem uma nem outra interpretação sejam possíveis, o legislador prescreve algo sem sentido, temos um ato legislativo sem sentido e, portanto, algo que não é sequer um ato cujo sentido subjetivo possa ser interpretado como seu sentido objetivo. Logo, não existe qualquer norma jurídica objetivamente válida. Isto, embora o ato tenha sido posto de harmonia com a norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental não empresta a todo e qualquer ato o sentido objetivo de uma norma válida, mas apenas ao ato que tem um sentido, a saber, o sentido subjetivo de que os indivíduos se devem conduzir de determinada maneira. O ato tem de – neste sentido normativo – ser um ato com sentido. Quando ele tem um outro sentido, por exemplo, o sentido de um enunciado (v. g. de uma teoria consagrada na lei), ou não tem qualquer sentido – quando a lei contém palavras sem sentido ou disposições inconciliáveis umas com as outras -‐, não há qualquer sentido subjetivo a ter em conta que possa ser pensado como sentido objetivo, não existe qualquer ato cujo sentido subjetivo seja capas de uma legitimação pela norma fundamental”. (p. 231) -‐ No entanto, conflitos de normas num sistema normativo podem e devem ser resolvidos por meio da interpretação. Considerando normas pertencentes a um mesmo escalão do ordenamento, os conflitos podem ser resolvidos: a) Pelo princípio lex posterior derogat priori. b) Não sendo possível a aplicação do princípio lex posterior derogat priori, abrem-‐se duas alternativas: b1. Interpretam-‐se as duas disposições conflitantes no sentido de que é deixada ao órgão competente a escolha entre qualquer uma delas. b2. Na hipótese de uma contradição parcial, interpretam-‐se as disposições conflitantes como disposições cujos âmbitos de validade limitam-‐se reciprocamente. -‐ “Entre uma norma de um escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior. Na exposição da construção escalonada da ordem jurídica se mostrará como isto sucede”. (p. 232). -‐ Não há – para Kelsen – possibilidade de conflito entre normas de diferentes escalões dentro de um sistema normativo. Nesse caso, não pode existir qualquer conflito. Essa questão será tratada mais à frente, especialmente nos tópicos “A decisão judicial ‘ilegal’” e “A lei ‘inconstitucional’”. f) Legitimidade e efetividade -‐ Princípio da legitimidade: este princípio estabelece que uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica. -‐ No entanto, uma ordem normativa pode perder sua validade por conta de uma revolução. Nesses casos, e esse é um ponto a ser destacado, não há, pra TPD, sentido em se “apelar” para a norma fundamental. Kelsen escreve: -‐ “A modificação da norma fundamental segue-‐se à modificação dos fatos a serem interpretados como criação e aplicação de normas jurídicas válidas. A norma fundamental refere-‐se apenas a uma Constituição que é efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que é eficaz”. (p. 234). -‐ O princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade. g) Validade e eficácia -‐ “Nessa limitação [do princípio da legitimidade pelo da efetividade] revela-‐se a conexão, já repetidas vezes acentuada antes e sumamente importante para uma teoria do Direito positivo, entre validade e eficácia do Direito”. (p. 235). -‐ “Uma teoria jurídica positivista é posta perante a tarefa de encontrar entre os dois extremos, ambos insustentáveis, o meio termo correto. Um dos extremos é representado pela tese de que, entre validade como um dever-‐ser e eficácia como um ser, não existe conexão de espécie alguma, que a validade do Direito é completamente independente da sua eficácia [teoria idealista]. O outro extremo é a tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia [teoria realista]”. A primeira é falsa, pois, por um lado, não pode negar-‐se que uma ordem jurídica como um todo, tal como uma norma jurídica singular, perde a sua validade quando deixa de ser eficaz; por outro lado, é também falsa na medida em que existe uma conexão entre o dever-‐ser da norma jurídica e o ser da realidade natural, já que a norma jurídica positiva, para ser válida, tem de ser posta através de um ato-‐de-‐ser (da ordem do ser). A segunda solução é falsa, pois não pode ser negado que há -‐ como acima se mostrou -‐ numerosos casos nos quais as normas jurídicas são consideradas como válidas se bem que não sejam, ou não sejam ainda, eficazes. A solução proposta pela Teoria Pura do Direito para o problema é: assim como a norma de dever-‐ser, como sentido do ato-‐de-‐ser que a põe, se não identifica com este ato, assim a validade de dever-‐ser de uma norma jurídica se não identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da ordem jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são -‐ tal como o ato que estabelece a norma -‐ condição da validade. Tal eficácia é condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes. Mas também a eficácia de uma ordem jurídica não é, tampouco como o fato que a estabelece, fundamento da validade. Fundamento da validade, isto é, a resposta à questão de saber por que devem as normas desta ordem jurídica ser observadas e aplicadas, é a norma fundamental pressuposta segundo a qual devemos agir de harmonia com uma Constituição efetivamente posta, globalmente eficaz, e, portanto, de harmonia com as normas efetivamente postas de conformidade com esta Constituição e globalmente eficazes. A fixação positiva e a eficácia são pela norma fundamental tornadas condição da validade. A eficácia é-‐o no sentido de que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como um todo, e bem assim a norma jurídica singular, não percam a sua validade. Uma condição não pode identificar-‐se com aquilo que condiciona. Assim, um homem, para viver, tem de nascer: mas, para permanecer com vida, outras condições têm ainda de ser preenchidas, v. g., tem de receber alimento. Se esta condição não é satisfeita, perde a vida. A vida, porém, não se identifica nem com o fato de nascer nem com o fato de receber alimento”. (p. 235-‐236). -‐ A eficácia é, portanto, condição sine qua non de validade. -‐ O fato de uma norma (ou algumas normas) não serem eficazes não implica na perda da validade da ordem jurídica. -‐ “Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato – num sentido global – observadas e aplicadas”. (p. 237). -‐ “E também uma norma jurídica em singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares (...). Por outro lado, também se não considera como válida uma norma que nunca é observada ou aplicada. E, de fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, que dizer, através da chamada desuetudo”. (p. 237). -‐ “A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente”. (p. 237). h) A norma fundamental do Direito internacional -‐ “Como genuína norma fundamental, não é uma norma posta mas uma norma pressuposta. Ela representa o pressuposto sob o qual o chamado Direito internacional geral, isto é, as normas globalmente eficazes, que regulam a conduta de todos os Estados entre si, são consideradas como normas jurídicas que vinculam os Estados. Estas normas são criadas pela via de um costume que é constituído pela conduta efetiva dos Estados, isto é, pela conduta dos indivíduos que, de acordo com as ordens jurídicas estaduais, funcionam como governos. Se elas são pensadas como normas jurídicas vinculantes para os Estados é porque se pressupõe uma norma fundamental que institui o costume dos Estados como fato produtor de Direito, O seu teor é: os Estados, quer dizer, os governos dos Estados, devem conduzir-‐se nas suas relações mútuas em harmonia com um dado costume dos Estados, ou: a coação de um Estado contra outro deve ser exercida sob os pressupostos e pela forma correspondentes a um dado costume dos Estados13. E esta a constituição -‐ lógico-‐jurídica -‐ do Direito internacional”. (p. 240-‐241). i) Teoria da norma fundamental e doutrina do Direito natural -‐ “Na verdade – tem de acentuar-‐se bem – da norma fundamental apenas pode ser derivada a validade e não o conteúdo de uma ordem jurídica. Toda a ordem coerciva globalmente eficaz pode ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A nenhuma ordem jurídica positiva pode recusar-‐se a validade por causa do conteúdo das suas normas. É este um elemento essencial do positivismo jurídico”. (p. 242). -‐ “Uma doutrina consequente do Direito natural distingue-‐se de uma teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento da validade do Direito positivo, isto é, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, num Direito natural diferente do Direito positivo e, portanto, numa norma ou ordem normativa a que o Direito positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder mas também pode não corresponder; por tal forma que, quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser considerado como não válido. Segundo uma genuína doutrina do Direito natural, portanto, não pode -‐ ao contrário do que se dá com a Teoria Pura do Direito como teoria jurídica positivista -‐ toda e qualquer ordem coerciva globalmente eficaz ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A possibilidade de um conflito entre o Direito natural e o Direito positivo, isto é, uma ordem coerciva eficaz, implica a possibilidade de considerar como não válida uma tal ordem coerciva. Somente na medida em que o Direito positivo, quer dizer, uma ordem coerciva globalmente eficaz, pode, quanto ao seu conteúdo, não só corresponder como também não corresponder ao Direito natural e, portanto, pode não apenas ser justo mas também injusto, é que o Direito natural poderá servir como critério ético-‐político do Direito positivo e, consequentemente, como possível justificação ético-‐política do Direito positivo. Ora é esta precisamente a função essencial do Direito natural. Quando uma teoria jurídica que se designe a si mesma como teoria jusnaturalista formule a norma ou ordem normativa que representa o fundamento de validade do Direito positivo por forma tal que fique excluído qualquer conflito entre esta e o Direito positivo, afirmando, v. g., que a natureza prescreve a obediência a toda ordem jurídica positiva, qualquer que seja a conduta por esta ordem preceituada, anula-‐se a si própria como teoria jusnaturalista, quer dizer, como teoria da Justiça. Desse jeito, ela renuncia à função, essencial ao Direito natural, de fornecer um critério ético-‐político, e, portanto, uma possível justificação do Direito positivo”. (p. 243-‐244). j) A norma fundamental do Direito natural -‐ “Como a Teoria Pura do Direito, enquanto teoria jurídica positivista, não fornece, com a norma fundamental do Direito positivo por ela definida, qualquer critério para apreciação da justiça ou injustiça daquele Direito e, por isso, também não fornece qualquer justificação ético-‐política do mesmo, ela é muitas vezes considerada como insatisfatória. O que se procura é um critério segundo o qual o Direito positivo possa ser julgado como justo ou injusto -‐ mas, sobretudo, segundo o qual ele possa ser legitimado como justo. Um tal critério apenas pode ser fornecido por uma teoria do Direito natural quando as normas do Direito natural por esta descrito e que prescrevem uma determinada conduta como justa tenham a validade absoluta que se arrogam, quer dizer: quando excluam como impossível a validade das normas que prescrevem como justa a conduta oposta. A história das doutrinas do Direito natural mostra, porém, que tal não é o caso. Logo que a teoria do Direito natural intenta determinar o conteúdo das normas imanentes à natureza, deduzidas da natureza, enreda-‐se nas mais insuperáveis contradições. Os seus representantes não proclamaram um único Direito natural, mas vários Direitos naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros. Isto é especialmente verdade em relação às questões fundamentais da propriedade e da forma do Estado. Segundo uma doutrina do Direito natural, só é "natural", isto é, justa, a propriedade individual, segundo outra, só o é a propriedade coletiva; segundo uma, só é "natural", isto é, justa, a democracia, segundo outra, só o é a autocracia. Todo Direito positivo que corresponde ao Direito natural de uma das teorias e que, por isso, é tido como justo, contradiz o Direito natural de outra teoria e é, consequentemente, condenado como injusto. A doutrina do Direito natural, tal como efetivamente tem sido desenvolvida e – não pode ser desenvolvida de outra maneira – está muito longe de fornecer o critério firme que dela se espera”. (p. 244-‐245). -‐ Apenas uma observação aqui. A compreensão que Kelsen tem do Direito natural é, na melhor das hipóteses, superficial – como de resto também o era a compreensão geral do Direito natural ao longo de toda a primeira metade do século XX. Em relação a esta questão, sugiro a leitura do artigo Kelsen and Aquinas on the Natural Law Doctrine, de Robert P. George. 2. A estrutura escalonada da ordem jurídica -‐ Este é um dos tópicos mais importantes da TPD. De saída, vale a pena observar que a teoria da estrutura escalonada da ordem jurídica não é uma teoria desenvolvida originalmente por Kelsen. Essa teoria foi elaborada originalmente por Adolf Julius Merkl (1890-‐1970). Merkl foi aluno de Kelsen na Universidade de Viena e, mais tarde, professor nessa mesma universidade. No entanto, embora não a tenha desenvolvido originalmente, Kelsen incorporou – na sua totalidade – a teoria da estrutura escalonada da ordem jurídica na sua teoria pura do Direito. A fim de possibilitar a compreensão do impacto da teoria da estrutura escalonada da ordem jurídica na teoria pura do Direito, transcrevo a seguir uma página de Stanley Paulson: Um aspecto bastante diferente da longa fase “clássica” de Kelsen é a incorporação, na sua totalidade, da teoria da estrutura escalonada do ordenamento jurídico de Adolf Julius Merkl. Essa doutrina oferece uma caracterização dinâmica do Direito, uma perspectiva do Direito “em movimento, no constante regenerativo processo de sua própria criação”. Em Hauptprobleme, Kelsen havia considerado apenas as normas jurídicas gerais, argumentando que atos jurídicos individuais não demandavam qualquer atenção especial, tendo já sido determinados in abstracto nas normas gerais. No período de 1917 a 1920, no entanto, Kelsen termina por compreender que confinar sua atenção às normas jurídicas gerais seria ignorar não apenas os atos jurídicos individuais, mas, de fato, um completo espectro de normas entre as provisões jurídicas gerais e os atos jurídicos concretos. A única maneira de acertar as coisas, Kelsen agora argumenta, é introduzir um esquema gradual, que exiba todos os níveis de normas jurídicas no sistema jurídico, desde o mais geral, aquele das normas constitucionais e legislativas, até os mais concretos atos jurídicos. Não obstante não seja este o lugar apropriado para tratar dessa questão, acredito que esse desenvolvimento, que se dá no início da longa fase “clássica” de Kelsen, prepara o terreno para a posterior fase cética. Pois, já a partir de 1920, uma divisão se desenvolve entre duas direções na teorização de Kelsen. Uma direção é representada pela importação da doutrina de Merkl, que enfeitiça Kelsen com seu apelo cientificista. E com uma boa razão: um dos objetivos de Kelsen, desde o início, tinha sido transformar a “ciência jurídica” em algo respeitavelmente “científico”. A estrutura com múltiplos escalões de Merkl fora pensada no sentido de exibir um encaixe perfeito de atribuições normativas de poder ou competência ao longo de todo o caminho da estrutura escalonada de normas jurídicas, e desse modo, como também em outros, essa doutrina parecia promover o apelo – até aquele momento não muito convincente – da ciência jurídica à exatidão. A outra direção tomada na teorização de Kelsen é representada pelo seu profundo e permanente interesse no problema da normatividade e na sua solução. O problema de como o sujeito pode ter uma obrigação de observar a norma. “Dizer que uma norma é válida”, ele escreve, “significa dizer que ela tem ‘força de obrigação’ para aqueles cujo comportamento ela regula”. Do modo como Kelsen entende a questão, o problema da normatividade desafia o teórico do Direito a explicar a “força de obrigação” ou obrigação jurídica sem incorrer nas soluções propostas tanto pelo juspositivista tradicional, que ostensivamente expressa material normativo em termos factuais, como pelo jusnaturalista clássico, que reformula uma parte do Direito em termos morais. O Sollen ou “dever-‐ser”, na concepção de Kelsen, demanda uma explicação. Uma explicação que rejeita, enquanto mantém-‐se focada no problema da normatividade, uma simples reafirmação, nos termos da norma de atribuição de poder ou competência hipoteticamente formulada, seja da competência para positivar normas, derivada diretamente de Merkl, seja da atribuição de poder ou competência para impor sanções, que é a solução própria de Kelsen (num certo sentido) para o problema da “forma linguística ideal” da norma jurídica, seja ainda da “norma jurídica completa” da Escola de Viena, que pretende incorporar ambas as funções da atribuição de poder ou competência. Em síntese, o apelo do cientificismo da doutrina de Merkl levou Kelsen em uma direção, enquanto seu contínuo interesse pelo problema da normatividade o levou em uma outra. Com o tempo, a tensão gerada por essa divisão atinge um nível intolerável, com a última direção finalmente se rendendo à primeira, que fora – durante os anos vividos em Berkeley – conformada por suas leituras em filosofia analítica”. (PAULSON, Stanley. Four Phases in Hans Kelsen’s Legal Theory? Reflections on a Periodization. Oxford J. Legal Studies, 153, 1998. tradução nossa) -‐ Acho extremamente difícil superestimar a importância dessa análise de Stanley Paulson (como também a sua contribuição para a compreensão da obra de Hans Kelsen na sua totalidade). Ela encerra uma importante chave de leitura para a TPD, na medida em que revela a tensão entre o problema da normatividade (obrigação) e a teoria da estrutura escalonada da ordem jurídica. Durante os quatro primeiros capítulos da TPD, como vimos, a ênfase esteve sobre a questão da sanção (problema da normatividade), o quinto capítulo (Dinâmica Jurídica) e o oitavo, (A Interpretação), transferem a ênfase para a estrutura escalonada da ordem jurídica. Uma integração dessas duas direções – uma superação, portanto, da tensão observada por Paulson – não parece ter sido alcançada por Kelsen. a) A Constituição -‐ “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental -‐ pressuposta. A norma fundamental -‐ hipotética, nestes termos -‐ é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. (p. 247). -‐ Neste último parágrafo, Kelsen apresenta a sua definição de Direito como construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. Essa definição se conecta com a teoria da norma fundamental e com o caráter essencialmente dinâmico do sistema jurídico (já vistos). -‐ No parágrafo seguinte, Kelsen começa a descrever os escalões dessa estrutura, começando pela Constituição. -‐ “Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado. A Constituição é aqui entendida num sentido material, quer dizer: com esta palavra significa-‐se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais. Esta Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou através de um ato de um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, isto é, através de um ato legislativo. Como, neste segundo caso, ela é sempre condensada num documento, fala-‐se de uma Constituição "escrita", para a distinguir de uma Constituição não escrita, criada por via consuetudinária. A Constituição material pode consistir, em parte, de normas escritas, noutra parte, de normas não escritas, de Direito criado consuetudinariamente. As normas não escritas da Constituição, criadas consuetudinariamente, podem ser codificadas; e, então, quando esta codificação é realizada por um órgão legislativo e, portanto, tem caráter vinculante, elas transformam-‐se em Constituição escrita”. (p. 247). -‐ Essencialmente, isto é, num sentido material, Constituição é definida como norma positiva, ou conjunto de normas positivas, que regula(m) a produção de normas jurídicas gerais. Num sentido menos preciso, mas – talvez – mais enfático: Constituição é norma que regula a criação das leis. Esta é a sua essência. Repare que não há aqui qualquer menção a conteúdo. Não se fala em organização do Estado, separação de poderes, direitos e garantias fundamentais ou qualquer outro tema típico de uma teoria do Direito Constitucional. Não há um conteúdo mínimo da Constituição além do estabelecimento de um fator produtor de normas jurídicas gerais. -‐ Além da Constituição em sentido material, Kelsen também considera a Constituição em sentido formal: -‐ “Da Constituição em sentido material deve distinguir-‐se a Constituição em sentido formal, isto é, um documento designado como ‘Constituição’ que -‐ como Constituição escrita – não só contém normas que regulam a produção de normas gerais, isto é, a legislação, mas também normas que se referem a outros assuntos politicamente importantes e, além disso, preceitos por força dos quais as normas contidas neste documento, a lei constitucional, não podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos. Estas determinações representam a forma da Constituição que, como forma, pode assumir qualquer conteúdo e que, em primeira linha, serve para a estabilização das normas que aqui são designadas como Constituição material e que são o fundamento de Direito positivo de qualquer ordem jurídica estadual”. (p. 247-‐248). -‐ Finalmente, abordando diretamente a questão do “conteúdo” da Constituição: -‐ “A Constituição, que regula a produção de normas gerais, pode também determinar o conteúdo das futuras leis. E as Constituições positivas não raramente assim procedem ao prescrever ou ao excluir determinados conteúdos. No primeiro caso, geralmente apenas existe uma promessa de leis a fixar e não qualquer obrigação de estabelecer tais leis, pois, já mesmo por razões de técnica jurídica, não pode facilmente ligar-‐se uma sanção ao não estabelecimento de leis com o conteúdo prescrito. Com mais eficácia, porém, podem ser excluídas pela Constituição leis de determinado conteúdo. O catálogo de direitos e liberdades fundamentais, que forma uma parte substancial das modernas constituições, não é, na sua essência, outra coisa senão uma tentativa de impedir que tais leis venham a existir”. (p. 249). b) Legislação e costume -‐ “O escalão imediatamente seguinte ao da Constituição é constituído pelas normas gerais criadas pela legislação ou pelo costume”. (p. 250). -‐ A ênfase aqui é posta sobre a questão dos costumes. Em síntese, costume para a TPD é norma jurídica geral. c) Lei e decreto -‐ Lei é norma jurídica geral que provem do parlamento (poder legislativo). -‐ “As normas gerais que provêm, não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa, são designadas como decretos, (...). (p. 255). -‐ Isto é, não é apenas o poder legislativo que tem competência para o estabelecimento de normas jurídicas gerais. d) Direito material e Direito formal -‐ “As normas gerais a aplicar pelos órgãos jurisdicionais e administrativos têm, portanto, uma dupla função: 1a -‐ a determinação destes órgãos e do processo a observar por eles; 2a – a determinação do conteúdo das normas individuais a produzir neste processo judicial ou administrativo”. (p. 256). -‐ “A estas duas funções correspondem as duas categorias de normas jurídicas que se costumam distinguir: normas de Direito formal e normas de Direito material. Como Direito formal designam-‐se as normas gerais através das quais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais e administrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo. Por direito material entendem-‐se as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos e que são em geral designadas como Direito civil, Direito penal e Direito administrativo,(...). (p. 256). -‐ Agora vem algo extremamente relevante. Kelsen observa: -‐ “O Direito material e o Direito formal estão inseparavelmente ligados. Somente na sua ligação orgânica é que eles constituem o Direito, o qual regula a sua própria criação e aplicação. Toda proposição jurídica que pretenda descrever perfeitamente este Direito deve conter tanto o elemento formal como o elemento material”. (p. 257). -‐ Essa última citação é especialmente relevante porque, em virtude da maneira pela qual tradicionalmente estudamos o Direito, é comum desenvolvermos uma concepção do Direito em que essa união orgânica é ofuscada pela “comodidade pedagógica” da distinção entre Direito formal e Direito material. e) As chamadas “fontes de Direito -‐ Para Kelsen, essa expressão não serve para a ciência do Direito. Ele afirma: -‐ “Num sentido jurídico-‐positivo, fonte do Direito só pode ser o Direito”. (p. 259). f) Criação do Direito, aplicação do Direito e observância do Direito -‐ “Uma norma que regula a produção de outra norma é aplicada na produção, que ela regula, dessa outra norma. A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. Estes dois conceitos não representam, como pensa a teoria tradicional, uma oposição absoluta. É desacertado distinguir entre atos de criação e atos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos limite – a pressuposição da norma fundamental e a execução do ato coercitivo – entre os quais se desenvolve o processo jurídico, todo ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior”. (p. 260-‐261). -‐ “Criação e aplicação do Direito devem ser distinguidas da observância do Direito. Observância do Direito é a conduta a que corresponde, como conduta oposta, aquela a que é ligado o ato coercitivo da sanção. É antes de tudo a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção”. (p. 263). g) Jurisprudência α) O caráter constitutivo
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