Buscar

SIQUEIRA, A. C. ; JAEGER, F. P. & KRUEL, C. S. Família e Violência Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas. Pag. 77 93. complementar

Prévia do material em texto

Capítulo V I 
VIOLÊNCIA COMO CATEGORIA : 
A EXPERIÊNCIA DA ORDEM 
' Hebe Signorini Gonçalves 
O ano de 2011 celebrou um aniversário: há cinco décadas, 
precisamente em 1961, Henry Kempe cunhou a expressão: síndrome 
da criança espancada {battered child syndrome). Diante do espanto 
dos membros da Academia Americana de Pediatria, seu presidente 
defendeu que todas as especialidades médicas, e a pediatria em parti-
cular, deveriam passar a considerar a hipótese de que algumas das 
injúrias observadas nos corpos de seus pequenos pacientes pudessem 
haver sido intencionalmente provocadas por seus pais. A ideia parecia, 
então, quase uma heresia: os pais, aliados primeiros da prática médica 
desde o berço da Puericultura e da Pediatria, eram naquela data desti-
tuídos do posto de cuidadores por excelência e provedores incondicio-
nais. Rasgava-se o mito do amor materno. 
Os muitos trabalhos que antecederam a definição da síndro-
me, assim como as primeiras publicações de Henry Kempe, referiam-
•se a danos e injúrias físicas: conforme suas recomendações, os espe-
cialistas deveriam atentar para as fraturas, as queimaduras, os danos 
internos e outros signos visíveis a partir dos quais a síndrome poderia 
ser detectada. Com o passar dos anos, como salienta Helfer (1987), a 
expressão - cunhada nos anos 60 com a intenção de chamar a atenção 
para aspectos físicos de danos não acidentais - passou a incorporar 
78 
Hebe SÍRnorini Gonçalves 
outros eventos. Na década que se seguiu à fala inicial de Kempe, ou-
tras formas de injúria adentraram o território dos abusos contra a crian-
ça: as negligências, primeiro, em seguida os abusos psicológicos, e 
por último os abusos sexuais", todos agora referidos a formas que 
apresentam, ou não, sinais físicos, visíveis. Nas palavras de Helfer 
(1987, p. 61), "a síndrome descrita por Kempe tomou-se mais ampla e 
permitiu descrever nosso entendimento dos problemas agora reunidos 
sob a égide global de 'colapso dos processos de interação familiares'" 
(aspas no original). Foi assim que, nas cinco últimas décadas, saímos 
da injúria corporal como signo de abuso ao diagnóstico da falência da 
relação familiar. 
Quando a Organização Mundial de Saúde declarou, na Qua-
dragésima Nona Assembleia Mundial de Saúde de 1996, que passaria 
a considerar a violência como uma questão mundial de saúde pública, 
apontava para suas consequências sobre indivíduos, famílias, comuni-
dades e países. O Relatório Mundial sobre Violência em Saúde, publi-
cado em 2002 em resposta à solicitação daquela Assembleia, referia-
se à violência coletiva, à violência social, política e económica, à vio-
lência interpessoal nas famílias, entre parceiros ou entre membros que 
convivem na mesma comunidade, à violência autoinflingida... cada 
uma delas lida conforme sua natureza: física, sexual, psicológica, ne-
gligência económica ou patrimonial. Suas vítimas não eram mais ape-
nas as crianças, mas também os idosos e as mulheres, quando não 
grupos ou países inteiros. 
A perplexidade dos médicos diante do pronunciamento dc 
Henry Kempe nos anos 60 caiu no esquecimento e remete à memória 
de um tempo em que a violência não estava ali. Nos dias atuais, ao 
contrário, a violência parece habitar o cotidiano das cidades, seja nos 
espaços públicos seja nos espaços privados; hoje, quando a violência 
está aqui, somos conclamados a conhecê-la, na pretensão de dominá-
-la. Para dominá-la, o recurso tem sido seu esquadrinhamento pela via 
da classificação: a produção recente acerca da violência tem enfatiza-
do a identificação das muitas e variadas formas de sua manifestação, 
inserindo cada uma delas num quadro classificatório que visa destacar 
aproximações e diferenças, escrutinar seus autores preferenciais, apon-
1 
Segundo Hacking (2001), os abusos sexuais adentram o campo em 1977, co.n.. 
produto da reivindicação de militantes femmistas. 
I'iiniíliu e Violência: Conceitos. Práticas e Ref lexões Críticas 79 
tar a sintomatologia com a qual se quer dizer a priori quais suas víti-
mas potenciais. Produzimos nesse percurso uma taxionomia, uma no-
sografía e uma semiologia da violência. 
Nosografia, s.f: MED: tratado com descrição ou explicação das 
doenças. (Houaiss, 2001) 
Nosografia, s.f.: descrição ou classificação metódica das doenças. 
(Holanda, 1975) , , , 
Semiologia, s.f: 1. CL. MED: meio e modo de se examinar um do-
ente, esp. de se verificarem os sinais e sintomas; propedêutica, se-
miótica, sintomatologia. (Houaiss, 2001) 
Taxionomia, s.f: 1. Ciência da classificação. (Holanda, 1975) 
Voltamos a trilhar, assim, um velho caminho conhecido das 
ciências humanas, da psiquiatria e da psicologia: diante de questão 
que parece por demais vasta, extensa e complexa, escolhemos dissecar 
para compreender, dividir para classificar, estudar a minúcia porque a 
totalidade parece abrangente demais para dar-se a conhecer. Instala-se, 
no interior de um campo díspar e vasto, a experiência da ordem, sobre 
a qual Foucault (1990, p. 10/11) assim se refere: 
Os códigos fiindamentais de uma cultura (...) fixam, logo de entra-
da, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de l i -
dar e nas quais se há de encontrar. Na outra extremidade do pen-
samento, teorias científicas ou interpretações de filósofos explicam 
por que há em geral uma ordem, a que lei geral obedece, que prin-
cípio pode justificá-la, por que razão é esta a ordem estabelecida e 
não outra. Mas, entre essas duas regiões tão distantes, reina um 
domínio que, apesar de ter sobretudo um papel intermediário, não é 
menos fundamental: é mais confuso, mais obscuro e, sem diivida, 
menos fácil de analisar. É aí que uma cultura, afastando-se insensi-
velmente das ordens empíricas que lhes são prescritas por seus có-
digos primários, instaurando uma primeira distância em relação a 
elas, fá-las perder sua transparência inicial (...) Assim, em toda cul-
tura, entre o uso do que se poderia chamar os códigos ordenadores 
e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua da ordem e de 
seus modos de ser. 
80 Hebe Signorini Gonçalves 
Este texto trata das experiências de ordenamento recentes no 
campo das violências. Sem dúvida, há trabalhos de valor que indagam 
a própria vastidão do campo; autores como Riffiotis (1995) já se inda-
garam da validade da aproximação de experiências díspares entre si, 
tomadas similares no rótulo de violentas que as une; ele se refere à 
violência como conceito-valise, cuja validade se perde justamente na 
abrangência das questões que abarca. Ainda que compartilhe dessas 
críticas, renuncio por ora a essas inquietações e admito, como exercí-
cio, que as experiências hoje englobadas sob o rótulo de violentas de-
finem um campo vasto; minha intenção com isso é, diante da amplitu-
de que aí está contida, empreender um primeiro esforço crítico dos 
esforços classificatórios e dos sentidos que eles produzem. 
TAXONOMIA, SEMIOLOGIA, NOSOGRAFIA: A 
EXPERIÊNCIA NUA DA ORDEM 
O esforço classificatório das violências coincide com seu in-
gresso no campo da saúde. Até então, nenhum dos textos que tratava da 
violência, a maior parte no campo das ciências humanas, deu-se a essa 
empreitada; desde aquele que é reconhecido como o primeiro tratado 
sobre violência - o Réflexions sur la violence, escrito por Georges Sorel 
em 1908 - , o tema foi preponderantemente abordado como fenómeno 
relacional e conectado aos códigos culturais da época. Foi o ingresso da 
violência no campo da saúde que trouxe a necessidade da categorização. 
Desde os primeiros trabalhos de Henry Kempe, o designativo child batte-
red syndrome apontava para uma forma de abuso que invocava o uso da 
força fisica e atingia, ferindo, o corpo fisico. A marca física deixa de ser 
signo necessário de identificação conforme outrasmodalidades de vio-
lência, que não se valem da força física nem atingem o corpo físico, pas-
sam a ser também designadas como abusos. Assim é que, a posteriori, a 
"criança espancada" de Kempe se converte na "criança vítima de abuso 
físico", distinta por sua vez da vítima de negligência, de abuso psicológi-
co ou de abuso sexual. A classifícação, como se vê, caminha ao lado da 
absorção de outras formas de abuso que não o físico. A categorização 
Família e Violência: Conceitos. Práticgg e Reflexões Críticas 81 
organiza o campo de modo a não permitir que sua expansão seja interpre-
tada como incómoda indistinção. 
Foi apenas em 2002, com a publicação do Relatório Mundial 
sobre Violência e Saúde pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 
2002), que essa categorização alcançou seu desenho mais aprimorado. 
A introdução do Relatório nomeia seus objefivos: 
» descrever a magnitude e o impacto da violência em todo o 
mundo; 
» descrever os principais fatores de risco que causam a vio-
lência; 
» relatar os tipos de ações, intervenções e respostas políticas 
que têm sido implantados e resumir o que se conhece so-
bre sua eficácia; 
» recomendar ações em nível local, nacional e internacional. 
(OMS, 2002, p. xix) 
Em seu corpo, o Relatório responde a esses propósitos: trata-
-se de documento de peso que não apenas compila dados levantados 
por mais de 160 especialistas em todo o mundo como propõe, com 
liase nesses levantamentos, uma grade analítica de leitura da violência, 
loinada como problema de saúde; os eventos são categorizados e clas-
sillcados - faz-se, portanto, uma taxionomia - e desse esforço emer-
gem elementos que visam à compreensão etiológica da violência -
lima nosografia - e alguns modos pelos quais a violência pode ser 
prevenida e tratada - uma semiologia. 
Até a publicação do Relatório, eventos violentos eram reme-
lidos ao Capítulo XX da Classificação Internacional de Doenças 
(ClD-10). O Capítulo XX classifica eventos provocados por causas 
fxlemas introduzindo distinções conforme sua intencionalidade (aci-
dentais, intencionais e de causalidade indeterminada) e conforme sua 
iiaiureza (os acidentes de transporte; as lesões autoinflingidas; as 
agressões; as intervenções legais e operações de guerra; e as compli-
i ações derivadas de assistência médica e cirúrgica). Duas questões 
u-ssaltam daí. Em primeiro lugar, a CID-10 não nomeia a violência; os 
ilanos oriundos dela, por isso, eram usualmente remetidos aos códigos 
\S5-Y09, que trata das agressões; Y35-Y36, que fala dos danos pro-
vocados em intervenções legais e operações de guerra; e X60-X84, 
82 Hebe Signorini Gonçalves 
que cuida das lesões intencionais, auto-inflingidas. Tudo quanto reme-
tia a esses códigos foi absorvido no conjunto de eventos tratados no 
Relatório da OMS de 2002, que os trata - agora, sim - sob a denomi-
nação global de violência. 
Em segundo lugar, mas não menos importante: enquanto ii 
CID-10 empreende um esforço classificatório, o Relatório vai além. 
Apresenta o arrazoado que introduz a violência no campo da saúde. ().s 
argumentos apresentados vão do impacto financeiro sobre o sistema ao 
número crescente de pessoas por ela atingidas, em todo o mundo: 
Todo ano, mais de um milhão de pessoas perdem suas vidas o 
muitas outras sofrem lesões não fatais, resultantes da V Í O I C M I 
cia auto-inflingida, interpessoal ou coletiva. (...) o custo tl;i 
violência se traduz em bilhões de dólares americanos em gas-
tos anuais com assistência à saúde no mundo todo e (...) mais 
alguns bilhões em termos de dias de trabalho perdidos, apli-
cação das leis e perdas em investimentos (OMS, 2002, p. 3). 
A partir daí, o Relatório passa a desfiar as razões pelas quais 
a OMS entende que a violência pode ser melhor enfrentada a partir do 
campo da saúde pública: porque a saúde pública põe foco na saúde das 
populações, adota ótica interdisciplinar tanto no diagnóstico quanto 
intervenção, e atende às exigências do método científico. Com isso. 
passa do problema para a solução, propugnando uma abordagem cm 
quatro etapas: revelar o máximo possível do conhecimento básico :i 
respeito de todos os aspectos da violência; invesfigar por que a violên-
cia ocorre; explorar formas de evitar a violência; e implementar, cm 
diversos cenários, intervenções que pareçam promissoras (OMS, 
2002, p. 4). Aqui saímos, portanto, de uma postura meramente classi-
ficatória para uma nosografia e uma semiologia da violência. 
Ao propor toda uma taxionomia paralela à classificação das. 
doenças, o Relatório permite enirentar uma questão que vinha produziu» 
do desconforto entre os profissionais de saúde. De fato, classificar um 
evento como resultado de ação intencional ou acidental exige do proils* 
sional posicionamento acerca da intenção de alguém que não integrava a 
cena examinada: uma coisa é falar do ferimento que casou o dano mór-
bido e outra, é declarar que aquele dano resultou de acidente ou de in-
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 8 3 
Unção de agente sobre o qual a cena em exame não oferece informação. 
No Mrasil, essa é uma das dificuldades na produção de estatísticas de 
moiiii-mortalidade. Em 1990, Mello Jorge argumentava que, 
no que toca às causas externas, a qualidade é também, de alguma 
forma, discutível, principalmente em função de os legistas, por 
temor, talvez, de envolvimento com a justiça ou com a polícia 
(Laurenti e Mello Jorge, 1987), colocarem no atestado somente a 
"causa médica" da morte, ou seja, a natureza do traumatismo ou 
lesão que levou ao óbito, grande parte das vezes, sem qualquer 
referência à verdadeira (ou mesmo presumida) causa básica da 
morte, definida pela Organização Mundial da Saúde como o "tipo 
de acidente ou violência que ocasionou as lesões que levaram à 
morte " (Mello Jorge, 1990, p. 217). 
Quatorze anos mais tarde, a análise de confiabilidade das es-
liilisticas de mortalidade no Brasil ainda exige correções importantes 
I I I classificação por causas externas: dentre 347 atestados de óbito por 
iiisas externas de tipo ignorado, 291 (83.9%) foram reclassificados 
| K I O S pesquisadores que os examinaram (Laurenti et ai, 2004, tabela 
IV , p. 914), indicando uma dificuldade relevante e persistente. 
Diante dessas dificuldades, o Relatório da OMS produz o 
. irito de constituição de um campo que traz a violência para a área da 
i iu lc, ao mesmo tempo que organiza e orienta as ações; com isso, 
nUicce recursos de enfrentamento de dificuldades históricas. Esse 
movimento - que constrói para a violência uma taxionomia própria -
untura o esforço classificatório sem colocar em crise o modelo de 
iuisc (Pussetfi, 2006)^, dificuldade usual de toda classificação. 
Pussetfi (2006) aborda essa dificuldade focando a categoria 
I iiliiire-bound syndromes (CBS), através da qual a OSM-IV"* designa 
l'iissetti (2006: 27) cimha a expressão ao discutir a introdução da categoria cul-
iiire-bound syndromes (CBS) no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtor-
nos Mentais. Sugiro aqui que, embora a violência não possa ser tratada como re-
sidual, a preocupação com a integridade do modelo é a mesma; trata-se de uma 
similaridade pelo avesso. 
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais é mais conhecido 
110 Brasil pela sigla DSM, derivada de sua denominação em inglês Diagnostic 
íincl Statistical Manual of Mental Disorders. 
84 Hebe Signorini Gonçalves 
como problemas psicopatológicos certos comportamentos típicos de 
culturas locais, não hegemónicas. Analisando experiências, narrativas 
e estratégias de sofrimento na Guiné-Bissau e entre migrantes radica-
dos na Itália e em Portugal, a autora chama a atenção para o inadverti-
do de patologizar expressões díspares e múltiplas que constituem o 
mundo interior dossujeitos. Diz ela: 
Definir e etiquetar uma atitude "estranha" ou "não convencional" 
como um problema médico significa legitimar a necessidade de in-
tervenção médica para controlar, limitar ou modificar este compor-
' tamento (...) o que não pode ser reduzido a um diagnóstico familiar 
' entra automaticamente na lista das CBS e, portanto não põe em cri-
se o modelo de base (Pussetti, 2006, p. 26-7) 
A autora chama a atenção para o fato de que nesse movimento 
a manifestação subjetiva é lida como sintoma e ressignificada no campo 
da patologia, onde alcança sentido muito diverso do original. Entender a 
diferença entre o primeiro sentido - de origem - e o segundo - imposto 
pela categoria - é entender onde e como o ato de classificar abandona a 
neutralidade, afasta-se de qualquer alegado rigor científico e adentra o 
terreno do político, construindo uma leitura de mundo e organizando as 
formas de intervenção sobre o real e sobre os sujeitos: 
a seleção de determinadas sensações corporais ou aspectos com-
portamentais como "sintomas" resulta de uma interpretação, ligada 
por sua vez a um código de referência específico. A definição do 
que é sintoma, do que é doença, do que é anormalidade ou desvio 
é, por conseguinte, um facto social e, ao mesmo tempo, um acto 
político (Pussetti, 2006, p. 7). 
Trago aqui as críticas à classificação de doenças mentais pelo 
DSM, pois as inúmeras análises e publicações disponíveis nos permi-
tem examinar mais de perto os problemas do exercício classificatório 
na área da saúde. O DSM trata de transtornos clínicos e mentais, pro-
blemas do desenvolvimento e aprendizado, transtornos de personali-
dade, e fatores ambientais ou psicossociais que contribuem para as 
desordens. Proposto pela Associação Americana de Psiquiatria, o 
DSM tem sido intensamente discutido no bojo do debate contemporâ-
neo em tomo do diagnóstico e das políticas de saúde mental (Figuei-
Familia e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 85 
redo e Tenório, 2002; Delgado, 2008). Para efeito da presente discus-
são, interessa-me tratar mais especificamente das análises que sustenta 
que, ao diagnosticar puramente com base em sintomas, o DSM induz 
a falhas no exame do contexto de vida da pessoa que está sendo diag-
nosticada, pois é aqui que o caráter político do DSM, anunciado por 
Pussetti (2006), produz efeitos práticos no cotidiano dos sujeitos. 
Em artigos publicados aproximadamente ao longo dos últimos 
5 anos, Octávio Serpa Jr. tem registrado reiteradamente seu incómodo 
de professor com a nosografia proposta pelo DSM; em suas palavras, 
ela trata quase que exclusivamente da dimensão descritiva da doença 
(Serpa Júnior, 2007). Ainda que haja aí valor operativo e didático, a 
descrição enseja o risco de fazer com que a lógica da doença seja conti-
da no estrito limite da aparência e do sintoma. Para Serpa Júnior (2007), 
a classificação esconde aquilo que é essencial no adoecimento: a di-
mensão subjetiva da experiência e tudo quanto diz respeito às relações 
interpessoais, parte integrante e constitutiva do adoecimento. 
Se tomarmos a classificação como uma atividade mecânica, 
que apenas extrai um dado diagnóstico do conjunto de sintomas iden-
lilicados no doente, alimentamos a ilusão de que a atividade de diag-
nosticar é limpa de toda e qualquer contaminação de uma avaliação 
"subjetivista", e por isso então pode ser chamada de "científica". Para 
0 autor, nada é mais falso e nada é mais inócuo do ponto de vista do 
hcm-estar do doente (ou do sujeito que está sendo examinado). 
É falso porque mascara a dimensão humana da doença men-
tal, expressa na dor que ela provoca no doente e nos seus entes queri-
ilos; essa dor não cabe na frieza da classificação manualizada. Serpa 
Júnior (2007) não faz uma crítica isolada. Oliveira (2008), por exem-
plo, contrasta a classificação da DSM às categorias psicanalíticas e 
afirma que, enquanto a primeira diagnostica para buscar a neutraliza-
ou a remissão do sintoma, a última classifica para entender a fun-
lo do sintoma na vida do sujeito e buscar aí a inteligibilidade que lhe 
' própria. Para Delgado (2008), a atenção fisicalista que embasa o 
1 )SM faz calar o sujeito em seu sintoma e configura tratamentos que 
mascaram sentenças condenatórias e segregadoras, visando a adequa-
lo do sujeito: o DSM psiquiatriza a vida social. 
E inócuo porque ignora justamente aquilo que é central na 
\a do adoecimento - a saber, a singularidade da experiência 
c assim toma-se de pouco valor para o próprio doente, aquele que 
86 Hebe Signorini Gonçalves 
mais precisa entender a fonte de sua dor para buscar a sua porta de 
saída. E conclui, com perspicaz ironia: a dor que se apazigua é a do 
observador, que com a emissão do diagnóstico fabrica inteligibilidade 
no interior da loucura e livra-se do incómodo do desconhecido. Aqui 
também há concordâncias: 
Diagnosticar, muitas vezes, servia para aplacar a angústia, ou seja, 
nomear o desconhecido. Tal procedimento promovia um enqua-
dramento diagnóstico, e o paciente passava então a pertencer a de-
terminado grupo classificatório: o grupo dos deprimidos, dos psi-
cóticos, dos adictos e outros. (Oliveira, 2008, p. 116) 
Não me parece que as críticas ao DSM e aos usos que se faz 
dele possam ser entendidos fora do contexto da Reforma Psiquiátrica, 
citada explicitamente em alguns dos artigos que nomeei aqui; o próprio 
contexto da Reforma exigiu o reexame da história da doença mental. 
Ao que parece, a classificação psiquiátrica hoje em vigor permitiu-sc 
eximir do exame da dinâmica vital do doente mental porque operava 
com a lógica asilar, onde o tratamento medicamentoso parecia necessá-
rio e suficiente. Para deixar os asilos e passar aos ambulatórios, é preci-
so mais tomar essa dinâmica como eixo de tratamento: é mister dedicar 
atenção às relações sociais e familiares, olhar as trocas afetivas, levar 
em conta a circulação pública. Em suma, quando o doente ganha vida c 
que a classificação revela sua capacidade de mortificação da vida. , 
Espero que essa digressão pelo campo da psiquiatria e da dod 
ença mental tenha cumprido um propósito. Lá - na doença mental 
assim como aqui - nas violências - classificar é um ato do conhccU 
mento que empobrece nossos sentidos quando se quer, com ele, ler ii 
pretensão de recobrir o real. Se a classificação vale como um guia dr 
raciocínio, ela deve limitar-se a isso: servir de guia. Não há ativicLnl' 
classificatória capaz de acolher toda a singularidade do humano, tum 
os sofrimentos que são ímpares e particulares, seja na doença moniil 
seja nas violências. Não há atividade classificatória que permita com 
preender, sem o olhar detido em cada história e em cada situação, i 
combinações particulares de sintomas, as sutilezas da aproxim;ii, ' 
entre dores e alegrias, o lugar onde surge - para muito além da C I I I K I 
de nosográfica - o Homem. 
Família e Violência: Conceitos. Práticas e Reflexões Críticas 
87 
A F A L A D A V I O L Ê N C I A 
A rotulação - uso a expressão para referir-me ao diagnóstico 
mecanizado - abre consequências importantes para a vida dos sujei-
tos: intervenção medicamentosa ou tutelar, no caso do diagnóstico da 
doença mental, afastamento da vida familiar e comunitária no caso do 
diagnóstico das violências. Quando escreveu a História da Loucura, 
Foucault (1967) mostrou que cada quadro nosográfico fez nascer uma 
dada medida administrativa. O saber psiquiátrico sobre a loucura ca-
minhou de braços dados com a constituição do Estado e de seus dispo-
sitivos: a invenção do manicômio, que fazia a exclusão do louco me-
diante consenfimento jurídico; o manicômio judiciário, que endereça-
va o louco criminoso ao cuidado médico que atestava a necessidade da 
exclusão penal. Em Os Anormais, Foucault(2002) mostra como o 
instinto, conceituado pela Psiquiatria no início do século XIX, permi-
liu colocar sob observação e suspeita os pequenos deslizes da vida 
lotidiana, a criança que não manifestava afeto pelos pais, o impúbere 
' I : K ÍO a pequenas violências contra animais... uma série de atos toma-
-los como signos de algo que, ainda que não se desse a conhecer por 
iiiiciro, já se anunciava anormal sob a capa de normalidade. A ilusão 
i|uc então se produzia era a ilusão de que seria possível conhecer, tra-
i.ii c dominar a loucura para proteger o louco de si mesmo, mas sobre-
iiulo para proteger os outros da ameaça do louco. 
Quando volto meu olhar aos anos 60 e constato a expansão dos 
iijios de violência, da semiologia e da nosografía da violência desde en-
I lo. não posso me furtar a perguntar se não andamos por caminho similar. 
I iiinsitamos da perplexidade diante do anúncio de Kempe para uma certa 
I imiliaridade científica no trato dos eventos violentos; restritos original-
" iilc à síndrome da criança espancada, referimos hoje como violentos 
I I nu enorme e crescente gama de eventos. Nesse percurso, acompanhou-
(assim como nos quadros nosográficos da psiquiatria) o crescimento 
lispositivos legais, apHcaveis aos quadros conforme eles se definem 
• liversos campos académicos que hoje se encarregam dessa tarefa. 
' HJos, regulamentos, leis, normativas, internacionais e nacionais, fe-
• II , estaduais e municipais, dão conta da necessidade de notificar, das 
i"iiNahilidades dos profissionais que não o fazem, das medidas judi-
88 
Hebe Signorini Gonçalves 
ciais aplicáveis a uma e outra situação. A escalada normativa nos espreita 
e já não estranhamos a necessidade de novos regulamentos, cursos e pla-
nos que nos capacitem a lidar com a violência, a identificá-la onde ela se 
esconde, a falar com a vítima e seus algozes, a intervir enfim. Se ao pedi-
atra dos anos 60 soava estranha a ideia de desconfiar dos pais, a nós pare-
ce estranho o contrário. 
A produção académica sobre a violência, e os muitos disposi-
tivos legais que a ela se seguiram, engendraram uma normativa outra no 
campo. O senso comum - as mentalidades - opera hoje respondendo a 
estratégias e sentidos que, forjados na academia e organizados no nível 
legal, edificaram um modo novo de examinar a violência. Em outros 
termos: construímos o que chamo aqui de uma fala da violência. Uso a 
expressão para fazer alusão, e ao mesmo tempo admitir similaridade, 
àquilo que Caldeira (2003, p. 9) chamou de fala do crime: 
Tanto.simbólica quanto materialinente, essas estratégias operam de 
forma semelhante: elas estabelecem diferenças, impõem divisões e 
distâncias, constroem separações, multiplicam regras de evitação e 
exclusão e restringem os movimentos. Muitas dessas operações são 
justificadas em conversas do dia-a-dia cujo tema é o que chamo de 
' fala do crime, (grifos meus) 
Quando discute a constituição de uma fala do crime. Caldeira 
(2003) se indaga quais razões a fazem necessária e quais efeitos ela 
produz. Seguindo o raciocínio da autora, somos levados a perceber 
que toda uma indústria da segurança se constitui e se instala porque 
uma fala sobre o crime, reproduzida à exaustão, contribui para cons-
truir a percepção de que o crime está aí, que o Estado perdeu o contro-
le sobre ele, e que compete por isso ao cidadão adotar as medidas in-
dispensáveis para se proteger; é nesse território simbólico que flores-
cem os condomínios privados, o comércio protegido, as seguranças 
contratadas, os reclamos de controle penal acirrado. A fala do crime é, 
por isso, expressão do paradoxo que faz de seu objeto algo que é, ao 
mesmo tempo, estranhamente próximo e fortemente ameaçador; ela 
constrói o paradoxo do qual brota a insegurança. | 
O sentimento de insegurança tem sido tratado como eixo dc 
sustentação da cultura do controle. Para Garland (2008), o Estado con-
89 
temporâneo já não é capaz de prover, com exclusividade, a segurança 
aos cidadãos. As estatísticas da criminalidade mostram de fato um 
recrudescimento do crime a partir dos anos 70, desafiando qualquer 
investimento financeiro; o fenómeno é constatado em todo o mundo 
(Garland, 2008), no Brasil inclusive (Caldeira, 2003). As políticas 
públicas de segurança, por isso, precisam reinventar formas de contro-
le e, segundo a tese de Garland (2008), a mais eficaz tem sido a parce-
ria com os setores civis, convocados a partir de um sentimento de in-
segurança que é preciso, por isso, estimular. 
Levar à população a experiência de insegurança requer - diz 
Garland (2008) - a transformação de um enorme conjunto de arranjos, 
sociais e culturais, de tendências sensoriais e percepções emocionais. 
Alimentar a sensação de insegurança requer que se construam certas 
rotinas, que se disseminem certas sensibilidades, a ponto de que o 
controle daquilo que é identificado como fonte de insegurança seja, 
mais que admitido, desejado. 
O desejo do controle foi alcançado por meio de uma série de 
dispositivos de cooptação que, no conjunto, transformaram mínimos 
deslizes em indícios de perigo. Tal como o instinto na psiquiatria loca-
lizou-se nas pequenas malvadezas, lidas como signo de vizinhança 
com a loucura e por isso passíveis de intervenção precoce, hoje a cri-
minologia da vida cotidiana aponta e se encarrega de visibilizar os 
sinais que tomam a intervenção necessária e desejável. Que o diga o 
conjunto de pequenos delitos nomeados pela política de tolerância 
zero: jogar lixo na rua, praticar pequenos furtos não são mais nem 
apenas pequenos delitos - são os primeiros passos de uma carreira 
criminal cujo curso é alegadamente inquestionável. Se o cidadão de 
outrora temia a criança que maltratava animais porque ela encerrava 
uma loucura potencial, o cidadão contemporâneo teme o outro que 
lança seu lixo ou furta o sabonete, pois este é o homicida em poten-
cial. Importa que - seja ao lançar o louco ao manicômio seja ao desti-
nar o autor de furo à prisão - renunciamos à negociação de conflitos 
por meio das regras da cultura ou da vida coletiva. A "melhor solu-
ção" é endereçada, por essa lógica, ao tribunal (criminal, da infância 
ou da família, dependendo da matéria de que se trata). Endereçamos 
lios tribunais a solução dos nossos enigmas (e das nossas inseguranças 
iigora individualizadas), e com isso esvaziamos a vida coletiva. 
Mas Garland (2008) diz algo mais: diz que, que para alimen-
tar os sentimentos de insegurança, é preciso apontar fontes cada vez 
90 Hebe Signorini Gonçalves 
mais próximas. Daí passamos aos inúmeros procedimentos judiciais: 
dos edifícios seguros às leis de notificação comunitária, e nos Estados 
Unidos ao registro de pedófilos: leis sobre notificação comunitária e 
registros de pedófilos são exemplos proeminentes da nova disposição 
de revelar informações que um dia foram confidenciais (Garland, 
2008, p. 384)^. Assim é que passamos a crer que certos "criminosos" 
deixam de ter direito à cidadania porque "perigosos", membros de 
uma subclasse de anormais. 
SOBRE DISPOSITIVOS LEGAIS NO BRASIL 
No Brasil, assistimos igualmente a uma escalada dos dispositi-
vos jurídicos que falam de eventos cada vez mais próximos de nossa 
intimidade. A violência - inclusive a violência contra a criança, de que 
falamos aqui - tem lugar certo nesse cenário. A legislação nacional não 
exige o registro de pedófilos, questão tão problemática nos Estados 
Unidos. Mas desde 1990, quando o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te nomeou os maus-tratos contra a criança, vemos multiplicarem-se leis, 
regulamentos, normativas e projetos de lei sobre o tema: contamos com 
a Normativa 1.354/1999 da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de 
Janeiro, que obriga à notificação obrigatória de abuso infantil; e a Nor-
mativa737/2001, do Ministério da Saúde, tomando obrigatória para 
todos os serviços de saúde do país a notificação de casos confirmados 
ou suspeitos de abuso de crianças e adolescentes (noto que a obrigato-
riedade da notificação já está posta no artigo 13 do Estatuto da Criança 
e do Adolescente); os Planos de Enfi-entamento à Violência Sexual con-
tam com versões federal, além das estaduais e municipais em muitas 
unidades federativas, postos em execução por muitas instâncias admi-
nistrativas criadas com essa expressa finalidade. Mais recentemente, 
numerosos projetos de lei tratam de questões correlatas à violência con-
Lembro que a legislação de alguns estados americanos exige a divulgação pu-
blica da identidade e residência de pedófilos que já cumpriram pena e, mesmo 
quites com o sistema judicial, têm seus dados pessoais publicizados. A esse cur-
to-circuito da confidencialidade é que o autor se refere. 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Rettexões Criticas 91 
tra a criança, desde a regulação do depoimento sem dano como modo 
de assegurar a correspondência entre a fala da criança e os eventos por 
ela vivenciados, produzindo provas processuais, até o projeto que ficou 
conhecido como a Lei da Palmada (Projeto de Lei 7672/2010), passan-
do por todos a legislação, algumas já aprovadas e em vigor, que am-
pliam as penas quando os delitos previstos no Código Penal têm como 
vítimas crianças e adolescentes. 
Não quero me deter nos detalhes desses inúmeros dispositi-
vos; essa análise escapa ao escopo do presente texto. A intenção do 
argumento é apenas colocar em relevo a profusão em si mesma e des-
tacar que muitos desses dispositivos terminam por parecer inócuos: 
como lembrei acima, as normativas acerca da notificação repisam 
aquilo que já é dito no Estatuto, instmmento que lhes é superior; do 
mesmo modo, a Lei da Palmada dita regras e estabelece medidas 
igualmente descritas no Estatuto*'. 
Sobre o leitor das normativas que regulam a notificação, bem 
como sobre o leitor da Lei da Palmada, pode, no entanto, produzir-se 
um efeito não tão inócuo. Lembro que a violência é anunciada pelo 
Estatuto no artigo 13 ,^ inserido no Capítulo que trata do direito à vida 
e à saúde. A ação proposta se sustenta, portanto, na leitura do conjunto 
lie direitos da criança e do adolescente, paradigma primeiro do Estatu-
to: a lei reconhece criança e adolescentes como sujeitos de (um con-
junto de) direitos e nomeia aqueles cuja ação visa, sobretudo e princi-
palmente, a proteção de cada um desses direitos. No corpo do Estatu-
i i ) , o enfrentamento da violência não está isolado de tudo quanto im-
|)orta à criança. O que as normativas e a Lei da Palmada fazem é isolar 
o tema da violência, desterritorializar a questão e o direito, nesse ras-
i i o produzindo no leitor dedicado apenas à legislação menor uma falsa 
impressão de suficiência. Ou ocorre a alguém que a criança será titular 
ilc direitos se e apenas liberta dos abusos? 
Não há aqui, portanto, fato inócuo. Os sucessivos atos norma-
IIvos e projetos de lei, ao partir direitos, dão relevo e destaque a um 
Para uma análise mais detalhada da notificação, ver Gonçalves e Ferreira -
I ara detalhes acerca da Lei da Palmada, ver Gonçalves, 2 0 I I . ' ' 
Lei 8.069/90 art. 13. Os casos de suspeita ou confírmaião de maus-tratos contra 
criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tute-
lar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais 
92 Hebe Signorini Gonçalves 
deles. Com isso, não só distorcem o conjunto como enaltecem certos 
direitos, escalonando aquilo que não é escalonável. Imprimem visibi-
lidade à violência, contribuindo assim para fazer circular sua fala. 
À GUISA D E CONCLUSÃO 
Consciente de que transito em território minado, quero desde 
já repetir que não propugno a violência; antes a tomo como tema que, 
justamente por haver conquistado relevância nas sociedades contem-
porâneas, merece que mantenhamos sob observação o caminho que a 
colocou nesse lugar. Neste sentido, e aqui mais uma vez cito FoucauH 
(2010), penso que nunca devemos estar absolutamente confortáveis 
com nossas próprias certezas. 
Neste sentido, tratar das violências, dos modos de construção 
de sua percepção e de seus rebatimentos legais, é falar de uma área de 
produção de sensibilidades onde nenhuma das vertentes pode ser dei-
xada a descoberto. Como diz Segato (2006, p. 219), 
a lei não é somente produtiva no trabalho dos juízes ao emitir sen-
tenças. É importante também perceber a importância pedagógica 
do discurso legal que, por sua simples circulação, é capaz de inau-
' gurar novos estilos de moralidade e desenvolver sensibilidades éti-
cas desconhecidas. 
Melhor que categorizar as violências seria decifrar onde e como 
ela se faz singular. Melhor que promover a partição das leis seria com-
preender o sentido, mais complexo e, por isso, mais pertinente, de cada 
enunciado legal à luz da totalidade em que ele está inserido. A partição 
ad infinitum das categorias e dos dispositivos legais produz uma simplifi-
cação excessiva, posta a serviço do discurso que cada vez mais facilmen-
te (e sob o risco de ser simplório) se refere à violência, fazendo-a circular, 
tomando-a presente, capturando-a na lógica do controle. 
Família e Violência: Conceitos, Práticas e Reflexões Críticas 93 
A proposta deste texto foi trazer à tona uma perspectiva se-
gundo a qual, aquilo que se denomina como bem-estar, ideia que subjaz 
ao anúncio de uma vida sem violência, não pode estar calçada na defi-
nição de violência que se produz hegemónica à força da repetição in-
cessante. Assim construída, a definição de violência encerra nela mes-
ma um ato político sob risco de converter-se em violência simbólica. 
I 
... a questão correta sobre os horrores cometidos [...] não é, por-
tanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível co-
meter delitos tão atrozes para com os seres humanos; mais hones-
to e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedi-
mentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que se-
res humanos fossem tão integramente privados de seus direitos e 
de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles 
qualquer ato não mais se apresentava como delito (Agamben, 
2004, p. 178) 
(,)IJESTÕES PARA DISCUSSÃO 
1. O texto informa-nos como surgiu a classificação das vio-
lências. Que impacto o esforço classificatório trouxe para 
o enfrentamento do fenómeno? 
2. De que forma a violência poderia ser abordada uma vez 
sendo alocada como um fenómeno do campo da saúde 
S pública? - '^ . 
3. Ao lançar mão de estudos realizados em culturas que 
compartilham códigos e valores diferentes dos da cultura 
ocidental, a autora chama a atenção para o fato de que, ao 
classificar uma manifestação subjetiva como sintoma, o 
ato de classificar abandona a neutralidade, afasta-se de 
qualquer alegado rigor científico e adentra o terreno do 
político. Realize uma apreciação crítica desses aspectos.

Continue navegando