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S aú d e em D eb at e v. 32 n .7 8/ 79 /8 0 ja n ./d ez . 2 0 08 C e b e s ISSN 0103-1104 Centro Brasileiro de estudos de saúde (CeBes) DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009) NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009) Diretoria Executiva Presidente Sonia Fleury (RJ) 1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ) 2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF) 3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ) 4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP) 1O Suplente Francisco Braga (RJ) 2O Suplente Lenaura Lobato (RJ) Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP) Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ) CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL Áquilas Mendes (SP) José da Rocha Carvalheiro (RJ) Assis Mafort (DF) Sonia Ferraz (DF) Maura Pacheco (RJ) Gilson Cantarino (RJ) Cornelis Van Stralen (MG) CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ) Odorico M. Andrade (CE) Lucio Botelho (SC) Antonio Ivo de Carvalho (RJ) Roberto Medronho (RJ) José Francisco da Silva (MG) Luiz Galvão (WDC) André Médici (DF) Jandira Feghali (RJ) José Moroni (DF) Ary Carvalho de Miranda (RJ) Julio Muller (MT) Silvio Fernandes da Silva (PR) Sebastião Loureiro (BA) SECRETARIA / SECRETARIES Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos saúde em deBate A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR Paulo Amarante (RJ) CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL Jairnilson Paim (BA) Gastão Wagner Campos (SP) Ligia Giovanella (RJ) Edmundo Gallo (DF) Francisco Campos (MG) Paulo Buss (RJ) Eleonor Conill (SC) Emerson Merhy (SP) Naomar de Almeida Filho (BA) José Carlos Braga (SP) EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR Marília Correia INDExAÇÃO / INDExATION Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: cebes@cebes.org.br revista@saudeemdebate.org.br Apoio REVISÃO DE TExTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Zeppelini Editorial IMPRESSÃO E ACABAMENTO Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM 2.000 exemplares Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008. Capa em papel cartão supremo 250 gr Miolo em papel kromma silk 80 gr PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING Zeppelini Editorial PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas NUMBER OF COPIES 2,000 copies This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008. Cover in premium card 250 gr Core in kromma silk 80 gr Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008. v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104 1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES CDD 362.1 Rio de Janeiro v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008 ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ISSN 0103-1104 EdItorIal / EDITORIAL aPrESENtaÇÃo / PRESENTATION artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES Ensaio reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism Alice Hirdes REvisão Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history João Leite Ferreira Neto Ensaio a Estratégia atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health Silvio Yasui, Abilio Costa-Rosa Ensaio algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion Walter Ferreira de Oliveira Ensaio Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate Richard Couto, Sonia Alberti REvisão Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature Tatiana Ramminger Ensaio a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte contemporânea Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino Ensaio Saúde Mental e cultura: que cultura? Mental Health and culture: what culture? Alexandre Simões Ribeiro Ensaio a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia Experimental Mu...dança Myrna Coelho PEsquisa a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva The territorial action of the centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature Renata Martins Quintas, Paulo Amarante RElato dE ExPERiência grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms Milena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann PEsquisa Panorama do tratamento dos usuários de drogas no rio de Janeiro An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro Magda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra PEsquisa Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health Strategy Ionara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares Ensaio Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric net Mariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos PEsquisa a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context Katita Jardim, Magda Dimenstein RElato dE ExPERiência a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro The construction of a territorial base service: the experience of the centro Psiquiátrico Rio de Janeiro Alexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho RElato dE ExPERiência articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte Linking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas geraisSerafim Barbosa Santos-Filho doCUMENtoS HIStÓrICoS / HISTORIcAL DOcUMENTS Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental Comissão de Saúde Mental dos Cebes artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES Ensaio a crise de dominação no sistema público de saúde The domination crisis in the Brazilian public health system Arlene Laurenti Monterrosa Ayala Ensaio François dagognet, por uma nova filosofia da doença François Dagognet, for a new philosophy of disease Sabira de Alencar Czermak artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE Ensaio Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado colombian health model: exportable, depending on the interest of the market Mauricio Torres Tovar 9 18 27 38 49 60 72 83 92 99 108 121 133 143 150 161 172 182 193 200 207 S U M Á R I O • SUMMARY Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008 EdItorIal 3 ambiciosa e revolucionária, a declaração de alma-ata completou 30 anos sem que seus objetivos fossem totalmente concretizados. o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (cEbEs) dava seus primeiros passos quando, em setembro de 1978, a organização Mundial da Saúde (oMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (unicEf) reuniram no Cazaquistão os represen- tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000. a promessa era desenvolver ações urgentes baseadas na participação social e na promoção da atenção básica à saúde. o apelo maior era em relação à necessidade de uma ordem econômica mundial mais justa e mais solidária. a essência da alma-ata foi perdida, pois os resul- tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo, assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na expectativa de vida entre as nações mais pobres e as mais ricas. os gastos públicos com a saúde nesses paí- ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por pessoa e por ano. Muitos governos deram respostas inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido incapazes de antecipar os problemas e impotentes na busca de soluções. Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS), 30 anos de alma-ata, 60 anos da de- claração Universal dos direitos Humanos – o Brasil tem bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na tentativa de melhoria da saúde de seu povo. o relatório anual da oMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da atenção primária à saúde em todos os países e destacou o Brasil como exemplo. os avanços na construção da política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta Saúde em Debate, representam bem essa conquista. Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con- sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco são uniformes as abordagens em sua implementação. Vista por alguns gestores como programa seletivo que oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros, meramente como um dos níveis de atenção à saúde, ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra- lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de entrada do sistema, a atenção primária tem um papel preponderante no processo de implementação do novo modelo assistencial do SUS, desde que superadas a superposição de redes de assistência, a falta de unifor- midade na execução do Programa Saúde da Família (PSF), as desigualdades no acesso e na utilização dos serviços, a pouca valorização e formação inadequada dos profissionais, a focalização e seletividade de ofertas do pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico as assistências Médicas ambulatoriais (aMa) na cidade de São Paulo e as Unidades de Pronto-atendimento (UPa) no município do rio de Janeiro, alimentadas, na verdade, pelo marketing eleitoral. desde que proposta a ‘re-fundação’ do cEbEs, tem-se voltado muito a atenção para a necessidade de retomada do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem ao projeto da reforma Sanitária brasileira. Não se trata de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reco- nhecer o seu grande êxito na construção do SUS. da mesma forma, não se trata de reinventar o passado, mas de manter o clima dos movimentos que se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos, capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên- cias, de reorientar os compromissos institucionais e de radicalizar a democracia. a dIrEtorIa NaCIoNal Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008 EDITORIAL4 ambitious and revolutionary, the alma-ata decla-ration has completed 30 years, without the total fulfillment of its objectives. the Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (cEbEs) was taking its first steps when, in September, 1978, the World Health organization (WHo) and the United Nations Children’s Fund (uni- cEf) brought together in Kazakhstan 137 representatives of countries that would reach the goal of providing access to a deserving health for all, until 2000, at the latest. the promise was to develop urgent actions based on social participation and on the promotion of basic atten- tion to health. the greatest plea was related to the need for a fairer and more solidary economic world order. the essence of the alma-ata was lost, because the sanitary results have never been so unequal in the world, as well as the access to health, which has never been so precarious and unfair. Nowadays, the difference of life expectation rates between the poorest and the richest nations is of more than 40 years. Public expenses with health in these countries vary, respectively, from 20 to 6 thousand dollars per person and per year. Many go- vernments have given inadequate answers regarding this sector, and have also been incapable of anticipating the problems and impotent in the search for solutions. on an ephemerides year – 20 years of National Health System (SUS), 30 years of alma-ata, 60 years of the Universal declaration of Human rights – Brazil has good reasons to be proud of the work accomplished in the attempt to improve people’s health. the World Health report 2008 has once again recommended the adoption of primary attention to health in all countries, and poin- ted Brazil as an example. the advances in constructing a Mental Health national policy, one of the subjects of this Saúde em Debate, clearly represent this achievement. Even in Brazil, with so many advances, the placing of primary attention to health is not consensual, and nei- ther are uniform the approaches in its implementation. Considered by many managers as a selective program that offers a restricted “basket” of services and, by others, as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t been made possible in its decentralized concept, more extensive and complete. as a strategic front door of the system, primary attention plays a preponderant role in the process of implementing a new SUS assistance model, as long as some issues can be overcome, such as the superposition of assistance networks, the lack of uniformity to execute the Family Health Program (PSF), the inequalities to access and to use the services, the little importance given to professionals and their inadequate qualification, the focalization and selectivity of minimum emergency room offers – in this topic are included the ambulatory Medical Care (aMa), in São Paulo, and the Emergency rooms (UPa), in rio de Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing. Since theproposal of re-founding cEbEs, there has been a lot of attention into the need to retake the critical spirit, the preposition debate that originated the Bra- zilian Sanitary reform project. It is not about insisting on the resurrection of the reform itself, but recognizing its great success in constructing SUS. also, it is not about reinventing the past, but keeping the atmosphere of the movements that were organized around collective ideas and projects, which were able to exercise the criticism, recognize deficien- cies, reorient institutional commitments and radicalize democracy. THE NATIONAL DIREcTORATE Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008 aPrESENtaÇÃo 5 Esta revista surge num momento muito especial, afinal, comemoram-se os 30 anos da reforma Psi- quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um hospital psiquiátrico. o objetivo desta imagem provo- cativa é demarcar a distância histórica, ética e política entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual de participação dos usuários na construção da política, serviços e estratégias em Saúde Mental. No início deste ano, em meio às comemorações dos 30 anos de reforma, foi realizado, no rio de Janeiro, o II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas, militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi- tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e construindo um novo cenário para a Saúde Mental no Brasil e em várias partes do mundo. Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos este número especialmente dedicado ao tema da Saúde Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental, organizado pela recém-criada associação Brasileira de Saúde Mental (abRasmE). Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a importante contribuição que o campo da Saúde Mental tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan- do a relação instituição-usuário e de institucionalização, destacando a importância do trabalho e do envolvimento da família, bem como a importância do trabalho no território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri- buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental não será consultada apenas por profissionais da área, mas de toda a saúde pública. a revista é iniciada com uma série de artigos de natureza conceitual. aqui se incluem os artigos de alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica e da reabilitação psicossocial a partir do materialis- mo dialético, de João leite Ferreira Neto, com uma análise história de três momentos da psicologia em Belo Horizonte, de Silvio Yasui e abilio Costa-rosa, que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo modelo de atenção psicossocial, de Walter oliveira que aborda as bases conceituais da Saúde Mental e sua relação com a formação dos profissionais no contexto da promoção da saúde. o artigo de richard Couto e Sonia alberti apresenta um histórico sobre o conceito de reforma Psiquiátrica e a tensão entre clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série, uma importante revisão de estudos brasileiros sobre Saúde Mental do trabalhador, de autoria de tatiana ramminger. a intervenção no campo da cultura tem assumido um papel importante no processo da reforma Psiqui- átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental. o texto de ricardo aquino trata dos fundamentos e princípios da Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário de arte Contemporânea. alexandre ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica a partir das experiências vivenciadas na companhia Experimental Mu...dança. os Centros de atenção Psicossocial (caPs), dispo- sitivos estratégicos da política pública de Saúde Mental Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008 aPrESENtaÇÃo6 brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de renata Quintas e Paulo amarante que discorrem sobre as características inovadoras e substitutivas de tais dispo- sitivos. o artigo de autoria de Milena leal Pacheco e luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em grupo em um caPs especializado em dependência quí- mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento dos usuários de drogas no rio de Janeiro no texto de Magda Vaissman et al. outro tema importante diz respeito às relações e possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde da Família que, de formas distintas, está presente nas abordagens dos artigos de Ionara rabelo e rosana Carneiro tavares, através dos resultados de uma in- tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de ansiolíticos, e de Mariana dorsa Figueiredo e rosana onocko Campos, que traz algumas observações acerca do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica à saúde. a atenção aos usuários em crise é um dos aspectos mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da reforma Psiquiátrica. três artigos são dedicados a esse tema: o de Katita Jardim e Magda dimenstein, que traz um análise das práticas do Serviço de atendimento Mó- vel de Urgência (samu) em aracaju e suas articulações com a rede de atenção psicossocial; o artigo de alexandre Keusen e andréa da luz Carvalho relata a trajetória de um centro de atenção em Saúde Mental que atende à crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos para os gestores. Na seção de documentos Históricos, republicamos uma das primeiras manifestações políticas do processo de reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro- dução crítica em Saúde Mental no país. trata-se de um documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental do cEbEs, intitulado condições de assistência ao doente mental que, trazendo uma análise bastante precisa das características de desassistência e violência institucional do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos de- putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio, o cEbEs apresentou à sociedade brasileira a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico texto A questão democrática na área da saúde. a capa da presente edição traz uma das ilustrações desse texto. temos uma pauta bastante ampla e variada, que caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão do campo da Saúde Mental. Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de arlene laurenti ayala com uma instigante análise sobre a crise de dominação ou controle das instituições de saúde por parte dos trabalhadores de saúde e da população. o texto de Sabira de alencar traz as reflexões do filósofo, médico e epistemólogo François dagognet, o precursor, a seu modo, da tradição de seu mestre georges Cangui- lhem. Na seção internacional, Maurício torres analisa em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao financiamento e funcionamento do modelo de saúde colombiano. Boa leitura! Paulo amaRantE EditoR ciEntífico Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008 PRESENTATION 7 this magazine appears at a very special moment, after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric reform in Brazil is commemorated. to celebrate this date, we have selected a strange cover: a picture of prison cellbars of a psychiatric hospital. the purpose of this provocative image is to delimit the historical distance, ethics and politics between the initial moment, 1978 and 1979, and the current scenery of users’ participation in the construction of Mental Health politics, services and strategies. In the beginning of this year, during celebrations for the thirty years of the reform, the 2nd International Forum about Collective Health, Mental Health and Human rights took place in rio de Janeiro. More than 3 thousand people, militants in different fields of health and human rights, have participated in this Forum, debating and constructing a new scenery for Mental Health in Brazil and around the world. to end the year with a cherry on top, we have released this issue, specially dedicated to the theme of Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental Health, organized by the recently created associação Brasileira de Saúde Mental (abRasmE). there is consensus in the collective health area about the important contribution brought by the Mental Health field for health in general, rendering problematic to the relation institution-user and institu- tionalization, accentuating the importance of health and family involvement, as well as the importance of field work. anyway, there many recognized contributions. We know that a magazine about Mental Health will not be consulted only by professionals of the field, but by the whole public health. the magazine starts with a series of articles of conceptual nature. Here are included articles by alice Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho- social rehabilitation from dialectic materialism; by João leite Ferreita Neto, with historical analysis of three moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio Yasui and abilio Costa-rosa, who discourse about the strategies and challenges of the new model of psychoso- cial attention; by Walter oliveira, who approaches the conceptual basis of Mental Health and its relation to the graduation of professionals in the context of pro- moting health. the article by richard Couto and Sonia alberti presents the history of the Psychiatric reform concept and the tension between clinic and psychosocial attention and, to end the series, an important review of Brazilian studies about Mental Health of workers, by tatiana ramminger. the intervention in the culture field has been assuming an important role in the process of the Bra- zilian Psychiatric reform and, because of that, another block of articles is dedicated to the relation between culture and Mental Health. a text by ricardo aquino about the fundamentals and principles of the Escola livre de artes Visuais from the Museu Bispo do ro- sário de arte Contemporânea is presented. alexandre ribeiro approaches the articulations between Mental Health and culture and Myrna Coelho comments on the sociocultural dimension of the Psychiatric reform from experiences seen in the dancing group companhia Experimental Mu…dança. the Psychosocial Care Centers (the so called caPs in Brazil), strategic devices from the public policy of Brazilian Mental Health, are objects of research in the Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008 PRESENTATION8 article by renata Quintas and Paulo amarante, who discourse about the innovative and substitutive charac- teristics of these institutions. the article by Milena leal Pacheco and luiz Zielgman brings subjects to reflect about group therapy at a caPs that is specialized in chemical dependence; we also contemplate an analysis of drug users` treatment in rio de Janeiro, in the text by Magda Vaissman et al. other important theme argues about the relations and possibilities between the field of Mental Health and Family Health that, in distinct ways, is present in the analysis of articles by Ionara rabelo and rosana Carnei- ro tavares, through results of a psychosocial intervention in women who were on anxiolytics, and by Mariana dorsa Figueiredo and rosana onocko Campos, that brings some observations about matricial support to Mental Health in the primary health care. the attention to users in crisis is one of the most serious aspects and jeopardizes the whole process of the Psychiatric reform. three articles are dedicated to this subject: the one by Katita Jardim and Magda dimens- tein, which brings an analysis of practices of the Mobile Urgency Service (the so called samu in Brazil) in aracaju and its articulations with the net of psychosocial atten- tion; the article by alexandre Keusen and andréa da luz Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care Center that attends to the crisis and is based on the logic of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the rich experience in planning and managing the net of services of health and Mental Health in Belo Horizonte, pointing out important directions for managers. In the section of Historical documents, we have republished one of the first political manifestations on the process of Psychiatric reform in Brazil, a mark of critical production on Mental Health in the country. It is a document developed by the Mental Health Com- mittee of cEbEs, entitled condições de assistência ao doente mental, that, by bringing a very precise analysis of the characteristics of unassistance and institutional violence of the early psychiatric model, was presented at the 1st Symposium of Health Policies in the deputy’s in october, 1979. In this symposium, cEbEs presented to the Brazilian society the proposal of the Unified National Health System (the so called SUS in Brazil) from the historical text A questão democrática na área da saúde. the cover of the present edition has one of the illustrations of this text. the subjects are very broad and varied, which cha- racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension of the Mental Health field. In the general themes section, we have published the articles by arlene laurenti ayala with a provoking analysis about the domination crisis or the control of the health institutions by the health workers and the popu- lation. the text by Sabira de alencar brings reflections of the philosopher, doctor and epistemologist François dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition of his master georges Canguilhem. In the international section, Maurício torres analyzes the aspects related to the structure, financing and functioning of the Colom- bian health model. Enjoy your reading! Paulo amaRantE sciEntific EditoR Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 9 reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação psicossocial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Desinstitucionalização; Marxismo. ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodologicaltheoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical support to the analysis of the movements that have taken place in the field of mental health as well as in psychosocial rehabilitation. KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization; Marxism. alice Hirdes 1 1 Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); docente de Saúde Mental da Universidade luterana do Brasil (UlbRa). alicehirdes@gmail.com Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 10 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético I N T R O D U ç à O Este artigo tem como objetivo realizar uma re- flexão teórica sobre o tema da reforma Psiquiátrica e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo dialético. recorreu-se a autores como lukács (1979), Konder (1981), Kosik (1995) e lefebvre (1991), a fim de se resgatarem os princípios e leis da dialética que sustentam uma interpretação dos fenômenos com base materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno, fixo, absoluto. toda vida humana é social e está sujeita a transformações, ou seja, está historicamente condi- cionada. o sujeito humano é essencialmente ativo e interfere na realidade. Para a história sociológica (ou sociologia histórica), os seres humanos não são apenas objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao pro- cesso investigatório. UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO MATERIALISMO DIALÉTICO a lógica dialética, conforme Minayo (1998), “introduz na compreensão da realidade o princípio do conflito e da contradição como algo permanente que explica a transformação” (p. 68). outra tese fundamental da dialética é “o caráter total da exis- tência humana e da ligação indissolúvel entre história dos fatos econômicos e sociais e história das idéias” (p. 69-70). a partir do conceito de totalidade, que busca reter a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre o processo de pesquisa. o princípio metodológico da totalidade significa: compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre as várias instâncias da realidade e o processo de constituição da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e efeitos de sua manifestação. (minayo, 1988, p. 70). ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik (1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade e do conhecimento que se tem dela como realidade. É a partir do entendimento da realidade como concretude possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem concepções da realidade. dessas concepções decorrem conclusões metodológicas que se convertem em princípios epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou de práticas relativas à organização da vida humana e da situação social. Kosik enfatiza que a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44). Pontua, também, que totalidade não significa conhe- cer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. o conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig- nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião de determinados fatos não constitui ainda a totalidade. Se compreendidos como partes estruturais de um todo dialético, os fatos são conhecimentos da realidade. Konder (1981) também ressalta a característica totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa teoria decompõe o todo em partes para depois recompô- lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 11HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de- senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis- ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última, o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e práticas são executados de forma isolada, estanque, cada um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas entre si, será outra. Este autor chama atenção para o fato de que a apro- ximação da realidade não é a realidade, e que a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem dela. outra noção diz respeito à visão de conjunto da realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali- dade não é estática, mas dinâmica e em está constante transformação; não se pode pretender o esgotamento da realidade de determinado contexto. ou seja, nunca a realidade alcança uma forma definitiva, acabada. a dialética, enquanto conceito grego da arte do diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus familiares, assim como pela interlocução estabelecida entre profissionais de equipes interdisciplinares. a dia- lética enquanto conceito moderno do modo de pensar as contradições da realidade e modo de compreender a realidade em constante transformação nos remete à busca constante de novas formas de abordagem da complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por formas mais completas nas quais, através da construção de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí- quico reencontre e reescreva a sua história. Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen- sar as contradições da realidade, a história humana e a transformação da sociedade, nos leva a uma permanente inquietação, porque não se satisfaz com a aparência das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um constante caminho traçado do concreto ao abstrato e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum, deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos fenômenos do todo. a complexidade da dialética se dá pela busca constante da superação, pela não-satisfação com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas de apreensão da realidade e a explicitação que as contra- dições da realidade e dos fenômenos encerram. de acordo com lukács: o conhecimento, que está em condições de apreender dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é vá- lido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. (1979, p. 237). Entendo que o conhecimento deverá ser passível de ser traduzido em uma prática; prática essa transforma- dora e que, se entendida a partir do conceito marxista de práxis – união da prática com a teoria – pode levar à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o estudode outras formas de tratamento e recuperação de portadores de transtornos psíquicos emerge como uma força que se empenha na busca de soluções mais completas e complexas, visualizando a totalidade do ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação das idéias acerca da realidade e a transformação dessa realidade devem caminhar juntas. de acordo com Kosik (1995) o homem não está emparedado na subjetividade, mas tem com a sua existência a capacidade de conhecer as coisas como elas realmente são. E este conhecimento se dá através da práxis. a dialética, para o autor, trata da “totalidade do mundo revelada pelo homem na história e o homem que existe na totalidade do mundo” (p. 248). o princípio metodológico da investigação dialética da realidade social é, para o autor anteriormente referido, Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 12 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa que cada fenômeno pode ser compreendido como um momento do todo. ressalta-se que um fenômeno social é um fato histórico que desempenha dupla função: definir a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con- quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que os fatos isolados são momentos artificiosamente separa- dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude quando inseridos no todo correspondente. assim como o todo, se os momentos não forem separados tornam-se um todo vazio e abstrato (KosiK, 1995). Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento hu- mano através da qual pode ser compreendida a atividade criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de supe- ração dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que significa suspender. o filósofo emprega três diferentes sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular, cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um plano superior. a su- peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea da negação de uma determinada realidade, a conservação do essencial que existe na realidade negada e a elevação dela a um nível superior (KondER, 1981). abstraindo da concepção dialética a questão negação-superação para o referencial de reabilitação psicossocial, trago a negação da realidade assistencial dos portadores de transtornos mentais centrado no modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate e a centralização do foco nas habilidades e a busca do trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção social, cidadania e qualidade de vida. ou seja, nega-se a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza- se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente busca-se melhorar a vida do ser humano portador de transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação psicossocial. aos novos serviços deverá corresponder uma clínica renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos projetos terapêuticos que contemplem as necessidades psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos construídos a partir dos profissionais; devem ser cons- truídos coletivamente com os maiores interessados: os usuários. PRINCIPAIS LEIS Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen- to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago, idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro de uma perspectiva materialista. as três leis da dialética formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei da unidade e luta dos contrários e lei da negação da negação. alguns autores contemporâneos como lefebvre e Konder entendem que as leis da dialética não se deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com precaução. lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis do método dialético deverão ser universais e concre- tas. Para este autor o método representa o universal concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo, leis do real e do pensamento. deverão ser concretas para atingir toda a realidade, mas não podem subs- Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 13HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético tituir a investigação e o contato com o conteúdo. através da investigação das realidades particulares, da experiência e do contato com o conteúdo pode-se chegar à essência, ao conceito e às relações das leis particulares. o autor ressalta: o método é alternadamente a expressão das leis uni- versais e o quadro de aplicação delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237). as grandes leis do método dialético para lefebvre são: lei da interação universal (da conexão, da media- ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento universal; lei da unidade dos contrários; transformação da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de- senvolvimento em espiral (da superação). a lei da interação universal prevê que nada é isolado. o isolamento dos fatos e fenômenos significa uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo. a pesquisa dialética considera cada fenômeno no conjunto da inter-relação com os demais fenômenos e, também, o conjunto da realidade na qual ele é fenômeno. Essa lei estabelece uma conexão importante dos processos de institucionalização/ desinstitucionalização e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten- dimento anterior sobre a conformação do instituciona- lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em sua totalidade. a reabilitação psicossocial nasceu de um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos 1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos psiquiátricos (saRacEno, 1999). dessa forma, a rea- bilitação psicossocial não pode ser tratada como um fenômeno isolado. E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento universal, que reintegra o movimento interno dos fatos e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no devir e vir-a-ser universal. a pesquisa dialética considera cada fenômeno no conjunto de suas relações com os demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre- endemos a reintegração dos fenômenos – institucionali- zação/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em seu movimento próprio. através do movimento destes fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a conexão entre eles. a lei da unidade (interpretação) dos contrários nos fornece a idéia de que a contradição dialética é uma inclusão concreta dos contraditórios um no outro e, simultaneamente, uma exclusão ativa. diferentemente da lógica formal que conserva os dois contraditóriosà margem um do outro, que estabelece uma relação de exclusão. a contradição dialética se situa no universal concreto, enquanto a contradição formal permanece na generalidade abstrata. O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (lEfEbvRE, 1991, p. 238). Nessa lei, situo a institucionalização e a desins- titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente contraditórias), como dois lados opostos um ao outro, mas com uma unidade em comum: o foco na abordagem da doença mental. Conforme o contexto, prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou a desinstitucionalização. as idéias contidas em um e em outro modelo entram em choque na realidade concreta através das práticas executadas. a realidade da desinstitucionalização não pode ser compreendida sem o prévio entendimento da institucionalização, assim como a conexão estabelecida com a reabilitação psicossocial. Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 14 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético as modificações quantitativas, lentas e graduais desembocam em uma modificação qualitativa que apre- senta características bruscas, tumultuosas, expressam a crise e a metamorfose através da intensificação de todas as contradições. É a transformação da quantidade em qualidade, também chamada lei dos saltos. o salto dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a descontinuidade. ou seja, o movimento que continua e o aparecimento do novo. trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o processo de desinstitucionalização identificadas em alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. as transformações políticas, a redemocratização no país, a Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e o Movimento pela reforma Sanitária desembocaram em um movimento pela reforma Psiquiátrica no Bra- sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de- núncias expostas à opinião pública e o surgimento de novas experiências em Saúde Mental, com características desinstitucionalizantes. observa-se como característica do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda não superados; e a descontinuidade, que compreende o aparecimento de novos serviços respaldados pelas iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental. Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas não mudarem sempre no mesmo ritmo. transpondo para a questão da reforma Psiquiátrica, foi possível observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser- viços, assim como períodos em que houve uma desace- leração do processo. Historicamente, podemos situar as décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica no país. Em 1987, ocorreu a 1 a Conferência Nacional de Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para a reestruturação da atenção Psiquiátrica, em Caracas, que resultou na Declaração de caracas. Finalmente, em 1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere às conferências e à legislação (porque os serviços conti- nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril de 2001, da lei de reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi estabelecido um novo fórum de discussões por meio da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental. a lei do desenvolvimento em espiral defende que há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida, e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade sempre renovada entre o individual e o universal, que submete esse individual às leis universais. É na sociedade e no pensamento que se revela o movimento em espiral: o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá- lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição dialética da negação da negação. APLICAçÃO DO MATERIALISMO DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E REABILITAçÃO Considero esta lei fundamental para a compreensão das mudanças e movimentos que o processo de reforma Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife- renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo- delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico, nos sinais e sintomas, nos déficits. através da modificação da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas, permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico, Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 15HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o usuário/paciente e o profissional desses limites. ocorre aí um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já que o tratamento continua a ser realizado, mas associado com técnicas de reabilitação psicossocial. a partir da união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais completas. a lei da negação da negação promove refina- mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia para se promover a superação dialética. dentro de uma perspectiva mais ampla, de to- talidade, considera-se de fundamental importância o diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi- cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê margem a possíveis redimensionamentos. ressalta-se a necessidade de leitura do contexto dentro de uma mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar as forças e os aspectos sadios constitui uma transição importante no processo de tratamento e reabilitação, assim como a noção de indissociabilidade de ambos. lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas constituem uma análise do movimento e no movimento real estão implicadas a continuidade e a descontinui- dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos do movimento. as leis dialéticas pressupõem uma uni- dade fundamental, que é encontrada no movimento, no devir universal. o que ocorre, segundo o autor, é a ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de estudo realizado. a partir desta constatação, utilizo como referência para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi- mento em espiral, representado pela negação – superação dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des- peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas em curso para que aos novos serviços correspondam as balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial da reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-seque os projetos de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe- cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais da área. dessa forma, é possível visualizar a existência de princípios orientadores gerais, mas que em última análise estão subordinados aos settings específicos das práticas. através da negação da negação, ou seja, a negação de uma determinada realidade centrada na exclusão (na doença) para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios, na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento psíquico, deverá prevalecer a superação dialética. os serviços se constituem, para Saraceno (1999), como a variável que influi no processo reabilitativo. o autor assinala como característica de um serviço de alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços que não oferecem essas possibilidades acabam gerando hierarquias de intervenção, e os menos dotados são excluídos do processo. o autor ressalta que um serviço de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com alta integração interna e externa: [...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e em que a organização está orientada às necessidades do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97). a integração interna e externa também deverá acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen- to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará possível e concreta se os profissionais visualizarem a importância da não-dissociação e assumirem ambos, Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 16 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético o tratamento e a reabilitação. a idéia contida nessa proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu- tado por uns e a reabilitação, por outros. ou seja, há a necessidade de não-separação do trabalho manual do intelectual reproduzido dentro dos serviços para que haja a superação dialética. Saraceno (1999) alerta que, na integração interna de um bom serviço devem ser contempladas estratégias organizativas e afetivas. a permeabilidade dos recursos e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen- demos que esse patamar deveria se constituir no ideal a ser alcançado pelos serviços. os movimentos nos ser- viços, quando encaminhados às questões organizativas e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação dialética. da mesma forma, quando os conflitos e contradições forem dialeticamente trabalhados, e não ocultados, será promovida a descontinuidade; o apa- recimento do novo e a explicitação das contradições conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças reais nos serviços. Saraceno, asioli e tognoni (1997) destacam a atitude de integração da equipe como uma das muitas variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da intervenção. tais variáveis, relacionadas à organização e ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou desfavoráveis. os autores conceituam uma equipe inte- grada com variável favorável e que deve ter as seguintes características: distribuição do poder; importância dos conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória; discussão e planificação do trabalho; socialização dos conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos à integração interna, os autores apontam a separação prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife- rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre os membros da equipe. acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia (1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição em termos estruturais, através de novos esquemas, que garantirá ações terapêuticas, mas as relações que se estabelecerão dentro das novas organizações assistenciais. os novos serviços deverão atentar para as possíveis (e concretas) contradições que podem se configurar no seu interior. Uma dessas contradições se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia postula que as contradições do real deverão ser dialeticamente vividas. É importante ressaltar que, nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as contradições não forem ignoradas ou postergadas, mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna- tivas, possibilidades. CONSIDERAçÕES FINAIS resgato a lei da dialética, defensora de que a nega- ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten- dida como a negação de uma determinada realidade e a força, como aquela que se empenha na construção de outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi- camente na área da reabilitação psicossocial. resgata-se, neste processo, toda a potencialidade para a produção de vida significativa ao ser humano. Nesse momento ocorre um salto qualitativo significativo, através de uma práxis transformadora que vislumbra todas as possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite alcançar refinamentos conceituais que, em última análi- se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis da reforma Psiquiátrica. Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008 17HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético o foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a validação da identidade dos usuários, bem como a abor- dagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos serviços pautada na égide da reforma Psiquiátrica. Esses diferenciais que contornam as ações introduzem saltos qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pesso- as. a superação dialética é alcançada no momento em que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares de cada pessoa. Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora, na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada de consciência sobre a importância dessas intervenções produz movimentos de superação da objetalização a que foi submetido o doente e, também, a reconstrução de um corpo físico, subjetivo e social. R E F E R Ê N C I A S basaglia, F. (org.). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. rio de Janeiro: graal, 1985. KondER, l. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros Passos). KosiK, K. Dialética do concreto. 6. ed. rio de Janeiro: Paz e terra, 1995. lEfEbvRE, H. Lógica formal/lógica dialética. 5. ed. rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. luKács, g. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. minayo, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 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Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área. conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente prática matricial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial; Apoio matricial; Psicoterapia de grupo. ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas gerais, Brazil. The first moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third, matrix support. This paper is examines a literature review and documents of the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand, enables the professional to work with present-day practice in matrix support. KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix support; Psychotherapy, group. João lei te Ferre i ra Neto 1 1 Professor do Programa de Pós- graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas gerais (PUC Minas); doutor em psicologia da PUC São Paulo. jleite.bhe@terra.com.br 19 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história I N T R O D U ç à O Quando a psicologia foi reconhecida como profis- são em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote- rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório, a organizacional e a educacional. a saúde pública ainda não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos essa situação mudou drasticamente. Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca- dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi- cologia (sPinK, 2007). diversos estudos apontam que a crescente presença dos psicólogos na saúde pública no Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátri- ca e com a criação do campo chamado de Saúde Mental (dimEnstEin, 1998; fERREiRa nEto, 2004). o objetivo deste artigo é a apresentação de al- guns elementos da história da entrada e do percurso dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde Mental, no município de Belo Horizonte, Minas gerais. as fontes bibliográficas e documentais pesqui- sadas indicam que a construção desse percurso nesse município ocorreu em três momentos, marcados por características próprias, em que a noção de Saúde Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua integração no contexto do SUS. Na década de 1980, ocorreu o primeiro período chamado de implantação, seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial, respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa análise histórica abordará com maior atenção a pre- sença de duas polaridades que atravessam este campo. a polaridade entre abordagens individuais e coletivas, e a composta pela especificidade da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo da saúde geral e reforma sanitária. além da necessá- ria revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de dados será um conjunto de documentos produzidos no decorrer da história mineira e da nacional. MOMENTO ‘IMPLANTAçÃO’ – ANOS 1980 o Programa de Saúde Mental foi oficialmente implantado em Minas gerais, na região Metropolitana de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do go- vernador tancredo Neves pelo Partido do Movimento democrático Brasileiro (PMdB). Nesse período, um número expressivo de profissionais de saúde com perfil progressista ocupou postos importantes na Secretaria de Estado de Saúde. É importante lembrar que o período de abertura democrática no país consolidou uma [...] tática desenvolvida inicialmente no seio do mo- vimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de in- troduzir mudanças no sistema de saúde. (amaRantE, 1998, p. 91). a chamada Nova república tornou-se o apogeu dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário, juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu com o próprio Estado. os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados atendendo em centros de saúde sem ligação com um projeto ou programa que organizasse ações em Saúde Mental. 20 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história a proposta do Pisam parte da avaliação de uma prevalência de transtornos mentais de 18% e uma demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem ações de prevenção primária, integração da Saúde Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção primária era considerada eficaz a realização de “grupos operativos de gestantes, mães, professores e o atendi- mento a crises” (mEndonça filho; alKimin, 1998, p. 25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser conduzido por psicólogos. Quanto ao atendimento clínico individual, os pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico- logia. o Pisam teve curta duração devido, entre outras causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos privados (mEndonça filho; alKimin, 1998). Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde 1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em centros de saúde no município. a atuação na época era voltada para a demanda infantil, para a participação em outros programas em andamento nas unidades (pueri- cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação no documento pela priorização do trabalho em grupos, “por permitir uma melhor resposta a demanda” (sEcRE- taRia municiPal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar, eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma, a expressãoSaúde Mental era tomada de um modo genérico, sem relação com as propostas da reforma psiquiátrica. Nos antecedentes à oficialização do Programa de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada e genérica do que poderia ser definido como Saúde Mental na rede pública. algumas vezes, era entendida como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o doente grave, como as ações preventivas e a participação nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo, mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra. Já no Programa de ações da Saúde Mental da re- gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do programa na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo- ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria com algumas prefeituras. as equipes são estabelecidas como referência secundária, ou seja, como atendimento especializado. a princípio, o Programa de Saúde Men- tal buscava formular, de modo ainda primário, uma concepção integral de saúde – o famoso trinômio do bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio), psicólogo (psico) e assistente social (social). a falta de experiência para uma formulação mais sofisticada do que seria um trabalho em equipe multiprofissional e interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter- nativa mais óbvia. o documento retoma o histórico anterior do Pisam e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob- jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental. Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à demanda específica (doença mental), apoio aos demais programas dos centros de saúde integrando a Saúde Mental no contexto global da saúde, apoio técnico ao nível primário, articulação com os recursos das comunidades (escolas, creches, hospitais e associações 21 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica do programa. apenas no primeiro eixo é mencionada a necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final- mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de ‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido de evitar ‘internações desnecessárias’ (sEcREtaRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 8). ainda não se falava em substituição do modelo hospitalar. a ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten- dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma de abordagem das questões de Saúde Mental” (sEcRE- taRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 7). aponta ainda que a intervenção em grupos é um trabalho que exige constante discussão e aprofundamento por parte dos profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por avaliação de seus impactos. a partir desse período os psicólogos continuam envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos serviços, mas também começam a receber a clientela prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes com transtornos graves e persistentes. Como notificado no documento, a formação em serviço por meio de su- pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais constante. além disso, inicia-se o curso de Especializa- ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede, oferecido pela Escola de Saúde de Minas gerais (Esmig), com forte acento na prática clínica de base psicanalítica lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se tornará Escola Brasileira de Psicanálise. Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por- tador de algumas características. anterior à implantação oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra- mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra- ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio da psiquiatria. Somente quando Programa de ações é implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar, e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a atuação dos psicólogos aos pacientes graves. Nesse momento, é marcante a preocupação da integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde e a participação de seus profissionais em ações cole- tivas com outros profissionais do serviço. as práticas de grupo se constituem numa importante diretriz de trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais agentes. além disso, é preconizado o apoio técnico ao nível primário, estratégia que somente se consolidará no terceiro momento de ‘apoio matricial’. MOMENTO ‘ANTIMANICOMIAL’ – ANOS 1990 a passagem entre os dois primeiros momentos analisados está atravessada por alguns importantes eventos. o primeiro deles, no ano de 1987, foi o II Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de maio como o dia Nacional da luta antimanicomial. os psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela- borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do movimento em relação ao Estado. as diretrizes apon- tavam para um caminho de alargamento das fronteiras da luta para uma ação no interior da própria cultura, trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade puramente assistencial e criava pontes entre as ações no 22 Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008 FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu, desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção” (amaRantE, 1998, p. 93), induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista e sua tática de ocupação da máquina estatal. desde essa nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade civil e os movimentos populares e com as associações de usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa e da opinião pública. através do segundo evento, em 1989, a reforma psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter- venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos na Casa de Saúde anchieta e a seqüente criação de dis- positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que inspirou várias experiências posteriormente conduzidas por todo o país (amaRantE, 1998, p. 83). Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação ao Congresso do Projeto de lei 3.657/89 visando re- gulamentar o processo de reestruturação da atenção à Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal Paulo delgado (Partido dos trabalhadores de Minas gerais, Pt/Mg). Em Belo Horizonte, somente durante a gestão municipal do prefeito Patrus ananias, do Pt (1993 a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSa) de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos pacientes
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