Buscar

Hermenêutica Jurídica em Crise Lenio Streck

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

Co
ns
el
ho
 B
di
to
ri
al
An
dr
é 
Lu
ís
 Ca
ll
eg
ar
i
Ca
rl
os
 Al
be
rt
o 
Ál
va
ro
 de
 Ol
iv
ei
ra
Ca
rl
os
 A
lb
er
to
 M
ol
in
ar
o
Da
ni
el
 Fr
an
ci
sc
o 
Mi
ti
di
er
o
D
a
r
d
 G
ui
ma
rã
es
 R
ib
ei
ro
Dr
ai
to
n G
on
za
ga
 d
e 
So
uz
a
El
ai
ne
 H
a
r
z
he
im
 M
a
c
e
do
Eu
gê
ni
o F
ac
ch
in
i N
et
o
Gi
ov
an
i A
go
st
in
i S
aa
ve
dr
a
In
go
 W
ol
fg
an
g S
ar
le
t
Jo
se
 Lu
is
 Bo
lz
an
 d
e 
Mo
ra
is
Jo
sé
 Ma
ri
a R
os
a 
Te
sb
ei
ne
r
L
e
a
n
dr
o 
P
a
u
ls
en
Le
ni
o 
L
u
iz
 St
re
ck
Pa
ul
o 
An
tô
ni
o C
al
ie
nd
o V
el
lo
so
 d
a 
Si
lv
ei
ra
S9
14
h 
St
re
ck
, L
en
io
 L
ui
z
He
rm
en
êu
ti
ca
 jur
ídi
ca e
(m
) cr
ise
: u
m
a
 e
xp
lo
ra
çã
o h
er
me
nê
ut
ic
a d
a
co
ns
tr
uç
ão
 do
 Di
rei
to 
/ L
en
io
 Lu
iz
 St
rec
k. 
11
. e
d.
 rev
.,
 at
ual
, e
 am
pl
. -
Po
rt
o A
le
gr
e;
 Li
vra
ria
 do
 Ad
vo
ga
do
 Ed
it
or
a,
 20
14
.
45
5 
p.
; 2
3 
c
m
.
I
S
B
N
 9
78
-8
5-
73
48
-8
80
-7
1.
 Di
re
it
o.
 2
. D
og
má
ti
ca
 ju
ríd
ica
ín
di
ce
s p
ar
a o
 c
at
ál
og
o s
is
te
má
ti
co
D
ir
ei
to
Do
gm
át
ic
a j
urí
dic
a
(Bi
bli
ote
cár
ia 
re
sp
on
sáv
el:
 Ma
rt
a R
ob
er
to
, C
RB
-1
0/
65
2)
L
e
n
i
o
 L
u
i
z
 S
t
r
e
c
k
Pr
oc
ur
ad
or
 de
 Ju
st
iç
a -
 
R
S
Do
ut
or
 e
m
 Di
rei
to 
pe
la
 Un
iv
er
si
da
de
 Fe
de
ra
l d
e S
an
ta
 Ca
ta
ri
na
 -
 
UF
SC
P6
s-
Do
ut
or
 e
m
 D
ir
ei
to
 Co
ns
ti
tu
do
na
l e
 H
en
me
nô
ut
ic
a p
el
a U
ni
ve
rs
id
ad
e d
e L
is
bo
a
Pr
of
es
so
r T
it
ul
ar
 d
a 
Un
is
in
os
 - 
R
S 
(M
es
tr
ad
o e
 D
ou
to
ra
do
) e
 U
ne
sa
-R
J;
 Pr
of
es
so
r V
is
it
an
te
 e
Co
nv
id
ad
o d
e 
Un
iv
er
si
da
de
s b
ras
ile
ira
s e
 e
st
ra
ng
ei
ra
s (
Fa
cu
ld
ad
e d
e 
Dir
eit
o d
e C
oi
mb
ra
-P
T;
 Fa
cu
ld
ad
e d
e
Dir
eit
o d
e L
i^
oa
-P
T;
 Un
h^
rs
id
ad
 Ja
ve
ri
an
a-
CO
);
 me
m
br
o c
at
ed
rá
ti
co
 da
 Ac
ad
em
ia
 Br
as
ile
ira
 d
e
Di
re
it
o C
on
st
it
uc
io
na
l;
 Pr
es
id
en
te
 d
e 
Ho
nr
a 
do
 IH
J -
 
In
st
itu
to 
de
 He
rm
en
êu
ti
ca
 Ju
rí
di
ca
.
HE
RM
EN
ÊU
TI
CA
 JU
RÍ
DI
CA
 E(
M)
 CR
IS
E
Um
a 
ex
pl
or
aç
ão
 he
rm
en
êu
ti
ca
 da
 co
ns
tr
uç
ão
 do
 Di
rei
to
I
V
 E
D
I
Ç
Ã
O
r
ev
is
ta
, a
tu
al
iz
ad
a 
e
 a
m
pl
ia
da
A
li
vr
ar
ia
D
O
 A
D
V
O
G
A
D
O
e
di
to
ra
Po
rt
o 
Al
eg
re
, 2
01
4
:
 í
l
i
" I
 n
ii l\
r
 '
í 
i
li
-
i'
'
-
í
i |;
10
. A
 i
nt
er
pr
et
aç
ão
 d
o 
Di
re
it
o 
n
o
 i
nt
er
io
r 
da
 v
ir
a-
g
e
m
 l
in
gü
ís
ti
ca
 (l
at
o s
e
n
s
u
)
10
.1
. A
 h
er
me
nê
ut
ic
a 
c
o
m
o
 u
m
a
 '
'
qu
es
tã
o 
m
o
de
rn
a"
N
o
 âm
bi
to
 d
a 
in
te
rp
re
ta
çã
o d
o 
Di
re
it
o,
 na
qu
il
o 
qu
e 
tr
ad
ic
io
na
l
m
e
n
te
 c
ha
ma
mo
s d
e h
er
me
nê
ut
ic
a j
urí
dic
a, é
 pr
ec
is
o c
ha
ma
r a
 a
te
nç
ão
(d
os
 jur
ist
as)
 pa
ra
 o
 fa
to
 de
 qu
e "
n
ós
 nã
o 
te
mo
s 
m
ai
s u
m
 s
ig
ni
fi
ca
nt
e
pr
im
ei
ro
, q
ue
 s
e
 b
us
ca
va
 t
an
to
 e
m
 A
ri
st
ót
el
es
 c
o
m
o
 n
a
 I
da
de
 M
éd
ia
,
c
o
m
o
 a
in
da
 e
m
 K
an
t;
 si
gn
if
ic
an
te
 p
ri
me
ir
o 
qu
e 
n
o
s
 da
ri
a a
 g
ar
an
ti
a
de
 q
ue
 o
s
 c
on
ce
it
os
 e
m
 g
er
al
 r
e
m
e
te
m 
a
 u
m
 ú
ni
co
 si
gn
if
ic
ad
o"
.^
^
Ob
se
rv
e-
se
, d
es
de
 l
og
o,
 a
 i
mp
or
tâ
nc
ia
 d
e 
u
m
 fi
ló
so
fo
 d
o 
po
rt
e
de
 M
ar
ti
n 
He
id
eg
ge
r 
pa
ra
 o
 d
es
li
nd
e d
a 
co
mp
le
xi
da
de
 d
o 
pr
ob
le
ma
fi
lo
só
fi
co
 q
ue
 a
tr
av
es
sa
 d
oi
s 
mi
lê
ni
os
: a
s 
co
nd
iç
õe
s 
de
 p
os
si
bi
li
da
de
do
 co
nh
ec
im
en
to
 e
 d
a 
co
mp
re
en
sã
o.
 Tu
ge
nd
ha
t,
 po
r 
e
x
e
m
pl
o,
 di
z q
ue
Ar
is
tó
te
le
s l
ev
ou
 a
 fi
lo
so
fi
a o
ci
de
nt
al
 pa
ra
 u
m
 b
ec
o s
e
m
 s
aí
da
 d
o 
qu
al
n
o
s
 t
en
ta
ra
m 
ti
ra
r,
 a
o
 m
e
s
m
o
 t
em
po
, 
a
 f
ilo
so
fi
a 
an
al
ít
ic
o-
li
ng
uí
st
ic
a
e
 a
 o
nt
ol
og
ia
 fu
nd
am
en
ta
l d
e 
He
id
eg
ge
r.
 À
 pe
rg
un
ta
: q
ue
 be
co
 s
e
m
sa
íd
a 
é 
es
te
?,
 E
mi
ld
o 
St
ei
n 
re
sp
on
de
rá
, c
o
m
 a
 p
ro
pr
ie
da
de
 d
e 
s
e
m
pr
e:
 "E
st
e 
be
co
 s
e
m
 s
aí
da
 se
 c
ha
ma
 m
et
af
ís
ic
a.
 T
an
to
 a
 fi
lo
so
fi
a 
ar
ta
Kt
ic
o-
-
Un
gu
ís
ti
ca
, q
ua
nt
o 
He
id
eg
ge
r,
 há
 m
a
is
 d
e 
ci
nq
üe
nt
a 
an
os
, 
cr
it
ic
am
 a
me
ta
fí
si
ca
 po
rq
ue
 el
a é
 u
m
a
 te
or
ia
 ób
jet
iva
dor
a d
o s
er
 e
m
 lu
ga
r d
e p
er
ce
be
r o
se
r 
n
u
m
a
 di
me
ns
ão
 pu
ra
me
nt
e l
óg
ic
o-
se
mâ
nt
ic
a o
uf
or
ma
l-
se
mâ
nt
ic
a,
 A
 m
e
ta
fí
si
ca
 é 
ba
si
ca
me
nt
e,
 se
 p
en
sa
rm
os
 a
 c
oi
sa
 ma
is
 pr
of
un
da
me
nt
e,
 o 
n
o
m
e
pa
ra
 u
m
 p
en
sa
me
nt
o 
ob
je
ti
va
do
r q
ue
 n
ão
 te
m 
pe
rc
ep
çã
o d
a d
if
er
en
ça
 en
tr
e
ob
jet
o e
 si
gn
if
ic
ad
o,
 A
 te
se
 da
 di
fe
re
nç
a ô
nt
ic
oo
nt
ol
óg
ic
a,
 qu
e 
He
id
eg
ge
r
c
ha
ma
 às
 ve
z
e
s
 a
pe
na
s 
di
fe
re
nç
a o
nt
ol
óg
ic
a,
 en
co
nt
ra
 u
m
a
 t
ra
du
çã
o a
de
qu
ad
a n
a
 te
rm
in
ol
og
ia
 d
e 
Tu
ge
nd
ha
t d
a 
c
ha
ma
da
 se
mâ
nt
ic
a f
or
ma
l"
.^
N
o
 p
la
no
 d
o 
Di
re
it
o,
 o
 r
om
pi
me
nt
o 
c
o
m
 e
s
s
a
 t
ra
di
çã
o 
é 
ex
tr
e
m
a
m
e
n
t
e
 di
fí
ci
l e
 n
ão
 s
e
 f
az
 s
e
m
 r
a
n
hu
ra
s.
 C
o
m
 e
fe
it
o,
 e
m
bo
ra
 m
a
is
^
 Cf
. S
te
in
, E
mü
do
. R
ac
io
na
li
da
de
 e E
xis
tên
cia
. P
or
to
 Al
eg
re
: L
&P
M,
 19
88
, p
. 3
9.
^
 Cf
. S
te
in
, E
mü
do
. A
 ca
mi
nh
o d
e u
m
a
 fu
nd
am
en
ta
çã
o p
ós-
met
ítf
ísi
ca.
 op
. c
ít.
, p
. 8
8.
lí
er
me
nê
ut
ic
a J
ur
íd
ic
a e
{i
n)
 Cr
is
e
2
5
9
w
)
li
ili
í
11
preocupado (ou preocupado ainda) com a'perspectiva objetivista da
interpretação do Direito, Marques Neto assinala que "a recusa de uma
concepção metafísica do Direito não se faz sem problemas. O mesmo
ocorre, aliás, com a afirmação dessa concepção. Crer que há uma es
sência verdadeira em si mesma do Direito — como que à espera de
ser captada em sua inteireza pelo sujeito do conhecimento, seja me
diante um trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que
as normas do Direito racional, isto é, as chamadas leis da natureza,
seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo
raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos a priori;
seja captando essa essência na dinâmica da vida social, através da in
vestigação sociológica do fenômeno jurídico; seja buscando-a na exe
gese dos textos legais crer nisso, não deixa de ser confortável".^^ A
mesma dificuldade se dá com a tentativa de romper com as posturas
que apostam no subjetivismo do intérprete, que não deixa de repetir o
fundamentum inconcussum presente nas correntes essencialistas, isto é,
o sujeito solipsista apenas substitui a (antiga) essência. Este é o ponto
fulcral que os juristas não conseguem perceber.
Nesse sentido, para a elaboração de uma crítica ao discurso dog-
mático-jurídico dominante, impregnado por essas perspectivas, são
imprescindíveis - muito mais por suas aproximações do que por suas
diferenciações - as contribuições das diversas correntes linguístico-
-filosóficas (Wittgenstein, Austin, Habermas, Rorty, só para citar al
gumas) graças às quais a pergunta pelas condições de possibilidade
do conhecimento confiável, característico da filosofia moderna, trans
forma-se na pergunta acerca das condições de possibilidade de sentenças
intersubjetivamente válidas a respeito do mundo, o que significa dizer que
"não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja,
não existe mundo que não seja exprimível na linguagem",^ É nessa
linha que a presente obra privilegia Heidegger e Gadamer, com pita
das de Wittgenstein (das Investigações Füosóficas) e a teoria intrega-
tiva de Dworkin. Isso ficará mais evidente nas páginas seguintes.
Nessa linha de aproximação linguístico-füosófico-hermenêutica,
Vattimo lembra que no horizonte da reflexão hermenêutica, centrada
no problema da interpretação, há uma linhagem que pode ser reco
nhecida, procedendo de Schleiermacher, Dilthey e Nietzsche e flores
cendo em Heidegger, Gadamer, Ricoeur, entre outros, e que encontra
Cf. Marques Neto, op. dt., p. 28.
Cf. Oliveira, Reviravolta, op. dt, p.l3.
260 Lento Luiz Streck
pontos de aproximação com as reflexões de Apel, Habermas, Fou-
cault e Denida,^^
Com razão Vattimo. Nesse caminho - que inicia stricto sensu na
modernidade - está o nascedouro da própria hermenêutica. Isto por
que a hermenêutica é uma conquista da modernidade. Afinal, se a
ruptura com o "mito do dado" {adequatio intéllectum et rei), patente
em expressões do tipo "isso é assim mesmo", se dá com o alvorecer
da subjetividade - e isso se dá com o advento da modernidade -, o
desafio passa a ser a descóberta de que como o sujeito pode vir a atri
buir sentidos.
A viragemhermenêutico-ontológica, provocada por Sein und Zeit
(1927), de Martin Heidegger, e a publicação, anos depois, de Wahrheit
und Methode (1960), por Hans-Georg Gadamer, foram fimdamentais
para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir dessa on-
tologische Wendung, inicia-se o processo de superação dos paradigmas
metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista (filosofia da
consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm susten
tado as teses exegético-dedutivistas-subsuntivas domineintes naquilo
que vem sendo denominado de hermenêutica jurídica.
Antes, porém, de analisar suas conseqüências para o pensamento
jurídico, cabe uma preparação que nos permita demarcar os percursos
da hermenêutica até a radicalização do giro hermenêutico-ontológico.
10.2. A hermenêutica e seus três estágios: técnica especial para
interpretação; teoria geral da interpretação e hermenêu
tica fundamental
Hermenêutica significa, tradicionalmente, teoria ou arte da inter
pretação e compreensão de textos, cujo objetivo precípuo consiste em
descrever como se dá o processo interpretativo-compreensivo.^^'^ Ain-
396 Yçj. Vattimo, Giaimi. Éihique de láinterprétation. Paris: La Déconverte, 1991,2® parte,
p, 93, apud César, Constança Marcondes. Ética e hermenêutica: a crítica do cogito em
Paul Ricoer. In: Revista brasileira de filosofia. Fac. 184, vol. XLU São Paulo: IBF, out-nov-
-dez 1996, p. 399.
^ Esse escorço histórico de construção da hermenêutica pode ser encontrado em au
tora como Paul Ricouer em seu Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica ü. Porto: Rés,
1989; e Josef Bleicher {Hermenêutica Contemporânea. Lisboa: Edições 70,1992). Tanibém
Rafael Tomaz de Oliveira ressalta pontos importantes desse percurso histórico a partir
da idéia de "Era da Hermenêutica", como é apresentada por Emildo Stein (Cf. Tomaz
de Oliveira, Rafael. Decisão Judidal e o Concdto de Princípio. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008; Stein, Emildo. História e Ideologia. Porto Alegre: Movimento, 1972). É
Hennenêutica Jurídica e(m) Crise 261
í lí: -
da em seu sentido tradicional, a hermenêutica comporta, além desse
caráter teórico-descritivo, \ima dimensão prescritiva, na medida em que,
deste processo descritivo, procura-se estabelecer um conjunto mais
ou menos coerente de regras e métodos para se interpretar e compre
ender corretamente os diversos textos que povoam o cenário cultural
humano, seja no âmbito da arte (literatura, poesia etc.), seja no âmbito
religioso (na interpretação dos textos sagrados), seja no âmbito jurídi
co (na interpretação dos textos de leis, decretos, jurisprudências etc.).
Desse modo, temos por esboçados os três campos do conhecimento
que irão se interessar, de maneira mais direta, pelos problemas her
menêuticos: a) a Filologia; h) a Teologia; c) o Direito.
Já neste ponto inicial, é preciso atentar para um importante de
talhe: as reflexões hermenêuticas sempre se desenvolvem numa du
pla perspectiva. Há uma perspectiva teórica que procura descrever
como o processo de interpretação e compreensão acontece; que tipo de
conhecimento é esse; como esse conhecimento se articula no interior
da dualidade que rege as teorias do conhecimento que opõem sujeito
e objeto - em que se afirma haver em toda relação de conhecimento
um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido, sendo objetivo
das teorias do conhecimento descrever como essa oposição se resolve
na mente, no sujeito que conhece, Essa seria uma perspectiva teórica
da hermenêutica.
Por outro lado, há também uma perspectiva prescritiva (prática)
na medida em que essa descrição visa a atingir um resultado: procura
estabelecer regras e métodos que conformem de tal modo o processo
de interpretação e compreensão que tome possível reduzir os erros
e mal-entendidos que possam surgir da leitura dos textos. Assim, a
hermenêutica não pretende apenas reunir um conjimtode conheci
mentos teóricos acerca do problema interpretativo-compreensivo, mas,
na trilha do iluminismo-racionalista, pretende também produzir cri
térios para afirmação de certeza e objetimdade no processo de interpre
tação e compreensão.
Este um quadro geral das teorias clássicas da hermenêutica, que
operam, de uma maneira mais ou menos genérica, da seguinte forma:
primeiro observam-se os problemas que emanam do processo inter-
pretativo, depois procura-se resolvê-los a partir da determinação de
importante lembrar, ainda na esteira desse complexo que é a história da hermenêutica,
a dbra de Günter FigaL Oposicionalidade: o demento hermenêutico e a filosofia, Petrópolis:
Vozes, 2008. As principais contribuições desses autores iluminam - em maior ou menor
medida - a trajetória da hermenêutica aqui retratada. Uma versão desse escorço está
também em artigo a ser publicado em in^ês (Streck, L.L. The rise ofphüosophical herme-
neutics in law), ai^a inédito.
262 Lenio Luiz Streck
si:!
i;!
li
àL
uma estrutura metodológica que reduza os erros e as incompreensões,
possibilitando, assim, a correta compreensão dos textos analisados.
No século XIX, com a emergência da discussão envolvendo a
autonomia das Ciências Hximanas - também chamadas de Ciências
do Espírito (Geisteswissenschaften), o filósofo alemão Wilhelm Dilthey
passará a empregar o temíb hermenêutica para designar a exploração e
formação da estrutura metodológica destas ciências, que estão basea
das num processo de compreensão, enquanto as Ciências Naturais - que
receberam seu fundamento filosófico a partir da Crítica da Razão Pura
de Kant - estariam baseadas em processos de explicação, desenvolvi
dos através de uma sistemática que envolve causas e efeitos.
Posteriormente, a partir da primeira metade do século XX, prin
cipalmente por meio de Martin Heidegger, o termo hermenêutica pas
sará por uma transformação e será uâizado em uma conotação que
nunca havia sido pensado antes em toda história da filosofia. Diante
deste novo uso, pelo menos três questões que compõem a doutrina
clássica da hermenêutica podem ser questionadas: 1) seu uso restrito
à interpretação de textos; 2) a prioridade da interpretação sobre a com
preensão', 3) a estrutura metodológica como meio formal para garantia
de certeza e objetividade do processo interpretativo.
Com efeito, Heidegger radicaliza o problema hermenêutico de
modo a introduzir nele algo que poderíamos chamar de elemento an
tropológico. Por meio de suas intuições fundamentais, o filósofo pôde
perceber que toda compreensão - seja ela compreensão de um texto
ou da própria história - se encontra já fundamentada em uma com
preensão que o ser humano tem de si mesmo, enquanto ser histórico
dotado de existência. Desse modo, todas as estruturas fundamentais
da existência humana^ passam a ser pensadas e analisadas a partir
^ Desde as Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles em 1921, passando pelo cvtr-
so Ontologia - Hermenêutica da Fatic^âe em 1923, até chegar à sua obra capitai. Ser e
Tempo, em 1927, Heidegger constrói um conceito filosófico re^onsável por uma revo
lução nas tradicionais teorias da subjetividade e da consciência, Com efeito, o esforço
contínuo do fflósofo para colocar a reflfôíão filosófica nos trilhos da vida fática — que
desde 1921 ele já chamava de faticidade - representou um rompimento com o caráter
apodídico que reveste o conceito de subjetividade desde Descartes, bem como rompia
com as fundamentações empíricas para o conceito de consciência, como podemos ob
servar em John Locke. Esse conceito, que Heidegger oporá à toda tradição filosófica
anterior (Metafísica), é o concelio de Dasein (ser-aí). Dasein, portanto, será o termo a
partir do qual o filósofo designará -filosoficamente - o ser humano, a partir do qual se
rão analisadas as estruturas Sticas da existência humana. Na descrição realizada pelo
filósofo, Dasein é um tipo de ente que, em seu modo de ser, possui como possibilidade
a compreensão do seu ser e do ser dos demais entes íntramundanos. O Dasein é, portanto, o
ente que compreende o ser e, nesta compreensão tem implícita uma compreensão de
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 263
ir
I:
ÍM
im
li i
,1
desta dimensão hermenêutica que fundamenta a própria existência:
compreender a nós mesmos e a nossa história é condição de possibili
dade para que possamos compreender textos, palavras, histórias etc.
Destarte:
1) além do uso restrito a textos, a hermenêutica passa a se referir
às estruturas fundamentais do ser humano;
2) como para interpretar um texto ou uma ação de outra pessoa, de
vemos pressupor uma compreensão existencial de nós mesmos, a prio
ridade da interpretação sede lugar à compreensão de modo que, não se
interpreta para compreender, mas se compreende para interpretar,"^®^
3) o necessário ideal de transparência que se encontrava por de
trás das posturas hermenêuticas tradicionais e que possibilitava a
crença de que seria possível encontrar um método rígido e definitivo
para evitar erros e mal-entendidos, no interior da hermenêutica hei-
deggeriana, desaparece. Isto porque, como o próprio fato da existên
cia, enquanto ser humano situado historicamente, se constitui como
elemento essencial para qualquer interpretação: não há transparência
possível de ser alcançada. A faticidade humana sempre deixa algo de
fora (algo sempre escapa) e isso é inevitável. O que permanece possível
é a tentativa de üuminar novos espaços de significados que pressupõe
a necessidade de uma pluralidade abrangente de caminhos a se seguir,
que o estreito ideal moderno de método não pode possibilitar.^
seu próprio ser. O termo demâo Dasein tradicionalmente designa existência (é neste
sentido que é usado por filósofos da tradição metafísica, como é o caso de Kant, por
exemplo), encontra sérios problemas na tradução para outras línguas. Isso porque
Heidegger oferece ao termo uma conotação diferenciada que mantém o significado
inicial de existência, mas no sentido daquele ente que, entre todos os outros, existe,
que é o ser humano. Para Heidegger somente o Dasein existe, porque existência im
plica possibilidades, projetos. Os demais entes intramtmdanos, que estão à disposição
subsistem. Esclarecendo a questão do Dasein Michael Inwood afirma que: "Dasein é o
modo de Heidegger referir-se tanto ao ser humano quanto ao tipo de ser que os seres
humanos têm. Vem do verbo dasein que significa 'existir' ou 'estar aí, estar aqui'. O
substantivo Dasein é usado por outros filósofos, Kant por exemplo para designar a
existência de toda entidade. Mas Heidegger restringe-o aos seres humanos. (...) Por
que Heidegger fala do ser humano dessa maneira? O ser dos seres humanos é notada-
mente distinto dos ser de outras entidades do mundo. O Dasein é uma entidade para
a qual, em seu Ser, esse Ser é uma questão". Inwood, Michel. Heidegger. Tradução de
Adail übirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2004, p. 33-34.
^ Cf. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do
Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, Capítulo V.
^ Convém registrar aqui uma observação de Hans-Georg Gadamer quando aborda a
questão do método: "Em verdade, a palavra método soa muito bem em grego. Todavia,
enquanto tima palavra estrangeira moderna, ela designa algo diverso, a saber, um ins
trumento para todo conhedm«ito, tal como Etescartes a denominou em seu Discurso do
264 Lenio Luiz Streck
De maneira geral, estão esboçados os três estágios pelos quais a
hermenêutica teve que passar: de disciplina especial para interpreta
ção de textos (sacros, profanos e jurídicos) - também chamada herme
nêutica especial; para uma teoria geral da interpretação - com Dilthey
e seu projeto de emancipação metodológica das Ciências do Espírito;
e uma hermenêutica fundamental - enquanto reflexão cravadanas
estruturas existenciais concretas do ser humano, tais quais descrevem
Heidegger e Gadamer.
Procurarei a^ora abordar mais de perto cada um desses estágios.
10.2.1. Hermenêutica especial
Os estudos sobre hermenêutica não se revestiam de uma condi
ção significativa antes da eclosão do Humanismo Renascentista bem
como da Reforma Protestante. Apenas o uso canônico do termo, num
sentido, muito restrito à exegese da Bíblia, é que lhe garantia alguma
dignidade durante a Idade Média. Mas a transição do medievo para
a modernidade passou a alterar esse panorama por dois motivos:
primeiro, em virtude do descobrimento dos escritos profanos - proi
bidos durante a Idade Média - e a necessidade de interpretação e
entendimento destes escritos; no contexto da Reforma, a necessidade
de se buscar uma outra justificativa para a interpretação da Bíblia que
não estivesse reduzia à oficial, imposta pela Igreja.
Gadamer afirma que o primeiro registro da palavra hermenêu
tica como título de livro remonta ao ano de 1654, sendo tributado ao
teólogo Dannhauer. Foi ele também quem provavelmente sistemati
zou os estudos sobre hermenêutica e começou a fazer a distinção en
tre uma hermenêutica teológica, uma hermenêutica füológica e uma
hermenêutica jurídica.^^
De um modo geral, pode-se dizer que a hermenêutica teológica
se ocupava com a arte da interpretação dos textos sagrados; enquanto
que a hermenêutica filológica procurava dar conta da interpretação
das alegorias que apareciam nos textos da literatura clássica. Os tex
tos em grego exigiam um esforço muito grande para se determinar os
método. Enquanto um tenno grego, a palavra tem em vista a multipliddade, com a qual
se penetra em uma região de objetos, por exemplo, enquanto matemático, enquanto
mestre de obras ou enquanto alguém que filosófa sobre ética" (Gadamer, Hans Georg.
Hermenêutica em Retrospectiva. A Virada Hermenêutica. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2006,
p.164).
^ Cf. Verdade e Método 11, p. 113.
Hermenêutica Jurídica e{m) Crise 265
I
li
ti ,
í 1'
1? i'
I.
r -
i
f ;
"r J
i' l
?
i-
;
"r
,
sentidos das palavras, o que, inevitavelmente, levava a i^a mterpre-
tação da etimologia de cada um dos vocábulos empregados nas peças
clássicas. A hermenêutica jurídica, por sua vez procurava dar conta
da interpretação das compilações romanas -era o tempo da recepção
e vigorava ainda o direito comum, pré-codificação.
Essa fase marca em grande medida uma configuração não umtá-
ria dos estudos hermenêuticos, por isso ela é chamada de Hemeneu-
tica especial, porque funcionava como uma disciplina especial para
interpretação de textos de cada um destes cainpos do conhecimento.
Gadamer chama esse período de Hermenêutica Clássica, e ele pas
sa a ser importante na medida em que, já nessa época, começam a
aparecer os conceitos hermenêuticos fundamentais tais quais: inter
pretação, compreensão e aplicação. Também essa época é importante
por estabelecer uma das preocupações essenciais da hermenêutica:
um contraponto refletido contra qualquer tipo de absolutismo dog
mático.
10.2.2. Teoria geral da interpretação
Mas é com o romantismo alemão que a hermenêutica assumirá
seus contornos mais sofisticados, chegando a ser tematizada expres
samente como fÜosofia dotada de uma universalidade. Novamente
um teólogo, Schleiermacher, é quem efetuará esta tarefa.
Todavia, embora seja correto afirmar a absoluta preponderân
cia que encontra a obra de Schleiermacher no contexto da afirmação
da hermenêutica como teoria geral da interpretação, no contexto de sua
obra a hermenêutica se apresenta, ainda, como um apêndice
lação aos seus interesses preponderantes: a religião e a política. No
contexto do romantismo alemão do Aujklãrung, Schleiermacher e, ao
mesmo tempo, um entusiasta das idéias de liberdade que vêm da re
volução francesa e um construtor da concepção de religião como esté
tica. A hermenêutica, nesse contexto, é uma disciplina ^ da auxilia
- apêndice da religião e dos estudos sobre arte, principalmente da
poesia - que seria, ainda, serviente à dialética.
O programa de Schleiermacher de uma hermenêutica univer
sal pode ser encontrado em alguns opúsculos e coletâneas de afo-
Cf. Sahanskí, Rüdiger. Romantismo: uma Questão Alemã. São Paulo: Estação Liber
dade, 2010, p. 142 e segs.
Lenio Luiz Streck
266
r-
rismas.'^®^ Embora os dois textos apresentem elementos importantes
para a compreensão do projeto teórico de Schleiermacher, é no livro
Hermenêutica e Crítica que encontramos as indicações mais incisivas
daquilo que pode ser considerada a maior inovação do autor para os
estudos sobre hermenêutica.
Heidegger oferece uma apresentação condensada dessa ino
vação. Afirma o filósofo da floresta negra que Schleiermacher defi
niu em Hermenêutica e Crítica a idéia de hermenêutica como "'arte
(doutrina da arte) da compreensão' da fala de outros, ele coloca-a
em relação, enquanto disciplina, com a gramática e a retórica, com a
dialética; essa metodologia formal, e enquanto 'hermenêutica geral'
(teoria ou doutrina da arte da compreender a fala de outros de modo
geral) abrange as hermenêuticas especiais, a hermenêutica teológica e
a hermenêutica fílológica".^
Nota-se, portanto, que a novidade do pensamento de Schleier
macher se manifesta a partir da unificação dos estudos hermenêuticos
em tomo de um elemento comum, que ligasse os estudos desenvol
vidos independentemente do campo específico em que se movimen
tasse o intérprete.
O que estava na linha de frente de Schleiermacher era o pro
blema dos mal-entendidos que poderiam surgir na compreensão de
um texto. Mal-entendidos estes que poderiam levar a uma interpre
tação completamente distinta do sentido que o autor do texto impri
miu. Era preciso então criar algo que permitisse que a interpretação
preservasse o sentido correto, tal qual o autor determinou ao texto.
Devido a sua proximidade com o ilumiiüsmo alemão (Aufklarung), a
saída de Schleiermacher se deu pela via do método. Mas o método de
Schleiermacher era sensivelmente distinto de todos aqueles previstos
pela tradição anterior. Era, em parte, uma continuidade com o mode
lo circular da tradição, através do qual o intérprete se movimentaria
do todo para a parte e da parte para o todo, de modo a apurar sua
compreensão a cada movimentação efetuada. Ao final deste procedi
mento, que Schleiermacher denominou Círculo Hermenêutico, o sen
tido original estaria preservado, e a compreensão encontraria nele
aquilo que o próprio autor imprimiu. A ênfase no "sentido do au
tor" levará os comentadores do mencionado filósofo a classificar sua
^ Cf. Schleiermacher F. D. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis: Vo
zes. 1999, passhn.; bem como, Schleiermacher, F. D. Hermenêutica e Crítica. Vol. 1. JÇiu:
Unijuí,2006.
^ Cf. Heidegger, Martin. Ontologia - Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Vozes, 2012,
p.20.
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 267
IM n
I' i
\M i
teoria da interpretação como hermenêutica psicológica. A universalida
de da hermenêutica estaria garantida pelo método: era uma universa
lidade procedimental.^®
Para a construção dessa sua inovadora doutrina/ Schleiermacher
não desconsiderou as regras de interpretação que haviam sido ela
boradas pelos teóricos das hermenêuticas especiais. Na verdade, ele
conferiu a elas um sentido sistemático, ligadas por um elemento psi
cológico muito forte.
Como afirma Dilthey: "apoiada na virtuosidade filosófica de sé
culos, a hermenêutica trouxe à consciência as regras segimdo as quais
essas fimções devem operar [interpretação gramatical, histórica, retó-
rico-estética e objetiva - acrescentei]. Questionando a razão de ser das
próprias regras, Schleiermacher deu mais um passo rumo à analise
do entendimento, isto é, na direção do conhecimento da própriaação
final. Desse conhecimento ele deduziu a possibilidade de uma inter
pretação universalmente válida de seus recursos, limites e regras .
É evidente, nessa contribuição de Schleiermacher, as influências
da filosofia transcendental e da revolução da subjetividade, levada a
cabo pela modernidade filosófica. As construções de Schleiermacher
só são possíveis porque, em um determinado sentido, duas indivi
dualidades foram postas ao descoberto: a individualidade do autor
do texto (que emite a mensagem) e do intérprete que a recebe e pre
cisa entendê-la.
É por isso que a hermenêutica, no modo como falamos dela, é
uma questão moderna: ela precisa desse processo de autoafirmação
do sujeito, tão próprio da modernidade, para poder ter seu inicio como
doutrina da interpretação (ou, simplesmente, hermenêutica geral).
Essa impressão não passou despercebida pelo gênio de Dilthey.
A afirmação da individualidade foi por ele constatada na segumte
afirmação: "ele (Schleiermacher) reconheceu a condição necessária
para o conhecimento daquele outro processo que revela, nos sinais
gráficos, o conjunto da obra e, na obra, a intenção e a mentalidade do
^ Para uma ampla exploração histórica da hermenêutica, reconstruindo o caminho de
Dilthey desde a reafirmação da hermenêutica no âmbito da filologia e da teologia no
esclarecimento alemão {Aufldãrung) e das contradições da hermenêutica romântica, até
sua construção como metodologia das ciências do espírito: Gadamer, Hans-Georg. Ver-
dade e Método. Traços Fundamentais de Uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio
Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 237-353.
^ Cf. Dilfiiey, Wilhelm. O Nascimento da Hermenêutica. In: Filosofia e Educação: Textos
Selecionados. São Paulo: Edusp, 2010, p. 375.
268 Lenio Luiz Streck
autor. Para resolver esse problema era necessária uma nova visão histórico-
-psicolôgica"
Portanto, se apresenta claramente que o problema da compre
ensão dos textos - independente da especialidade em que se situem
- é para Schleiermacher um problema que implica a articulação de
elementos gramaticais, das partes com o todo dos próprios signos lin
güísticos que o compõem, como também uma aproximação - ou uma
comunhão, seria melhor dizer - com a individualidade do autor, ou
dos autores, do texto.
Na verdade, esse elemento psicológico da descoberta - quase
criativa - da intenção do autor é tão realçada por Schleiermacher que
Dilthey chegará a afirmar que "o objetivo último do processo herme
nêutico consiste em compreender melhor o autor do que ele próprio
se compreendeu".^
Ambos os processos - a elucidação dos elementos gramaticais do
texto e a interpretação histórico-psicológica - apresentam caracterís
ticas drculares. Na descrição de Dilthey: "a interpretação gramatical,
que avança no texto de conexão em conexão até chegar aos nexos su
premos no todo da obra, e a interpretação psicológica, que parte da
transposição para dentro do processo criativo, avançando de lá para
a forma exterior e interior da obra e desta à apreensão da unidade da
obra na maneira de pensar e no desenvolvimento de seu autor".^
Dilthey irá se apropriar dos elementos desenvolvidos por Sch
leiermacher para construir o seu projeto hermenêutico. Continua ele
perfüando as trilhas abertas pela teoria geral da interpretação. Mas
toma mais difuso e abrangente o campo de análises da hermenêutica.
Schleiermacher havia situado em tomo de duas individualidades o
seu programa interpretativo: o autor e o intérprete. Dilthey, por sua
vez, coloca o intérprete como ator do processo histórico e desloca a
tarefa interpretativa para a compreensão do todo da própria história,
vale dizer, das vivências que, juntas, compõem o fluxo histórico. As
sim, a tarefa será reconstruir não o nexo de individualidades, mas,
sim, o nexo de vivências.
Nesse contexto, surge para Dilthey a necessidade de descrição
de um conceito central não apenas para a compreensão da história
mas de qualquer uma das ciências do espírito: o conceito de vida.
Vida, para ele, signifíca a realidade originária nuclear, na qual
radica também todo o conhecimento histórico. Nesse caso, há aqtti
^ Cf. Mthey, Wilhelm, op, cit, p. 375 (grifei)
«»Idem,p.378-
^ Idem, ibidem.
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 269
M
.1»
2Í--Í n|
Ú (i
^lí i
i-í
I
iii
ií
it rife
li!
? í
i ^ ^1
I ^ f
o embrião daquela que seria uma das críticas mais ferozes ao trans-
cendentalismo kantiano: tudo o que há de objetivo na vida humana
repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não em um
sujeito epistemológico. Assim, a vida humana é sempre uma totali
dade significativa, xim nexo reunitivo, sendo que a vivência singular
constitui parte da totalidade do decurso da vida.^^°
Assim o movimento compreensivo opera como um fator de me
diação entre a vivência individual e o conjunto de vivências que cons
tituem o todo da história.
A compreensão funcionará, assim, como um médium entre um
nexo significativo e um nexo operativo. Este último representa um
pressuposto necessário, ou um elemento de antecipação da com
preensão das vivências singulares, que se apresenta na descrição do
modo como uma época representa um nexo de significação unitário e
consistente: deve-se compreender todos os fenômenos desse tempo a
partir dessa sua estrutura fundamental.^"
A compreensão histórica significa, nesse sentido, um constan
te crescimento da autoconsciência; uma constante ampliação do ho
rizonte da vida. A universalidade de Dilthey, como historiador do
espírito, repousa justamente nessa ampliação infinita da vida na com-
preei\são.
Esse aspecto representa um ponto de tal modo fundamental que
autorizará Gadamer a afirmar o seguinte: "A consciência histórica re
presenta o fim da metafísica".
Por certo, a concepção de Dilthey representa, ainda, uma con
tinuidade com alguns elementos da interpretação psicológica de
Schleiermacher. Todavia, devemos reconhecer - ainda com Gadamer
- que a sua concepção de hermenêutica avançou para um sentido
mais intersubjetivo a partir da identificação de nossa radical condi
ção histórica.
De fato, como diz Gadamer, "precisamos aprender a ler Dilthey
contra sua própria concepção de método". É o seu apego aos ele
mentos procedimentais de Schleiermacher que leva Dillhey a afirmar
a compreensão como um acessório, uma ferramenta das ciências do
espírito. Daí a sua concepção da hermenêutica como um apêndice das
ciências do espírito.
Cf. Dilthey, Wilhelm. Introdução às Ciências Hunumas. Rio de Janeiro; Forense Univer
sitária, 2010, passim.
Idem, ibidem.
Cf. Gadamer, Hans-George. Verdade e Método H, op. cii., p. 49.
Idem, ibidem, p. 40.
:ít-
Na verdade, o erro de Dilthey pode ser resumido da seguinte
forma: a significação não se revela no distanciamento do elemento
compreensivo, não se manifesta com um conteúdo apenas instrumen-
tal/ferramental, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no
nexo de efeitos da historia. A compreensão histórica é, ela própria,
sempre, a experiência de Um efeito e o prolongamento de sua efetivi-
dade.^^^
Essa questão ficará mais clara a partir da análise daquilo que
podemos chamar de hermenêutica fundamental.
10.2.3. Hermenêutica fundamental
Não é neste sentido que Heidegger se apropria da hermenêutica.
A interpretação que ele efetuará é tão violenta que o fundo metodoló
gico que reveste o sentido da hermenêutica na tradição será destruído.
Em um pequeno livro do início da década de 1920 — no qual o filósofo
antecipa muito do que será tratado depois em sua obra máxima: Ser
e Tempo - Heidegger estabelece um novo lugar para a hermenêutica
e para o Círculo Hermenêutico de Schleiermacher. O nome da obra já
causa impacto: Hermenêutica da Faticidade.^^ A partir deste livro, a her
menêutica, até então utilizada exclusivamente para interpretaçãode
textos, passa a ter como "objeto" outra coisa: a.faticidade. Mas o que é
faticidade? Em nota anterior, para explicar o giro ontológico de Heide
gger, afirmamos que o filósofo dá ao homem o nome de Ser-at e que
o modo de ser deste ente é a existência. Todavia, dissemos também
que este ente - que somos nós - chamado Ser-ai é o que ele já foi, ou
seja: o seu passado. Podemos dizer que isso representa aquilo que desde
sempre nos atormenta e que está presente nas perguntas: de onde vie
mos? Para onde vamos? A primeira pergunta nos remete ao passado;
a segunda, ao futuro. O passado é selo histórico imprimido em nosso
ser: Faticidade; o futuro é o ter-que-ser que caracteriza o modo-de-ser
do ente que somos (Ser-aí): Existência. Portanto, a hermenêutica é utili
zada para compreender o ser (faticidade) do Ser-aí e permitir a abertu
ra do horizonte para o qual ele se encaminha (existência). Aquilo que
tinha um caráter ôntico, voltado para textos, assume uma dimensão
ontológica, visando à compreensão do ser do Ser-aí. Note-se: de um
modo completamente inovador, Heidegger crava a reflexão filosófica
Cf. Gadamer, Hans-George. Verdade e Método U, op. ctf., p. 46.
Cf. Heidegger, Martin. Hermenêutica de Ia Faticidad. Texto disponível em cwwwiiei-
deggeiiana.com.ar/henneneulica/mdiDe.htm>. Acessado em 27 de julho de 2007.
270 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise
271
IIIji^li,i ^
n
a
 concretude, n
o
 plano prático e
 precário da existência humana. Por
certo que essa reflexão reclama u
m
a
 abstração muito forte que decor
re do necessário distanciamento para perceber aquilo que de nós está
mais próximo. Porém, a
 abstração parte de algo concreto, taticamente
determinável, e
 procura c
o
mpreender aquilo que nós m
e
s
m
o
s
 ja s
o
m
o
s
.
 Mas nós c
o
mpreendemos o
 que nós m
e
s
m
o
s
 já s
o
m
o
s
 n
a
 m
edida
e
m
 que c
o
mpreendemos o
 sentido do ser. Também já alertamos para o
fato de que homem {Ser-aí) e
 ser estão unidos por u
m
 vuiculo indisso
ciável. Isto porque, e
m
 tudo aquilo c
o
m
 que ele se relaciona, o
 homem
já compreendeu o
 ser, ainda que ele não se dê conta disso. Há, e
m
 toda
ação humana, u
m
a
 c
o
mpreensão antecipadora do ser que permite que
o
 homem s
e
 m
o
vimente n
o
 m
u
ndo para além de u
m
 agir n
o
 u
niverso
m
e
r
a
m
e
nte empírico, ligado a
 objetos. Relacionamo-nos c
o
m
 as coisas,
c
o
m
 o
 empírico, porque de algum m
odo já s
abemos o
 que e
 c
o
m
o
 elas
são. Há algo que acontece, além da pura relação objetivadora.^^^ Nosso
privilégio se constitui pelo fato de termos a "
m
e
mória do ser"; o
u
 seja:
temos u
m
 privilégio ôntico 
—
 entre todos o
s
 entes apenas nós existimos;
e
 u
m
 privilégio ontológico 
-
 de todos o
s
 entes s
o
m
o
s
 o
s
 únicos que, e
m
seu modo-de-ser, c
o
mpreendem o
 ser. Desse duplo privilégio, o
 filó
sofo a
n
ota u
m
 terceiro: u
m
 privilégio ôntico-ontológico 
—
 a
 c
o
mpreensão
do ser deste ente que s
o
m
o
s
 é condição de possibilidade de todas as
outras ontologias (do Direito, da História, do Processo etc.).^^^
Didaticamente, podemos dizer: o
 fato de podermos dizer que
algo é, já pressupõe que tenhamos dele u
m
a
 compreensão, ainda que
incerta e
 m
ediana. E
 m
ais! Só n
o
s
 r
elacionamos c
o
m
 algo, agimos, di-
r
e
cionamos n
o
s
s
a
s
 vidsis n
a
 m
edida e
m
 que temos u
m
a
 c
o
mpreensão
do ser. A
o
 m
e
s
m
o
 tempo, só podemos c
o
mpreender o
 ser n
a
 m
edida
e
m
 que já n
o
s
 c
o
mpreendemos e
m
 nossa faticidade. O
 a
c
o
mpanhamen
to desta rápida exposição por si só já dá conta da estrutura circular e
m
que se m
o
vimenta o
 pensamento heideggeriano. Essa estrutura circu
lar é o
 Círculo Hermenêutico, não m
ais ligado à interpretação de textos,
m
a
s
 à compreensão da faticidade e existência do Ser-aí.*^^ É preciso
Para u
m
a
 análise pormenorizada Cf. Stein, Emildo. Pensar é Pensar a
 D^erença. A
Filosofia e
 o
 conhecimento Empírico, ^
uí: Editora Unijuí, 2002.
^
 Cf. Heidegger, Ser y Tiempo, p. 36.
Sobre o
 dmilo hermenêutico n
o
 sentido que a
s
s
u
m
e
 e
m
 Heidegger, Stein a
n
ota o
seguinte: "Õ homem se compreende quando compreende o
 ser, para compreender o
ser. Mas logo e
m
 seguida Heidegger vai dizer: 'Não se c
o
mpreende o
 homem s
e
m
 se
conq?reender o
 ser'. Então a
 ontologia fundamental é caracterizada por esse círculo: es
tuda-se aquele ente que tem por tarefa compreender o
 ser e, contudo, para estudar esse
ente que compreende o
 ser, já é preciso ter compreendido o
 ser. O
 ente homem não se
c
o
mpreende a
 si m
e
s
m
o
 s
e
m
 compreender o
 ser, e
 não c
o
mpreende o
 ser s
e
m
 compre-
á
notar que o
 homem só c
o
mpreende o
 ser n
a
 m
edida e
m
 que pergunta
pelo ente. Vejamos o
 n
o
s
s
o
 c
a
s
o
:
 c
olocamos e
m
 m
o
vimento u
m
a
 refle
xão sobre o
 processo n
a
 perspectiva de que, a
o
 final, possamos dizer
algo s
obre o
 s
e
u
 ser (uma definição s
obre o
 processo c
o
m
eçaria c
o
m
:
 o
processo é...). M
a
s
 ninguém negaria que o
 processo s
e
 trata de u
m
 ente.
U
m
 ente que é interrogado e
m
 s
e
u
 ser, pois toda pergunta pelo pro
cesso depende disso: O
 que é processo? Como é o
 processo? Assim, e
m
bora o
 ser e
 o
 ente se deem n
u
m
a
 u
nidade que é a
 c
o
mpreensão que o
homem (Ser-aíj tem do ser, há entre eles u
m
a
 diferença. Esta diferença
Heidegger chama de diferença ontológica e
 se dá pelo fato de que todo
ente só é n
o
 s
e
u
 ser. E
m
 outras palavras, a
 pergunta se dirige para o
ente, n
a
 perspectiva de o
 c
o
mpreendermos e
m
 s
e
u
 ser.
Falamos do círculo hermenêutico e
 da diferença ontológica que são
o
s
 dois teoremas fundamentais da fenomenologia hermenêutica. Sa
bemos, então que o
 homem (Ser-aí) c
o
mpreende a
 si m
e
s
m
o
 e
 c
o
m
preende o
 ser (círculo hermenêutico) n
a
 m
edida e
m
 que pergunta pelos
entes e
m
 s
e
u
 ser (diferença ontológica).
D
e
 plano, o
 fenômeno que toma frente nesta curta exposição é a
c
o
mpreensão. A
 partir de Heidegger, a
 hermenêutica terá raízes exis
tenciais porque s
e
 dirige para c
o
mpreensão do ser-dos-entes. Se n
o
s
paradigmas anteriores vigia a
 crença de que primeiro interpretamos
-
 através de u
m
 método 
-
 para depois c
o
mpreender, Heidegger n
o
s
m
o
stra a
 partir da descrição fenomenológica realizada pela analítica
existencial e
m
 Ser e Tempo que compreendemos para interpretar.
A
 in
terpretação é s
e
mpre derivada da c
o
mpreensão que temos do ser-dos-
-entes. O
u
 seja, originariamente o
 Ser-aí c
o
mpreende o
 e
nte e
m
 s
e
u
 ser
e, de u
m
a
 forma derivada, toma explícita essa c
o
mpreensão através da
interpretação. N
a
 interpretação, procuramos manifestar o
nticamente
aquilo que foi resultado de u
m
a
 c
o
mpreensão ontológica- A
 interpre
tação é o
 m
o
m
e
nto discursivo-argumentativo e
m
 que falamos dos e
n
tes (processo, Direito etc.) pela c
o
mpreensão que temos de s
e
u
 ser.^
ender-se a
 si m
e
s
m
o
;
 isso n
u
m
a
 espécie de esferaantepredicativa que seria o
 objeto da
exploração fenomenológica -
 daí v
e
m
 a
 idéia de círculo hermenêutico, n
o
 sentido m
ais
profundo". Stein, Racionalidade e
 Existência, p. 79.
Cf. Streck, Jurisdiçõo Constitucional e Hermenêutica, p. 197 e
 seguintes.
^
 Assim fala Heidegger: "Eh Ia interpretadón el comprender se apropia comprensora-
m
e
nte de Io c
o
mprendido por él. E
n
 Ia interpretadón el c
o
mprender n
o
 s
e
 convierte e
n
otra cosa, sino que üega a
 ser él mismo. La interpretadón s
e
 funda existendalmente e
n
el c
o
mprender, ynoes ésfe él que Uega a
 ser por médio de aquélla. La interpretación n
o
 consiste
en tomar conocimiento de Io comprendido, sino en Ia elaboración de Ias posMidades proyectadas
e
n
 el comprender'" {Sery Tiempo, p. 172) (grifamos).
2
7
2
Lento L
uiz Streck
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise
2
7
3
IPÍ
li
•11
li
m
i M
11
'i íl
E como desde sempre compreendemos o ser, não há uma ponte
entre consciência e mundo. Aquilo que era reivindicado por Kant foi
desmitificado por Heidegger no momento em que o filósofo descobriu
o vínculo entre homem e ser. Não há uma ponte entre consciência e
mundo porque desde sempre já estamos no mundo compreendendo
o ser. Ou seja, há um vínculo entre ser-aí-set e uma cooriginaridade
entre ser e mundo. Não há primeiro o Ser-at e depois o mundo ou
vice-versa. O Ser-aí é ser-no-mundo, e sua faticidade é estar-jogado-
-no-mimdo; sua existência é ter-que-ser-no-mundo, sendo que, desde
sempre, está jimto aos entes.®"
Há outras peculiaridades que poderíamos explorar na transforma
ção que se opera na Filosofia com o pensamento heideggeriano. Paia
efeitos desta investigação, nos damos por satisfeitos com a compreensão
de que a hermenêutica recebe, a partir de então, um novo tratamento,
sendo alçada ao nível do mundo prático. O que precisa ficar estabeleci
do é que o homem {Dasein) se apresenta no centro do mundo, reunin
do os fios deste. Ao escolher o homem {Dasein) como ponto central de
sua filosofia, Heidegger não se concentra em um ente com exclusão de
outros; o Dasein traz consigo o mundo inteiro.®" Isso é a^m porque
o Dasein é desde sempre ser-no-mtmdo; porque sua condição é, em si
compreendendo, compreender o ser (Círculo Hermenêutico); e compre
ende o ser através da pergunta pelo ente (diferença ontológica).
Captar as estruturas da compreensão (que, como vimos, sempre
é histórica) não é possível ser feito pela via do método, uma vez que
como elemento interpretativo, o método sempre chega tarde. O que
A iagifl heideggeriana de ser-no-mundo é de fundamental importância para com-
preender o rompimento definitivo que o filósofo efetua com relação aos dualismos
da tradição metafísica (e.^. consciência e mundo; palavras e coisas; conceitos e obje
tos etc). Como afirma Heidegger "El Dasein no es primero sólo im ser-om otro,
para luego, a partir de ser en convivenda^ Uegar a im m^do objetivo, a Ias cosas.
Este punto de partida seria tan errôneo como el dei idealismo subjetivista que ante-
pone primero un sujeto que luego, en derto modo crea un objeto. (...) El Dasein no
está primeramente delante de Ias cosas un ente que posee su propio modo de ser, smo
que el Dasein, en tanto que ente, que se ocupa de sí mismo, es ccnonginariam^te
-con otro y ser cabe el ente intramundano. (...) Sólo si hay Dasein, si el Dasem existe
como ser-en-el-mundo, hay comprensión dei ser, y sólo si existe esta comprensión se
devela el ente intramundano como Io subsistente y Io a Ia mano. comprCTsion dei
mundo en tanto que comprensión dei Dasein es comprensión ^ sí mismo. El yo y el
mundo se copertenecen mutuamente en im único ente, el Dasein, Yo y mundo no sem
dos entes, como sujeto y objeto, tampoco como yo y tu; más bien, yo y mundo son, en Ia
unidad de Ia estructura dei ser-en-el-mundo. Ias condidones fun^ment^s dei ^ pio
Dasein" {Los Problemas Fundamentales ãe Ui Fenomenología. Tradução de Juan Jose Garaa
Nono. Madrid: Trotta, 2000, p. 354-335)
^ Cf. Inwood, Heidegger, p. 33.
274 Lenio Luiz Streck
organiza o pensamento e comanda a compreensão não é uma estru
tura metodológica rígida - como acreditava Schleiermacher — mas a
diferença ontológica. Todas essas conquistas heideggerianas serão apro
priadas depois por um outro hermeneuta, Gadamer,. que encontrará
espaço para construção de sua Hermenêutica Filosófica. O título de sua
obra máxima é Verdade e Método, mas bem poderia chamar-se Verdade
contra o método ou Verdade apesar do Método, a partir da qual a herme
nêutica será radicalizada como um agir mediador através da eocperiència
da arte, da história e da linguagem.^
Veja-se o que diz Gadamer no prólogo do livro de Jean Grondin
sobre a introdução à hermenêutica filosófica: o fato de que somente
na época do romantismo o tema da hermenêutica tenha começado a
estender-se - e especialmente à teoria das ciências do espírito em seu
conjunto — tem razões ainda mais profundas. Não somente se expan
diu à jurisprudência (teoria do direito) e à teologia, senão também
à filologia e disciplinas afins. Foi sobretudo Dilthey quem deu um
passo importante nessa direção com sua psicologia descritiva. Porém,
somente quando Dilthey e sua escola chegaram a ter uma maior in
fluência sobre o movimento fenomenológico, o entender já não ficou
meramente situado ao lado do compreender e do aclarar e, em geral,
não ficou limitado a seu uso pelas ciências. Ao contrário, o entender
constitui a estrutura fundamental da existência humana, sendo que
por isso é que veio a se situar no centro da filosofia. Desse modo, per
dem sua primazia a subjetividade e a autoconsciência, que em Hus-
serl ainda encontram sua expressão no ego transcendental. Em seu
lugar se situa o outro, que já não é objeto para o sujeito, senão que este
se se encontre em uma relação de intercâmbio lingüístico e vivencial
com o outro. Por isso, o entender não é um método, e, sim, uma forma
de convivência entre aqueles que se entendem. Assim se abre uma di
mensão ao lado da qual determinados âmbitos especiais de possíveis
conhecimentos não jogam um papel paralelo ou equivalente, senão
que esta dimensão constitui a prática da vida mesma. Isto não exclin
em absoluto que precisamente os métodos da ciência Ccuninhem por
seus próprios caminhos, que consiste na objetivação dos assuntos de
sua investigação. Porém, justamente aqui se encontram também os
perigos de uma limitação teórica da ciência, que consiste em esqui
var certas experiências relacionadas com o outro ser humano, outras
palavras, outros textos e sua pretensão de validade devido à autos-
satisfáçâo metodológica. Pense-se somente nos poucos passos que se
avançaram, por exemplo, no esclarecimento da gramática estrutura-
^ Cf, Gadamer, Verdade e Método, voL L
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 275
H
i' iltf''I
lista do mito, n
o
 qual s
e
 investiram e
n
o
r
m
e
s
 energias de investigação
e
 c
e
rtamente não c
o
m
 a
 finalidade e
 o
 r
e
s
ultado de que agora o
 mito
c
o
m
e
c
e
 a
 falar m
elhor. Algo parecido s
e
 poderia dizer da semântica,
que toma c
o
m
o
 objeto o
 mimdo dos signos o
u
 da textualidade, aos
quais o
 c
o
nhecimento científico tem conseguido aproximar-se de m
a
n
eira n
o
v
a
 e
 interessante. Entretanto, a
 hermenêutica não pretende a
objetivação, s
e
não que se escutar m
utuamente e
 também, por e
x
e
m
plo, o
 escutar de alguém que s
abe narrar.^*
10.3. A
 hermenêutica jurídica diante dessa intrincada tessitura
N
a
 doutrina e
 n
a
 jurisprudência do direito ainda domina a
 idéia
da indispensabilidade do método o
u
 do procedimento para alcançar
a
 "
v
o
ntade da no
r
m
a
"
,
 o
 "espírito de legislador", a
 correta interpreta
ção do texto etc. Acredita-se que o
 ato interpretativo é u
m
 ato cogniti
v
o
 e
 que "interpretar a
 lei é retirar da n
o
r
m
a
 tudo o
 que nela contém",
circunstância que bem denuncia a
 problemática metafísica nesse c
a
m
p
o
 de c
o
nhecimento.
A
 hermenêutica jurídica praticada n
o
 plano da cotidianidade do
direito deita raízes n
a
 discussão que levou Gadamer a
 fazer a
 crítica a
o
processo interpretativo clássico, que entendia a
 interpretação c
o
m
o
 s
e
n
do produto de u
m
a
 operação realizada e
m
 partes {suhtilitas intélligendi,
subtilitas explicandi, suhtilitas applicandi, isto é, primeiro c
o
mpreendo,
depois interpreto, para só então apUcar). A
 impossibilidade dessa cisão
implica a
 impossibilidade de o
 intérprete "retirar" do texto "algo que o
texto possui-em-si-mesmo", n
u
m
a
 espécie de Auslegung, c
o
m
o
 se fos
se possível reproduzir sentidos; a
o
 contrário, para Gadamer, fundado
n
a
 hermenêutica filosófica, o
 intérprete s
e
mpre atribtd sentido (Sínn-
gebung). O
 acontecer da interpretação ocorre a
 partir de u
m
a
 fusão de
horizontes {Horizontenverschmelzung), porque c
o
mpreender é s
e
mpre o
processo de fusão dos s
upostos horizontes para si m
e
s
m
o
s
.
Algumas posturas críticas s
obre a
 hermenêutica jurídica 
-
 e
m
 e
s
pecial a
 hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer -
 receberam
u
m
a
 nítida influência da ontologia fundamental de matriz heidegge-
riana, a partir de s
e
u
s
 dois principais teoremas: o
 círculo hermenêutico
e
 a
 diferença ontológica. Para interpretar, necessitamos c
o
mpreender;
para c
o
mpreender, temos de ter irnia pré-compreensão, constituída
^
 Cf. Hans-Georg Gadamer, n
o
 prólogo a
o
 livro de Grondin, Jean. Binführung in die
phÜosophische Hemeneutík. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1991.
2
7
6
L
e
nio L
uiz Streck
de estrutura prévia do sentido 
-
 que s
e
 funda essencialmente e
m
 u
m
a
posição prévia (Vorhabe), visão prévia {Vorsicht) e
 c
o
n
c
epção prévia
(Vorgrijf) -
 que já ime todas a
s
 partes do "sistema".
Temos u
m
a
 estrutura do n
o
s
s
o
 m
odo de ser n
o
 m
u
ndo, que é a
interpretação. Estamos c
o
ndenados a
 interpretar. O
 horizonte do s
e
n
tido n
o
s
 é dado pela c
o
mpreensão que temos de algo. Compreender é
u
m
 existencial, que é u
m
a
 categoria pela qual o
 h
o
m
e
m
 s
e
 constitui. A
faticidade, a
 possibilidade e
 a
 c
o
mpreensão são alguns desses existen
ciais. É n
o
 nosso m
odo da compreensão enquanto ser n
o
 m
u
ndo que
exsurgirá a
 "
n
o
r
m
a
"
 produto da "síntese hermenêutica", que se dá a
partir da faticidade e
 historicidade do intérprete.
D
e
 qualquer forma, tudo isso que foi descrito aqui aponta para o
século X
X
 c
o
m
o
 a
 v
e
rdadeira "
e
r
a
 d
a
 hermenêutica".^ E
s
s
a
 e
r
a
 f
u
n
damenta a
 tese de que a
 Teoria do Direito, durante o
 século X
X
,
 efetua
u
m
a
 espécie de recepção destas três revoluções descritas até aqui (da
do fundamento; e
 da ontologia) e
n
c
o
ntrando s
e
u
 ponto
^
 De re^trar que a passagem de (e/ou o
 rompimento c
o
m) u
m
 modelo de interpreta
ção do Direito de c
u
nho objetlvista, reprodutivo, começa a
 ser feita a partir dos apartes da
Semiótica, e
m
 sua matriz pragmática, e
 da hermenêutica filosófica, c
o
m
 a
 hermenêutica antirre-
produtiva de Gadamer, pela qual se passa da percepção à compreensão. O
u
 seja, tanto a
 prag
mática c
o
m
o
 a
 hermenêutica, a
o
 r
o
mperem c
o
m
 o
s
 duahsmos metafísico-essencialistas
(essência e
 acidente, substância e
 propriedade e
 aparências e
 realidade), contribuem
para a
 construção de u
m
a
 hermenêutica jurídica que problematiza as recíprocas impli
cações entre discurso e
 realidade, além de desmi(s)tificar a
 tese, prevalecente n
o
 âmbi
to do s
e
n
s
o
 c
o
m
u
m
 teórico dos juristas, da possibilidade da separação dos processos
de produção, de interpretação e
 da aplicação do texto normativo, m
o
strando, e
nfim,
c
o
m
o
 contraponto, que existe, n
o
 devir da inserção do s
e
r
-
n
o
-
m
u
ndo, u
m
 processo de
produção, circulação e
 c
o
n
s
u
m
o
 do discurso jurídico, e
m
 que, somente pela linguagem
-
 vista c
o
m
o
 condição de possibilidade e
 não c
o
m
o
 mero instrumento ou terceira coisa que se
interpõe entre sujeito e objeto -
 é possível ter acesso a
o
 m
u
ndo (do Direito e da vida). A
 propó
sito da aproximação entre a
 hermenêutica filosófica e
 a
 pragmática wittgensteiniana,
observe-se, c
o
m
 Stein, que as formas de vida de Wlttgenstein (descritas espedahnente
n
o
s
 parágrafos 7,19 e
 23) correspondem aos modos-de-ser do estar-aí de Heidegger.
O
 linguisticismo fènomenalisfa do Tratactusfoi superado graças à leitura de '
'Ser e Tempo" e é
esta a
 obra que preparou a virada para as Investigações. Cf. Stein, Seis Estudos, op. cit., p. 16.
Vattimo, por s
e
u
 turno, acrescenta que foi graças à urbanização da província heideggeríana
que hoje é possível falar cada vez mais de u
m
a
 proximidade entre Heidegger e
 Wittgenstein. Tal
proximidade já havia sido assinalada por Pietro Chiodi e
 depois por Karl Otto Appel.
Somente depois da "urbanização" é que fin
 possível u
m
a
 aproximação c
o
m
o
 a
 que fala Rorty,
que vê na filosofia do século X
X
 u
m
a
 linha que se define c
o
m
 r
^ência a
 três nomes: Dewey,
Wittgenstein e Heidegger. A
 possibilidade m
e
s
m
a
 de semelhante aproximação deriva
da leitura de Heidegger que urbaniza as teses da linguagem c
o
m
o
 m
o
r
ada do ser. A
tese fúndamental de Gadamer, de que "ser que pode ser c
o
mpreendido é linguagem",
a
n
u
n
cia tam desenvolvimento do heideggerismo pelo qual o
 ser s
e
 tende a
 dissolver n
a
lingiugem, o
u
 pelo m
e
n
o
s
 nela se resolver (cf. Vattimo, GiannL El fin dela modemidad
-
 nihilismo y hermenêutica e
n
 Ia cultura posmodema. México: Gedisa, 1985, p. 118),
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 
2
7
7
|i
1
i
i
P
I:
de estofo na filosofia hermenêutica de Heidegger e na Hermenêutica
Filosófica de Gadamer. Esta recepção é percebida em diferentes graus
em diversos autores* Mas, de uma forma global, em todos eles e possí
vel perceber aquilo que José Lamego chama de "acesso hermenêutico
ao Direito".
No que tange à fenomenologia hermenêutica - entendida glo
balmente, comportando as descobertas tanto de Heidegger quanto de
Gadamer - é possível notar nas obras de Josef Esser, Friedrich Müller,
Arthur Kaufmann e Ronald Dworkin^^ a recepção dos principais con
ceitos desenvolvidos por esta tradição hermenêutica do século 20. Em
todos estes autores, há a possibilidade de se pensar em um acesso her
menêutico para o Direito.
Com a filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica - e isso
poderá ser vislumbrado na seqüência de forma mais delineada — é
posta em xeque a idéia de um funãamentum inconcussum, superando-
se a dicotomia do esquema sujeito-objeto. Nem mais o assujeitamento
do sujeito às essências e nem o solipsismo do sujeito assujeitador dos
(sentido dos) objetos. Desse modo, na medida em que nos libertamos
de tais ontologias(tradicionais), é dizer, na medida em que passamos a
não acreditar na possibilidade de que o mundo possa ser identificado com
independência da linguagem, ou que o mundo possa ser conhecido ini-
^ No contexto do direito brasileiro, também minha obra apresenta essa "recqjção" da
hermenêutica pela teoria do direito (além da presente, ver também Verdade e Consenso,
op. cit; O que é isto - decido conforme a minha consciêTicia?. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2013; Streck, Lerdo; Oliveira, Rafael Tomaz de. O que é isto - as garantias pro
cessuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012; O que é isto — o precedente ju
dicial eas súmulas vinculantes? op. cit.- Garantismo, hermenêutica e (neokonstitucionalismo:
um debate com Luigi Ferrajóli, op. cit). Quanto aos demais autores citados no texto, ^ o
importantes: Dworkin, O Império do Direito; Uma questão de princípio. São Paulo: Martins
Fontes, 2001; Leoando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Kaufmann,
Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004; Müller, Frie
drich. Direito Linguagem e Violência: elementos de luna teoria constitucional. Tradução
de Peter Naumann. Porto Alegre: Sérgio Antorüo Fabris Editor, 1995; Métodos de Traba
lho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; Lamego, Hermenêutica
e Jurisprudência. Análise de uma Recepção. Esser, Josef. Principio y norma en Ia elaboraciónjurispruãencial Dei derecho privado. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1961, Tassinari, Cla
rissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Li
vraria do Advogado, 2013. Motta, Francisco José Borges, levando o direito a sério: iima
crítica hermenêutica ao protagonísmo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012, Ramires, Maurício. Critica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Ale
gre: Livraria do Advogado, 2010. Oliveira, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o coreto
de princípio: a hermenêutica e a (injdeterminaçâo do direito. Porto Alegre: Ijvraria do
Advogado, 2008. Sausen, Dalton. Súmulas, repercussão geral e recursos repetitivos: crítica
à estandardização do direito e resgate hermenêutico. Porto Alegre: Livraria do Advo
gado, 2013.
cialmente através de um encontro não lingüístico, e que o mundo pos
sa ser conhecido como ele é, intrinsecamente, começamos a perceber
- graças à viragem lingüística da filosofia e do nascimento da tradi
ção hermenêutica^ - que "os diversos campos da filosofia, que antes
eram determinados a partir do mundo natural, poderiam ser multi
plicados ao infinito por meio da infinitividade humana. A hermenêu
tica será, assim, esta incômoda verdade que se assenta entre duas cadeiras,
quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta - é
uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e
da linguagem. A hermenêutica, é assim, a consagração da finitude".^
A presente obra pretende mostrar, nessa linha, que os contributos
da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspecti
va para a hermenêutica jurídica, assumindo fimdamental importância
as obras de Heidegger e de Gadamer, Com efeito, Heidegger, desen
volvendo a hermenêutica no nível ontológico,^ trabalha com a idéia
de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compre
ensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão
possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de
aquisição prévia, vista prévia e antecipação, nascendo desta estrutura
a situação hermenêutica.^ Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao
^ Enquanto hermenêutica, radicaliza-se a superação da metafísica, que, em sua essên
cia, a partir dessa postura, nada mais é do que a permanente tentativa de negação da
finitude, superação da temporalidade. Em sfíitese, metafísica é a pretensão a uma verda
de absoluta, e isso signifíca para a hermenêutica autonegação da finitude. Cf, Oliveira,
Manfredo, op. cit, p, 231.
Cf. Stein, Emildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996,
p. 38 e segs.
^ É relevante ressaltar, com Stein, que a ontologia heideggeriana é ap>enas o nome que
se dá à compreensão da totalidade. Não há (outro) universo para o ser humano a não
ser o universo que a hermenêutica pode desenvolver e mostrar. Entretanto, Heidegger
fala de uma ontologia fenomenológica que é uma hermenêutica do ser-aí. Acontece que
a palavra ontologia a partir de Heidegger passa a tomar um outro sentido. Forque ele dirá o
seguinte: a compreensão que o homem tem do sentido é a de que nós só temos o sentido
da compreensão porque se realizam no ser humano duas compreensões: a compreensão
de si mesmo e a compreensão do ser, Cf. Stein, op. cit Ver, também, Heidegger, Martin.
Ser € Tempo. 5. ed., partes I e IL Petrópolis: Vozes, 1995. Em Gadamer, a ontologia não mais
pergunta pdo efetivamente existente, mas pelo "Ser enquanto sentido", a partir de onde somente
se pode determinar o que seja a realidade e em que grau algo pode valer como real (Gadamer,
Der Weg in die Kehre, in: Hegel, Husserl, Heidegger, Tübingen, 1987, p. 272-284). O Ser,
enquanto sentido, dá-se linguistícamente, na formulação de Gadamer. Daí a assertiva clássica:
Ser que pode ser compreendido é linguagem. É por isso que a linguagem emerge como
o horizonte intranscendível da ontologia hermenêutica. Cf. Oliveira, Reviravolta, op. cit.,
p.232,
^ Ver Heidegger, Ser e Tempo, op. cit.; também Stein, Emildo. A questão do método na
JUõsqfia, op. cit., p. 104 e segs.
278 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 279
f í
ILLi,
■Ii
t:
1 ^
I.:
i i
4
dizer que ser que pode ser compreendido é-linguagem, retoma a idéia
de seu professor da linguagem como casa do ser, em que a linguagem
não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí
que, para Gadamer,^^ ter um mundo é ter uma linguagem. As pala
vras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez
que não se pode crer em um significado mfinito, o que caracterizaria
o dogma. A hermenêutica, desse modo, é imiversal, pertence ao ser
da filosofia, pois, como assinala Palmer,'*^ "a concepção especulativa
do ser que está na base da hermenêutica é tão englobamte como a ra
zão e a linguagem".
10.4. A hermenêutica filosófica: abrindo caminho para uma
hermenêutica jurídica crítica
lOA.l. Da filosofia hermenêutica (Heidegger) à hermenêutica filosófica
(Gadamer)
De pronto, é necessário observar/advertir o leitor para a diferença
que existe entre hermenêutica clássica, vista como pura técnica de in
terpretação (Auslegung), e a hermenêutica filosófica, de matriz gadame-
riana, que trabalha com um "atribuir sentido" (Sinngebung), isto porque
"en Ia compreensión hermenêutica entendida al modo gadameriano se
pone también en juego Ia autocomprensión, revelándose en ella Ia pro-
pia dimensión dei sujeto: 'Es también siempre Ia obtención de
una autocomprensión (Selbsvertãndnisses), más ampUa y profunda. Pero
eso significa que Ia hermenêutica es filosofia y, en tanto filosofia, filo
sofia práctica'. De acuerdo con Gadamer, tal comprensión posee siempre
una dimensión lingüística. Así, 'Ia comunidad de toda comprensión, que
se basa en sua carácter lingüístico (SpracMíchkeit), me parece que consti-
tuye un pimto esencial de Ia experienda hermenêutica'".^
Por isso Gadamer^ vai dizer que a hermenêutica como teoria
filosófica diz respeito à totalidade de nosso acesso ao mundo (Weltzu-
431 Ver Gadamer. Verdad y Método, leU; também EncamaçÔo, João Bosco da. Que é isto, o
Direito? Taubaté, SP: Cabral Editora, 1997, p. 199.
4^ Ver Paimer, Richard, Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, p. 215. Do mesmo modo, con
sultar Encamação, ibidem.
^ Cf. Blanco, op. cit., p. 242.
434 Cf. Gadamer, Hans Georg. Hermenêutica. In: Diccionario de Hermenêutica. Una obrainterdisciplinar para Ias ciências humanas. Dirigido por Ortiz-Osés y P. Lanceros, Bilbao:
Universidad de Deusto, 1997, p. 228 e 229.
I
1
L
{■<'
!■>
í
gang). Pois é o modelo da linguagem e sua forma de realização - ou
seja, o diálogo - que suporta não somente o entendimento entre os
homens, senão também o entendimento sobre as coisas de que ê feito
nosso mundo. A teoria do conhecimento no sentido tradicional tem
subvalorizado a articulação lingüística {Sprachlichkeit). Nosso pensa
mento atual, entretanto, encontra-se orientado de modo decisivo ao
fenômeno da linguagem. Isto se manifesta, acentua Gadamer, "em
minha própria teoria, no que concerne ao papel que joga a linguagem
e o lingüístico para toda a compreensão e o conhecimento (Verstehen
und Erkenneny.
A (nova) hermenêutica pretendida por Gadamer surge no hori
zonte de um problema totalmente humano, diz Fernandez-Largo: a
experiência de encontrarmo-nos frente à totalidade do mundo como
contexto vital da própria existência. A partir disto, a pergunta acerca
de como ê possível o conhecimento e quais são as suas condições, pas
sa a ser um problema menor dentro da globalidade da questão refe
rente ao compreender da existência no horizonte de outros existentes.
O que a nova hermenêutica irá questionar ê a totalidade do existente
humano e a sua inserção no mundo. Se Schleiermacher havia liberado
a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da
dependência , das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a herme
nêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento
puro de experiência da existência humana, E Heidegger será o corifeu
dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como
forma de definir o Dasein (ser-aí). O que nos ê dado a entender acerca
da existência humana, com sua finitude, sua mobilidade, sua projeção
para o futuro e, em suma, sua precariedade, tudo isto pertencerá à
forma primordial do compreender. Por isto, Gadamer vai dizer, já no
início de Verdade e Método, que a compreensão pertence ao ser do que
se compreende.433
Para desenvolver sua tese, Gadamer^^^ diz que Heidegger, quan
do ressuscita o tema do ser e ultrapassa todo o pensamento metafísico,
ganha, frente às aporias do historicismo, uma posição fundamental
mente nova. O aspecto da compreensão não é um conceito metódi
co como queria Droysen e tampouco é, como entendia Dilthey, uma
operação que seguiria, em direção inversa, ao impulso da vida sobre a
idealidade. Compreender ê o caráter ôntico original da vida humana
433 Cf. Femandez-Largo, Antonio Osuna. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer.
Valladolid, Espana: Universidad dè Valladolid, 1993, p. 42 e 43, mediante tradução li
vre.
434 Cf. Gadamer, Verdad y Método I, op. cit., p. 325.
i I
I I
280 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 281
I 1'
i f

Outros materiais