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A LDB E O PLANO DE CARREIRA EM MINAS GERAIS: ENTRE O DISCURSO E A REALIDADE Pedro Lacerda Santos1 – 59430 Rayner Richard de Campos2 – 71631 Talita dos Santos Alves Vilela3 – 71641 RESUMO O Estado no contexto atual é marcado pela forte confluência aos interesses da reprodução ampliada do capital, se organizando a partir das determinações impostas pelo modelo neoliberal. Dessa maneira, tal articulação – Estado-capital – passa a estruturar as políticas públicas nos mais diversos setores, inclusive na educação. Nessa configuração, estabelecem-se novas e renovadas contradições no âmbito da relação entre o aparato legal e o que de fato acontece na realidade. Assim, se faz relevante um comparativo entre as determinações contidas nos artigos 67 da LDB, 4° e 6° do Plano de Carreira docente do estado de Minas Gerais, visando uma análise crítica daquilo que está definido pela legislação em relação aos processos que se estabeleceram nas escolas a partir das reformas de caráter neoliberal. A escola e a profissão docente são alvos da precarização fruto desse processo, de forma que as garantias legais são desvirtuadas em favor de interesses e intencionalidades que não condizem com as demandas sociais mais urgentes. Palavras-chave: Lei de Diretrizes e Bases – Plano de Carreira – Reformas neoliberais – Precarização do trabalho docente. Introdução Os problemas da educação no Brasil não se restringem somente aos desafios pontuais, específicos. Ao longo da formação da sociedade brasileira, a influência – forte, diga-se – de fatores e determinações externas tem se espraiado pelos mais diversos âmbitos, como economia, política, cultura, valores, políticas públicas e, consequentemente, a formação e organização do sistema de ensino brasileiro, afetando desde a constituição salarial dos profissionais da educação até os processos de ensino aprendizagem. A inserção, no rol das políticas públicas nacionais, de uma série de determinações provenientes de órgãos e entidades internacionais – em que se destacam o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – resultou em profundas modificações na estrutura das instituições nacionais públicas, de forma que a escola e o sistema de ensino como um todo se 1 Graduando do 11º período de Geografia da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: pedro.lacerda@ufv.br 2 Graduando do 3° período de Letras da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: rayner.campos@ufv.br 3 Graduanda do 3° período de Letras da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: talita.vilela@ufv.br 1 tornaram exemplos emblemáticos dessa relação. Em um olhar mais amplo sobre as características desse processo, podemos afirmar que o que se tem é a reformulação da condição da dependência externa, agora em um nível institucionalizado. O grau dessa dependência, no entanto, é variável nos diversos setores da sociedade, mostrando-se imponente na organização da educação pública. Ao contrário do que muitas vezes é disseminado pelos veículos de imprensa hegemônicos, essa combinação entre educação e o ideário privado, de cunho mercantil, acarretou um complexo processo de precarização e desvalorização do trabalho docente e da centralidade da qualidade no bojo do sistema educacional brasileiro. O que aparentemente vem envolto por uma áurea de desenvolvimento e de melhoria da educação do país, na verdade, é um passo largo para a desestruturação e degradação impiedosa das instituições públicas nacionais, se colocando como uma das principais frentes do avanço das políticas neoliberais. Sendo assim, o Estado passa a se tornar o principal aliado dos interesses privados, legitimando, através de leis e políticas públicas, os imperativos da acumulação capitalista. Em um dos maiores e de grande destaque econômico estados da federação, essa relação contraditória se mostra cada vez mais renovada, em pleno estreitamento, resultando nas mais diversas consequências, muitas delas negativas. Minas Gerais vem consolidando essa “parceria”, de modo a aliar precarização à resultados que satisfazem somente aos novos mecanismos impostos. Tal processo se vale das diretrizes legais através das imprecisões, indefinições e brechas contidas nas leis, desvirtuando-as, novamente, em favor das necessidades criadas para a reprodução do sistema. A vivência e a intensa relação com o meio escolar nos permite questionar a validade e eficácia das disposições legais acerca da realidade das escolas brasileiras e, mais especificamente, do estado de Minas Gerais, tendo como base a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), lei 9394 de 1996, em que destacamos o artigo 67 para nossa análise, e o Plano de Carreira docente mineiro (lei 15293 de 2004), em que o foco são os artigos 4° e 6°. A prática, nesse caso, se mostra muito distante daquilo que os documentos apontam. A constante reflexão acerca dos problemas e dificuldades encontradas no caminho da atividade docente, somadas aos entraves recorrentes ao sistema de ensino, de forma geral, suscitam a discussão sobre o papel do Estado no atual período socioeconômico, bem como sobre o posicionamento do mesmo no desenvolvimento das políticas públicas, em que 2 destacamos aquelas referentes à educação. A postura do Estado muitas vezes se mostra alheia aos diversos problemas encontrados na realidade, descaracterizando sua função básica, inerente, em prol de outras intencionalidades e objetivos que escapam às demandas sociais. E a educação de qualidade passa por esse “desvio de conduta” ao não atender plenamente sua função social. De forma geral, tais intencionalidades, desvirtuadas das demandas sociais mais amplas, dificilmente saltam aos nossos olhos, evidenciando a necessidade de leituras e estudos atentos às palavras e aos discursos que ora estão explícitos, ora se esquivam em meio à concepções envoltas pela suposta ideia da racionalização, otimização e desburocratização do aparato público, mas que, na verdade, desandam para um pragmatismo muitas vezes infértil e desconectado da realidade dos problemas sociais brasileiros. O presente trabalho busca, assim, fazer um comparativo entre as determinações contidas nos artigos 67 da LDB, 4° e 6° do Plano de Carreira docente do estado de Minas Gerais, visando uma análise crítica daquilo que está definido pela legislação em relação aos processos que se estabeleceram a partir das reformas de caráter neoliberal. Para atender a esse objetivo, nos atemos ao sentido e ao contexto em que a LDB foi criada, bem como buscamos interpretação crítica dos documentos em questão e da literatura relacionada. Lei de Diretrizes e Bases: uma primeira aproximação Para entendermos a importância da lei na direção das políticas públicas educacionais, faz-se necessário um breve histórico de sua construção ao longo da formação legal e institucional do Brasil. Essa lei é a base para as diretrizes e leis estaduais – como os Planos de Carreira – e municipais. A LDB é a lei que rege e define o sistema educacional brasileiro seguindo os princípios da Constituição Federal. Foi publicada pela primeira vez em 20 de dezembro de 1961 pelo então presidente João Goulart, vinte e quatro anos depois de ser mencionada na constituição de 1934. Até o ano de 1960 não havia uma lei específica para a educação, o sistema educacional brasileiro era centralizado e todos os estados e municípios seguiam o mesmo modelo. Houve um grande debate por um longo período, chegando-se numa lei que não correspondeu exatamente às expectativas dos envolvidos noprocesso. Na verdade, 3 transformou-se numa solução de compromissos e acordos entre defensores da escola pública e grupos vinculados à rede particular. Durante o regime militar em 1971 foi implantada no país uma nova lei de Diretrizes e Bases contendo alterações com objetivo de conter aspectos liberais que constavam na lei anterior e outras estratégias para contenção de movimentos contrários à ditadura dentro do contexto escolar. A lei permaneceu em vigor até a promulgação da mais recente em 1996. A atual LDB começou a ser discutida em 1986 a partir de um grande movimento de educadores, com a mobilização e o incentivo popular, determinados a participar e influir em uma nova política educacional. Várias entidades apresentaram propostas de legislação com projetos completos e outros com temas específicos. Dentre essas entidades estavam a ANDES (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior), ANPED (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação), ANDE (Associação Nacional de Desenvolvimento da Educação), FENOE (Federação Nacional de Orientadores Educacionais), UNE (União Nacional dos Estudantes) e CPB (Confederação dos Professores do Brasil). Outros grupos que apresentaram propostas foram a FENEN (Federação Nacional de Estabelecimentos de Ensino), grupo empresarial das escolas privadas, e o segmento religioso católico. Em 1988 o texto de Saviani “Contribuição à elaboração da nova LDB: um início de conversa” foi usado pelo deputado Octávio Elísio para iniciar a tramitação da LDB sob a forma de anteprojeto (BRITO, 1998). Surgiram então as emendas e as comissões para os pareceres da Câmara. Depois de constituídas, as mesmas, elegeram o Deputado Jorge Hage como relator do projeto que segundo Saviani (1998), demonstrou competência, empenho e seriedade ao ouvir e colher todas as ideias. Esse projeto passa a ser conhecido como “substitutivo Jorge Hage”. Não obstante, surge em 1992 outro projeto de LDB que, por entrar pelo Senado, caminho contrário do projeto já em andamento, foi denominado “Azarão”. No Brasil um Projeto quando inicia o processo pela Câmara seguirá ao Senado para sua revisão e após retorna para a casa onde iniciou o processo para sua aprovação final e envio ao Presidente da República. Em caso da entrada pelo Senado, o processo é o mesmo e a Câmara é que passa a ser a casa revisora (SAVIANI, 1998). Seu autor foi o Senador Darcy Ribeiro, considerado de ideais progressistas e batalhador da democracia e naquele momento tentava forjar a aprovação de uma lei que serviria aos interesses dominantes. Por fim, em fevereiro de 1996, foi aprovado o Substitutivo Darcy Ribeiro, que por 4 conter muitas alterações de sua versão original teve de voltar à Câmara para nova votação, tendo como relator o Deputado Jorge José. De acordo com Brito (1998), o texto final foi sancionado sem vetos, o que demonstra a negociação realizada com o governo Fernando Henrique Cardoso e a articulação com as diretrizes educacionais do MEC. Dessa forma, podemos entender que a atual LDB entra em vigor em meio ao processo das reformas neoliberais, que trariam enormes transformações à educação do país como um todo. Reformas neoliberais e globalização: a reestruturação da dependência e a consequente precarização do aparato público O processo histórico de construção e organização da sociedade brasileira vem se caracterizando pela incisiva influência – e, por vezes, determinação – de fatores externos, considerando, de maneira ampla, os contextos socioeconômicos e políticos mais gerais que regem as estruturas sociais de boa parte do mundo. Essa situação, que caracteriza a realidade brasileira desde o período colonial, ganha proporções ampliadas com o avanço do sistema capitalista e, mais ainda, com o desenvolvimento da atual fase de acumulação, conhecida como globalização, haja vista sua dimensão mundial de abrangência. Assumindo que o processo de globalização, marcado pela intensificação dos fluxos – sejam eles de caráter concreto, como o fluxo de mercadorias e pessoas, ou de características menos tangíveis, como os fluxos de informações, capitais, ordens e determinações políticas – tomou forma e se expandiu a partir da década de 1970, podemos afirmar que é nesse período que o grau de influência externa alcança níveis de proporções extremamente elevadas. Não queremos induzir à ideia de que nos períodos anteriores à década de 1970 o Brasil podia ser definido como um país mais “autônomo”, no entanto, é inegável que a expansão do mercado dito internacional e a conformação de um sistema financeiro de proporções globais, configuraram um grau de (inter)dependência entre os países, e também entre esses e as instituições internacionais, inédito até então. Ao falarmos do processo de dependência externa, considera-se que o grau de influência é variável entre cada país, como nos foi apontado por Duarte (2010), de acordo com suas características sociais, políticas, históricas e, cada vez mais, econômicas. Os países 5 periféricos têm, assim, menor poder de influência e sucumbem às determinações externas – tanto aquelas provenientes de outros governos como de organizações financeiro monetárias de atuação global – principalmente quando estas envolvem grandes quantias de recursos financeiros. Nesse sentido, se estabelece a associação entre os Estados – no caso em específico, o Estado brasileiro – e os interesses da acumulação capitalista, resultando no alinhamento entre a reprodução ampliada do capital e as políticas públicas. Essa confluência de interesses abarca não só a dimensão concreta da atuação do Estado, mas possibilita também a construção de um discurso hegemonizado pelo próprio governo e pela classe dominante que, não por coincidência, é a parcela mais interessada e beneficiada com essa organização do sistema socioeconômico. Ao internalizar e disseminar o discurso hegemônico – pensado nos grandes centros de decisão, mas também claramente combinado aos interesses da elite nacional –, não só o Estado, mas a sociedade, de uma forma geral, passa a incorporar ideais e valores que têm por finalidade, unicamente, a reprodução das condições desiguais responsáveis tanto pela supervalorização da dimensão econômica quanto pelo processo de subvalorização do caráter social encontrado nas políticas públicas e no aparato legal brasileiro. Dessa forma, nem sempre as políticas públicas atendem ao que deveria ser o foco de sua ação, ou seja, o “público”, incorporando em suas entrelinhas uma gama de pressupostos especificamente relacionados aos interesses privados. Laura Tavares Soares, em sua eficiente análise desse processo, sintetiza algumas das principais mudanças por ele engendradas: Os direitos sociais perdem identidade e a concepção de cidadania se restringe; aprofunda-se a separação público-privado e a reprodução é inteiramente desenvolvida para este último âmbito; a legislação trabalhista evolui para uma maior mercantilização (e, portanto desproteção) da força de trabalho; a legitimação (do Estado) se reduz à ampliação do assistencialismo (SOARES, 2002, p. 13). Essa nova configuração é fruto, principalmente, da inter relação entre o Estado e as instituições internacionais de financiamento. As crises estruturais do sistema capitalista que assolam com maior intensidade as economias periféricas, criam as condições propícias para que essas instituições ganhem papel central nas economias nacionais e na própria organização estatal, através do condicionamento dos empréstimosàs novas demandas do capital, ditadas pela lógica neoliberal da economia mundial. Dessa forma, a implementação de medidas que 6 possibilitam o desenvolvimento mais fluído da acumulação capitalista, foi sendo realizada em diversos setores do Estado e da economia. Privatizações de empresas e serviços, abertura ao capital internacional, diminuição ao protecionismo da indústria nacional, desregulamentação da economia e do trabalho, resultando na precarização das condições dos trabalhadores dos mais variados setores. Essas transformações afetam a organização do trabalho como um todo, se reverberando desde a empresa privada até os serviços públicos, carregando consigo outra concepção da função do Estado, como enfatizado por Soares, ao dizer que um dos componentes ideológicos por trás desse tipo de proposta é a ideia de que o setor público caracteriza-se, por princípio, em qualquer circunstância, como indeficiente e ineficaz, ao contrário do setor privado, o único a possuir “racionalidade” e uma “vocação” capazes de levar ao crescimento econômico. […] Essa ideologia espalhou-se para além dos limites do setor produtivo, estendendo-se para a área social, como a Saúde e a Educação, em que a “superioridade” do setor privado foi também apregoada (SOARES, 2002, p. 40). A educação no país vem sofrendo, também, uma reestruturação que segue esse redimensionamento da relação entre Estado e capital. Esse setor em particular passa a sentir a força das imposições advindas dos organismos internacionais. Segundo Santos (2004), estes, mas principalmente o Banco Mundial, passam a considerar a educação como um setor estratégico ao desenvolvimento capitalista. A atuação desse banco na organização das políticas públicas educacionais, como nos mostra Maria Clara Couto Soares (1998), ganhou maior notoriedade na década de 1990, ao incorporar em sua pauta o financiamento da educação nos países periféricos mediante condicionantes que, em sua essência, têm como finalidades a diminuição da interferência do Estado e a preparação dos alunos ao modelo neoliberal. Esse imperativo veio acompanhado da precarização da profissão docente nos diferentes níveis do ensino no país, bem como da deterioração da qualidade desse ensino. Essa nova lógica que é implementada na organização escolar tem o estado de Minas Gerais como um de seus maiores incorporadores e difusores, principalmente através da política denominada de “Choque de Gestão”4, pensada como uma reformulação completa da administração pública. Segundo Augusto, as medidas implementadas na reforma do Estado, denominada “Choque de Gestão” 4 O Choque de Gestão foi uma forma específica adotada pelo estado de Minas Gerais para a reprodução do ideário e das práticas neoliberais. Isso se torna claro a partir da disseminação das ideias de otimização e racionalização da gestão pública, além da precarização evidente das condições de trabalho no setor público. Essa questão é melhor analisada por Maria Helena Oliveira Gonçalves Augusto (2005). 7 preveem corte de despesas, redução de custos e enxugamento na área de pessoal da educação, e arrocho salarial. Tais medidas acabam se constituindo em restrições e obstáculos à melhoria da prestação de serviços educacionais […] (AUGUSTO, 2005, p. 2). O Choque de Gestão é, assim, extremamente representativo das políticas neoliberais e da precarização e desregulação que estas causam no mundo do trabalho, suas determinações seguem a cartilha desse ideário, reverberando na desestruturação do trabalho do professor, que passa a incorporar esses novos objetivos, focados sempre no resultado e não no processo de ensino aprendizagem. Não é nosso objetivo analisar o Choque de Gestão em suas minúcias, no entanto, tais características e diretrizes são de suma importância para a compreensão da condição da carreira docente em Minas Gerais. Dessa forma, nos remeteremos um pouco mais a essa política de governo no último tópico. LDB e Plano de Carreira em Minas Gerais: contradições institucionalizadas Até o presente momento, buscamos caracterizar o contexto mais geral em que ocorrem essas transformações no mundo do trabalho, em especial, no trabalho docente. Nessa parte, a análise estará direcionada às contradições encontradas na realidade escolar, principalmente no que tange às condições do professorado em Minas Gerais, e aquilo que consta nas leis, em que destacaremos o artigo 67 da LDB e o Plano de Carreira do estado, que visam regulamentar, em tese, os direitos dessa classe trabalhadora. Partimos da constatação de que a situação encontrada na grande parte das escolas públicas estaduais não reflete o que está previsto em lei, e as condições de trabalho do professorado se mostram muito aquém do que poderia se considerar necessário para a construção de um ensino efetivamente transformador da sociedade. Nesse sentido, a compreensão do aparato legal que abrange o trabalho do professor se faz relevante. O artigo 67 da Lei de Diretrizes e Bases aponta, antes de mais nada, para a valorização do profissional docente, instituindo as diretrizes para estruturação de condições dignas de trabalho necessárias ao desenvolvimento da educação. Segundo este, os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; 8 II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho (BRASIL, 1996, p. 48, grifo nosso). Os termos propostos pela LDB, mesmo com suas limitações, como o reforço do papel da avaliação do desempenho, a nosso ver, são condizentes com o estabelecimento das condições para que o professor tenha uma estrutura de trabalho razoável. No entanto, na prática, a desvalorização da profissão tem se mostrado muito mais efetiva do que a própria lei. Destacamos na citação anterior a afirmação de que os Planos de Carreira devem garantir a valorização da atividade docente e, de fato, essas garantias constam no papel, mas sucumbem aos interesses que permeiam a realidade. O Plano de Carreira do estado de Minas Gerais, assim como a LDB, deixa claro a garantia dessas condições, no entanto, a contradição se estabelece ao confrontarmos tais diretrizes aos pressupostos da política do Choque de Gestão. Ao que nos parece, o último passa a anular o primeiro, principalmente quando considerado a necessidade de investimentos públicos na educação por parte do estado. Ao mesmo tempo em que o Plano de Carreira fala em investimento por parte do governo – seja nas garantias salariais, na formação continuada, nas condições adequadas de trabalho, etc. –, o Choque de Gestão estabelece o corte dos gastos públicos. E a educação vem sendo, ao longo dos últimos anos, uma das mais afetadas por essa política de contração da intervenção do estado. Os salários não condizentes com a carga e a importância do trabalho, são constantemente alvo de críticas e de reivindicações, como paralisações e greves, e desmotivam o professor a se aprimorar. Em busca de salários que proporcionem melhores condições de vida, o professor é obrigado a aumentar a carga horáriade aulas dadas, muitas vezes lecionando em mais de um colégio e acumulando cargos, comprometendo assim, a qualidade do seu ensino. Obviamente, a desestruturação do ensino não se resume às questões salariais, mas essas são parte do “pacote” de posturas do governo que condicionam a precarização do nosso ensino. O Plano de Carreira, em seu artigo 4°, estabelece a estruturação das carreiras dos Profissionais de Educação Básica, garantindo, dentre outras coisas, “remuneração compatível com a complexidade das tarefas atribuídas ao servidor e o nível de responsabilidade dele 9 exigido para desempenhar com eficiência as atribuições do cargo que ocupa” (MINAS GERAIS, 2004, sem página). Se nos atentarmos às condicionantes “complexidade das tarefas” e “nível de responsabilidade” para a questão salarial, somos levados a crer que, para o governo estadual, a educação não seria uma demanda social essencial, haja vista que “responsabilidade” e “complexidade” são fatores mais que inerentes à profissão docente. Ao que parece, o governo não entende isso pela mesma ótica, se posicionando quase sempre em oposição às reivindicações salariais dos professores. Relaciona-se à questão salarial outro inciso contido no mesmo artigo do Plano de Carreira que diz respeito às condições de trabalho dos professores – referente também ao inciso VI da LDB – tendo como fundamento: “a humanização da educação pública, observada a garantia de: a) gestão democrática pública; b) oferecimento de condições de trabalho adequadas” (MINAS GERAIS, 2004, sem página). A contradição, mais uma vez, é um elemento marcante na relação entre teoria e prática. Buscar sinais evidentes desse processo de “humanização da educação pública” no bojo das políticas do Choque de Gestão não se configura em uma tarefa simples. De certa forma, esse termo em destaque parece ainda mais contraditório, pois a escola é humana em sua concepção mais fundamental, a partir das inúmeras relações sociais que nela se estabelecem, não é o Estado, a partir de determinações verticais – de cima pra baixo –, que vai estruturar essa humanização, ela já existe, mas é desvirtuada, muitas vezes pelo próprio Estado. Ainda nesse sentido, tanto a LDB como o Plano de Carreira em questão, não deixam claro quais seriam essas “condições de trabalho adequadas”, configurando nada mais que “palavras mortas” a essa definição. Faltam materiais, faltam livros, faltam laboratórios, faltam professores, a gama de problemas estruturais – subjetivos e materiais – é enorme. Enquadramos nesse aspecto a própria falta de autonomia que o profissional da educação tem em sua prática cotidiana, o que também está no âmbito da precarização das condições de trabalho e pode ser entendido como um processo de desumanização da educação, considerando que a atividade docente passa a ser pensada externamente ao ambiente escolar, desarticulada da realidade em que vivem professores e alunos. As palavras de Augusto (2005), ao analisar as escolas da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, se colocam nesse sentido: “a forma como se materializa, no cotidiano escolar, o trabalho pedagógico, torna visível a dicotomia entre o discurso político em satisfazer demandas sociais por educação de qualidade, e o real atendimento, ante a contenção de 10 recursos” (p. 14). A interpretação da autora vai de encontro ao que estamos querendo demonstrar em nosso trabalho, a contradição entre discurso, prática e realidade. A precarização das condições de trabalho e o desvirtuamento das diretrizes apontadas pela lei também são exemplificadas por uma outra faceta da realidade do trabalhador docente. Considerando tanto o artigo 6° do Plano de Carreira5 - responsável pela definição das atribuições dos profissionais da educação - como os incisos II e V do artigo 67 da LDB, percebemos que não são concedidas condições adequadas para que o professor prepare suas aulas, tendo em vista a questão do tempo ser fundamental para tal atividade. Um professor que dá aulas em duas escolas, por exemplo, para oito turmas de trinta e cinco alunos cada, não tem as condições necessárias, e nem tempo hábil, para a preparação de cada aula, o que dirá para a realização de cursos de aprimoramento e formação continuada. O que acontece, na prática, é a utilização das horas de descanso e finais de semana para a realização de alguns desses trabalhos – e outros, como reuniões e correção de provas –, causando um desgaste físico e mental que minam sua resistência e agravam ainda mais a qualidade de seu ensino. Quando considerado, então, o item 1.8 do artigo 6°, que define que o professor deve “acompanhar e avaliar sistematicamente seus alunos durante o processo de ensino aprendizagem” (MINAS GERAIS, 2004, anexo II), fica evidente a falta de articulação entre o cotidiano escolar e a lei. Na prática, as avaliações são generalistas e estão longe de abranger o processo de ensino aprendizagem em sua totalidade, visando sempre o resultado, muitas vezes através da “decoreba”, em que o conteúdo estudado raramente faz sentido para o aluno, mas atende, exatamente, ao sistema de avaliação implantado pelo governo. Santos, ao refletir sobre a “cultura do desempenho” - do aluno e do professor, ressalta- se – adotada a partir das reformas de cunho neoliberal, aponta para as consequências extremamente negativas para o ensino advindas desse processo, de forma que podemos relacioná-las à realidade de Minas Gerais. Nas palavras da autora, 5 O anexo do artigo 6° do Plano de Carreira contém as atribuições dos profissionais da educação. A título de exemplo para nossa análise, destacamos algumas dessas atribuições: “participar do processo que envolve planejamento, elaboração, execução, controle e avaliação do projeto político pedagógico e do plano de desenvolvimento pedagógico e institucional da escola”; “participar da elaboração do calendário escolar”; “atuar na elaboração e na implementação de projetos educativos ou, como docente, em projeto de formação continuada de educadores, na forma do regulamento”; “participar da elaboração e da implementação de projetos e atividades de articulação e integração da escola com as famílias dos educandos e com a comunidade escolar”; “participar de cursos, atividades e programas de capacitação profissional, quando convocado ou convidado”; “promover e participar de atividades complementares ao processo de sua formação profissional”; “acompanhar e avaliar sistematicamente seus alunos durante o processo de ensino aprendizagem” (MINAS GERAIS, 2004, anexo II). 11 na cultura do desempenho constantemente tanto a agenda do professor como a do aluno, no que diz respeito ao processo ensino aprendizagem, têm que ser abandonadas em função daquilo que foi definido pelas autoridades educacionais como indicadores de bom desempenho. É importante salientar que diferentes autores têm demonstrado que as escolas e os professores imersos nessa cultura vão perdendo o interesse em trabalhar com atividades e aspectos que não estejam diretamente relacionados com os indicadores de desempenho. Nesse contexto, os alunos terminam, desde os primeiros anos da educação fundamental, por ser treinados para obter bons resultados nos testes em vez de serem educados no sentido amplo deste termo (SANTOS, 2004, p. 1153). Dessa forma, as transformações recentes na dinâmica escolar findam por levar a precarização para todas as partes envolvidas, e não só o professor, apesardeste aparecer como figura central do processo, pois a desestruturação em seu modo de trabalho ocorre de forma mais direta. As leis, que deveriam garantir a devida valorização dessa classe profissional, são superadas por uma força que se faz maior e atendem aos chamados mais urgentes da dinâmica de reprodução do capital. Considerações finais A contradição se estabelece na prática escolar, de maneira que o distanciamento entre as leis e a realidade na rede pública do estado de Minas Gerais se faz valer através das ações do próprio governo, guiado pelos interesses e pela lógica neoliberal, em um processo que tende sempre à precariedade da condição dos professores. As reivindicações parecem não ter a força para que esse processo seja revertido, muito devido ao impiedoso ataque da grande mídia aos movimentos de organização dos professores, o que leva grande parte da população a se voltar contra os docentes, em uma clara evidência da falta de informação e conscientização pela qual passa a sociedade. O governo mineiro, através de um gasto exacerbado com publicidade para sua autopromoção, busca passar a ideia de que as escolas do estado estão em constante evolução, atingindo altos níveis nos índices que avaliam o desempenho – leia-se, resultados – escolar, distorcendo ainda mais as verdadeiras faces da desestruturação do aparato público estadual. Mede-se o resultado, ignora-se o processo. As reais condições da educação nas escolas fica sobreposta por uma imagem de avanço, enquanto a função ontológica do processo de ensino aprendizagem, a formação de cidadãos conscientes de seu papel no mundo, passa a ser 12 pormenorizada e, por vezes, esquecida. O questionamento do papel do Estado não pode ser abandonado, nem mesmo nos tempos atuais, em que, equivocadamente, o discurso da anulação da centralidade estatal se difunde com muita eficiência. O caso de Minas Gerais é exemplar. O processo não pode ser compreendido como fruto do distanciamento do Estado das funções públicas essenciais – como saúde, educação, segurança, entre outras –, antes disso é o próprio alinhamento deste com os interesses da reprodução do capital. A situação das escolas estaduais mineiras é, assim, reflexo de um processo muito maior, em que o “culpado” não é somente o Estado, esse só é induzido, também, pelas conjunturas mais gerais do sistema socioeconômico. Obviamente, cabe a nós refletirmos e questionarmos a quem o Estado deve servir, fato que está relacionado aos próprios propósitos de sua existência. Lutar pela melhoria das condições do trabalho docente é lutar pela qualidade do ensino e isso se reflete não apenas em transformações pontuais na vida dos professores, enquanto classe trabalhadora, mas uma melhora nas condições de vida da sociedade como um todo e a possibilidade de reais transformações em suas estruturas que, assim como o Estado, se encontram num período histórico de plenas contradições, com o intenso desvirtuamento de seus objetivos e funções. Essa luta pode e deve se embasar a partir do próprio aparato legal instituído, pois esse mesmo já é fruto de reivindicações e conquistas sociais anteriores e incorporam avanços significativos na profissão docente, seu valor é inegável. Resta-nos cobrar sua efetividade, buscando sempre que seu desenvolvimento seja guiado por uma outra lógica, mais humana. A análise que buscamos apresentar mostra apenas uma das dimensões/consequências desse processo, mais trabalhos nesse sentido serão sempre necessários. Referências bibliográficas AUGUSTO, Maria Helena Oliveira Gonçalves. As reformas educacionais e o 'choque de gestão': a precarização do trabalho docente. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 28, 2005, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2005. p.1-16. BRASIL. LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: lei N° 9.394, de 20 de 13 dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. – 5. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação Edições Câmara, 2010. 60 p. – (Série Legislação; n. 39). BRITO, Vera Lúcia Alves. Projetos de LDB: histórico da tramitação. In: CURY, Carlos R. J.; et al. Medo à liberdade e compromisso democrático: LDB e Plano Nacional da Educação. São Paulo: Editora do Brasil, 1998, p.45-89. DUARTE, Adriana. Tendências das reformas educacionais na América Latina para a educação básica nas décadas de 1980 e 1990. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de.; NASCIMENTO, Cecília Vieira do.; SANTOS, Marileide Lopes dos (orgs.). 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