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Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-3530-4 Literatura e Culturas Brasileiras Literatura e Culturas Brasileiras Li te ra tu ra e C u lt u ra s B ra si le ir a s Frederico Barbosa Frederico Barbosa Literatura e Culturas Brasileiras IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 3.ª edição Edição revisada © 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________ B197L Barbosa, Frederico, 1961- Literatura e culturas brasileiras / Frederico Barbosa. - 3. ed. rev. -Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 228 p. : 24 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3530-4 1. Literatura brasileira - História e crítica. I. Título. 12-9013. CDD: 869.909 CDU: 821.134.3(81)(091) 10.12.12 12.12.12 041379 __________________________________________________________________________________ Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Shutterstock IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. Frederico Barbosa Graduado em Letras Português pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu- manas da Universidade de São Paulo (USP). Poeta e diretor do Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas). Sumário O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI ............................................................... 11 Breve histórico ............................................................................................................................ 11 Literatura jesuítica ..................................................................................................................... 13 Brasileiros: de anjos a demônios .......................................................................................... 16 Sobre a Literatura informativa .............................................................................................. 21 O Barroco e a formação do continente ............................ 29 Definição de Barroco ................................................................................................................ 29 O Barroco em Portugal e no Brasil ...................................................................................... 31 O Barroco no Brasil .................................................................................................................... 33 Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos ............................................... 45 Vieira hoje .................................................................................................................................... 45 Gregório de Matos e o nativismo crítico .......................... 63 Gregório de Matos (1636-1696) ........................................................................................... 63 Neoclassicismo e a consolidação de um sistema literário no Brasil ......................................... 79 O Arcadismo em Portugal e no Brasil................................................................................. 79 Cláudio Manuel da Costa: o poeta das pedras .............. 97 Tomás Antônio Gonzaga: poesia e política ...................115 Romantismo e a formação da nacionalidade ..............135 Por que o Romantismo foi tão importante no Brasil? ................................................135 Os folhetins ................................................................................................................................137 O nascimento do romance brasileiro ...............................................................................138 José de Alencar (1829-1877) ...............................................................................................138 Outros romancistas românticos .........................................................................................141 Gonçalves Dias: nacionalismo e indianismo ................149 Gonçalves Dias (1823-1864) ................................................................................................149 Álvares de Azevedo: o escapismo ultrarromântico ....171 Infância ........................................................................................................................................171 Faculdade de Direito ..............................................................................................................171 Morte ...........................................................................................................................................171 Obra ..............................................................................................................................................172 Castro Alves: o condoreirismo e a crítica social ...........191 Castro Alves (1847-1871) – vida fugaz e intensa ..........................................................191 Sousândrade e a invenção na poesia ..............................207 Breve biografia .........................................................................................................................207 Comentário biográfico ..........................................................................................................207 Apresentação Este livro apresenta os primórdios da literatura brasileira, desde a primeira manifesta- ção literária no Brasil, escrita em língua portuguesa, a Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha, até a poesia inventiva e ímpar de Sousândrade. A escolha dos autores e textos estudados no livro obedeceu a quatro critérios básicos: a sua importância do ponto de vista da evolução temática e formal da literatura brasileira como reflexo das nossas mutações culturais; o seu valor literário (poético) intrínseco; as pos- sibilidades de relacionar cada texto escolhido a outros do livro, apontando-se, assim, para os diálogos que textos das mais variadas épocas estabelecem entre si e a riqueza de recursos estilísticos e linguísticos de cada texto. A ênfase, portanto, recaiu sobre a produção mais criativa e original dos autores elenca- dos: aquela que os torna significativos não só como fruto de uma época ou estilo, mas principalmente como indivíduos singulares e formadores, com suas obras, das épocas, dos estilos e da cultura do país. Nem por isso foram esquecidas ou rechaçadas as obras mais conhecidas e típicas, segundo a historiografia literária tradicional, de cada um dos autores abordados, para que, do confronto entre os textos mais consagrados (que nem sempre são os mais ousados) e aqueles mais inovadores dentro da sua época (que nem sempre são de conhecimento geral), o leitor possa formar uma imagem mais nítida, are- jada e ampla de cada autor, tanto no que apresenta de condizente com seu tempo quanto no que demonstra de inovador até para o leitor contemporâneo. Cada aula é composta de uma introdução, seja sobre o seu período histórico/literário abordado, seja, nas aulas específicas sobre determinado autor, de notas biobibliográficas sobre o escritor. Em seguida temos uma proposta de análise literária, na qual se procura estabelecer uma ponte entre a literatura do passado e a atualidade. Assim, a Literatura informativa do século XVI é articulada ao Modernismo de Mário e Oswald de Andrade, o Barroco é associado à teoria do Neobarroco de Haroldo de Campos, Padre Antônio Vieira é colocado em confronto com os pregadores atuais, é discutida a similari- dade entre Gregório de Matos e Caetano Veloso. Já o Arcadismo brasileiro é motivo para que se discutaa formação da nossa literatura, sob as perspectivas discordantes de Antonio Can- dido e Haroldo de Campos, enquanto seu primeiro representante, Cláudio Manuel da Costa, é relacionado a Augusto de Campos, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, e Tomás Antônio Gonzaga é abordado pelo prisma da sua releitura por Cecília Meireles. Os romancistas românticos são associados à Antropofagia de Oswald de Andrade e ao Tropicalismo de Caetano Veloso. Quanto a Gonçalves Dias, observa-se o seu estudo da literatura do passado, por meio da reutilização de passagens do cronista quinhentista Pero de Magalhães Gândavo na composição de sua obra. Já Álvares de Azevedo é associado ao movimento “dark” contemporâneo. Enquan to Castro Alves é relacionado à teoria de Roland Barthes e Sousândrade à vanguarda contemporânea de Augusto de Campos. Este livro pretende, assim, ajudar o estudante a ler o nosso passado literário colocan- do-o em perspectiva atual, com atenção aos aspectos socioculturais e também às sutilezas da criação e invenção literárias. Ou seja, ver nossa literatura e nossa cultura com os olhos da inquietação e da curiosidade. Frederico Barbosa Breve histórico O Brasil foi “descoberto”11 pela cultura europeia há mais de 500 anos. No entanto, esse momento ímpar na história da humanidade, marcado pelo encontro de civilizações absolutamente díspares, continua ecoando na for- mação da cultura brasileira até hoje: seja na imagem que nós brasileiros fa- zemos de nós mesmos, seja na forma como os estrangeiros nos encaram. Como se forma a imagem de um país recém-inserido na cultura ociden- tal? Certamente por meio de relatos sobre seu povo nativo e sua natureza exuberante e, principalmente, pelo confronto inevitável entre a cultura do “descobridor” europeu e os antigos moradores da terra, que, com a sua nudez despudorada, sua aparente ingenuidade e seus hábitos inimagi- náveis para o cristianismo, como os rituais antropofágicos, provocaram o imaginário europeu como poucas coisas seriam capazes. É interessante notar, durante toda esta aula, como os relatos apontados e seus contextos continuam ecoando na imagem de Brasil que temos na mente, que, como toda a imagem, foi construída e transformada durante séculos. Moldada sempre por diversos fatores socioculturais e ideológicos. Além disso, é fundamental perceber como o encontro das culturas, ocorrido em terras brasileiras, é uma fonte inesgotável de reflexão sobre a “alteridade”, ou seja, de como “o outro” é visto e recebido por “nós”. O Descobrimento Durante quase um século, os portugueses buscaram uma forma de contornar a África para che gar à Índia. Em 1434, Gil Eanes contorna pela primeira vez o Cabo Bojador. Em 1471, João de Santarém e Pedro Escobar chegam ao Golfo da Guiné e Diogo Cão atinge o Rio Zaire em 1483. Cinco anos depois, em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, 1 Desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses foi ao acaso ou se já havia o conhecimento anterior deste Novo Mundo. Há também um questionamento acerca do uso da palavra “descobrimento”, uma vez que o Brasil já se encontrava habitado quando os portugueses chegaram. O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 11 12 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI abrindo assim o caminho para Vasco da Gama encontrar, afinal, a rota marítima para a Índia, em 1498. A viagem de Vasco da Gama abriu um caminho há muito sonhado pelos portugueses. Ao retornar a Portugal, no final de 1499, o descobri- dor do caminho para as Índias já encontrou uma nova frota em preparação. Co- mandada por Pedro Álvares Cabral, seria, com seus 13 navios, a maior já lançada ao mar. O roteiro de Vasco da Gama já tinha se afastado em muito do continente negro, para fugir das correntes marítimas adversas da costa africana. Mas persistia um problema: a viagem, sem paradas na costa ocidental da África, tornava-se extremamente desgastante e longa. Carecia encontrar um ponto de parada. As terras do Novo Mundo, já devidamente divididas pelo Tra- tado de Tordesilhas de 1494, serviriam bem a este propósito. Além disso, era pre- ciso tomar posse do que já era, por decisão papal, de Portugal. Veio Cabral seguido por inúmeros jovens aventureiros durante todo o século XVI, em busca da liberdade, da aventura, de tudo o que prometia um novo e desconhecido mundo. Notícias do desconhecido O primeiro século de colonização do Brasil foi marcado pela tentativa europeia de descrição e dominação. A nova terra – cheia de animais, plantas exóticas e seus estranhos habitantes, de costumes tão inusitados e por vezes assustadores – gerou uma literatura composta basicamente por cartas, relatos de viagem e tratados descritivos, denominada informativa, que procurava contar todas essas novidades àqueles europeus que não se atreviam a fazer uma viagem tão atribulada. Entre europeus que descreveram a terra brasileira durante o século XVI, destacam- se, em língua portuguesa, Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da frota portuguesa que primeiro aportou no país, em 1500; Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), que compôs uma descrição minuciosa da terra e do homem brasileiro no seu Tratado Descritivo do Brasil (1584) e Pero de Magalhães Gândavo, amigo de Camões e autor do Tratado da Terra do Brasil e da História da Província de Santa Cruz (1576) em que se sobressaem as descrições das frutas e árvores brasileiras, assim como os relatos do ritual antropofágico. Outro texto bastante curioso, já dos primórdios do século XVII, é o Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão, que, através da personagem Brandônio, dialoga com o menos crédulo Alviano, prevê um futuro brilhante para a terra brasileira. Entre os viajantes de língua estrangeira, dis- tingue-se Hans Staden, cujas aventuras, descritas em Duas Viagens ao Brasil (1557), tornaram-se os mais populares relatos do Novo Mundo durante o século XVI. O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 13 Observe agora uma ilustração desse livro de Hans Staden. En ci cl op éd ia It aú C ul tu ra l d e A rt es V is ua is . Literatura jesuítica Temos também a obra dos padres jesuítas que vinham ao Brasil com o objetivo de catequizar os nativos, criando uma literatura de caráter didático, por meio da qual procuravam levar, e muitas vezes forçar, o índio a adotar a fé cristã. Nesta literatu- ra de formação, ou jesuítica, o mais destacado, tanto na labuta missionária quanto nos dotes literários, foi o Padre José de Anchieta, que nos deixou inúmeros poemas e peças doutrinárias de valor literário. A obra de Anchieta, embora com o intuito básico de catequizar os índios, tinha um caráter mais pragmático do que artístico. Padre José de Anchieta (1534-1597) Natural de Tenerife, nas Ilhas Canárias, esse jesuíta veio para o Brasil em 1553, onde fundou a cidade de São Paulo, envolveu-se ativamente com a política e realizou um tra- balho missionário sem par. Sua obra literária, escrita em latim, espanhol, português e até no tupi que aprendeu com os índios, volta-se exatamente para esse trabalho, tendo, portanto, um caráter pragmático básico: o intuito de ca- tequizar os índios. Além de poemas, crônicas, sermões e cartas, destaca-se na sua obra o teatro. Escrevendo autos Padre José de Anchieta. 14 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI aos moldes de Gil Vicente, Anchieta utilizava uma linguagem simples e direta para melhor atingir seu público-alvo: os indígenas. Entre as suas obras, destacam- -se as peças Quando, no Espírito Santo, se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Vir- gens (1579), Na Vila de Vitória (1586), e o importante volume Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa Brasileira (1595). Segue um poema de Anchieta (apud BARBOSA, 2003, p. 31) que exempli- fica muito bem como sua literatura estava a serviço da religião e do ensina- mento catequético dos índios brasileiros.Ao Santíssimo Sacramento Oh que pão, oh que comida, oh que divino manjar se nos dá no santo altar cada dia. Filho da Virgem Maria que Deus Padre cá mandou e por nós na cruz passou crua morte. E para que nos conforte se deixou no Sacramento para dar-nos com aumento sua graça. [...] Este manjar aproveita para vícios arrancar e virtudes arraigar nas entranhas. O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 15 Suas graças são tamanhas, que se não podem contar, mas bem se podem gostar de quem ama. Sua graça se derrama nos devotos corações e os enche de benções copiosas. Oh que entranhas piedosas de vosso divino amor! Ó meu Deus e meu Senhor humanado! [...] Seja minha refeição e todo o meu apetite, seja gracioso convite de minha alma. Ar fresco de minha calma, fogo de minha frieza, fonte viva de limpeza, doce beijo. Mitigador do desejo com que a vós suspiro, e gemo, esperança do que temo de perder. 16 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI Pois não vivo sem comer, como a vós, em vós vivendo, vivo em vós, a vós comendo, doce amor. Comendo de tal penhor, nela tenha minha parte, e depois de vós me farte com vos ver. Âmen. Brasileiros: de anjos a demônios Escrivão oficial da frota portuguesa, Pero Vaz de Caminha, natural da cidade do Porto, jamais retornaria à sua terra. Após passarem no Brasil nove intensos dias, os navegantes rumaram para a Índia, onde fizeram os negócios tão sonha- dos pela coroa portuguesa. Foi por lá que Caminha, como boa parte dos intrépi- dos marinheiros da época, viria a morrer. Mas não sem antes nos deixar um dos mais importantes relatos das viagens europeias da época. A leitura da Carta do Descobrimento nos revela algumas surpresas. Escrita entre os dias 22 de abril e 1.º de maio de 1500, descreve claramente que a frota não se perdera, como durante algum tempo se apregoou, que a viagem trans- correra tranquila e que os marinheiros sabiam que estavam chegando a uma terra nova, já pertencente ao rei de Portugal. Outro aspecto bastante relevante é a construção de um retrato do Brasil como um lugar repleto de maravilhas, e seus habitantes como um povo inocen- te, afável e “sem qualquer cultura”, pronto para ser “civilizado” e cristianizado. O Brasil, neste período inicial, é um “paraíso habitado por anjos”, como neste trecho da Carta de Caminha: O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 17 A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. […] Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. […] E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão benfeita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. […] Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim! Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. [...] (CAMINHA apud CORTESÃO, 1943, p. 204-234) Diante do desconhecido, e da necessidade tão humana de classificá-lo, os na- vegantes europeus usaram como parâmetro o que eles já conheciam. Por exem- plo, ao observar que “nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós”, Caminha compara os índios aos negros mulçumanos do Norte da África, que eram circuncidados. Ser circuncidado era prova de seguir outra religião, outros hábitos culturais. Caminha, em sua carta, demonstra a dificuldade de o europeu perceber a cultura do outro, confundindo a curiosidade dos nativos com vonta- de de serem “aculturados”. Ele vê os índios sem cultura ou religião, como uma “tábula rasa”, em que o europeu poderia inscrever sua cultura. Contudo, com o tempo e a convivência, os relatos mudam. Durante a colo- nização, os portugueses e outros aventureiros europeus percebem que o índio tem sua própria cultura, muito diferente da europeia. Passam, então, a descre- ver os nativos como bárbaros e desumanos – “demônios no paraíso”. Como no trecho a seguir, extraído do Tratado da Terra do Brasil, de 1570, de Pero de Maga- lhães Gândavo. 18 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI Capítulo sétimo Da condição e costumes dos índios da terra (GÂNDAVO, 1980, p. 38) Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de índios armados contra todas as nações nenhuma, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente. Havia muitos destes índios pela Costa junto das Capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se levantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram para o Sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das Capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses. A língua deste gentio toda pela Costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente. [...] Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e aconselhá-los como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestial- mente sem ter conta, nem peso, nem medida. O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 19 Estes índios são mui belicosos e têm sempre grandes guerrasuns contra os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver entre eles amiza- de; porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam inimigos verdadeiros per- petuamente. As armas com que pelejam são arcos e flechas; a cousa que apontarem não na erram, são mui certos com esta arma e mui temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. […] Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou sejam por- tugueses ou quaisquer outros índios seus inimigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda mui grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais formosa e honrada que há na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado de o guardar, e não vai para parte que não no acompanhe. Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, de- terminam de o matar; e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e fazem-nos da raiz duma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida masti- gam-na umas moças virgens, espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes cantares e folias tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no pela cinta com quatro cordas cada uma para sua parte e três, quatro índios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio dum terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bulir para uma parte nem para outra, as mãos deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada dum pau mui duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas cousas e ameaçando- -lhe sua geração que o mesmo há de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito depres- 20 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI sa com ele a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele coisa que não comam. Isto é mais por vingança e por ódio que por se fartarem. Depois que comem a carne destes contrários ficam nos ódios confirma- dos e sentem muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra os outros. E se a moça que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança, que pare depois de criada, matam-na e comem-na e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz com que morra. [...] Finalmente que são estes índios mui desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concer- to de homens, são mui desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos ainda que todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mos- tram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem eles têm paz se não dos contrários. Têm esta qualidade estes índios que de qual- quer cousa que comam por pequena que seja hão de convidar com ela quan- tos estiverem presentes, só esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro nenhum enjeitam por peçonhento que seja, somente aranha. Estes índios vivem mui descansados, não têm cuidado de cousa alguma se não de comer e beber e matar gente; e por isso são mui gordos em extre- mo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer cousa comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente. Durante a história da humanidade, este modelo cultural europeu, assim como outros, nas várias civilizações que controlaram ou controlam parte do mundo, serviram e servem de parâmetro e justificativa para genocídios, guerras e dis- criminações as mais diversas (raça, religião, costumes, sexo etc.). E hoje, como o Brasil e os brasileiros são descritos? Como classificamos o outro, aquele que é diferente de nós? O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 21 Sobre a Literatura informativa Um aspecto relevante a se considerar é a utilização posterior da Literatura informativa por escritores de diferentes períodos da literatura brasileira. Um dos primeiros a reutilizar criativamente os episódios narrados pelos cronistas do século XVI foi o romancista José de Alencar. Tendo iniciado seu curso de Direito em São Paulo, Alencar se transferiu, em 1848, para a Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco. Em Olinda, na velha biblioteca do Mosteiro de São Bento, encontra a literatura dos antigos cro- nistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gândavo. Anos mais tarde, Alencar ainda se recorda da emoção que foi a descoberta desses autores do século XVI, que nos dão as primeiras impressões dos europeus ao encontrarem a natureza e o índio do Brasil, em cujas páginas já procurava um tema para desenvolver em sua própria literatura: “Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto de O Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonis- ta, uma cena e uma época.” Outros a se impressionarem com a descrição dos hábitos indígenas feita pelos autores da Literatura informativa foram os primeiros modernistas. Oswald de Andrade parte das mesmas descrições dos rituais antropófagos que inspira- ram Alencar para criar seu Movimento Antropofágico, além de compor poemas ready-made por meio da utilização de trechos de Caminha, Gândavo e Gabriel Soares de Sousa. Mário de Andrade, por sua vez, inverte o ponto de vista utili- zado tanto pelos cronistas quanto por José de Alencar para descrever o contato com os índios no seu romance Macunaíma — inicialmente dedicado justamente a José de Alencar. Nessa obra há uma paródia invertida da Literatura informativa, na conhecida “Carta pras Icamiabas”, escrita pelo índio Macunaíma para descre- ver a cidade de São Paulo às suas súditas. Texto complementar (ANDRADE, 1988, p. 72) No famoso capítulo “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo par- nasiano da época, Macunaíma escreve a suas súditas para lhes descrever a cidade de São Paulo. Vejamos como Macunaíma descreve as paulistanas: 22 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brin- cam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagosta. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! [...] Andam elas vestidas de rutilantes joias e panos finíssimos, que lhes acen- tuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no brincar, que enu- merá-las, aqui, seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria os man- damentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que elegância! que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo, devorador!!Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relap- so, da nossa muiraquitã. Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprender- des com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, urbit et orbe, a subtil força do Odor di Fêmia, como escrevem os italianos. E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e excelén- cia que a Natura lhes concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderem acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a sciéncia fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprendera a passarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entre- gam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador. O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 23 [...] Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina nesta notí- cia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si como vós, formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós se apartam no físico, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos que vivem à noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem queimam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos evolverem, à feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação. [...] Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora ricamente díspares entre si, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal sorte abun- dantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhe dão o excitante, embora injusto, epíteto de “francesas”. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que faltam à verdade, e são iberas, itálicas, germánicas, turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério. Estudos literários As questões 1 e 2 referem-se ao texto complementar. 1. Como o texto lido se relaciona aos textos dos cronistas quinhentistas? 24 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 2. Por que podemos considerar, do ponto de vista linguístico, a “Carta pras Ica- miabas” como uma paródia irônica e hilariante? O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI 25 3. A partir de sua leitura atenta do fragmento do Tratado da Terra do Brasil (1570), de Pero de Magalhães Gândavo, no corpo do capítulo, reflita sobre a questão a seguir: a) Aponte alguns vocábulos utilizados por Gândavo que deixem clara a sua posição perante a cultura dos índios. 26 O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI Referências ANDRADE, Mário de; LOPEZ, Telê Porto Ancona (Coord.). Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ed. Crítica. Paris; Brasília (DF): Association Archives de la Lit- térature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XXe siècle; CNPq, 1988. v. 6. (Col. Arquivos). CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1943, p. 204-234. (Col. Clássicos e Contemporâneos). GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província de Santa Cruz. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1980. v. 12. Gabarito 1. Mário de Andrade inverte, aqui, os relatos dos cronistas quinhentistas, como Pero Vaz de Caminha ou Pero de Magalhães Gândavo. Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes. 2. Sem caráter, Macunaíma a escreve tomando emprestada a linguagem rebus- cada de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se irônica e hilariante devido aos erros grosseiros cometidos pelo falso erudito, que comete equívocos como “odor di femia” por “odor di femina” ou “ciência fes- cenina” por “feminina”. 3. Bárbaro; desumanos; cruéis; brutos; desonestos etc. Definição de Barroco Segundo Otto Maria Carpeaux (1980, p. 455), [...] o século XVII, que se estende, mais ou menos, de 1580 a 1680, é o mais rico de todos na história da literatura universal; e para justificar o superlativo basta citar alguns nomes, escolhidos ao acaso e classificados conforme os anos de nascimento: Tasso, Cervantes, Góngora, Lope de Vega, Shakespeare, Tirso de Molina, Ben Johnson, Donne, John Webster, Quevedo, Ruiz de Alarcón, Vondel, Comenius, Calderón, Gracián, Corneille, Milton, La Fontaine, Marvel, Molière, Pascal, Mme. de Sevigné, Bossuet, Bunyan, Pepys, Mme de La Fayette, Boileau, Racine, La Bruyère. Tal riqueza surge durante um dos períodos mais complexos da história da arte, em que predomina o estilo que se convencionou denominar Barroco. Conforme Antonio Candido e José Aderaldo Castello (1968, p. 16-17): [...] a expressão (Barroco) passou a ser adotada pela crítica e história literárias, com um sentido global e universal, aplicável a épocas distintas, embora prevaleça a sua delimitação histórica confinada do século XVII à primeira metade do XVIII, e em que se distinguem duas coordenadas fundamentais – o culteranismo ou cultismo e o conceptismo – às quais correspondem outras tantas designações de âmbitos nacionais – gongorismo, marinismo, eufuísmo e mesmo preciosismo. Intensamente dinâmico, opondo-se ao normativo e racional do classicismo, o Barroco se define libertador, amante da força, voltado para a paisagem e, sem prejuízo da forte impregnação cristã, apegado ao espírito pagão. Panteísmo, sentimento religioso e dinamismo, assim como audácia, imaginação e exageração são características barrocas, no seu desejo de valorização do humano contraditório e instável, transitório e finito. Daí derivam a sua temática e os seus processos técnicos e expressivos, simultaneamente reconhecíveis nas duas coordenadas que o compõem. Certamente é quase impossível a perfeita distinção entre cultismo e conceptismo. O primeiro repousa sobretudo no som e na forma, tendendo para uma verdadeira exaltação sensorial, enquanto favorece a fantasia na busca de imagens e sensações que ultrapassam as sugestões da realidade. O segundo apoia-se no significado da palavra, tendendo para o abusivo jogo de vocábulos e de raciocínio, para as agudezas ou sutilezas de pensamento, com transições bruscas ou associações inesperadas, além de seu misticismo ideológico. Ambos têm ascendência renascentista. O Barroco e a formação do continente 29 30 O Barroco e a formação do continente Características do Barroco O Barroco caracteriza-se, acima de tudo, pelo espírito de divisão. O homem do século XVII encontra-se dividido entre os conceitos antropocêntricos do Re- nascimento e uma volta preconizada pela contrarreforma aos ideais teocêntri- cos medievais. Tal dicotomia se torna visível na linguagem através do uso reit-erado de antítese, paradoxos e oxímoros. A antítese é uma figura de linguagem pela qual se salienta a oposição entre duas palavras ou ideias. Oposição lógica, consecutiva, não simultânea. Como em “Era o porvir – em frente do passado / A Liberdade – em face à Escravidão”, versos de Castro Alves. Já o paradoxo é um conceito que é ou parece contrário ao comum; contrassenso, absurdo, disparate. Antítese simultânea ou em que atributos antitéticos são atribuídos, ao mesmo tempo, aos mesmos seres ou coisas. Vemos, por exemplo, na frase de Machado de Assis: “Esse tempo infinito e breve.” Um tipo muito importante de paradoxo é o oxímoro, figura que consiste em reunir palavras contraditórias. Paradoxo formado por apenas dois termos, em que um substantivo é adjetivado com o seu contrário ou um advérbio modifica paradoxalmente um verbo, como na ex- pressão “inocente culpa”, de Cecília Meireles. Barroco Conceptista e Barroco Cultista Quando algum escritor Barroco se deixa levar pelo jogo de palavras, explo- rando trocadilhos, paranomásias, e criando um verdadeiro labirinto sensorial com os significantes das palavras, os estudiosos o classificam como cultista, ou gongórico, em alusão a Dom Luís de Góngora, poeta espanhol que se notabi- lizou por esses jogos de linguagem. O conceptismo surgiu, já na época, como oposição consciente aos ditos exageros cultistas. Seus representantes procuram elaborar mais seus recursos de pensamento (conceitos) do que de linguagem, criando outros jogos de raciocínio e lógica, e não de palavras. “[...] Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e, sobretudo, M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos são as duas moedas correntes desta terra: mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. (VIEIRA, 2000, p. 25) O Barroco e a formação do continente 31 Poema “Labirinto”, característico do cultismo português. No enun- ciado do poema, lê-se: “Labyrintho: Enigma: Soneto Encomiastico, Acrostico, Anagramatico: em vinte, e oito Anagramas rigurosos. He cada circulo hum verso, cada verso dous Anagramas. Compoense as Letras pellos numeros, e os numeros pellas letras, da periferia deste Orbe.” Este trecho é de O Sermão de Santo Antônio aos Peixes, de Padre Antônio Vieira, autor característico do conceptismo português. O Barroco em Portugal e no Brasil O Barroco é contemporâneo, em Portugal, da dominação espanhola, iniciada em 1580 com a ascensão ao trono português do rei Felipe II, da Espanha. Res- taurada em 1640 por D. João IV, a frágil soberania portuguesa é consolidada, em grande parte, graças à riqueza proveniente do ouro extraído do Brasil, durante o 32 O Barroco e a formação do continente reinado de Dom João V (1706-1750). Esse estilo antitético e paradoxal, lúdico e dramático é o meio ideal para que se traduzam essas tensões. No Brasil, o estilo Barroco é dominante no período em que começam a aparecer, na língua dos colonizadores, as primeiras manifestações artísticas de importância estética. A arte da restauração portuguesa A poesia portuguesa do período Barroco, reunida em compilações do século XVIII, como a Fênix renascida (1716), reflete a influência espanhola: predominam as imitações de Gôngora e Quevedo. Alguns poemas cultistas recém-descober- tos, no entanto, revelam uma poesia visual muito sofisticada e antecipatória de algumas experiências de vanguarda do século XX. Por sua vez, o teatro de Antônio José da Silva, o judeu, nascido no Rio de Janeiro em 1705 e executado pela Santa Inquisição em Lisboa no ano de 1739, mostra a influência clara de Lope de Vega e Cervantes. Mas é na prosa que a literatura portuguesa da época se destaca. Seja na obra de um aristocrata como Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666), autor da Carta de guia de casados (1651), ou do Padre Manuel Ber- nardes (1644-1710) cuja Nova Floresta, publicada em cinco volumes entre 1706 e 1728, reúne narrativas e ditos de fundo moral, nas célebres Cartas portuguesas, publicadas em francês em 1669 e atribuídas ao amor proibido e não correspon- dido de Sóror Mariana Alcoforado por um militar. E, acima de tudo, nos sermões e cartas do Padre Antônio Vieira. Padre Antônio Vieira (1608-1697) A obra sermonística do Padre Antônio Vieira, in- separável da vida atribulada do pregador e político incansável, sem dúvida alguma é o ponto alto da arte literária barroca em Portugal. Dividido entre dois mundos – o europeu e o brasileiro – Vieira sintetiza como nenhum outro os conflitos e a inteligência apurada do homem Barroco. Considerado por Fer- nando Pessoa o “imperador da língua portuguesa”, Vieira leva ao extremo, em sua obra gigantesca, todos os recursos retóricos da época: conceptista virtuoso, é, ao mesmo tempo, claro e engenhoso, imaginativo e convincente. Padre Antônio Vieira. O Barroco e a formação do continente 33 O Barroco no Brasil A importância do estilo Barroco em todas as artes brasileiras é enorme. Foi a partir do final do século XVI, quando o estilo já predominava na arte europeia, que surgiram as primeiras manifestações realmente artísticas, menos pragmáticas, em solo brasileiro. A flexibilidade deste estilo repleto de contrastes, capaz de incorporar sugestões estéticas e temáticas da paisagem, tanto natural quanto cultural, do Novo Mundo, permitiu que se revelassem, ao mesmo tempo, todo o encanto e todo o pânico do homem europeu, que começava a se transformar pela experiência dos trópicos. Surgem, na literatura, as primeiras manifestações literárias do nativismo, elogio da terra, que iriam, aos poucos, evoluir para uma consciência da diferença em relação a Portugal e à Europa, o que constitui a base do nacionalismo. Além da obra de Gregório de Matos (1636-1696) – o maior poeta Barroco em língua portuguesa – outras manifestações do Barroco são fundamentais na literatura brasileira. Bento Teixeira (1565-1600) Pouco se sabe ao certo sobre Bento Teixeira, autor do poemeto heroico Pro- sopopeia (1601), considerado a obra inicial do Barroco na literatura brasileira. Durante muito tempo, pensou-se que fosse natural de Recife, cidade descrita no poema, que narra um naufrágio sofrido por Jorge Albuquerque Coelho, do- natário da Capitania de Pernambuco. Mas hoje se admite que teria nascido em Portugal, embora tivesse morado, durante a maior parte da sua vida, em Recife. A crítica tem atribuído à Prosopopeia em si pouco valor literário, mas é inegável seu valor histórico, como marco inicial do primeiro estilo de época a penetrar na literatura brasileira. Botelho de Oliveira (1636-1711) Tudo indica que o primeiro autor nascido no Brasil a ter um livro publicado foi Manuel Botelho de Oliveira, natural de Salvador, cujo volume Música do Parnaso foi impresso em Lisboa em 1705. Seguidor de Gôngora, retratou com requintes cultistas sua querida Anarda e, no poema “A Ilha de Maré”, registrou um dos primeiros elogios poéticos à terra brasileira. Nisso, foi seguido pelo Frei Manuel de Santa Maria Itaparica (1704-1770), Botelho de Oliveira. 34 O Barroco e a formação do continente natural da ilha, que publicou, em data incerta (por volta de 1769), sua Descrição da Ilha de Itaparica, em oitava rima camoniana. As Academias O último suspiro da literatura barroca no Brasil foi dado através das Aca- demias, sociedades de escritores que, embora apresentando uma produção de qualidade bem discutível e bastante ultrapassada no seu tempo, em muito con- tribuíram para a formação de um ambiente propício à produção e à divulgação de ideias e obras no Brasil. Contam-se, entre outras, a Academia Brasílicados Es- quecidos (1724-25), a dos Felizes (1736-40) e a Academia dos Seletos (1752). Texto complementar Barroco, Neobarroco, Transbarroco (CAMPOS, 2005, prefácio) O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em ensaio famoso, definiu o Barroco americano como “a arte da contraconquista”. A concepção de Lezama foi, recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fu- entes, em O Espelho Enterrado: “O Barroco é uma arte de deslocamentos, se- melhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa iden- tidade em mudança.” [...] “Para nossos maiores artistas –, prossegue Fuentes, invocando a proposta de José Martí de uma ‘cultura totalmente inclusiva’ –, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na própria fonte da criatividade.”1 Considerando, ademais, o fenômeno do hibridismo indo-afro-ibérico na arquitetura e nas artes plásticas do Novo Mundo, Fu- entes assevera, convergindo com Lezama: “O sincretismo religioso triunfou e, com ele, de algum modo, os conquistadores foram conquistados.”2 Antes do cubano, em seu A Marcha das Utopias, Oswald de Andrade, teórico e práti- co da “antropofagia” como devoração crítico-cultural, já ressaltara, quanto ao Barroco americano, o seu característico “estilo utópico”, “das descobertas” que resgataram a Europa do “egocentrismo ptolomaico.”3 1 LEZAMA LIMA, José. La Expresión Americana. Madrid: Alianza Editorial, 1969; 1957; tradução brasileira por Irlemar Chiampi, A Expressão Americana, São Paulo, Brasiliense, 1988. 2 FUENTES, Carlos. O Espelho Enterrado. Tradução: Mauro Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 3 ANDRADE, Oswald de. A Marcha das Utopias, 1953. Conjunto de artigos publicados em O Estado de S. Paulo e reunidos em livro na série “Cadernos de Cultura”, Rio de Janeiro, MEC/Serviço de Documentação, n. 139, 1996. O Barroco e a formação do continente 35 Esses parâmetros referenciais sinalizam a importância do Barroco em sua transplantação na Ibero-América, onde se miscigenou ao contributo indíge- na e africano. Recentemente, em texto que me foi encomendado pelo Guggenheim Museum para figurar no monumental catálogo da exposição Brazil: Body and Soul, cujo carro-chefe era a arte barroca em nosso país, tive a oportunida- de de rastrear os fios dispersos desse estilo em nossa literatura (sobretudo na poesia, mas também na prosa), a partir do Barroco histórico da Colônia, projetando-o, todavia, no presente de criação4. Entre outras considerações, procurei mostrar a “pervivência” (Fortleben, W. Benjamin) transmigratória desse estilo no Brasil, fora do estrito marco histórico dos Seiscentos/Setecentos (Gregório de Matos, Botelho de Oli- veira, Padre Vieira, e no plano das artes plásticas, o Aleijadinho, o escultor- -arquiteto de Ouro Preto/Vila Rica, que faz pendant com o índio José Kondori, arquiteto das igrejas de Potosí, no Peru, e encontra uma réplica atual no bar- roquismo de Oscar Niemeyer). Duas linhas, dois veios percorrem o Barroco histórico: o “sério-estético” (lírico, encomiástico, religioso) e o “joco-satírico” (aliado, na prosa, ao “pica- resco”, gênero este que deu, entre nós, com variantes e características pró- prias, o “romance malandro”, estudado por Antonio Candido).5 Na primeira dessas linhas, lembrei as “Cartas chilenas”, longo poema atribuído ao árcade mineiro Tomás Antônio Gonzaga; o romântico Bernar- do Guimarães, dos pornopoemas paródicos e dos abstrusos “bestialógicos” pré-sonoristas; Luiz Gama, outro romântico, o poeta negro, ex-escravo, da virulenta e desmistificadora “Bodarrada”; o Sousândrade do Tatuturema e do Inferno de Wall Street, um romântico excepcional, não canônico, que prefigu- rou a poesia moderna e de vanguarda, internacionalmente falando. No veio “sério-estético”, lembrei os árcades tardo-barroquistas Claudio Manoel da Costa e Alvarenga Peixoto; o “pai-rococó” Odorico Mendes, pre- cursor de certo Sousândrade, tradutor “monstruoso” (como o foram Voss e, acima de todos, Höelderlin) dos clássicos (Virgílio e Homero); o Sousândrade “preciosista” de O Guesa e de O Novo Éden, entre barroquista e simbolista; 4 SULLIVAN, E. J. (Org.). Brazil: body and soul. New York, Guggenheim Museum, The Salomon R. Guggenheim Foundation, 2001. Meu ensaio, que se ocupa também de outros aspectos, culturais e sociais, da questão, tem por título “Literary and artistic culture in modern Brazil”. 5 CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, USP, n. 8, 1970. 36 O Barroco e a formação do continente Cruz e Sousa, o “cisne negro” que liderou o nosso Simbolismo (e que não por acaso, num soneto antiescravista, celebrou a pompa da linguagem de Gôngora [“Eu quero em rude verso altivo adamastórico/vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico”] como o fez, por seu turno, o pioneiro nicaraguense do Modernismo/Simbolismo hispano-americano, Rubén Darío, nos textos de estilo gongorino em que homenageou, sob a forma de sonetos dialogais, o enigmático cordovês ao lado de Velásquez)6; Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha, Barrocos “cientificistas”, na poesia o primeiro e na prosa o segun- do; sem esquecer Raul Pompeia, de O Ateneu, “última e derradeiramente legí- tima expressão do Barroco entre nós”, segundo opinou Mário de Andrade7. Incursionando à vol d’oiseau pela Modernidade, lembrei o desigual e prolixo Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima (poema da predileção de outro barroquista, este de minha geração, o inolvidável Mário Faustino); os poetas Décio Pignatari (O Jogral e a Prostituta Negra, Périplo de Agosto a água e sal, Rosa d’amigos, Fadas para Eni) e Affonso Ávila (Cantaria Barroca). Na prosa, o excepcional Grande Sertão: veredas (que corresponde em importância a Paradiso, de Lezama Lima); Catatau, a “barrocodélica” rapsódia de Paulo Le- minski. Tratava-se, evidentemente, dadas as limitações do espaço reservado aos colaboradores, de uma súmula apenas “exemplificativa”, não “exaustiva” e muito menos “taxativa”. Do ponto de vista teórico, em meu artigo de 1955, A Obra de Arte Aberta, que precedeu de mais de seis anos a Opera Aperta (1962) de Umberto Eco (embora, entre nós, quando se aborda o tema, se costuma silenciar sobre essa circunstância antecipatória fatual), houve uma segunda precursão: nos seus parágrafos finais, enunciei, expressamente, o prospecto de um “barroco mo- derno” ou “neobarroco” (antes, portanto, de Severo Sarduy, querido e admira- do amigo a cuja memória dediquei um poema em Crisamtempo; Sarduy veio a introduzir o conceito no campo hispano-americano em 1972, sem conhecer o meu texto de 55).8 É preciso, ademais, referir que, embora não empregassem a expressão “neobarroco”, tanto Lezama Lima (La expresión americana, 1. ed., 1957), como Alejo Carpentier, dois mestres cubanos influentes em Sarduy, já reivindicavam, em âmbito hispano-americano, o estilo barrroco e o barroquis- 6 DARÍO, Rubén. Cantos de Vida y Esperanza (“Otros poemas”, VII – Trébol, I a III), 1905; Buenos Aires/México, Espasa-Calpe, 1943. 7 ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira (O ateneu). São Paulo: Livraria Martins Editora, s.d. (o ensaio remonta a 1941). 8 A propósito, ver a introdução de Umberto Eco à edição brasileira de seu livro, Obra Aberta, São Paulo: Perspectiva, 1968. Quanto à crono- logia da noção de “neobarroco”, ver Andrés Sánchez Robayna, Barroco de la levedad (Barroco da leveza). Revista da USP, São Paulo, jan.-fev. 1990-91, p. 139, nota 23. O Barroco e a formação do continente 37 mo de impacto transistórico.9 Em minha prática poética, textos como Ciropé- dia e Claustrofobia, ambos de 1952, constituem, como já tenho afirmado, a pré-história barroquizante de minhas Galáxias (1963-76). Hoje em dia, esse conceito de “neobarroco”10 parece derivar no sentido de um pervasivo “Transbarroco” latino-americano (para só falar do que se passa na América Ibérica). Nessa direção apontam três antologias: Caribe transpla- tino, bilíngue, organizada por Néstor Perlongher com traduçõesde Josely Vianna Baptista, Iluminuras, São Paulo, 1991; Transplatinos, organizada por Roberto Echavarren, El Tucán de Virginia, México, 1990; Medusario/Muestra de poesía latinoamericana, organizada por Roberto Echavarren, José Kozer e Jacobo Sefamí, México, Fondo de Cultura Económica, 1996. Jardim de ca- maleões – A poesia neobarroca na América Latina, a antologia organizada pelo jovem poeta Claudio Daniel (ele próprio um dotado “neobarroquista”), com traduções dele e de Luiz Roberto Guedes, ora editada pela Iluminuras, torna acessível ao leitor brasileiro, de maneira bastante ampla (incluindo alguns nomes já bastante conhecidos, ao lado de outros mais jovens) essa deriva “transbarroca” que percorre o espaço textual de nossa América, não de modo homogêneo e uniforme, mas regendo-se por uma fascinante es- tratégia de nuanças. 9 De Carpentier, a obra mais extremadamente característica da tendência é, a meu ver, Concierlo barroco, 1974; o autor, que também se manifestou através de ensaios críticos (Tientos y diferencias), para o fim de definir o espírito latino-americano fundem as noções de Barroco e de “real maravilhoso”, chegando, assim, à tese do creollismo (entendido como “mestiçagem”); cf. Dill, Hans-Otto. Geschichte der lateiname- rikanischen Literatur im Überblick, Stuttgart, Reclam, 1999. 10 Refira-se que o argentino Perlongher, praticando uma sorte de barroquismo kitsch, define-se como “neobarroso”, aludindo ao livro Lustral do Rio da Prata. Estudos literários 1. Após ter lido o ensaio de Haroldo de Campos, busque aspectos na contempo- raneidade (literatura, artes, cinema, religião etc.) em que o Barroco esteja vivo. 38 O Barroco e a formação do continente 2. Leia o poema abaixo e destaque as suas características neobarrocas. Os Poros Flóridos (Canto III, fragmento) (BAPTISTA, 2008) Fim de tarde, as sombras suam sua tintura sobre as cores, extraem da fava rara da luz o contorno das coisas, as rugas na concha de um molusco, grafismos, vieiras milenares com reservas de sal, poema estranho trançado em esgarços de oleandros, enquanto corpos mergulham em câmara lenta, e nada é imagem (teu corpo branco em mar de sargaços), nada é miragem na tela rútila das pálpebras. O Barroco e a formação do continente 39 As sombras suam, ressumbram, e essa é a sombra mais certa das sombras calcinadas que me cercam. Quero levá-la no corpo, como um amor, como inscrição rupestre no granito, como o verso que um tuaregue cola ao corpo. Quero levá-la comigo, como um amor, como essa ausência azul que assombra a noite e sonha o contorno de um rosto no escuro, como se quisesse desenhá-lo. * Nenhum lugar. Lugar algum perdura. Um ventre a sombra alisa, um plano o sol levanta, cumes que o vento plissa. Sol branco, sol negro, o vento apaga os rastros da areia, apaga os passos da língua. E o sol a pino assola, o frio da lua cresta a pele que se solta, o suor do corpo em febre que se solta, e as peles são silêncios, poemas que se deixam, e o lugar é aqui, e lá, e ontem, 40 O Barroco e a formação do continente e as letras voam, revoam, espreitam como cobras sob a areia (camaleões se escondendo em si mesmos), espiam as peles que se espalham, página ou pálea, corpo que se desveste, desmente, desvaira: tudo é miragem. Um som de antigas águas apagadas. É miragem a rima, a fábula do nada, as falhas dessa fala em desgeografia, a fala hermafrodita, imantação de astilhas, a voz na transparência, edifícios de areia. Mas teu olhar o mesmo, em íris-diafragma, fotogramas a menos na edição do livro, e o enredo sonho e sol, delírios insulares, teu olhar transparente, a imagem margem d’água, e as fábulas da fala, as falhas desse nada – superfície de alvura ou árida escritura. Na moldura da página, marginália de escarpas. O Barroco e a formação do continente 41 3. Haroldo de Campos é considerado o maior expoente do neobarroco no Bra- sil; principalmente por conta de sua obra Galáxias. Leia o fragmento abaixo e destaque suas caraterísticas barrocas. (CAMPOS, 2004) [...] circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não taran- tina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferru- gem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha [...] 42 O Barroco e a formação do continente Referências BAPTISTA, Josely Vianna. Os Poros Flóridos. Disponível em: <http://paginas. terra.com.br/arte/PopBox/camaleoes.htm>. Acesso em: 24 jan. 2008. CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2004. _____. Barroco, Neobarroco, Transbarroco (Prefácio). In: DANIEL, Cláudio. Jardim de Camaleões, A Poesia Neobarroca na América Latina. São Paulo: Iluminu- ras, 2005. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasile- ira. 3. ed. rev. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. v. 1. O Barroco e a formação do continente 43 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. 2. ed. rev. Rio de Ja- neiro: Alhambra, 1980. v. 3, parte V. VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1966. _____. Sermão do Bom Ladrão e Outros Sermões Escolhidos. São Paulo: Landy, 2000. Gabarito 1. O aluno deve observar no seu repertório cultural aspectos da divisão barroca teo/antropocentrismo, na televisão, no cinema e nas artes em geral. 2. Imagens inusitadas, como “as sombras suam”, insistência na mutabilidade das coisas: “Sol bran co, sol negro, o vento / apaga os rastros da areia, apaga / os passos da língua.” Antíteses: “Sol branco, sol negro”, Jogos de sonori- dade: “É miragem a rima”, passagem em que MIRAgem e RIMA ecoam so- noramente. Sintaxe labiríntica: “Mas teu olhar o mesmo, em íris-diafragma, / fotogramas a menos na edição do livro, / e o enredo sonho e sol, delírios insulares, / teu olhar transparente, a imagem / margem d’água, e as fábulas da fala, / as falhas desse nada – superfície de alvura // ou árida escritura”. 3. O barroquismo do texto se revela inicialmente pela enxurrada verbal: as palavras se sucedem sem pontuação ou descanso. Outro aspecto é o jogo constante de significantes, lembrando o cultismo Barroco: “se não afina não tintina não tarantina”. A sintaxe retorcida e labiríntica também é reflexo da estética barroca. Vieira hoje Refletir sobre o poder das palavras ou sobre o comportamento ético do ser humano é inescapável quando se leem os sermões do Padre Antônio Vieira, atualíssimo apesar de ter nascido 400 anos atrás. O discurso do Padre Antônio Vieira é lógico e ca- tivante. Brinca com o significado e, como pregador poeta que é, com o significante das palavras. Joga com a essência das palavras e dos homens, sempre buscando-a por trás das aparências enganosas. Constrói frases brilhantes e memoráveis, sem jamais perder a lucidez e a clareza. Tira conclusões, sempre a partir do texto bíblico, que podem ser aplicadas a inúmeras situações cotidianas com as quais nos deparamos atualmente. Trata-se do grande mestre da dissertação poética, da arte do convencimento sem apelações: pautado pelo rigor epela lógica. Nada melhor, para que se aprenda a escrever, ler e pensar do que ler Vieira, hoje e sempre. Vida e obra entre dois mundos A vida de Antônio Vieira se estendeu durante praticamente todo o século XVII: 1608 a 1697. Nascido em Lisboa, mudou-se para Salva- dor com a família em 1614. Cresce testemunhando as investidas ho- landesas sobre a Bahia. É educado no colégio jesuíta e, aos 15 anos, foge de casa para ingressar na Companhia de Jesus. Aos 18 anos, já ensina Retórica. Ordenado, começa logo a pregar, notabilizando- -se por sua pregação contra a invasão holandesa. Em 1640, os holandeses cercam a cidade de Salvador e, antes da batalha crucial, Vieira exorta os portugueses à luta, com o sermão que o tornaria célebre, o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda1. 1 Disponível em: <www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803035.html>. Acesso em: 21 nov. 2007. Padre Antônio Vieira. Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos 45 46 Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos Com a vitória portuguesa, Vieira é encarregado de levar ao rei D. João IV, em Lisboa, a adesão da colônia à Restauração. Chegando a Lisboa em 1641, logo conquista a admiração do rei, que o protege, tornando-o o mais respeitado orador da corte e incumbindo-o de várias missões diplomáticas. Durante este período, a sua produção sermonística é intensa. Além de textos abertamente políticos, como o Sermão dos Bons Anos de 1642, escreve os primeiros dos seis Sermões do Mandato, pregados entre 1643 e 1670, nos quais investiga o tema do amor. Ao propor ao rei a fundação de uma Companhia do Brasil, nos moldes da Companhia das Índias Ocidentais holandesa, recomenda a reabilitação dos cristãos-novos e luta por manter o comércio com as colônias fora dos confiscos inquisitoriais. Provoca, portanto, a ira do Tribunal do Santo Ofício2. Depois de alguns fracassos diplomáticos, retorna como missionário ao Brasil, escapando, assim, dos inimigos da Inquisição. Entre 1653 e 1661, Vieira desenvolve incansável trabalho missionário no Ma- ranhão. Esse período passado por Vieira no Brasil é de intensa luta política. Além do extraordinário trabalho de catequese – chegou a usar sete idiomas indíge- nas em suas pregações –, Vieira se bate com os colonos do Maranhão quanto à escravização dos índios. Em 1654, em São Luís, prega o Sermão de Santo Antônio aos Peixes, em que compara os colonos aos peixes, com vantagem para os últi- mos, que “ouvem e não falam”. Regressa a Lisboa em 1655, buscando apoio para sua missão junto à corte, e lá prega o Sermão do Bom Ladrão, em que acusa os colonos e governantes do Brasil de roubarem escandalosamente, e o Sermão da Sexagésima, no qual investiga as razões do fracasso das pregações de sua época, sem deixar de fustigar os colonos maranhenses e, sutilmente, seus ini- migos dominicanos. Consegue do rei a Lei da Liberdade dos Índios e retorna ao Maranhão, de onde é expulso pelos colonos, juntamente com outros jesuítas, em 1661. De volta a Portugal, Vieira se encontra em posição bastante frágil. Seu pro- tetor, D. João IV, morrera em 1656, e seus sucessores são abertamente contrá- rios aos jesuítas. Acusado de heresia pelos velhos inimigos do Santo Ofício por ter profetizado a ressurreição de D. João IV na obra sebastianista Esperanças de Portugal, Vieira é desterrado, inicialmente para o Porto, em 1662, e, em seguida, preso pela Inquisição em Coimbra, em 1665. Finalmente julgado, é condenado ao silêncio e à prisão em 1667. Condenado há oito anos, é anistiado em 1668, após a destituição de seu desafeto D. Afonso IV. 2 Criado pela Igreja Católica, o Tribunal do Santo Ofício – Inquisição – perseguia cristãos novos a fim de fiscalizar se os mesmos estavam realmente convertidos ou não. “No Brasil, a Inquisição não se instalou em caráter definitivo e as suas visitas aterrorizantes, com exceção da realizada ao Estado do Grão Pará em 1763-1769, ocorreram na época em que a Coroa Portuguesa esteve nas mãos dos reis da Espanha. O Santo Ofício inquisitório esteve na Bahia e em Pernambuco entre 1591 e 1595, voltando à Bahia em 1618.” (FAUSTO, 2004, p. 72) Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos 47 Livre, em 1669, Vieira vai se refugiar em Roma, sob a proteção da rainha Cris- tina da Suécia, que se convertera ao catolicismo, abdicara ao trono de seu país protestante e fora para o centro do catolicismo, onde se tornara mecenas de grandes pensadores, como Descartes e Vieira. Seus sermões, como o de Quarta- feira de Cinza (1672-73), em que reflete sobre a morte, voltam a lhe proporcionar grande prestígio, desta feita junto ao próprio Papa Clemente X, que o livra da perseguição do Santo Ofício, mas se recusa a lhe dar apoio na constituição da sonhada Companhia Ultramarina Portuguesa. Desiludido, retorna à Bahia em 1681, vai residir na Quinta do Tanque e passa a preparar seus sermões para pu- blicação. Morre em Salvador, em 1697. O Sermão do Mandato Neste sermão, embora Vieira se dedique a investigar a natureza do amor de Cristo pelos homens, não deixa de abordar vários tipos e qualidades de amor. É, cronologicamente, o segundo pronunciado por Vieira na Capela Real, em Lisboa, em 1645. O tratamento do tema do amor aqui se articula ao do conhecimento. O pregador o inicia afirmando que o amor de Cristo é um amor ciente, ao passo que o amor dos homens é frequentemente ignorante: [...] advirta-se (diz o Evangelista) que Cristo amou, sabendo: Sciens Jesus: e advirta-se (diz Cristo) que os homens foram amados, ignorando: Tu nescis. Está proposto o pensamento, mas bem vejo que não está declarado. Em conformidade, e confirmação dele pretendo mostrar hoje que só Cristo amou finamente, porque amou sabendo: Sciens; e só os homens foram finamente amados, porque foram amados ignorando: Nescis; unindo-se, porém, e trocando-se de tal sorte o sciens com o nescis e o nescis com o sciens, que estando a ignorância da parte dos homens e a ciência da parte de Cristo, Cristo amou, sabendo, como se amara, ignorando; e os homens foram amados, ignorando, como se foram amados, sabendo. Vá agora o amor destorcendo estes fios. E espero que todos vejam a fineza deles. (VIEIRA, 2000, p. 20) Note-se o jogo anagramático3 estabelecido pelo pregador entre os termos sciens e nescis. O amor de Cristo, portanto, é mais fino exatamente por não ser ignorante. O amor dos homens, ao contrário, é vulgar e costuma ser enganado e enganador: [...] Nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso, os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito ou a última disposição do amor é cegar o entendimento, daqui vem que isto que vulgarmente se chama amor tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio4. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente; quem, ignorando, amou, em rigor não é amante. (VIEIRA, 2000, p. 21) 3 Conforme o dicionário Houaiss: transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente. 4 Conforme o dicionário Houaiss: que ou aquele que é desprovido de conhecimento(s), de discernimento; estúpido, ignorante. 48 Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos Seguindo um percurso lógico e rigoroso, Vieira agora passa a estudar as formas de ignorância que podem acometer o amor dos homens: Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor: ou porque não se conhecesse a si; ou porque não conhecesse a quem amava; ou porque não conhecesse o amor; ou porque não conhecesse o fim onde há-de parar, amando. Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas aquem havia de aborrecer, se o não ignorara. Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. Se não conhecesse o fim em que havia de parar, amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra. Todas estas ignorâncias que se acham nos homens, em Cristo foram ciências e em todas e cada uma crescem os quilates do seu extremado amor. (VIEIRA, 2000, p. 21) Ao discorrer sobre a segunda das ignorâncias, a do objeto do amor, Vieira chega a uma conclusão preciosa sobre os enganos a que o amor sujeita o ser humano: Deste discurso se segue uma conclusão tão certa como ignorada; e é que os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam; ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não há; porque amam as cousas, não como são, senão como as imaginam; e o que se imagina, e não é, não o há no Mundo. (VIEIRA, 2000, p. 22) Se amar enganado não é amar, desconhecendo os rigores do amor também não o é. O verdadeiro amor é sofrido, e sabe das suas “sem-razões”: [...] Que Jônatas se resolvesse a amar a David, quando não conhecia as paixões deste tirano afeto, não foi muita fineza; mas depois de conhecer seus rigores, depois de sofrer suas sem-razões, depois de experimentar suas crueldades, depois de padecer suas tiranias, depois de sentir ausências, depois de chorar saudades, depois de resistir contradições, depois de atropelar dificuldades, depois de vencer impossíveis; arriscando a vida, desprezando a honra, abatendo a autoridade, revelando secretos, encobrindo verdades, desmentindo espias, entregando a alma, sujeitando a vontade, cativando o alvedrio, morrendo dentro de si, por tormento e vivendo em seu amigo, por cuidado: sempre triste, sempre afligido, sempre inquieto, sempre constante, apesar de seu pai e da fortuna de ambos (que todas estas finezas, diz a Escritura, fez Jônatas por David); que depois, digo, de tão qualificadas experiências de seu coração e de seu amor, se resolvesse segunda vez a fazer juramento de sempre amar! Isto sim, isto é amor. (VIEIRA, 2000, p. 22-23) Ao definir o amor de Cristo, Vieira o apresenta como o “amor fino”, aquele que não tem causa, nem fruto. Não tem “porquê”, nem “para quê”, nem causa, nem finalidade: Tão inteiramente conhecia Cristo a Judas, como a Pedro e aos demais; mas notou o Evangelista com especialidade a ciência do Senhor, em respeito de Judas, porque em Judas mais que em nenhum dos outros campeou a fineza do seu amor. Ora vede: Definindo S. Bernardo o amor fino, diz assim: amor non quaerit causam, nec fructum: “O amor fino não busca causa nem fruto.” Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino não há de ter porquê, nem para quê. Se amo porque me amam, é obrigação, faço o que devo; se Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos 49 amo para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois como há de amar o amor para ser fino? Amo quia amo, amo ut amem: “Amo porque amo, e amo para amar.” Quem ama porque o amam, é agradecido; quem ama, para que o amem, é interesseiro; quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, esse só é fino. E tal foi a fineza de Cristo, em respeito de Judas, fundada na ciência que tinha dele e dos demais discípulos. (VIEIRA, 2000, p. 23) É esse, portanto, o amor pregado por Vieira: consciente, sofrido, desinteressa- do. Como o de Cristo. O Sermão de Santo Antônio aos Peixes Pouco tempo antes de pregar “aos peixes”, Vieira havia pronunciado, para a mesma plateia de São Luís do Maranhão, um dos seus sermões mais irados e agressivos, o Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, de 1654. Neste verdadei- ro desabafo, aponta, como principal característica da população do Maranhão, a mentira: [...] Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e, sobretudo, M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos são as duas moedas correntes desta terra: mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. (VIEIRA, 2000, p. 25) A sua violenta pregação, no entanto, pouco frutificava. Via a sua luta por obter para os jesuítas o controle sobre os índios da região praticamente perdida. As leis que regulamentavam a vida dos índios eram acintosamente desrespeitadas pelos colonos. No Sermão de Santo Antônio aos Peixes, a ira soma-se à ironia, último recurso possível para quem prega a ouvidos surdos. Mais do que pregar sobre Santo An- tônio, que, cansado de pregar sem ser ouvido, pregou aos peixes, Vieira o toma como exemplo: Se a Igreja quer que preguemos de Santo Antônio sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo Antônio vem- lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo Antônio foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo Antônio em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto. 50 Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo Antônio, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. (VIEIRA, 2000, p. 26-27) Vieira constrói, então, a metáfora nuclear a partir da qual todo o texto há de se articular. As relações de semelhança e diferença entre os colonos do Mara- nhão e os peixes aos quais se dirigirá: Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins. (VIEIRA, 2000, p. 27) Sempre trabalhando com método, Vieira inicia sua pregação elogiando as virtudes dos peixes. Entre elas, estão a paciente obediência e o afastamento do mundo dos homens: Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos
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