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C A D E R N O S D E SUBJETIVIDADE 2012 Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ISSN 0104-1231 CADERNOS DE SUBJETIVIDADE Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2 0 1 2 Cadernos de Subjetividade é uma publicação anual do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP –vi, n.1 (1993)— — São Paulo: o Núcleo, 1993 — Anual Publicação iniciada em 1993, suspensa de 1998 a 2002 e de 2004 a 2009 2003: publicado apenas um fascículo sem numeração 2010: retoma a publicação com numeração corrente n.12 ISSN 0104–1 231 1. Psicologia — Periódicos 2. Subjetividade — Periódicos. 1. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade CDD 150.5 Conselho Editorial Altieres Edemar Frei Rafael Domingues Adaime Peter Pál Pelbart Conselho Consultivo Celso Favaretto (USP), Daniel Lins (UFC), David Lapoujade (Paris I–Sorbonne – França), Denise SaneAnna (PUC–SP), Francisco Ortega (UERJ), Jeanne–Ma- rie Gagnebin (PUC–SP), John Rajchman (MIT – USA), José Gil (Universidade Nova de Lisboa – Portugal), Luiz B. L. Orlandi (Unicamp), Maria Cristina Franco Ferraz (UFF), Michael Hardt (Duke University – USA), Peter Pál Pelbart (PUC– SP), Pierre Lévy (University of Ottawa – Canadá), Regina Benevides (UFF), Ro- berto Machado (UFRJ), Rogério da Costa (PUC–SP), Suely Rolnik (PUC–SP), Tânia Galli Fonseca (UFRGS). Projeto Gráfico e Capa Yvonne Sarué Revisão de Texto Ana Godoy Agradecimentos A revista Cadernos de Subjetividade recorreu a uma rede de amigos que, através de sua colaboração e competência, nos ajudaram a levar a bom termo a finalização deste trabalho. A eles, nossa gratidão e reconhecimento. Joris De Bisschop, Clara Novaes, Silvio Ferraz, Adriana Barin de Azevedo, Damian Kraus, Ana Goldenstein Carvalhaes, Paula P. S. N. Francisquetti, Simone Mina, Lucimara Constantino Oishi e Ana Carolina Aidar. Endereço para correspondência Cadernos de Subjetividade Pós–Graduação de Psicologia Clínica Rua Monte Alegre, 984, 4º andar CEP 01060–970 Perdizes. São Paulo – SP. Endereço eletrônico http://revistas.pucsp.br/index.php/cadernossubjetividade Í n d i c e Apresentação 5 Constelações Jean Oury e Danielle Sivadon: conversações em La Borde 7 O ouvido ubíquo: escutar de outro modo Pascale Criton 23 Os sintomas são pássaros que batem o bico na vidraça Anne Sauvagnargues 32 Da transferência ao paradigma estético: uma conversa com Félix Guattari Bracha Lichtenberg Ettinger 44 Sobre a Unheimlichkeit um pequeno questionamento Chaim Samuel Katz 51 A potência do experimental nos programas de acessibilidade Virginia Kastrup e Luiz Guilherme Vergara 62 O que é um contradispositivo? Davis Moreira Alvim 78 O talento dos poetas e as histórias da loucura Heliana de Barros Conde Rodrigues 86 Os bio–diagnósticos na era das cidadanias biológicas Luciana Vieira Caliman 96 A clínica enquanto acontecimento Mário Francis Petry Londero e Simone Mainieri Paulon 105 Trajetos poéticos por entre a clínica e as artes Andréa do A. Carotta de Angeli e Tânia Mara Galli da Fonseca 114 Sade, meu distante Ernani Chaves 122 Desde a antiguidade grega o diálogo ocupa um lugar privilegiado no exercí- cio do pensamento. Passados mais de dois milênios, ele não perdeu nada de sua força. Ocorre que, com o advento do registro magnético, não mais dependemos de um fiel ouvinte, a exemplo de um Platão frente a um Sócrates, ou dos primei- ros discípulos de Lacan, para que as palavras desses pensadores cheguem até nós. Os filmes com Fernand Deligny apresentados na Bienal de São Paulo deste ano são disso um exemplo precioso: a explanação oral que faz sobre seu trabalho com os autistas é um documento histórico comovente. Amigo de Guattari e seu ins- pirador para a ideia de rizoma, sua fala é um balbucio de rara beleza. Há, porém, diálogos gravados que, mesmo transcritos, preservam plenamente a vivacidade da discórdia, da associação, da deriva. É o caso das duas entrevistas que repro- duzimos no início desse novo número dos Cadernos de Subjetividade. Seja na dis- cussão aguerrida entre a psicanalista e pintora israelense Bracha Ettinger e Félix Guattari, em torno da transferência, seja na reconstituição fragmentária sobre o cotidiano de La Borde, entre Danielle Sivadon e Jean Oury, realizada por inicia- tiva de Olivier Appril, aparecem modos diferentes de pensar e praticar a clínica. Na sequência destes vívidos diálogos, vemos esta edição se desenvolver em torno do tema da clínica, através das mais diversas entradas – o vigoroso texto de Chaim Katz sobre o Unheimlich em Freud (Katz), o sonho em Guattari (Sau- vegnargues), a pesquisa multissensorial com cegos em espaços de arte contem- porânea (Kastrup e Vergara), a intersecção com o domínio estético (Amparo, Fonseca), o contexto cada vez mais medicalizado da atualidade (Caliman), a ideia de acontecimento (Londero e Paulon). Trata-se sempre da clínica em variação: infletida, vê expandirem-se seus limites. A ampliação desse espectro clínico corre em paralelo com a história da lou- cura desde os anos 60, revisitada aqui por Conde, e enriquecida pela reinterpre- tação da relação de Foucault com Sade proposta por Ernani Chaves. Num outro diapasão, Alvim sugere a noção de contradispositivo para repensar a resistência em âmbitos diversos. Num tom inteiramente distinto dos precedentes artigos, a musicista Pascale Cri- ton elabora a noção de escuta “ubíqua”, através de um dispositivo sonoro com surdos, com o que desloca a ideia e a prática da escuta. Ganha relevância uma molecularida- de que não pode estar ausente, no fundo, da própria clínica como um todo. Se os textos foram escritos de maneira independente, e cada qual em ab- soluta autonomia, é inegável que expressam, na sua maioria, o desafio de rein- ventar os termos da clínica a cada época. Em todo caso, esse recorrido é apenas uma amostra minúscula das vias que toma o pensamento para enfrentar as mu- tações da sensibilidade contemporânea. Peter Pál Pelbart A p r e s e n t a ç ã o 7 Apresentação Esse diálogo entre Jean Oury, diretor da clínica de La Borde desde 1953, e Danielle Sivadon, psicanalista que trabalhou ali nos anos 1970, foi transcrito de um CD de áudio onde estão gravados os encontros entre ambos, ocorridos na clínica de La Borde, entre 2003 e 2004. As gravações, a edição e a mixagem foram realizadas por mim e Jean Dubuquoit, depois de termos registrado vários seminários de Oury no Hospital Sainte–Anne, em Paris, ao longo dos anos 1990. Sabendo das antigas relações de afeição entre Oury e Danielle (que na época dirigia a revista Chimères, de cujo comitê de redação também eu fazia parte), tivemos a ideia de propor–lhes uma série de conversas em torno de temáticas locais que lhes fossem caras. Nada dirigido, antes uma improvisação, uma espécie de “devaneio” descontí- nuo entre esses dois amigos da loucura que partilharam um momento da história labordiana. No início, propusemos uma gravação externa (era inverno, a neve estalava sob os pés): uma caminhada no parque de La Borde, a circulação de um lugar para outro da clínica a fim de captar as falas ao vivo (“diante do tema”, diria um pintor). Essa travessia por diferentes territórios de La Borde permitiria cruzar os rastros de superfície e os estratos soterrados, o “historial” e o cotidiano,os lugares de passagem e as “linhas de errância”, com o intuito de dar a ouvir um certo “tonal” da instituição. Mas as coisas tomaram outro rumo, distante dessa topologia ideal. As gravações seguintes foram internas, no consultório de Jean Oury em La Borde. Nesse espaço muito particular, banhado continuamente em uma penumbra reconfor- tante (que protege da luz, por vezes crua demais, da região do Loire), o tempo é ritmado pela acolhida cotidiana da psicose (ouve–se apenas, do outro lado da vidraça, o passo dos eternos agrimensores e o canto dos pássaros). Seria fetichista demais insistir no odor sedimentado (feito de madeira velha, tabaco, livros e objetos heteróclitos) desse espaço um pouco barroco, que tem mais a ver com um “padrão” subjetivo do que com o “escri- tório da diretoria”. O tempo ali parece uma matéria física quase palpável, cuja trama sensível é formada pelas vozes, falas, pensamentos, palavras e seu silêncio. Os encontros ocorreram aos domingos de manhã, nas horas reservadas por Oury aos visitantes. Dessas horas de conversa acumulada, selecionamos de início alguns fragmentos heterogêneos, reunidos em um mini–CD de uns vinte minutos intitulado: Para que um esquizofrênico possa aí se reconhecer. Depois compusemos Constelações. Esses dois CDs produzidos por nós são distribuídos gratuitamente a quem se interessar. Pode–se também consultar o site onde o documento sonoro original é acessível em: www.balat.fr Olivier Appril Cadernos de Subjetividade8 Constelações Jean Oury e Danielle Sivadon: Conversações em La Borde (2004) Danielle Sivadon (S): Você parte de um tipo de paradoxo que não é exatamente um paradoxo: “para que haja limites, é necessário o aberto e não o fechado”. Foi a partir daí que você falou da peça de Beckett, Quad, que você viu no Jeu de Paume, como exemplo desse dispositivo. Você tinha encadeado com os grupos, os “groupices”, as constelações, os anjos da guarda, os packings... Jean Oury (O): Podemos retomar este paradoxo mais detidamente. Entretanto, é obvio que não é um paradoxo. Para que possamos nos reconhecer, para que possamos ter uma delimitação... bom, é meio grandiloquente... Não se pode opor o fechado ao aberto. Não é uma oposição, são dois mundos diferentes. So- mos um pouco traídos pelas palavras. Acreditamos que “fechado” é o contrário de “aberto”. Isso não faz sentido. Eu falava “limite” e colocava “delimitação”, é uma fantasia meio sutil, dizendo para mim mesmo que o “de” é um prefixo de negação... Delimitação quer dizer que, para que possamos ser delimitados, para que possamos nos reconhecer, é necessária quase uma lógica negativa face ao que serão os entornos, o que só pode ser possível se somos delimitados. É preciso delimitar algo que não existe – isso é Beckett. A delimitação é justamente poder se definir por meio de um questionamento negativo do que ainda não existe. É somente depois de se definir que se tem uma superfície bem delimitada, com um entorno, um exterior e um interior, sabendo que essa é uma história lógica antiga. O problema da esquizofrenia é uma falha de delimitação, que chamei de uma “função forclusiva”. Na esquizofrenia ela é inexistente, não funciona. “For- clusivo” quer dizer “poder se delimitar em relação ao meio”. Somente a partir desse momento se pode dizer existencialmente que o aberto existe. “O aberto” não é o contrário do “fechado”. É um pouco parecido quando falamos de “liberdade de circulação”, que as pessoas traduzem então como “caminhar”. Não é verdade, as pessoas caminham o tempo todo, mas isso não serve para nada. Liberdade de circulação para quê? Andar sim, mas interiormente... “O homenzinho que anda na minha cabeça”, é Prévert quem diz isso. Uma liberdade de circulação interna que permite que naquele mo- mento [a frase é interrompida]... É o mesmo paradoxo dizer que os catatônicos são imóveis. Não é verdade. Não há nada de mais agitado interiormente do que um catatônico. É uma besteira isso. Uma visão que passa longe... Não chega nem a ser um paradoxo, é uma evidência. Por exemplo, penso sempre em uma reflexão 9 de Maldiney, em Regard, parole, espace, eu acho, no fim da Critique de l’immédiateté chez Hegel, em que ele fala de Hölderlin, que era, apesar de tudo, esquizofrênico. Ele escreveu mais ou menos em 1800. Hölderlin descreve algo e depois... Offene, o Aberto. Pronto, estava aí. Os esquizofrênicos estão aí. Vão muito mais longe que nós mesmos em direção a esse limite que não podem atravessar. Nós nem pensamos nesse limite, porque o atravessamos o tempo todo. S: Penso em Tosquelles, que definia o clube como o lugar onde os nômades podem se encontrar. “É necessária uma liberdade de passeio”... Com seu sotaque [catalão], ele dizia que o papel do clube era precisamente esse, o de poder escapar da neurose de caráter dos chefes de pavilhões e ir ao clube para falar, para contar histórias... O: … e de contar sua viagem... S: Um tipo de visão como a de Saint–Alban em um grande deserto. O: O clube pode ser definido desse modo como um lugar onde nos contamos, mesmo sem dizer nada. Contam–se suas próprias viagens, tanto seus itinerários geográficos como suas viagens interiores. É um lugar de encontro e de reunião. Essa palavra “reunião” [rassemblement] talvez seja interessante. Para que haja reunião é preciso o aberto. Caso contrário não é verdade, é simplesmente um aglomerado. Em um pavilhão de agitados, fechado, não há história. É preciso que haja um clube. O trágico é que o clube é transformado em pavilhão fechado, com normas, com chefe, com cantina, o que não serve para nada. Nesse ponto se torna interessante o que diz Tosquelles sobre lutar contra a organização. Trans- formar a sala comum em aberto. Aí percebemos que é preciso ter – eu não gosto da palavra estrutura, mas é algo assim – lugares de recentramento, de estratégias internas, policentradas, policêntricas... S: Imóveis. O: Imóveis. Policêntricas... um dos centros pode muito bem desaparecer e é subs- tituído na hora por... Polifônico, como diz Tosquelles. Polifônico, policentrado, multi–referência... Podemos até lacanizar, neste caso, falando de “phantasma”. “Phan”, a luz... o ser de luz. Um “phan–ser”, um “phan–être”, fenêtre (janela) é o ser de luz. O fantasma participa, há uma janela em direção a alguma coisa. Muitas vezes desenhamos uma janela que não está aberta, mas pode–se ver através dela. Frequentemente vemos, como os surrealistas, uma paisagem na janela desenhada de antemão. Mas em todo caso ela está lá. E é além que se encontra o real, é lá que ele está. O fantasma é uma janela que desemboca no real. Pode–se dizer que ela é a própria imagem, complexa, do aberto. Ou seja, para que possa haver o aberto é pre- ciso ter um fantasma constituído. É o que diz Pankow. Enxerto de transferência para que lentamente apareçam pedaços de fantasmas; não para criar raízes, mas para tocar a terra. Nesse momento, os pés..., a importância dos pés, de “tomar pé”, como dizemos. O fantasma é o poder tomar pé num espaço delimitado que prova que o aberto existe, pela janela fechada, o que é o cúmulo. Mas se a janela é fraturada, paradoxalmente suprime–se o aberto e a delimitação. É a psicose. S: O que talvez explique também porque os psicóticos não gostam muito que limpemos suas janelas. Cadernos de Subjetividade10 O: Ah, sim. É verdade. Mas claro que é também uma justificativa para que as pes- soas não façam faxina! Vê–se isso claramente no filme La moindre des choses1, uma janela completamente imunda. “Não é para mexer nela porque senão ele vai ver o vazio e pular pela janela”, dizem. É verdade. Claro, não podemos generalizar. Feliz- mente existem limpadores de vidro, mas isso é verdade. Isso nos remete à janela, ao fantasma. Aliás, gostamos de desenhar com os dedos. Desenhamos todo o tempo, é o aberto, é toda essa ideia que está em jogo. Com o Félix[Guattari] dizíamos isso: “Para poder estar aqui é preciso poder estar em outro lugar”. Se não podemos estar em outro lugar, não estamos aqui. Mas nem por isso é preciso estar o tempo todo em outro lugar, é o que dizia a Félix. Ele não estava aqui o bastante, ele estava o tempo todo em outra parte. Há uma dialética nisso, não existe um sem o outro. S: Você falava dos pés. Lembro–me de que para Tosquelles eles eram muito im- portantes. Ele sempre nos repreendia, dizendo: “Vocês pensam com a cabeça quando é preciso pensar com os pés”. Os andarilhos do mundo são os pés. Isso se liga com o que você dizia sobre o fantasma e a delimitação. A função do pé. O: O andar... Os pés... “Os pés não são burros”, diz Prévert. Pode–se dizer, retomando Schotte e Szondi2, que os pés são o vetor C, o vetor contato, antes mesmo que possa haver o objetal. O vetor contato com uma extraordinária ri- queza. Ele diz que isso corresponde, em grego, à basis, é a base. A base é o andar. Ou como diz Dolto: “ir–e–vir”, “ir vindo”. É o vetor C. Se não há a base, não há nada, tudo está perdido. S: É o tônus. O: Antes mesmo do tônus. Se retomarmos a descrição de Szondi, feita por Jac- ques Schotte, teríamos a tríade, o vetor C, a “base”: os pés, o andar, o ir–e–vir. Ele coloca depois, junto, no vetor sexual e no vetor paroxístico, o “fundamento”. Não se senta sobre os seus pés, mas sobre o seu fundamento. Depois, o vetor SCH é a “origem”. Na realidade, é a diferença entre a base e o fundamento. A base é muitas vezes negligenciada na psiquiatria francesa e em outros lugares. Antes de serem educados pelos laboratórios, eles confundiam com frequência depressão e melancolia. E o fazem ainda hoje, com essa monstruosidade de “depressão neuró- tica” que não quer dizer nada. A depressão verdadeira é bastante complexa, mas muito mais simples que a melancolia. A depressão (o fator d) com toda a riqueza que isso representa e é a base. E isso dá para ver de cara, faz parte do diagnóstico, que é uma palavra nobre. Fazemos isso o tempo todo, não é um rótulo. O diagnós- tico é a habilidade de localizar corretamente a base, o fundamento, a origem... Há uma correlação entre tudo isso... Se não houver o aberto, se ele é mal delimitado, 1 Philibert, N. La moindre des choses [Coisas mínimas]. Documentário. França. [105 m] 1996. Disponível na Cinemateca da Embaixada da França no Brasil. 2 Léopold Szondi foi um médico e pensador húngaro contemporâneo de Freud que elaborou um teste a partir de fotos de rostos de pessoas atingidas por diversas patologias psiquiátricas. Se suas pes- quisas iniciais tratavam sobretudo da relação entre o psiquismo e a genética (ele elabora o conceito de inconsciente familiar), coube ao professor e psiquiatra belga Jacques Schotte (amigo próximo de Jean Oury) prolongar seu pensamento. Schotte inventou a “patoanálise”, introduzindo a psicanálise e a fenomenologia alemã na análise do “destino pulsional” através do teste de Szondi, desenvolven- do a dinâmica metapsicológica, chamada por Tosquelles de “a dança pulsional”. O pensamento de Szondi e de Schotte marcou a clínica de La Borde. 11 se não houver emergência, a base não funciona, não anda. Se dissermos isso, os tecnocratas nos mandam um professor de ginástica para fazer as pessoas andarem. “Então andem!” Até parece... É aí que entram as constelações... S: Exatamente. Você falou sobre suscitar a conversação a propósito das constela- ções e eu pensei que isso vai inteiramente ao encontro do que você disse sobre o andar, o aberto, a delimitação. O: Parece–me que as pessoas vivem sob um mito desenvolvido sei lá por quem... a economia produtiva: um mito da pessoa. Uma pessoa. É difícil dizer isso. Houve discussões, eu me lembro – pessoa, personagem, personalidade... Isso é Tosquel- les. Quando ele fala de “pessoa”3 não a delimita. Ao mesmo tempo é uma velha tradição de Saint–Alban, com Bonnafé, o personagem do psiquiatra, o papel do personagem que não é a pessoa. A pessoa, em uma primeira aproximação, não se sustenta sozinha. É como se nós introduzíssemos um fechamento. É por essa razão que Tosquelles corrige isso frequentemente, quando diz, de um jeito banal, que a pessoa é a integração de uma quantidade de coisas. É um aberto. Sabe–se bem que o modo mais corriqueiro para definir alguém é “diga–me com quem andas e te direi quem és”. É Szondi ou a constelação, no fundo é a mesma coisa. Para poder conhe- cer alguém – sobretudo um esquizofrênico, que não se deve olhar de frente senão recebemos uns tapas – o melhor jeito é saber quais são as suas relações. Suas rela- ções, eu digo quase sempre, parece um pouco pretensioso, mas poderia obedecer à lógica dos “subconjuntos vagos”. Parece–me ter lido dessa maneira o coeficiente kappa, o “coeficiente de pertencimento”, em um tipo de fractal. Por exemplo, em um grupo há pessoas que estão ali, mas, se olharmos de perto, um décimo delas está muito longe, pensando em quando será o fim, o que se vai fazer depois..., outras pessoas não estão ali de jeito nenhum. Outras estão – “oh!” – e estão 100%. O coe- ficiente kappa vai de um décimo a cem. Em contraposição, se alguém aponta: “você veio ao grupo”, “sim, eu vim”, “você ficou”, “duas horas”, “ok”, “como todo mun- do”, é uma idiotice, pois não dá para julgar isso. Ora, a pessoa é todo um sistema de kappa 1, kappa 2, kappa 3. Estes pertencem a outras pessoas que nem sequer sabem. S: Você acha que os psicóticos tem uma noção do coeficiente kappa? O: Eu tenho certeza de que têm mais do que os outros até. Eles são bastante sensí- veis. Cito sempre, já é uma estereotipia minha... Há alguns meses, Philippe – você sabe quem é – bastante psicótico, esquizofrênico... ele está um pouco melhor ago- ra... Um dia, não faz muito tempo, na primavera, Ginette, que não estava mal, mas estava deprimida... em uma segunda, às seis horas, ela desapareceu, e todo mundo começou a procurá–la, todo mundo mesmo! Tanto os doentes como os outros... E não a encontrávamos. Deu sete, oito horas... Então, passo pelo piso principal do castelo no momento do jantar; não digo nada, só queria ver se ela estava lá. Aí, um sujeito que nunca diz nada se aproximou de mim e disse: “Não se preocupe, ela está no quarto dela.” Extraordinário. Nada mal, não é, a coisa de ter antenas?... Mas as antenas, quando as tocamos, devem doer. Não se deve tocá–las. Como eles têm 3 Quando Oury fala de personne, ele deixa transparecer uma sutileza da língua francesa: une per- sonne, em francês, quer dizer “uma pessoa”, mas personne também significa “ninguém”. Cadernos de Subjetividade12 antenas evitam os lugares onde se tocam nelas. Nunca vêm na reunião de acolhi- mento, nem nos grupos; não é possível quando se tem antenas assim... Em compensação, são as antenas que fazem com que as constelações fun- cionem. Podemos reagrupar cinco, seis, dez pessoas em torno de cada um. Vê–se bem que, tocando os participantes, tocamos a pessoa. Mesmo se não chegamos a fazer uma constelação, basta fazer uma “reunião dossiê” sobre alguém, sem nada mais, para mudá–lo... S: É essencial transmitir isso para a psiquiatria que está por vir, como você dizia ontem. Vamos ver, mas as constelações são essenciais. O: Mas com a homogeneização as antenas são queimadas, tanto as dos es- quizofrênicos como as dos outros. É por isso que releio Michel de Certeau, é surpreendente. Ele fala precisamente sobre isso tudo. A crítica... Bem antes que estas existam..., as avaliações, que horror, é um crime. A homogeneização queima tudo o que pode permitir as antenas, embora elas sejam necessárias para nos fazer sair um pouco... S: Algo que poderia, perfeitamente, ser aplicado ao setor4, à política do setor, como se dizia. Cuidar das constelações, fazer com que antenas cresçam nos profissionais da saúde. É o que fazemos aqui, tentamos fazer com que antenas cresçam em nós. O: Só que eu tenho pavor dapalavra “profissional da saúde” [soignant]. É uma bobagem. É ser cúmplice do funcionário. Sabe–se bem que para conhecer alguém é preciso estar na sua paisagem, na sua paisagem concreta. É preciso falar com as pessoas que rodeiam esse alguém. E nessas horas, frequentemente, são os outros doentes, por assim dizer, que têm muito mais informações. Por exemplo, ultima- mente aconteceu de Françoise, que está aqui desde 91, ter muitas alucinações... Eu não a conhecia... Só assim de vista... É um caso complicado. Ela é uma das vítimas de Bourguiba, judeus tunisianos que foram expulsos nos anos 50. Conheço outros, aliás. Pois bem, foi sua vizinha de quarto, Françoise também, completamente esqui- zofrênica, quem me disse: “Você não sabe, ela chegou aqui em 1991, ela tem uma filha de 27 anos, ela esteve em Túnis, seu pai morreu nesse ano...”. Fantástico. Um dossiê completo. Porque elas conversavam e nós não sabíamos. Este é um material precioso que é completamente esmagado pelas estruturas atuais. Pode–se imaginar: “Como? Você confia no que conta uma louca a respeito de alguma coisa? O que isso quer dizer? E onde fica o segredo? etc.” Todas essas histórias desde o 9–Termidor5. É difícil a “constelação–constelações”! É preciso tomar cuidado, pois se dissermos: “Ah, é preciso fazer constelações”, aí todo mundo começa a fazer, 4 A política de psiquiatria de setor faz alusão à politica psiquiátrica instaurada na França a partir dos anos 1960, que tentava aproximar o usuário da cidade através de novas estruturas de cuidado extra–hospitalar, evitando que o paciente vivesse cronicamente entre os muros do hospital. A seto- rização dos cuidados psiquiátricos consiste em propor cuidados na área geográfica próxima do do- micílio do paciente. Um setor compreendia uma zona geográfica de setenta mil habitantes. Assim, o endereço da pessoa a associaria ao setor no qual ela receberia os cuidados, segundo as modalidades do serviço público. Alguns médicos “desalienistas”, tais como Lucien Bonnafé, exerceram um papel importante nesse processo de ruptura com a estrutura asilar. 5 O 9–Termidor é equivalente ao dia 27 de julho, décimo primeiro mês do calendário da França revolucionária. Nesse dia, em 1794, a Convenção decreta a prisão de Robespierre. 13 mas isso seria o pior. Se deixarmos, haverá constelações que se formarão assim: todos os jovens juntos, todos os toxicômanos juntos, todos os velhos juntos, todos os beltranos... S: Ah, não, isso não são constelações! O: Horrível! Por isso é preciso tomar cuidado. Pode–se acabar dizendo: “So- mos parecidos, vamos juntar–nos”..., “Oh! a mesma faixa etária”... De novo Tosquelles e a heterogeneidade. Concretamente, uma constelação pede todo um processo, não é natural. Não há nada de natural. O natural leva a isso: à guerra dos sexos, à guerra dos toxicômanos, à guerra dos velhos..., isso é natu- ral, podem dizer. É, portanto, uma construção... Cito sempre um caso–chave de constelação, o de um paciente que estava num estado mais que limite, esquizo- frênico, perverso, não dava para saber direito, já faz bastante tempo... A partir da reflexão de Racamier sobre Stanton e Schwartz, pensamos: “Vamos reunir as pessoas, conversar... as pessoas daqui, tanto os médicos quanto os enfermei- ros, os monitores, as faxineiras, os cozinheiros, todo mundo..., perguntando se achavam que o tipo em questão era simpático”... Questões meio simplórias, Kurt Lewinianas, “simpatia–antipatia”. “Quem aqui gostaria de passar quinze dias de férias com ele?” O sujeito fedia. E foi aí que Fernande, uma faxineira que tinha acabado de começar a trabalhar, disse: “Sim, por que não?” Outros disseram que era impossível, era nojento... Durante duas ou três horas ficamos conversando assim... Já no dia seguinte, ele estava mudado. Estava bem. Era uma figura curiosa, ele colocava queijo embaixo do braço, nunca queria tomar banho, ficava bêbado, desmontava motores... S: Ele desmontava motores? O: Sim, motores de carros 2CV [Citroën, populares]. Ele desparafusava coisas. Era meio obsceno. S: Bom, ele não ficava catatônico todos os dias! O: Terrível! Era uma pessoa que já tinha passado por vários hospitais. No dia seguinte... Tosquelles me disse: “Você vai mexer na contratransferência institu- cional”... Eu não entendi o que ele queria dizer. Contratransferência, por que não? Mais tarde eu disse: “Mover as articulações das palavras, os prosdiorismos”. O que se passa na passagem de uma palavra para outra, o tom, entre as linhas... Quando as pessoas cruzaram pela manhã com o tipo em questão, ele já tinha outro ar, um cílio que mexia ou sei lá o quê. E é isso que conta. Como eu dizia, importa é o que não se vê. Coisinhas pequenas. Mexemos com elas. Mas para fazê–lo é necessário um requestionamento total da instituição. Imagine: “Façam constelações!” E o médico–chefe reúne os enfermeiros: “Hoje faremos uma constelação, falaremos de tal pessoa”. Alguém pensa: “Se eu disser alguma besteira, vou perder um ponto”... “Sim senhor...” Ah! Uma cons- telação não funciona assim! Ela necessita de um questionamento permanente e inacabado da hierarquia, das relações de superego. Vemos bem as dificuldades para se ousar falar. As pessoas não falam. Tudo bem, talvez eu não as deixe falar muito, mas mesmo assim! Cadernos de Subjetividade14 S: Para que Fernande tenha dito isso – o que não é tão óbvio assim – havia uma espécie de desejo inconsciente, que ela desconhecia e que a impulsionou para dizer isso. O fato de haver um acolhimento particular fazia com que se pudesse dizer qualquer coisa nesse grupo... O: Sim, e não por piedade, mas por simpatia. S: Para que ela, chegando para trabalhar muito jovem em um lugar assim, sem conhecer ninguém, possa dizer “sim, eu sairia sem problema, por uns quinze dias, com esse paciente”, era preciso haver uma liberdade de pensar, de falar, era preciso que a hierarquia já fosse bem trabalhada. Essas condições para o surgimento do desejo inconsciente – talvez ela tenha falado antes mesmo de saber o que estava dizendo – são o longo trabalho institucional do qual você fala. Uma longa “laboragem”. O: O desejo inconsciente... algo assim... que pode apesar de tudo se manifestar, contanto que se possa falar. Simplesmente. S: Uma leveza na possibilidade da fala que não obriga a nada. O: Não compromete em nada. S: Depois, bom, no fim das contas ela se compromete bastante. O: Acima de tudo que ela possa dizer e que faça parte de um grupo. Lembro–me de que há uns vinte anos atrás, com um educador que trabalha em um grande hospital, houve aqui em La Borde uma aproximação com o pessoal da manutenção, os traba- lhadores desse hospital, que vieram passar um ou dois dias, no final de março, não lembro mais em qual ocasião. Eles me escreveram no outono dizendo que gostariam de vir em grupo para falar um pouco. O verdadeiro problema era que eles, o pessoal da manutenção, os operários, os que consertam coisas, e que no fundo o fazem quase sempre com os doentes, não têm nenhuma noção e, embora coisas complica- das lhes aconteçam, não têm o direito de participar das reuniões dos enfermeiros, porque não está previsto no estatuto deles. Valeria a pena falar a respeito, sobretudo porque naquela época houve uma mudança de diretor, de médico. O hospital tinha até tido boas intenções, que mal duraram dois meses antes que virasse um horror. Houve até um caderno de queixas feito pelos próprios doentes e endereçado ao novo médico–chefe, que recém tinha chegado no mês de agosto. Nesse caderno, eles diziam: “Gostaríamos de batatas que fossem batatas de verdade, gostaríamos de trocar os lençóis mais de uma vez por mês, gostaríamos que os banheiros fossem fechados”... Era isso o caderno de queixas. O médico–chefe, bem idealista, afirmou: “Vou levar isso em conta”. Foi aí que os operários da manutenção, dada a atmosfe- ra, disseram: “Seriabom se conversássemos, pois nós temos contato com os doentes mas não conhecemos nada, absolutamente nada deles”. Não tomei as devidas pre- cauções e fui até lá com um amigo, mas, chegando diante das portas do hospital, fomos impedidos de entrar. Isso porque, como não gosto de escrever, não tinha solicitado ao médico–chefe a permissão. Então, a gente se instalou em um galpão e lá ficamos a tarde inteira falando com os operários sobre os doentes, da fenomeno- logia concreta. Em novembro, os cadernos de queixa já tinham sido jogados no lixo. Pode–se dizer que agora é a mesma coisa, ou até pior. Não há grupos possíveis se eles 15 são cada vez mais compartimentados, isolados. E mesmo aqui vemos isso aparecer: “Você não sabe nada, nem um diploma você tem”. Ou ainda as histórias terríveis contadas por Delion sobre fazer packs6 com crianças autistas em Allonnes, onde existem constelações: pode–se escolher, exis- te uma afinidade entre um agente de limpeza e higiene hospitalar (ASH), um médico etc. Tinha começado bem, mas, em quinze dias, veio um procedimento sindical dos enfermeiros declarando: “É escandaloso vocês colocaram uma agente de limpeza nisso, ela não é diplomada”. Eles se queixaram para o diretor. É inte- ressante. Em um clima assim as constelações não são verdadeiras, é uma hipocri- sia..., a coisa é quebrada de cara. Em uma constelação não se escolhem os diplo- mas, não se escolhe entre um professor titular ou um jardineiro. Nas constelações é possível ter gatos ou cachorros, porque não, e ainda há os espaços, os lugares. S: Quase sempre, quando você fala de constelação fala sobretudo de pessoas, mas eu tenho a impressão que, veiculado pelas pessoas – na extremidade das pessoas existem as antenas –, há lugares, minerais, árvores, o espaço... O: São essas coisas que contam. Em uma constelação há tipos assim, que estão sempre em um canto, sentados em uma janela. Tudo isso deve aparecer, mas para tanto não se deve ser chateado pela hierarquia, como se diz. Nada fácil. Os packs funcionam bem, mas pedem muita precaução, tempo. Funcionam ainda melhor quando existe uma equipe de packs. S: E quando há reuniões. O: Sim. Fizemos pack com um paciente porque chegamos no limite. Ninguém mais aqui o aguentava. Todas as manhãs ele rodeava os quartos, queria coisas. Além disso, ele grita. É uma figura que esteve nas celas, nos hospitais. Mas todo mundo, mesmo os doentes, diziam não aguentar mais o sujeito... Verdade..., mas ele é gentil, faz umas trocas, rouba. Entra no meu consultório, abre coisas. Trocamos cigarros... Mas a coisa se tornou assustadora. Ele mostrava o pinto, era muito chato. Com todo mundo e com a família dele, que é ótima, a gente se organizou para que ele viesse oito dias e fosse embora logo depois. Aí, veio a ideia de fazer sessões de pack com ele. Ah! Ele ficou todo contente. Disse à mãe, ao ir embora com ela por quinze dias: “Você vai me fazer packs agora, vai ficar perto de mim.” Mas não, o pack é algo mais sutil do que isso (risos)! Pode–se dizer que os packs são uma forma peculiar de constelação: quem, com quem? Há duas pessoas que fazem o pack, uma que toma nota... Para que ele funcione é preciso que elas falem a respeito em outro lugar também, senão a coisa desanda. S: Lembro–me de ter feito bastante com a Teresa. Era sempre no quarto mais 6 O Pack ou Packing é uma técnica de envelopamento do corpo. Cada membro é envolvido por toalhas úmidas e o corpo é integralmente embrulhado com um lençol úmido. Em seguida, coloca– se um ou dois cobertores secos e utiliza–se o tempo de reaquecimento para favorecer o trabalho psicoterápico. O pack, indicado em certas psicoses graves e autismo, visa proporcionar a sensação de delimitação, de re–união e reconhecimento dos limites do corpo. É um método de tratamento praticado atualmente em La Borde, em certos casos. Ao longo do ano de 2011 e no início de 2012, a França enfrentou todo um questionamento jurídico e duras críticas por parte das famílias de autistas a respeito dessa prática, associada sobretudo ao trabalho do médico psiquiatra Pierre Delion, amigo de Jean Oury, em Lille. A esse respeito conferir o texto de Pierre Delion disponível em:<http:// www.cemea.asso.fr/spip.php?article2942> Cadernos de Subjetividade16 bonito do castelo, com uma vista para o parque, toda uma atmosfera, sabe. Havia grupos de pack, uma reunião com aqueles que faziam com outras pessoas. Eu achava que tinha um ritual, era sempre na mesma hora, após o café da manhã, um tipo de espaço–tempo completamente privilegiado. O: Para isso é preciso tempo, é preciso um número suficiente de pessoas. Não dá pra ter muitos dos que só fazem 35 horas por semana! Sem brincadeira, é preciso estar dis- ponível. A coisa precisa ser heterogênea. Por exemplo, houve um momento em que a gente dizia que os cozinheiros, um dia por semana, não precisariam ficar na cozinha. S: Eu me lembro disso. O: Há um dentre eles que faz packs. O que é muito importante. Sem, para tanto, fazer uma massa folheada, mas enfim... (risos). Não é a mesma coisa, um pack! Tem um outro que continua a ir ao cinema nas quintas à noite com um grupo. Outro participava do jardim, um dia sem cozinha... O que é muito importante para misturar... heterogeneidade... Ele faz parte de um grupo. Para poder fazer isso, aí vem de novo a questão da hierarquia, dos estatutos: quem é aquele que cuida e quem é aquele que recebe os cuidados? O que é um absurdo, uma idiotice... S: Na minha lembrança é extremamente importante que cada um de nós “tenha o direito” de pedir uma constelação, uma reunião, qualquer que seja o pretexto. É uma lei de La Borde, que parece pouca coisa, mas que libera na cabeça um espaço. É muito importante. Uma grande liberdade. O: Com certeza. O grupo X está em relação com a “grade” [grille]7, com a organização do tempo de trabalho. Que trabalheira fazer um organograma do “emprego do tem- po”. Em um dado momento foi até perigoso ser um “gradeador” [um grilleur], como dizemos. Havia uns tipos explosivos, bem nervosos, que diziam: “Se você não me der folga tal dia ou se você me colocar em tal lugar...” Houve alguém que teve a cara quebrada fisicamente por um “gradeado” [grillé]! Não é agradável ser “gradeador”. Para que a grade funcione bem, propus uma outra reunião, que chamei de maneira pretensiosa de o “terceiro regulador”, a partir de Sartre e da Critica da razão dialética. Era para repensar a grade, mas ela foi invadida por conversadores. Quando há alguém que realmente não vem trabalhar, que não faz nada, que é uma dor de cabeça, que finge, ou você o coloca para fora, digamos, tradicionalmente falando, ou então você faz um grupo X. No grupo X é a pessoa mesma quem escolhe três ou quatro outras, que estejam dispostas a aceitar ser escolhidas, para em seguida se encontrarem como ela quiser, uma, duas, três vezes: “Por que você não vem trabalhar? Por que você é bobo? Por que você finge?... Se acalme.... Por que você enche a cara?... Por que?”... E então eles conversam... Não é necessariamente eficaz de imediato. S: Eles não falam obrigatoriamente da coisa pela qual eles se reuniram. Eles se falam. O: E nessa hora, uma abertura se faz, é um “enxerto de aberto”. Quando a pessoa 7 A grille (grade) é uma instância institucional em La Borde que permite que o tempo de trabalho e a inserção do pessoal sejam organizados e negociados coletivamente. Ela é um instrumento de análise institucional que agencia as afetações individuais e o desejo em relação às tarefas gerais a cumprir. Para evitar a existência de um chefe de recursos humanos, que ditaria o horário e a função de cada membro do pessoal, a grille é formada por uma pequena equipe de quatro ou cinco profissio- nais da clínica que se revezam entre várias atividades. Para saber mais sobre a grille, consultar o texto de Félix Guattari disponível em: <www.revue–chimeres.fr/drupal_chimeres/files/34chi01.pdf>17 se fecha na sua própria idiotice, entra o enxerto de aberto. E isso não é a grade que pode resolver, senão parece coisa administrativa. É isso um grupo X, quase uma constelação às avessas. Pode–se dizer que é a pessoa quem a designa. S: Havia outra constelação às avessas da qual você falou, mas que eu mesma não cheguei a conhecer, a história dos anjos da guarda. Isso me interessou muito, pois parece bastante paradoxal em relação ao aberto. O: É fantástico! Os “anjos da guarda” foi algo que nasceu há um ano e meio... Ha- via um outro tipo, ainda bem pior do que aquele de quem falei há pouco. Alguém bastante inteligente, mas psicopata–perverso e que tinha histiocitose – uma doença em que as células monstruosas de Langerhans8 invadiram seus ossos produzindo tumores vazios juntamente com um estrabismo, que foi operado, e uma diabete in- sípida que o impelia a beber. Além de uma mãe que o superprotegia, era o pequeno Jesus. Aos quatorze anos era completamente perverso, poli–toxicômano. Ele bebia o tempo todo, qualquer coisa, até mesmo a água dos vasos de flores. Tudo o que tinha. Um horror. Ele foi hospitalizado várias vezes. Bom, aí um dia ele chega aqui. Havia sido hospitalizado à força, pois era de uma violência espantosa. O médico– chefe de Clermont Ferrand foi quem o enviou: “Acima de tudo, que ele nunca mais reveja sua mãe e seu pai”. Ele chegou aqui e dissemos que tentaríamos por quinze dias. Acabou durando um ano e meio. Todo mundo aqui, obviamente, dizia: “É preciso mandá–lo embora, ele é horrível”. De fato ele só aprontava, enchia a cara... Ia até os vizinhos para assustar as mulheres às onze da noite. Voltava acompanhado por policiais, era bem malandro. A coisa tomou tamanha proporção que de noite a gente se perguntava onde ele estava... Finalmente ele disse: “Eu preciso de alguém ao meu lado o tempo inteiro”. Bom, foi aí que fizemos não uma constelação, mas uma corrida de revezamento para estar com ele durante 24 horas. Ele dizia: “24 horas sobre 24, mesmo à noite”. Foi aí que um grupo de doentes e funcionários se engajou. Ele chegou até a dirigir as manobras: “Coloquem–me em tal quarto, fechem a porta, fechem a janela. E que tenha alguém aqui”. Isso durou oito dias. Foi milagroso. Dez dias depois ele partiu em férias, durante três semanas, para a casa dos pais, e já faz um ano e meio que tem dado certo. Ele me escreveu dizendo: “Os anjos da guarda funcionaram, eu até passei num concurso de eletrônica, faço pequenos filmes, uma exposição”... Ultimamente, achei que a coisa ia voltar a de- sandar, ele me telefonou dizendo: “aohhh”, eu mesmo disse “oooh” (risos). Ele não voltou. Foi extraordinário! Desde o mês de junho do outro ano. A técnica dos anjos da guarda é uma outra variação. Colocam–se, em torno da pessoa, anjos da guarda que salvam. Ele precisava disso, de um anaclitus9, nem sei como dizer, frenético... S: A gente vê bem o limite. 8 Conhecida como Histiocitose de Células de Langerhans (HCL) é uma doença espectral, que se manifesta sob uma variedade de formas clínicas, envolvendo todos os tipos de macrófagos e de- mais células dendríticas, características do sistema imunológico, que se acumulam e se infiltram nos tecidos atacando–os. 9 Conforme definição de Schotte, anaclitus designa o “espaço transicional que se abre a partir do contra–investimento do espaço materno vivido como envelope matricial, no geral, correlativo ao desejo de escapar do domínio materno e do mundo da mãe... a satisfação que decorre desse contra– investimento é chamada tipicamente anaclítica”. Cadernos de Subjetividade18 O: No limite. S: O aberto por outro lado é enganoso. Afinal, ele ainda continua sob controle, mas isso lhe deu limites. O: Mas nada impede que agora ele não esteja mais sob o controle de nada. Ele até parou de tomar a maioria dos medicamentos. S: É importante compreender que existem passagens como essa que é preciso transpor vigorosamente. O: Os anjos da guarda são muito importantes. Vê–se bem a constelação a partir daí: vemos os packs, o grupo X, os anjos da guarda e podem–se imaginar ainda várias outras coisas. Ao redor do aberto, dos limites. Trabalhamos o nível dos phantasmas, se podemos, realmente, atribuir uma palavra. Ver as pessoas e falar nutre o phantasma e libera o desejo lá onde se encontra bloqueado. Mas para isso é preciso estar tranqui- lo. Não é pelas avaliações, que horror! Discuti recentemente com os enfermeiros de Ajaccio e de Marselha, é terrível. Obrigação de jaleco branco e obrigação de ter um crachá com seu nome. Porque – você entende – nos é dito que se não os tivéssemos os doentes ficariam confusos. É horrível. Sem falar da cumplicidade do médico ou dos poderes da enfermagem. As pessoas estão lá de pijama, em celas, tem até cachorros... S: O quê? O: Isso mesmo. Eles contrataram inclusive cães policiais. O alarme pode ser dis- parado. Os doentes estão com medo. Em princípio era para evitar que as pessoas fugissem. Mas eles têm uma função interna. Os enfermeiros não comem com os psicólogos, que não comem com os médicos, não se deve misturar. E não estou exagerando. Agora é assim em todo lugar. Em um meio desses, o que quer dizer uma constelação? Poderia-se dizer: “Vista–se, coloque os sapatos, tire esse pijama.” S: Talvez exista ainda um pouco de potencial terapêutico entre os doentes? O: Não mais. Não existem atividades. Umas coisinhas talvez, desenho... É terrível. (Me dê cinco minutos, tenho que dar uma injeção e já volto.) S: Parece–me que há algo que apareceu no céu das constelações, é a reunião Peachum. O: Esse recém–nascido já é bem antigo. Tem uma história e tanto. Cinco ou seis anos atrás havia o desejo persistente de criar um pequeno grupo para falar sobre o que fazemos, onde andávamos. Tem um pouco de história. Estranhamente, eles o chamaram de “reunião dos novos contratados” (risos). Rapidamente perguntaría- mos: até quando um novato é novato? Não se sabe, é besteira. Com Marie–Ange, que já faleceu, eu tinha começado um pequeno grupo: “Eis La Borde etc., a história do Loir–et–Cher, da psicoterapia institucional, etc...” Ao mesmo tempo era interes- sante porque a gente tinha um bom material, havia uma gravação, uma fita cassete de discussões entre Félix e Beauvais. Beauvais era um velho que morreu e que tinha assistido, antes dos anos 1960, ao começo da marcenaria daqui, era engraçado. Foi muito bom. Após quatro se- manas não havia mais reunião. Então, dissemos que era preciso abrir um pouco. Vieram somente estagiários que permaneceram um mês. Eu disse que não era possível, não íamos recomeçar a cada vez. Faremos um CD! (risos). A coisa se esgotou, enchi o saco; aí dissemos que ela seria aberta a todo mundo, aos doentes, 19 aos moradores (pensionnaires), como se diz aqui. A reunião foi retomada e mudou de lugar. Primeiro era na rotonde (rotatória), depois fomos para a serre (estufa). Mas unicamente com os moradores; dos funcionários vinha apenas quem queria, eu não ligava. Naquele momento, eu a chamava, em off, de “Peachum”. É da Ópera dos Três Vinténs. Em todo caso, Peachum está no filme da Ópera dos Três Vinténs, um tipo que nos subterrâneos de Londres organiza todos os mendigos para vesti–los, torná–los cegos e coletar dinheiro. Eu disse em off, “Peachum”, mas souberam. Enfim, depois a coisa começou a ficar meio apagada, eu não fiz nada e essa reunião me encheu o saco. Porque mesmo na Peachum da época os moradores às ve- zes vinham, às vezes não, e continuou assim por muitos meses. Ultimamente, nos últimos três ou quatro meses – por aqui vira e mexe as coisas desabam, o que não é engraçado – houve uma degenerescência completa, em particular do rez–de– chaussée (térreo)10. Já faz 25 anos que falamos do rez–de–chaussée. Eu anuncio que vou reunir os doentes e aí vem quem quer. Então, no lugar de dez, comparecem quarenta. Era fantástico. Cada oito dias, atéduas vezes por semana. Eu ainda digo Peachum, embora atualmente falemos mais de renovar o rez–de–chaussée, da dis- tribuição de tarefas, de como inventar coisas..., e tem um grupo, com uma moça ótima, que lança o jornal Les nouvelles labordiennes, que é notável, todo mundo escreve nele. E está ligado a isso também: se não há ao mesmo tempo a imprensa, vamos de novo separar o rez–de–chaussée do resto. O fato de que os vagabundos tomem o poder sempre cria conflitos de todo tipo. No começo, a equipe do rez– de–chaussée, onde ocorre a reunião, nem sempre vinha. No entanto, era impor- tante organizar um grupo de três pacientes, de manhã e de tarde, no piso central, para acolher as pessoas do hospital–dia, para animá–las e conduzi–las aos ateli- ês... Seria preciso fazer uma lista enorme, que demandaria bastante tempo, a coisa está em processo, acontece aos poucos... Há um monitor, frequentemente ativo demais, que quis organizá–la e acabou virando o bode expiatório. Isso disparou todo um sistema de conflito. Foi preciso que eu encontrasse sozinho o pequeno grupo de monitores do rez–de–chaussée, sem o bode expiatório..., depois disso a coisa se harmonizou e está se ajeitando. É bem difícil porque existe uma massa de pessoas bastante a–pragmáticas apesar de tudo, não dá para esquecer que temos uma população bastante sensível aqui. E mesmo esses... Há quinze dias eu disse: “Peachum funciona!” Aí chegou um tipo, o Jean–Claude, que nunca vai a lugar nenhum, ele nunca vai a uma reunião – é ele quem carrega os sacos de lixo a noite e disse: “Quando eu não carregar mais os sacos de lixo, vou matar alguém” – pois bem, ele me chama, bate no vidro da janela do meu consultório, ele não sabe ajustar muito bem a distância... Finalmente, ele veio para a Peachum todo bem vestido, sentou–se ao meu lado na mesa fazendo sinais como se estivesse de acor- do. Bom, foi a primeira vez que isso aconteceu. Para mim foi um grande sucesso. S: Tem–se a impressão de que as pessoas vêm até aqui, no seu consultório, para falar com você do que acontece lá fora. 10 O rez–de–chaussée (literalmente piso térreo ou principal) é em La Borde o nome do espaço térreo do Castelo no qual se encontram a cozinha, as salas de jantar, a grande sala das reuniões. É principalmente um lugar de passagem, de encontros, de reuniões etc. Cadernos de Subjetividade20 O: É verdade, tem um pouco disso. Ao mesmo tempo é bastante importante que se mantenha uma relação constante com a imprensa local, o jornal semanal, a folha do dia, um monte de coisas assim. É banal, mas é difícil dar conta disso tudo. S: Talvez tenha, antes de tudo, o que chamamos de “a função do clube”, reunir as pessoas... O: Refazer o clube, o tempo todo. Por exemplo, o bar. Eu tinha feito um seminário inteiro em Sainte–Anne, em outubro de 1995, sobre o bar. Eu dizia: “O bar é no rez–de–chaussée”, pois eles achavam que o bar era o bar... Agora, existe uma regra que chamamos de “regra dos três”: se não há três pesso- as para fazer o bar, ele é fechado. Alguém que conta o dinheiro, alguém que fica no balcão e, além disso, há as mesas... para mudar..., ao mesmo tempo tem o ponto de lei- tura..., isso graças à Peachum. São coisas bem pé no chão. E engloba simultaneamente toda a questão do hospital–dia e a sua relação com o BCM, o escritório de coordena- ção médica. Faz anos que digo que o rez–de–chaussée deve ser o lugar de acolhimento no qual as pessoas do hospital–dia devem se apresentar, vir dizer, quando chegam, que elas estão lá. Mas por enquanto não há ainda nada disso, eles vão encher o saco do BCM, pedir o carro etc. São elementos concretos, mas só existem se há uma inscri- ção, é a mesma coisa para a central telefônica, ou a chauffe11 etc. É pela inscrição que se pode ter um começo de análise concreta. Se não há inscrição, não há análise. O rez–de–chaussée é um lugar de inscrição, é nele que há o maior número de passagens. A salle des collones (sala das colunas) devia ser uma plataforma face ao exterior, face ao BCM, aos ateliês e aos jornais. Na quarta–feira eu faço a reunião Peachum das 11h00 ao meio dia, isso movimenta as coisas, pois ao mesmo tempo, no petit salon (pequeno salão), há o que se chama de “loja”, que atrai bastante gente, duas vezes por semana. Simultaneamente ainda há o tabaco das 10h30 ao meio dia. Peachum tem concorren- tes! Eles dizem: “Fechamos o tabaco entre as 11h00 e meio dia”, então ao meio dia todos vão sair correndo... Assim, durante a Peachum ouvimos a loja e, felizmente, não estaremos isolados. Faz parte da análise concreta e surte efeitos. S: O paradoxal é que quando você fala de lugar de inscrição, você situa o rez–de– chaussée como lugar de acolhimento, o que remete à distinção que você faz entre acolhimento e admissão. No acolhimento é que as coisas são inscritas, enquanto que a admissão, as inscrições administrativas, não são elas que inscrevem... O: Elas escrevem. A inscrição – seria bom ouvir Michel Balat falando a respeito – é a função escriba. A triadicidade, a lógica triádica de Peirce, com o musement [devaneio] contínuo; mesmo quando se dorme se pensa, isso pensa sozinho, não há descontinuidade... A função escriba permite saber que “se devaneia” [ça muse]. O escriba nunca sabe o que ele inscreve. Se ele sabe o que ele inscreve não é mais inscrever. Em 11 Em La Borde, chama–se chauffe o ateliê responsável por assegurar o transporte entre a clínica e a cidade de Blois, e também ao próprio translado. Um pequeno grupo de moradores motoristas organizam suas “grades” (grille) para assegurar as seis chauffes regulares (às vezes existem algumas chauffes excepcionais) que fazem a lotação. Ela permite que os pacientes do hospital–dia, assim como os estagiários e familiares, cheguem e partam de La Borde. O bar, o ponto de leitura, a reunião Peachum, a central telefônica, a loja, são exemplos de vários ateliês que compõem a vida cotidiana da clínica. 21 compensação, se não há escriba, não há “devaneio” [musement], nem nada. É pela descontinuidade que se pode ter “acesso a”. A escrita só vem quando já há a inscrição. Isso pode se autonomizar. Para uma análise geral, é o que se chama “o interpretante”, uma função que vai intervir sobre o que acontece entre o escriba e o “devaneador” [museur]. Em geral, em um estabelecimento onde não existem todas essas articulações, a função escriba desmorona. Não há muita coisa que se inscreva. É sempre estereotipado, fora da inscrição. Quando não há inscrição, não há nada. Ou seja, o que acontece? Mesmo se há uma multiplicidade de ativi- dades, às vezes nada acontece porque não há nada que se inscreva. Mas é preciso principalmente não haver um “inscritor” (risos). Existe esse lado de Torrubia que dizia: “É preciso um pequeno grupo analisador.” O que é uma degenerescência, é o centralismo burocrático. Pronto, se existe um pequeno grupo de analisadores, é o fim da picada! Vamos começar a ter apparatchniks [burocratas]! Em compensação, que haja uma função! Uma função pode ser tudo que quisermos; até mesmo os pássaros, em dado momento. No instante em que eu falava um pássaro começou a cantar mais forte. Olha só! Talvez devamos colocar isso nos parâmetros, não sei. Enquanto que, se se tem analisadores diplomados, é mesmo o fim da picada! Lutamos contra isso o tempo todo, é isso o “prático–inerte” para entreter a dialética. O conjunto dessas coisas é o suporte que permite estar atento, sem que seja de propósito. Sobretudo não se deve estar atento de propósito, é uma idiotice! A coisa tem que vir como ela vem..., e funciona! É o que chamo de conivência. Um japonês que veio uma vez me disse que aqui havia ki. Tellenbach fala disso em La mélancolie. Na melancolia, o ki cai. O ki é uma certa leveza. Quando eu falo com uma esquizofrê- nica que é notavelmente inteligente, autista, de origem alemã, no hospital–dia agora, e que temtodo um sistema de influência que a chateia, ela diz: “Quando eu venho pra La Borde, tudo bem”. Quando ela transpõe isso, é ainda melhor... Ela fala com dificuldade. Então eu posso lhe dizer: “aqui tem ki.” O que é o ki? Ah, ele deve corres- ponder um pouquinho – ainda que mais sutil – à Stimmung. No sentido de Heidegger. Ele sacou bem isso. No sentido geral de atmosfera. É a mesma palavra em alemão, Geschmack. Ela ficou toda contente. Agora, a gente se diz: “e então, tem ki aí”? Transcrição, tradução do francês e notas de Joris De Bisschop e Clara Novaes a partir de CD de áudio (72m) realizado por Olivier Appril e Jean Dubuquoit. *Jean Oury é psiquiatra, fundador e diretor da clínica de La Borde, na França. Implantou e teorizou amplamente a psicoterapia institucional. É autor de vários livros sobre a clínica e a instituição, entre eles O Coletivo e Esquizofrenia e criação, no prelo pela n–1 Edições. *Danielle Sivadon é psiquiatra e psicanalista francesa. Trabalhou por anos na Clínica de La Borde com Jean Oury e Félix Guattari. Foi editora ativa da revista de esquizoanálise Chimères, e escreveu, junto com Jean–Claude Polack, A íntima utopia, que será publicado pela n–1 Edições. *Olivier Appril é jornalista, autor de documentários radiofônicos e de poesia experimen- tal, e psicanalista. É diretor do filme Jean Oury, le séminaire de La Borde, e autor entre outros de La position du psychiatre (no prelo). Cadernos de Subjetividade22 23 O ouvido ubíquo: escutar de outro modo1 Pascale Criton Como a escuta se agencia? Qual é esta paisagem plural, ao mesmo tempo interna e externa, que constituímos a cada instante na nossa relação com os sinais sonoros? A meio caminho entre música e percepção do tempo, entre materiali- dades, corpo e sensorialidade, gostaria de evocar os territórios de uma percepção ampliada. O farei enquanto musicista, com a minha experiência da composição musical, que, no entanto, cruza inúmeros domínios, da filosofia àquilo tudo de que a música pode se alimentar. Escuta, uma produção – uma elaboração Sempre me interessou a experiência da escuta, como realidade física mas também em sua dimensão psíquica, como encenação de representações e de sen- sações, ao mesmo tempo reais e em relação com a ficção. Considero a escuta uma produção – como uma elaboração, um processo subjetivo. Aliás, escrever música já não é ter uma certa escuta das relações entre os sinais sonoros? Não é já uma disposição curiosa e elaborativa que repousa em uma atenção informal, e até mesmo sem que se saiba? Da escuta cotidiana, imediata, a uma prática experimental da escuta, ela pode provir de conhecimentos diversos e também da informação, até mesmo codificada. Sem dúvida tais escutas não são excludentes, elas se entrecruzam e interagem. Aliás, o termo escuta é amplo demais, muito geral: preciso então delimitar certas modalidades. De antemão, observarei, sem nenhuma intenção tipológica, algumas tendências ou aspectos particulares que a mim parece preferível distinguir. Na ordem de uma prática imediata de escuta, não elaborada a priori, distin- guiria, por exemplo, uma “escuta objetivada” – que não se confunda com uma escuta “objetiva”! Falo da escuta que opera um zoom, um foco no interior de um conjunto de sinais, ação muito diferente de uma “escuta flutuante”, que mantém junto uma série de variáveis, uma nebulosa heterogênea na qual se dão asso- ciações livres, móveis, incertas, inconstantes. Entre um “tempo flutuante” e um “tempo objetivado” já fica claro que o campo da escuta se apreende, que o ponto de observação se desloca, que a prática da escuta é ativa e o quanto a dimensão 1 Conferência apresentada no dia 6 de setembro de 2011, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a convite de Peter Pál Pelbart e Denise Sant’Anna. Cadernos de Subjetividade24 que se queria informativa, “realista”, se elabora necessariamente por uma separa- ção, uma franja na qual opera a copla emissor–escutador. Isto já suscita a questão de um ponto de observação relativo e de um processo subjetivo de escuta: onde e como se posiciona a própria escuta? E do ponto de vista daquilo que, por assim dizer, se dá a ouvir, o que se passa? Por hábito, evocamos o sinal sonoro como que se referindo a algo de conhecido, um instrumento, uma voz, ruídos. Identificamos os sons concretos da vida real porque lembram algo localizável: o som dos sinos, o ruído do trem. No entanto, uma multidão de variáveis entra em ação para constituir o som que chega a mim como sendo o deste trem, conforme seja lento ou rápido, escutado do interior ou do exterior. Cada sinal sonoro é um evento específico, produto de circunstâncias e de determinações que se desdobram em um espaço e um tempo particulares. Os sinais sonoros são indissociáveis das condições que os provocam: forças, ten- sões, energias, materiais, estruturas, bem como o meio físico em que estes sons são emitidos e se propagam: exterior, interior, segundo superfícies mais ou menos densas, lisas ou porosas, nas quais eles são refletidos ou absorvidos. O conjunto de tais fatores constitui uma cadeia de determinações espaciais e temporais que concorrem para a especificidade de uma informação sonora. O som é uma rea- lidade essencialmente heterogênea, uma multiplicidade feita de contingências e determinações, de grandezas, de dimensões que crescem e decrescem de acordo com o evento que está sendo produzido. A multiplicidade acústica, tal como eu gostaria de propor aqui, integra o conjunto dos fatores que modelam o som, na mais aberta acepção de tudo o que é audível – antes mesmo da música. Estas qualidades e dimensões físicas no seio das quais os sinais sonoros se propagam, natural ou artificialmente, estão em interação constante com as ope- rações de escuta processuais e subjetivas. O ouvido mais ou menos prevenido se desloca e se posiciona, pratica ativamente certas operações tais como extrair, as- sociar, dissociar, constituir planos, navegar de um plano ou de um ponto a outro, escavar a nebulosa ruidosa por estratos ou se infiltrar na profundeza de seus pla- nos, apreciar sua simultaneidade, provocá–la, entrecortá–la, enfim toda uma mo- bilidade da escuta que eu chamaria de ubiquidade do ouvido, “o ouvido ubíquo”2. Pois como diria Deleuze, o ouvido impensável, aquele que nos interessa para a composição musical, ou a intensidade de uma escuta “emergente”, se constrói com a elaboração de nossas relações com os signos, em um processo preciso que os torna audíveis. E paradoxalmente o ouvido experimenta uma espacialidade muito diferente daquela do olho (mesmo se o olho está sempre a confirmar o que se ouve). A espacialidade auditiva não provém de um plano frontal, ela é um espaço pluridimensional capaz de associar simultaneamente o mais próximo e o mais distante, o fora e o dentro, o acima e o abaixo: a natureza propagativa e dinâmica do som nos permite desconstruir – deslocar – o espaço, recompô–lo, e projetar–se na imbricação de um “espaço membrana” de densidades múltiplas, reversíveis, extensíveis, percorríveis do interior ao exterior. 2 A ubiquidade se diz daquilo que pode estar simultaneamente em diversos pontos. 25 Da observação ao esboço temporal A escuta deste tempo, fugaz, múltiplo, este da observação das coisas enquan- to se dão, é talvez aquilo que assombre a música. A natureza do som leva–nos para dentro de uma territorialidade sensorial passageira, que implica outros mo- dos de relação com o espaço e o tempo, e oculta outras maneiras de sermos afeta- dos. O som é propagação, transmissão. Energia não delimitada em um espaço que se espalha e se instala de modo efêmero nas coisas, nos objetos, nas formas que o envolvem, o acolhem e o absorvem. O som passa e se ralenta nas densidades mais ou menos propícias da materialidade do mundo. Acelerado na água, cor- rendoao longo da corda tensionada, reverberado pelas superfícies lisas e densas, ressonante nas madeiras e nos metais, captado nas caixas fechadas, revoluto nos poços e tubos, retido nas fibras. O som é uma energia interdependente, uma pura composição móvel com a qual entramos em modalidades temporais de simulta- neidade, acopladas e recíprocas. Pois o som está sempre ligado a uma pluralidade encaixada de emissores–captadores–receptores–filtros. Será que o som existe em si mesmo? Ele não passa de condição de produção e processo de subjetivação, acontecimento apreendido segundo um ponto de escuta forçosamente parcial, lo- cal, por um dispositivo que é ele mesmo necessariamente um filtro, o aparelho auditivo, o aparelho de transmissão, o aparelho de difusão. A observação das coisas enquanto se fazem desdobra–se em uma ati- vidade sensorial e uma cena semiótica complexa, que associa o corpo, o olho, a pele, os ossos, o movimento, a impulsão cinestésica e as velocidades abstratas de projeção. A música vai mais rápido que as palavras, assombra o local sensível dos acontecimentos mudos, sem voz, testemunho íntimo das relações silenciosas, dos acontecimentos fugazes, nem sempre compreensíveis – o desenrolar do tempo, as diferenças de luzes –, dos acontecimentos que passam sem que nos apercebamos, em parte imaginados, tal como os microdramas que a infância observa em seus jogos: um combate de insetos, as velocidades da aranha ao tecer sua teia, o andar inquieto e furtivo de um lagarto, uma frágil embarcação de papel que seguimos soprando e que pende perigosamente em uma pequena poça d’água. Talvez exista aí um exercício de observação, algo a meio caminho entre o devaneio e a análise, a antecipação, a constatação e a memorização, uma frequentação atenta de todo tipo de pequenos (ou grandes) acontecimentos que preparariam, de algum modo, para o exercício de uma cena temporal: incorporar as durações, “contrair” os movimen- tos, associar as sensações, detectar os dinamismos, as velocidades, as intensidades, decifrar a inflexão das vozes, seu agrupamento e sua separação, apreender as formas e as forças em seu martelar, em seu escoamento, seu desenrolar. A observação dinâmica é uma cena inesgotável de pequenas (ou gran- des) histórias, de cenários retomados mil vezes com inumeráveis variações, uma cena na qual a imaginação vem tomar parte agenciando variáveis, atribuindo preferências de continuidade, de ruptura e de reencadeamento. Da observação ao esboço temporal é possível manejar as distâncias, as grandezas, os dinamismos Cadernos de Subjetividade26 com uma necessária atividade associativa, conectando, afastando, tecendo o fio do tempo. Ou seja, tudo o que seria da ordem desta função territorializante– desterritorializante, que Deleuze e Guattari atribuem ao ritornelo e ao seu devir música, e que parte de uma ligação intensiva (apercepção territorializante) e vai em direção à sua transformação, sua virtualidade mutante. Tudo ao modo das cenas que se refazem (em loop) ora em sentido direto ora em sentido inverso (inversão), que se desenrolam sobre um percurso (desenvolvimento), que voltam por fragmentos (motivos), que se desdobram (espelho), que se distribuem em jogos mais ou menos simétricos (desencaixes, quebras), cujas escalas são modifi- cadas (transposição), traços que se caracterizam (figuras), que se autonomizam (ornamentos), que se encadeiam (linhas melódicas, rítmicas), frequências que se associam (timbres, harmonias), complexos que se transformam (morfologias), estados que se superpõem (texturas), velocidades que se modulam (tempi)... Com certeza dirão que isto (entre outras coisas) não é ainda a música. Não, de fato não é, mas é de certo modo aquilo que, sob a música, a liga ao mundo. São suas raízes pré–musicais (os jogos de forças, tensões, pulsões que estão sob a música), o que já requer um mínimo de forma. A música lhes dá voz. Ela elabora um teatro particular – mental, móvel, imaterial e, no entanto, bem atual, uma cena para acontecimentos, signos e figuras temporais em vias de serem vividas, escutadas: formas do tempo. Nesta relação simultaneamente íntima e aberta, impessoal, elaborar a escu- ta é um modo de voltar–se para a acontecimentidade temporal em todas aquelas modalidades que se podem tornar audíveis3. E sem dúvida, a vontade de entrar neste jogo de signos com o espírito de um agrimensor, prestes a contar compassos, a produzir, a traçar um esboço temporal, já constitui um lugar compartilhável e um prazer de músico. Do sonoro ao musical: construir uma cena de escuta Podemos provocar, de modo legítimo, uma cena de escuta, ter a intenção estratégica de criar um cinema para os ouvidos, desfazer, religar. Como a multipli- cidade acústica pode ser apreendida (declinada) enquanto campo de configuração para experiências de escuta e relações sonoras não preestabelecidas? As inven- ções técnicas revolucionaram nossa representação do espaço e do tempo; do te- lefone à gravação sonora, da difusão em alto–falantes à sua transmissão telemática. Doravante, sabemos que o som não está sistematicamente associado à sua fonte e que as simultaneidades reais, partilháveis, não respondem mais necessariamente à unidade de tempo e de lugar. Tais simultaneidades os excedem e se conectam para além da presença concreta e imediata do evento. Trata–se, nesta zona indiscernível de comunicações heterogêneas, latentes, de passar a uma escuta “emergente”. Este ponto de vista pluridimensional e móvel supõe um campo paradigmático no qual 3 Criton, P. Dynamismes et expressivité. Filigrane. Musique, esthétique, sciences, société. “Nouvelles sensibilités”, número organizado por Jean–Marc Chouvel, n. 4, nov. 2006. Versão online disponível em: <http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?id=370> 27 as categorias do sonoro, do musical, do ruído, da harmonia, do ritmo, da melodia, do material acústico, do audível, do inaudível etc. são redefinidas. E, sem dúvida, teremos necessidade de uma escuta “analítica”, ativa e discernente. Mas esses di- ferentes níveis de escutas que evoquei, aliás, não exaustivos – escuta “objetivada”, “flutuante’, “emergente”, “analítica” –, não são exclusivos... São tendências que se cruzam e trabalham juntas na aquisição cultural da escuta, tanto quanto no que se daria em um projeto musical aberto sobre a multiplicidade acústica. As revoluções das técnicas eletrônicas e da informática musical deram acesso à totalidade das relações de frequências, e a digitaliza- ção do som renovou sobretudo a concepção do sonoro e de sua representação. Graças a uma descrição bem mais precisa das componentes do som e de sua distribuição, torna–se possível situar–se no nível da organização do sonoro. Ou seja, pode–se dizer que o dispositivo sonoro, agora, é parte integrante da escritura musical: do estado inicial das condições de emissão do som aos regi- mes de energia que o sustentam (instrumentos acústicos, mecânicos, elétricos, eletrônicos), de sua projeção – da difusão, propagação, até sua recepção no espaço acústico. Neste espaço, apreendido segundo uma infinidade de pontos, o compositor elabora sua relação com o sonoro a partir de um plano que não é mais dado segundo regras hierárquicas preestabelecidas. Tal pensamento crítico – e inventivo – das relações sonoras torna–se um pressuposto necessário para a composição, uma “escritura das variáveis”. No campo das determinações sonoras, a música se coloca no nível aconte- cimental do som: compor, decompor, recompor as relações sonoras até que se modelem novas concreções e comportamentos temporais que não dizem mais res- peito aos objetos identificáveis da percepção. Configurações de variáveis, mistos, hibridações, os artefatos de escritura se valem da variabilidade das frequências e das componentes acústicas. É possível remontar às condições da experiênciade escuta, à organização do som, da sua fatura, de seu espaço de relação – em vista a construir uma cena de escuta. É possível colocar–se no nível dos micro– acontecimentos, aquém da identidade da nota musical. Esta “molecularização” do som abre–se para variações ínfimas, para técnicas instrumentais específicas e para uma nova expressividade. Com Objectiles para quatro violões4, por exemplo, tomei por base as qualidades de comportamento acústico próprias das cordas, aquelas oriundas das variações do modo de tocar raspado–glissado. Essa técnica instrumental específica permite a coexistência de duas linhas divergentes: ouve– se simultaneamente a frequência da raspagem (excitação) e seu percurso no pró- prio meio excitado, segundo uma curva invertida5. É necessário um dispositivo de microfonação para amplificar e chamar a atenção para tais relações acústicas, ora 4 Objectiles (2002) para quatro violões (encomenda de Alla breve Radio–France, Edições Jobert). 5 Para ilustrar esta realidade, consideremos, por exemplo, um dedo apoiado sobre o braço de um contrabaixo. Conforme a posição do dedo da mão esquerda no braço do instrumento, o compri- mento da corda se encontra alongado ou encurtado e produz assim sons de alturas mais ou menos graves ou agudas. No entanto, a parte restante da corda, a parte “morta”, situada do outro lado do dedo, emite uma frequência própria, de pouca amplitude, que varia igualmente segundo a posição do ponto de contato. A presença desta componente acústica “complementar” – sempre descartada por ser considerada incômoda – de fato desdobra a realidade sonora. Cadernos de Subjetividade28 muito tênues, e fazer aparecer a resposta “complementar” da corda – uma espécie de sombra do som, aqui essencialmente presente no nível da escritura. Trata–se de criar (configurar) uma experiência de audição no limite da percepção e de to- car no nível do grão sonoro, de sua plasticidade e mobilidade6. Neste contexto, toda a atenção está voltada para as condições de modelagem do som, do gesto à sua codificação (script). Esse princípio permitiu–me trabalhar sobre os graus de “elasticidade” de um material atravessado por velocidades, dinamismos divergen- tes, coexistentes: uma superfície múltipla, comunicante, sem localização estável, propícia a matérias múltiplas e mutáveis. Espaço múltiplo / escuta móvel Coloquemos agora a questão da diferença, não aquela voltada ao molecular e às pequenas unidades contíguas, mas aquela voltada para o outro lado da cadeia de propagação do som, para as escalas heterogêneas imbricadas. Como habitar um espaço de modo plural? Como construir a cena auditiva de um espaço múltiplo e simultâneo? O ponto de escuta (ponto de observação) é uma variável que pode ser espacializada segundo proposições diversas a ponto de se “autonomizar”. Esta ideia remonta à infância e à expectativa de entrar e atravessar as coisas, os corpos, os materiais (o homem invisível, a ubiquidade etc.)... Como estender, por exemplo, a experiência da escuta para uma representação plural de um lugar ou de uma arqui- tetura? Quais experiências de distância, de volumes e de materiais, a música pode colocar em jogo para sensibilizar novas formas de escuta e de concerto? Gostaria de falar aqui de uma experiência que se deu em uma vila construída por Le Corbusier nos anos 1930, a Villa Savoye7. Esta construção, destinada à vida de uma família, apresenta uma configuração fechada em um volume unifi- cado; os cômodos, numerosos e de diversos tamanhos, exibem, cada um, carac- terísticas diferentes, são ladrilhados ou assoalhados, mobiliados com alvenaria ou não. Neste edifício sem móveis ou pintura, nada vem “colorir” os espaços antes de tudo reverberantes. Escolhi diferenciar a escuta em cada cômodo e constituir uma coleção de escutas qualitativas. Ao invés de um sistema de difusão sonora homogênea, equipei cada cômodo com um sistema de difusão particular, con- servando o caráter alveolar do conjunto. Atentei para que os níveis sonoros se equilibrassem de um cômodo para outro e pudessem assim formar um “todo co- municante”, componível e recomponível segundo os cenários de difusão. Conser- vei também os espaços “vazios”: os corredores, as saídas, a escada central, todos foram reservados como “caixas de ressonância” permitindo efeitos de fronteira no centro da vila. Tratava–se, para mim, de uma experiência de escuta em um espaço múltiplo que se dá em uma fragmentação do espaço global, a possibilidade de uma escuta móvel graças a uma concepção múltipla da difusão, audível em 6 Os diferentes movimentos de Objectiles são: I – Affleurant, II – Ondulant, III – Flexible, IV – Plastique, V – Tactile. 7 A Villa Savoye, chamada “As horas claras”, foi construída por Le Corbusier em Poissy (Yvelines, França) entre 1928 e 1931. 29 pontos diversos8. Tomei por base um diagrama de tensões percorrendo o prédio por seus eixos direcionais (alto–baixo, fora–dentro, próximo–distante) e por suas relações contínuas (contiguidade, extensão, transições). Esta rede de relações permitiu jogar com diferentes configurações espaciais sobre cenários acionáveis que permitiram reconfigurar o espaço, realocar as fontes sonoras, esculpir o acon- tecimento em tempo real. Tratava–se, neste espaço múltiplo, desconstruído, de tirar partido das potencialidades acústicas, de criar uma dramaturgia espacial pró- pria para o lugar. Privilegiei, assim, as situações paradoxais, jogando com a ilusão, a surpresa, o aparecimento e desaparecimento das fontes reais ou dos seus duplos em um espaço fictício. Neste espaço de relação contraditório e no entanto pre- sente, vivido no instante, o ouvinte busca fazer–se uma ideia, ou simplesmente mudar seu ponto de escuta. Tomado entre a realidade e o paradoxo, ao modo das ficções de Borges em que camadas de tempo diferentes se sobrepõem, o ouvinte deverá construir (tecer) sua própria escuta, na qual disputam a questão do ponto de vista e do ponto de escuta. Com isto, a espacialidade não se limita à questão da difusão espacial, ao movimento espacial de um ente físico identificável, mas se compreende na reciprocidade das condições espaciais e da projeção sonora, em um entrelaçamento móvel do olhar e do ouvir9. O que chamo então de concerto fora de cena não é mais o da escuta em um sentido tradicional do termo, nem o da atividade controlada, estática. Um passeio tanto sonoro quanto visual, experiência dinâmica das configurações, das posições de uma escuta em movimento, engaja a subjetividade nas emoções es- téticas que se sobrepõem e se justapõem. O acontecimento musical advém junto à transfiguração do lugar no qual ele se dá – heterotopia ligada à deambulação deliberadamente aberta às conexões do olhar e do ouvir, lançada às múltiplas solicitações que a assaltam por todos os lados. Este “teatro dos sons” é um espaço projetivo no qual o ouvido ubíquo – um ouvido impossível – se desloca, sonha e joga com espaços, distâncias e dimensões. Escuta sólida: escutar de outro modo Foi experimentando as possibilidades de uma tal escuta, em relação com o espaço acústico de uma arquitetura e de seus materiais, que desenvolvi novas técnicas de captação e difusão e que, também, empreguei sistemas de propagação sonora nos próprios materiais. Criei então – em colaboração com laboratórios de pesquisa em acústica10 – dispositivos que permitem escutar pelo toque, pelas transmissões ósseas. Diferentemente do alto falante, que põe o ar em movimento, 8 O dispositivo sonoro foi realizado em parceria com Hugues Genevois (responsável científico da Équipe Lutherie – Acoustique – Musique, LAM, Paris) e põe em jogo tecnologias inovadoras no domínio da captação e difusão sonora. 9 Criton, P. Mobilité et hétérotopies sonores. Filigrane. Musique, esthétique, sciences, société. “Mu- sique et lieu”, número organizado por Jean–Marc Chouvel, n.
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