de retorno à liberdade na terra camponesa têm que ser continuamente ativadas. Nesse contexto, as regras de apropriação do domínio e do situ são resguardadas através de princípios de autonomia possíveis, ainda que o primeiro subordine o segundo periodicamente". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 137) À ideia de livre opõe-se a de estar à disposição do fazendeiro. A coexistência com o domínio (enquanto poder de controle sobre a área), que podia transmutar-se em convivência no domínio, dá ao situ esta vivência constante da liberdade ameaçada. Livre aqui é mais um projeto do que uma concretização, pois não se trata de consagrar uma oposição perfeita, pois não há bases empíricas. Portanto, apesar de relativa independência, tendo em vista a capacidade de extrair o necessário da terra, o situante continua submisso às exigências do fazendeiro, que socialmente é visto como um senhor (pessoa que exerce poder, dominação, influência). Quer dizer, apesar da situação de fato, ocorre que os fazendeiros são os reais dominadores (eventualmente proprietários) daquela terra ou gozam de meios hábeis a caracterizar essa dominação (fazendas em formação). Há todo um sistema estruturado com vistas à manutenção das relações de dominação, de modo que o situante não tenha força de se opor a qualquer tipo de arbitrariedade. A autonomia do situante é autonomia ameaçada e até subjugada. Sua vida social condensa a lógica de universos contrapostos: 1) autonomia da terra e do trabalho como realização e aspiração; 2) a subordinação de ambos (terra e trabalho) a concepções e relações que buscam submetê-lo. Para a classe dominante tradicional, a terra funcionava como suporte de um poder político e econômico que se assentava primordialmente na sujeição da população rural trabalhadora. Regra geral, os fazendeiros não detinham a propriedade jurídica das glebas onde exerciam direito exclusivo, fazendo respeitar esse direito apenas pela força e mantendo suas fazendas de geração em geração, graças à manipulação judiciária e cartorial. Se a apropriação legal da terra só pode ser feita pela herança e pelo mercado, no confronto do situ com a fazenda é um terceiro caminho que está em jogo: a sua usurpação pela invasão. O que vem ocorrendo nessa sociedade agrária, e que dá um caráter novo e irreversível às transformações em curso, é que a invasão de posses se tornou para a fazenda o tiro de misericórdia disparado contra agentes sociais mais fracos, com a finalidade de anexar as últimas terras fortes de que se deseja dispor para transformá-las em pastos. Nesses termos é que há a formação da fazenda. Trata-se de invadir, para depois expulsar. Colocam cercas que tolhem a movimentação cotidiana dos posseiros, visando descaracterizar a autonomia de sua condição social. Querem impor sua existência gradual e violentamente, em área designada terra devoluta. "Sempre que uma fazenda se forma em terra devoluta, sem que o Estado reivindique o controle da mesma em última instância, os fazendeiros em potencial (ou os grileiros que os representam) fazem valer sua própria dominação pessoal. Esta se ampara em distintas estratégias: (1) a dominação pessoal, que garante o controle de terras e homens sem prova documental; (2) o título de propriedade forjado; (3) o documento probatório da propriedade incompleto, como, por exemplo, um antigo formal de partilha da área, invocado como prova de propriedade juridicamente superior à ocupação produtiva da terra que resulta do trabalho do pequeno posseiro e sua família. A escritura do abraço constitui o ponto final para a compreensão dessas distintas estratégias. Se um proprietário determinado detém poder político suficiente para impor controle sobre determinada área em comum, sua estratégia será a de dominar tal área, bem mais extensa que a cartorialmente comprovada". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 137) A ausência de propriedade privada formal (limitada e titulada) permitia que fossem cometidas arbitrariedades, pois os dominantes (seja no aspecto social, seja no aspecto patrimonial) poderiam, a qualquer tempo, se valer da força e dos instrumentos estatais para se apropriar de terras alheias. O domínio, nessa concepção costumeira, significava área controlada de fato, e não juridicamente. Ou seja, associa-se à ideia de dominação social, mas há flagrante contradição com o significado jurídico da palavra domínio, qual seja, propriedade legítima. Tendo em vista a ausência de titulação, tanto pelos fazendeiros quanto pelos situantes, prevalece o poder social/ patrimonial dos dominadores. Como a fazenda não mais se apoia em relações de favor entre o proprietário e os confrontantes (agregados), pode hoje desrespeitar essa etiqueta de convivência, em prejuízo dos menos favorecidos e, por simples violência, apropriar-se do que não lhe pertence. Os pequenos trabalhadores, excluídos do acesso a terreno próprio (frequentemente por terem sido expropriados por algum fazendeiro), se viam forçados a morar e/ ou trabalhar na condição em suas propriedades. "Esse processo antecipa-se e sobrepõe-se, costumeiramente, à transformação jurídica da posse em pequena propriedade, seja porque o direito costumeiro do domínio funciona como ameaça concreta à autonomia da posse, que dispensa sua consolidação cartorial, seja porque, ao tentar registrar a terra, irá defrontar-se com os próprios fazendeiros incrustados nos cargos políticos locais, e que poderão manipular sua requisição de modo a transformá-la numa reivindicação imprópria". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 142) A ausência da propriedade privada formal, veementemente criticada por muitos, permite arbitrariedades daqueles que detêm o poder, que se impõe através do uso da força, da capacidade de organização e proteção. Mesmo que haja determinadas propriedades tituladas, é possível haver arbitrariedades, sendo comum, ainda hoje, encontrarmos memoriais descritivos nos seguintes termos: "pela chapada extremando a ela pelo lado de cima na beira de um lajeado, em um moirão na cancela, rumo direito à chapada (...) extremo com a (...) e do outro lado córrego S.J.G., rumo direito com as águas vertentes até extremar com A.R. (...) nas águas do C.N., pelo lado de baixo, extrema com o mesmo comprador onde existe uma cerca até a chapada, de ambos os lados do córrego S.J.G., extremando-se pelo lado de baixo em terras de P.P. (...) em um moirão de aroeira que se encontra à margem da estrada, rumo direito até a chapada; na chapada em águas vertentes com terras de M.J.D.C, pelo lado de cima com terras de E.F.L., (...) em uns moirões de cancela, direto até a chapada, dando no imóvel em comum (...)" (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 128) Quer dizer, ainda que se trate de sitiante (aquele que detêm título), a titulação nesses moldes não oferece nenhuma segurança, já que não há precisão nas definições, que podem ser facilmente alteradas e defendidas pelos fazendeiros. Portanto, o que distingue o situante do sitiante não é sua condição acerca da propriedade (apesar deste último ter título de propriedade, ambos veem a terra das mesma forma), mas a forma com que seu terreno é usurpado. O situante sofre com a expansão das "divisas" do fazendeiro e com a apropriação de suas terras, enquanto o sitiante tem suas divisas desconfiguradas. Ou seja, de nada valia a titulação, face o poder de fato dos fazendeiros. Não havia, até então, interesse algum no reconhecimento de propriedade (formal) pelos fazendeiros; a ausência dessa característica não obstava em nada seus interesses. Todavia, num segundo momento o domínio passa de representação de área controlada de fato a propriedade legítima (leia-se, com título). Óbvio que isso de deu em razão do crescimento mercantil, da complexidade das relações engendradas pelas práticas capitalistas, com vistas a impedir que os livres (incluindo os ex-escravos) pudessem ocupar e apropriar-se livremente de terras, que dificilmente poderiam ser controladas nos antigos moldes. Ocorre que, mesmo com a titulação, a submissão dos situantes não é afastada.