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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Graduação em Direito
Daniele Cristina Mafra
Érica Nunes Rocha
Gustavo Perpétuo Pereira
Índila Caroline Oliveira Severino
Júlio César Viana Lourival
Larissa Machado Lemes
Pedro Augusto Almeida Sales
Renato Batista Coelho
Thamara Cristina Gomes
FICHAMENTO: “OS DESERDADOS DA TERRA – A situação na terra livre”
Serro
2017
MOURA, Margarida Maria. Os Deserdados da Terra. Capítulo 6: A antiga posse e a terra livre. 
"Chama-se morada ou terreno a terra que pertence a um lavrador, servindo como lugar de habitação e trabalho. Essa designação localiza socialmente o tipo de ocupante envolvido, fazendo referência ao ato de morar num pedaço de terra cultivada pelos próprios lavradores. Não é incomum chamarem-na também de roça, descartando a referência à casa, para designá-la pela agricultura que nela se realiza.". (p. 125)
"A categoria que dá contornos físicos preciosos à terra é o situ. Ter um situ dá ao seu responsável a condição de situante, palavra sempre complementada por nova explicação: ao dizerem que têm uma situação, indicam os lavradores uma posição no espaço como resultado do trabalho.". (p. 125)
"Enquanto estar a disposição do fazendeiro é mencionado pelo agregado como aquilo que define sua relação social com o fazendeiro, a autonomia do situante é autonomia ameaçada e até subjugada, em função dos interesses de uma fazenda em formação. Sua vida social condensa a lógica de universos contrapostos: a autonomia da terra e do trabalho como realização e aspiração, a subordinação de ambos a concepções e relações que buscam submetê-lo. (...) Devido às características do poder coronelístico controle privado do aparelho institucional os fazendeiros (...) no passado amiúde não detinham a propriedade jurídica das glebas onde exerciam direito exclusivo, fazendo respeitar esse direito apenas pela força e mantendo suas fazendas de geração em geração, graças à manipulação judiciária e cartorial. ". (p. 126)
“ (...) Neste contexto, ganha sentido o elemento mais valorizado de sua condição, que é o de não ter que pedir morada dentro da fazenda. No seu situ, que se extrema com outros pelo princípio separador das águas vertentes, categoria divisória costumeira, mas que se transporta também para documentos judiciais, vive separado daquilo que não lhe pertence. (...)” (p. 127/128)
“A situação pode ser alvo de ações de despejo e ações de reintegração de posse de cunho patronal, que visam à expulsão dos situantes, para que em seu lugar se consolide a propriedade privada da terra. As invasões dos situs, tendo caráter costumeiro ou judicial, visam abranger todo o terreno desses lavradores. Essa prática efetiva-se através de um sistema comportamental, que reverte violentamente a liberdade do situante na terra em liberalidade do fornecedor da fazenda para com a terra do situante. Ele define o posseiro como invasor tolerado, impondo à moldura das relações sociais o favorecimento pelo suposto dono da terra, que assegura a permanência do situante na terra. Essa violência se juntava, no passado com a condição: um trato que, renovado continuamente, através da cessão do trabalho à fazenda por dois dias semanais, determinava as condições para nela permanecer”. (p. 139/130)
“O situante, transformado em invasor tolerado, tem no fazendeiro o benfeitor que agora é malfeitor e o transformou em dependente. Essa crise, que se ancora na negação do situ, destaca ângulos da relação que só são claramente explicitados quando estouram demandas. Em ações judiciais de caráter divisório contra proprietários de sítio que possuem apenas formais de partilha, o domínio é insinuado através do argumento de que uma área do sítio que se extrema com a fazenda não tem estatuto autônomo, não é parcela e, portanto, é apenas tolerância do fazendeiro o permitir que, naquele local, residissem lavradores separados por uma cerca.” (p. 130)
“Para os situantes, as questões subjacentes a esse argumento retomam as questões de autonomia e dependência. Os situantes que tenham aceito pagar rendas-em-produto ou rendas-em-trabalho a determinado candidato a fazendeiro tornam-se, pela vinculação que se estabelece entre os lavradores e o domínio, modelos de obediência, constantemente ativados perante aqueles que não se permitem subordinar. (...)” (p. 130)
“O favor imposto a situantes fica bem exemplificado com as cartas de agregação. Em tempos mais recuados era um acerto 	“de boca” que desencadeava o domínio dos homens, a imposição de documentos que devem ser assinados por livres – contratos que nada mais são do que ‘cartas de agregação’. Atualmente, visa criar condições para terminar o domínio dos homens através de papéis assinados que preludiam a tomada da terra. Transformar um posseiro em agregado, que assina ou apõe sua impressão digital num papel, confirmando essa condição num documento, dá cacife à argumentação judiciária de que não se trata de livres, mas de parceiros necessários às lides da fazenda que hoje têm seus contratos vencidos. Essa agitação das categoriais posseiro e parceiro, como óticas invertidas de uma mesma relação social – a de pequeno posseiro ou dono de uma situação – é clara nesse repertório de regras e de práticas sociais.” (p. 130/131)
“A fazenda consolidada e a fazenda em formação, a primeira dominium e a segunda domínio, são faces da mesma moeda, expressão de um mesmo formato de apropriação do trabalho alheio: transformar aqueles que estão à sua própria disposição em lavradores à disposição de outrem. Isso ocorre, não sem consequências, no plano da verdade jurídica do suposto fazendeiro e do próprio situante dominado. Ele incorpora o habitus da subordinação, reciclando suas representações em face desses novos ingredientes ideológicos, que não suprimem concepções anteriores, mas acrescentam-lhes tensões permanentes.” (p. 131)
“É através da cessão do trabalho a outro (o pagamento de terças e meias ao fazendeiro) que situantes submetidos a essa lógica são rendeiros de supostos fazendeiros. São, num processo de invasão de suas terras, os invasores e não os invadidos, os turbadores e não os turbados.” (p. 132)
“O assédio da fazenda ao situante tinha certas características assinaladas por Eric Wolf, que transitavam para a relação patrão/cliente propriamente dita.” (p. 133)
“Para aqueles que não eram diretamente assediados em seus terrenos e em seu trabalho ‘pela fazenda’, a subordinação tinha caráter esporádico: convocados para grandes obras, como o esgotamento de vargens e grandes desmatamentos, recebiam também alimento durante os dias que trabalhavam. Não surpreende, pois, que também entre eles a categoria homenagem tenha o sentido de pagamento vil, de uma relação que prende, cativa e segura o lavrador num elo que se perpetua no desempenho de novos trabalhos assumidos. Mantendo elos semelhantes aos da agregação, mantinham um fio de conexões com o domínio que, embora indireto, consolidava vínculos reais e potencialmente extensíveis a outras esferas da vida social. Não é sem razão que santos patronos do domínio eram alvos de festas para as quais se convidavam todos os situantes, selando-se no ritual comum uma identidade que só custosamente se obtinha no plano dos desempenhos materiais.” (p. 134)
“(...) Isso porque o interesse em eliminá-la [a terra ocupada pelo situante] não provém só da fazenda, mas da aliança da fazenda com grandes empresas capitalistas ligadas ao reflorestamento, que visam ocupar terras para desenvolver grandes projetos.” (p. 134)
“A fazenda, para sobreviver, precisa agir consoante este novo jogo de interesses, e para que isso ocorra será preciso: a) invadir situs, fortalecendo-se lado a lado à empresa capitalista adventícia; b) facilitar à própria empresa capitalista adventícia apossamentos rápidos de terras devolutas; c) valer-se de sua penetração nas esferas de poder municipal e estadual, que lidam mais diretamente com a questão de terras, no sentido de desacelerar a regularização fundiária de ocupantes (ou seja, situantes).” (p. 134)“As categorias pelas quais os situantes explicam tais processos sociais são ofensa e fecho, ambas conotativas de violência. Implicam perda das condições de produção e ferem a etiqueta da convivência sertaneja de forma irremediável. A ofensa significa danificar ou suprimir extremas, que separam áreas apropriadas por donos diferentes; danificar plantações, roças, pomares, bem como o sistema de valores correspondente a tais procedimentos. Fecho significa impedir o ir e vir ao próprio situ, aprisionando o lavrador dentro da área, impedindo seu acesso à água e à lenha ou, em última instância, a ida ou retorno ao próprio terreno, à própria morada.” (p. 135)
“O despejo é, como a ofensa, um menosprezo ou postergação de preceitos; é também a situação lesiva gerada por cercas erguidas de má-fé. (...)” (p. 135)
“Está em jogo a formação da fazenda para fins agropecuários ou de especulação imobiliária, ocupação que, do próprio ponto de vista jurídico dos códigos nacionais deveria estar garantida em sua possa e transformada em propriedade parcelar dos posseiros, em função do uso imemorial ininterrupto da morada e do terreno. (...) Ocorre verdadeira evaporação da categoria posseiro dos textos sindicais, cartoriais e judiciais. Não há livres ocupantes de terras, mas unicamente agregados ou parceiros, cujo contrato o fazendeiro quer agora transformar em distrato.” (p. 136)
“(...) Ao impor relações de trabalho a lavradores livres, a fazenda acenava com a ‘tolerância’ de sua autonomia e até com a doação de um terreno a quem paradoxalmente já o controlava antes de a fazenda dominar. Essas permissões e promessas se esboroam, porque não podem conviver com o processo social da invasão. (...)” (p. 136)
“Entre situ e domínio se configurava uma agregação invertida: o favor pedido dava morada na fazenda, que seria mantida com o desempenho correto das tarefas nos típicos de fazenda. Na agregação, o fazendeiro não promete a propriedade da terra, porque possui a posse mansa e pacífica do dominium. A promessa de dar terra de papel passado só se torna inteligível no contexto oposto: a primazia da apropriação privada da terra é do formador de fazenda, mas as representações de retorno à liberdade na terra camponesa têm que ser continuamente ativadas. Nesse contexto, as regras de apropriação do domínio e do situ são resguardadas através de princípios de autonomia possíveis, ainda que o primeiro subordine o segundo periodicamente.” (p. 137)
“Essas semelhanças não autorizam perder de vista as diferenças. Se, por um lado, a categoria agregado vai ser preferida pelo expulso, para confirmar seu direito às benfeitorias deixadas no canto, a categoria posseiro é veementemente negada pelo formador de fazenda, e também desaparece da linguagem sindical e judicial. A morada de favor e também a agregação são retomadas no momento mesmo de seu encerramento, para evitar que a autonomia do situ seja invocada pelos invadidos. Posseiro e seus sinônimos costumeiros se ausentam dos discursos, para que a roça colhida não apareça como um direito previsto em lei no sentido dos códigos vigentes na sociedade nacional, como o Código Civil. Simultaneamente, categorias que denotam contrato são provisoriamente apropriadas para caracterizar as relações sociais entre situante e domínio. O objetivo em jogo é dispor de condições jurídicas para promover a expulsão através do distrato, através da finalização de vínculos entre livres e iguais. A ação judicial possessória ou de despejo, impetrada pelos supostos proprietários da área em litígio, fala sempre a linguagem dos contratos encerrados.” (p. 138)
“(...) O processo social, que se inicia com a formação da fazenda, tem características opostas ao iniciado pela fazenda já consolidada contra seus agregados – e que é o de expulsão/invasão de terra. Trata-se de invadir, para depois expulsar.” (p. 139)
“A formação de fazenda é, sem jogo de palavras, o modelo de passagem da própria fazenda. Se a segunda tem consolidada imemorialmente a propriedade, a primeira quer impor sua existência gradual e violentamente, em área designada terra devoluta. A terra devoluta é, do ponto de vista social, terra no comum, no sentido de que possui ocupantes que interagem de acordo com formas costumeiras de apropriação dos meios de produção, rompendo as determinações do direito dominante, ou adaptando-o, sempre que sua atuação se mostra incoercível.” (p. 139)
“(...) os fazendeiros em potencial (ou os grileiros que os representam) fazem valer sua própria dominação pessoal. Esta se ampara em distintas estratégias: (1) a dominação pessoal, que garante o controle de terras e homens sem prova documental; (2) o título de propriedade forjado; (3) o documento probatório da propriedade incompleto, como, por exemplo, um antigo formal de partilha da área, invocado como prova de propriedade juridicamente superior à ocupação produtiva da terra que resulta do trabalho do pequeno posseiro e sua família. A escritura de agregação constitui o ponto final para a compreensão dessas distintas estratégias. Se um proprietário determinado detém poder político suficiente para impor controle sobre determinada área em comum, sua estratégia será a de dominar tal área, bem mais extensa do que a cartorialmente comprovada. Casas e roças trabalhadas e habitadas por posserios são transformadas em terras de fazenda. A história de invasões, desde o século passado, está memorizada pelos velhos que até hoje lutam para não terem suas pequenas posses transformadas em terras da fazenda: (...)” (p, 140)
“(...) A ameaça de anexação da terra começa frequentemente com a tentativa de apossar-se dos bens mais lucrativos, como o gado. (...)” (p. 141)
“Se a apropriação legal da terra só pode ser feita pela herança e pelo mercado, no confronto do situ com a fazenda é um terceiro caminho que está em jogo: a sua usurpação pela invasão. É aí que a supressão de posses não tem razão social para constituir-se, a não ser como invasão da posse.” (p. 142)
“O que vem ocorrendo nessa sociedade agrária, e que dá um caráter novo e irreversível às transformações em curso, é que a invasão de posses se tornou para a fazenda o tiro de misericórdia disparado contra agentes sociais mais fracos, com a finalidade de anexar as últimas terras fortes de que se deseja dispor para transformá-las em pastos. Dito de outra forma, como a fazenda não mais se apoia em relações de favor entre proprietários e confrontantes, pode hoje desrespeitar essa etiqueta de convivência, em prejuízo dos mais desfavorecidos e, por simples violência, apropriar-se do que não lhe pertence.” (p. 142)
“(...) A ameaça ou a prática de cercar a posse com arame farpado, impedindo o próprio movimento de ir e vir do situante, impedindo seu acesso à água, a uma roça ou a uma manga mais distante resulta em verdadeiro aprisionamento para lavradores livres.” (p. 143)
“Há momentos dos ciclos de vida das famílias que pequenos posseiros que os tornam mais vulneráveis a esses acontecimentos: o fato de inúmeros chefes de família se deslocarem para outras áreas de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, para trabalho temporário na agricultura, permanecendo a família ligada à terra, torna o assédio da fazenda à pequena posse mais eficaz nesse período. (...) Outro momento do ciclo de vida das famílias de pequenos posseiros em que as invasões ocorrem é o da morte do chefe da família. A inexistência de formais de partilha, a evidência de que não se abriu inventário sobre bens do falecido podem apressar o processo de invasão. O fazendeiro ‘confrontante’, valendo-se dessa informação, começa a ameaçar a família. Essas ameaças são semelhantes àquelas que um fazendeiro dirige a um agregado, quando deseja expulsá-lo. Mas diferem num ponto crucial: não é a cerca derrubada que caracteriza o cume da violência material, mas a cerca erguida que comprime o lavrador a uma verdadeira prisão em seu próprio terreno. Depois, tal situação poderá evoluir para uma ação judicial, reivindicando parte ou a totalidade das posses invadidas.” (p. 143/144).
“A tentativa de evitara invasão é a razão principal pela qual o situante faz declaração de sua posse ao INCRA, combinada com pagamento anual de imposto. Ele imagina ser esse o único instrumento de garantia contra o esbulho da fazenda. No entanto, o cadastramento no INCRA e o pagamento do imposto não geram garantias para o situante. Não é raro que o INCRA receba pagamento do posseiro e do formador de fazenda em relação a um mesmo pedaço de terra.” (p. 144)
“O contínuo movimento de expansão da fazenda permite que o acréscimo de áreas cada vez maiores à área original. Além da compra de terceiros, nunca tem peso menor o fato de – invocando o parentesco, a morada de favor ou simplesmente exercendo a violência material – obter-se da terra que, efetivamente, pertencia a lavradores. Esses processos sociais são denominados turbação e esbulho. A semelhança de tais categorias com as explicações anteriores do que são ofensa e fecho não passa despercebida. Por turbação da posse entende-se todo fato impeditivo do livre uso da posse ou o exercício dela. Todo ato que, em relação à coisa, é executado contra a vontade do possuidor, consiste em turbações ou atos turbativos. (...)” (p. 145)
“Por esbulho entende-se ato violento, em virtude do qual é uma pessoa despojada, contra sua vontade, daquilo que lhe pertence ou está em sua posse. É uma usurpação. Se a lei assegura ao usurpado ou esbulhado o direito imediato de defender sua posse, mediante ação de reintegração, que tem por objetivo integrá-lo na posse de que foi violentamente privado, esses procedimentos judiciais são extremamente morosos e empurram os litígios costumeiros para uma direção mais violenta.” (p. 145)
“O confronto de formas distintas de apropriação da terra e a decisão sobre qual delas irá prevalecer está no âmago das invasões efetuadas em áreas de posses. O confronto entre os homens é sempre a forma inevitável, através da qual a agitação das diferentes práticas e verdades se dá e sobre qual delas deverá prevalecer. A iniciativa da invasão funciona como verdadeiro decreto de extinção de um modo de vida. O pequeno posseiro livre não tem mais que duas opções de sobrevivência: ou se subordina, para então ser alvo de todos os atos costumeiros e judicias da fazenda, que culminará com sua expulsão da mesma; ou resiste na terra, situação que pela extrema violência só pode ser praticada por uma grande coletividade de lavradores atingidos.” (p. 147)
“O favor, enquanto procedimento dos fazendeiros, é ainda invocado para mostrar sua magnanimidade, sua generosidade onde deveria apenas aparecer a letra fria da lei; é mencionado constantemente. (...) Assim, nos momentos de maior violência, ainda banha a relação a concepção caridosa para com os ‘réus’, invertendo, até o último momento, os verdadeiros fundamentos da questão.” (p. 147)
“(...) A tolerância existe porque a fluidez da apropriação da terra do posseiro convive com a fluidez da apropriação que caracteriza os chamados ‘fundos de fazenda’, onde se encontram terras não definidas do ponto de vista da propriedade privada jurídica, tornando a sua convivência ambígua. É a posição de poder do fazendeiro, na terra e nas próprias repartições – prefeitura e cartório – que permite manipular as implicações desse tipo de demanda, parecendo ser benevolente, quando no fundo não se tem pressa ou incerteza de que o desfecho da invasão só poderá lhe ser favorável. (...)” (p. 148)
“(...) o território da caridade e o território das rupturas violentas. A alegação para o segundo tipo de procedimento é de que o posseiro seria, ele próprio, o iniciante da violência física: está armado e poderá resistir.” (p. 148)
“Se não for cogitada pelo fazendeiro a destruição da roça pelo incêndio ou pela entrada do gado que a pisoteia e come, se não é decididamente possível concretizar a posse da terra, só resta ao situante uma saída: colher as benfeitorias. O lavrador que plantava sempre e muito planta cada vez mais, enche a terra de benfeitorias porque, se nem esta nem o trabalho são reconhecidos como livres e próprios, é a benfeitoria que encarna pela lei da natureza o que nasce, cresce, dá frutos, pelo trabalho humano nela embutido. Outros situantes virão a juntar-se ai esbulhado nessa tarefa. Esse verdadeiro mutirão de emergência se dá no âmago do confronto costumeiro, mas pode prosseguir durante uma ação judicial morosa. É um procedimento que reforça e magnifica a antiga solidariedade do ajutório, evidenciando que é no repertório dos costumes que um grupo social procura salvar seu sentido e sua continuidade. Por outro lado, ele caracteriza de modo irretorquível a natureza coletiva dos conflitos jurídicos. Ao olhar desprevenido, a reação do posseiro pode parecer uma luta individual e alienante; ao olhar atento, trata-se de atos e vontades coletivas, providos de um poder altamente mobilizador dos envolvidos e de toda a comunidade.” (p. 149)
“Essas atitudes, interpretadas como resistências pelo fazendeiro, fazem-no iniciar uma ação de reintegração de posse, que salvaguarde os terrenos em litígio para sua futura apropriação privada. Mas, para que tal medida tenha suporte judicial, há que provar domínio da referida área. É, então, que as dificuldades se transportam, em definitivo, do plano costumeiro para o plano judicial propriamente dito.” (p. 149)
“Se for provado domínio da terra, através de documentos, a reintegração de posse é liminarmente obtida. Para o situante sobram dois caminhos: 1) O fazendeiro permite amigavelmente a colheita das benfeitorias. Faz isso reativando a dívida simbólica: colher as benfeitorias é favor prestado àquele que, num momento imediatamente posterior, será expropriado. (...)” (p. 149/150)
“2) Se o fazendeiro não puder comprovar o domínio da área plantada pelos situantes, ativa-se nestes a decisão de conduzir a disputa em termos de direitos na terra comum. São duas as formas de invoca-los: trata-se de avivar a memória social da comunidade de que sua condição de campesinato livre vem do tempo de seus avós ou bisavós; trata-se, em termos do Código Civil, de avivar na comunidade os artigos que formalizam as prerrogativas da posse. A força desses discursos vem justamente de sua soma. Num conhecido caso de resistência na terra, é esta dupla razão social que tem garantidos os fundamentos jurídicos de uma ação coletiva.” (p. 150)
“(...) Chama-se agora contrato e ruptura contratual a relação que lhes permitia coexistir socialmente [fazendeiro e situante] e que, agora, se quer fazer desaparecer. As ações judiciais exprimem nuances sutis e variadas das contradições sociais existentes entre o controle da terra, para fins pastoris e de especulação imobiliária, e o controle da terra livre, para morar e plantar, que caracteriza a apropriação do situante. O repertório de categorias agitadas no desenvolvimento dos processos denota concepções e práticas inconciliáveis de identidade social. Conflitam-se ali dois modos de conceber a vida, sendo o flanco judicial um dos muitos espaços, onde opera essa tensão.” (p. 150/151)
“Diferentemente do agregado, cujo poder jurídico se diversifica em função dos diversos planos em que a dominação do fazendeiro sobre ele se exercia, as questões de terra entre situantes e fazendeiros circunscrevem-se, judicialmente, à polêmica sobre quem tem ou não tem direitos de propriedade privada sobre a terra que ocupa. Na medida em que um documento forjado ou incompleto, nas mãos daquele que dominam pessoalmente a terra, é acenado como prova de propriedade contra quem nada possui por escrito, entre em cena um tipo de violência que dá ao portador de um papel poder jurídico e político contra aqueles que controlam a terra imemorialmente pela herança, pela morada e pela roça. Tal como o ‘papel assinado’, o ‘papel escrito’ funciona coativamente. Sua finalidade é ocultar a realidade do situ, em vez de revela-la. É um procedimento que conduz o situante à busca de provas materiais e testemunhais de que controlava determinada área de terra, firmando-se então, na sua teia de concepções, a ideia de que só a propriedade parcelar,cartorialmente firmada, o colocaria a salvo das ofensas e fechos que vêm atingido seu terreno.” (p. 151)
“A contrapartida dos supostos proprietários, que buscam caracterizar o litígio com o(s) situante(s) como o de um contrato que chega ao fim, é sua forma de procurar chancela jurídica para um processo social de anexação de terras livres, em seu benefício. (...) Com a entrada na Justiça de ações de despejo ou possessórias, iniciadas por atores sociais que se dizem possuidores da t erra, penetram em instâncias de resolução de conflitos que conheciam, mas que jamais palmilharam, em que são obrigados a apossar-se rapidamente de todas as regras de funcionamento interno desses institutos, para poderem defender-se de seus oponentes e levar suas próprias verdades jurídicas para o tribunal.” (p. 151/152)
“Um acerto ou trato na condição é a forma mais comum de relação social que consorcia situantes e fazendeiros. Ele tem um caráter costumeiro, isto é, ‘de boca’. (...) A aquiescência de muitos livres quanto a se submeterem à condição resulta de um cálculo social a ser desvelado: tem como finalidade impedir um confronto direto e imediato com uma classe poderosa que quer entrar na terra. Seu poder advém de dominar costumeira ou legalmente outras áreas ou de ocuparem em vilas e cidades cargos políticos ou comerciais. A relação social é concebida e vivida como provisória por ambas as partes. Os situantes supõem que a cessão da condição lhes garantirá futuramente a terra dada de papel passado. Coerentemente, os donos do domínio pretendem que, com o passar do tempo, se dê a completa diluição dessa promessa ou possibilidade. A partir de uma coação verbalmente exercida, fundada no temor reverencial, passa a ser concebido como tolerado, quando na verdade era um livre.” (p. 152/153)
“A oscilação nas representações e práticas sociais dos situantes entre livre/de condição não representa um contínuo: antes reflete as tensões que brotam no seio de uma fração social, periodicamente assediada pelo domínio, que quer consolidar-se como propriedade privada da terra.” (p. 153)
“As concepções sobre a autonomia do situ e a polêmica no sindicato, na Justiça e na sociedade, sobre se estas podem transformar-se em direito à propriedade, são trilhadas tanto pelo primeiro como pelo segundo, no sentido de defender a apropriação da terra. Ganha sentido aqui a alegação do formador de fazenda de que o situante era, em verdade, seu parceiro ou colono e a alegação deste de que era um livre e, portanto, não-contrantante, ou de que pagava a condição, coagido. A alegação de que o posseiro é um parceiro supõe as seguintes regras subjacentes: (a) a de que é um lavrador não subordinado, pois caracterizá-lo como tal poderia dar em algum momento uma direção trabalhista à ação judicial, situando-o no âmbito de uma Justiça que o formador da fazenda não quer palmilhar; (b) a de que o lavrador estava ligado a um contrato livre e igual, ainda que oral, ao ‘dono da fazenda’. Esse contrato agora se encerra, devendo a relação social ser distratada sem ônus.” (p. 153/154)
“A evaporação da noção de posse como forma social de ocupação da terra é o objeto principal. O procedimento necessário a essa evaporação é dominar sem demonstrar que domina, é contratar para facilitar o distrato.” (p. 154)
“Os passos da ação possessória ou de despejo iniciados por esses senhores de terra dão contornos substantivos às relações sociais em litígio. Para situantes de determinada localidade, submetidos à condição e à cessão de terças, estas têm por finalidade aparecer como descaracterização de sua autonomia na posse. Mas como atingi-la, sem que se caracterize sua subordinação à ‘fazenda’? Os fundamentos para essa argumentação só são possíveis se esses lavradores aparecem como parceiros iguais aos seus contratantes, nos termos do Código Civil”. (p. 154)
“(...) Chamar o situante de trabalhador rural é uma forma de dizer que tinha pouca terra, que sua condição não diferia em nada da de um sitiante desvalido, cuja propriedade parcelar registrada no Foro tem dimensões que se situam abaixo do módulo rural. É uma forma de realçar a condição de pobreza dos lavradores da região, reforçando a ideia de que o sindicato de trabalhadores rurais, e a federação que lhe corresponde são instâncias legítimas nas quais suas queixas devem ser examinadas. Esse procedimento se explica pela resistência das frações dominantes locais em aceitar a legitimidade jurídica e política do sindicato, como instância mediadora de conflitos de terra.” (p. 155)
“Por outro lado, a polarização parceiro/posseiro é a base das argumentações oponentes. Por essa razão, a busca de provas visuais e testemunhais de uma dependência pelo trabalho, que se combina paradoxalmente a uma independência na terra, configura-se como verdadeiro nó social a ser desatado pelo advogado do situante. Trata-se de agentes sociais coagidos, por contratos viciados, ou favorecidos, por imposições não desejadas, a atuar conforme atuavam, mas cuja trama de relações e concepções ligando-os ao situ jamais deixou de existir.” (p. 155)
“Ter uma situação quer dizer viver uma relação camponesa familiar. Como na agregação, a individualização da demanda, na figura do posseiro, descaracteriza o trabalho familiar na sua autonomia, tanto quanto a subordinação ao formador de fazenda, que também inclui a sua família. No caso do situante, outro descompasso com os costumes ocorre, além da individualização da disputa na figura masculina: é a entrada na Justiça, no singular. (...)” (p. 155/156)
“A entrada do situante na Justiça se dá de duas maneiras distintas: avisando o sindicato de trabalhadores rurais que seu terreno está sendo ofendido e fechado, fato que pode evoluir para uma ação possessória; e contestando ação iniciada por falsos fazendeiros ou seus representantes, alegando que sua morada e terreno estavam produtivamente ocupados, antes da pretensão de registro da área em cartório, alegada por seus oponentes.” (p. 156)
“(...) Na maioria dos casos, a mediação sindical, através da assessoria jurídica, limita-se a informar o situante de como deve ser, diante da perspectiva ou prática da invasão. (...)” (p. 156)
“(...) A tradução judicial da condição de situante em posseiro viola o sentido original de sua relação com a terra, já que confere um caráter transitório à sua situação. (...) Mas, sem nenhum paradoxo, esse é o momento em que ele também aprende que, diante dessa pretensão, a fazenda em formação tem muito mais força que ele: (...).” (p. 157)
“A existência de elos relacionais entre situ e domínio determina que a questão quase sempre assim culmine, sem que atinja a esfera judicial: o domínio vence com a invocação de usos e costumes pretéritos, que se firmavam na apropriação indisputável da terra que terminavam, por esta razão mesma, sendo registrada. Não se cogita da convivência tensa de distintas regras de apropriação, mas de uma única e poderosa dominação, que agora se quer consolidar cartorialmente.” (p. 157)
“(...) O juiz reforça a verdade jurídica dos fazendeiros e o faz através de dois tipos de violência simbólica: quando aceita a tese de uma ruptura contratual ente o suplicante e o suplicado; quando usa de palavras estranhas na audiência, causadoras de grandes obstáculos à compreensão do que está ocorrendo, por parte de lavradores que falam e agem de uma outra forma. O sucesso ou o insucesso de démarches como essa vai depender da modalidade do equilíbrio de forças sociais locais (e supralocais), que podem circunscrever ações a seu âmbito interno imediato, ou torna-las grandes casos, que chegam à Justiça da capital do estado, ao Tribunal de Alçada. No entanto, a maioria das ações judiciais que ocorrem nos tribunais sertanejos finalizam-se sem que o conhecimento dos fatos ocorridos extravase os limites da comarca.” (p. 158)
“Daí a grande importância que dão à prova pericial, à ida de suas moradas e roças, comprovando-se a autonomia do situ. Comprovar fisicamente sua condição de posse pacífica dá-lhe(s) cacife para descaracterizar ofavor de estar(em) em determinado terreno, para caracterizar o direito de ali permanecer(em) Não se é morador de favor, tampouco se é parceiro ou agregado. Provas periciais e testemunhais evidenciam que, sob tradições superpostas de relações sociais entre situ e domínio, está a terra de herança, de morada e de roça, que volta a ser acenada como condição original dos lavradores. (...)” (p. 159)
“Ações divisórias têm encaminhamentos distintos das ações de despejo. Se bem-sucedidos, sua lógica [dos fazendeiros] consiste em autorizar o levantamento de cercas em torno da situação, consumando a divisão da área total sob litígio: uma pequena gleba de uns poucos hectares será reconhecida como propriedade parcelar; o restante será reconhecido como fazenda. (...)” (p. 160)
“Neste, como nos demais casos discutidos, aos situantes que não obtêm mandados reintegratórios e que, efetivamente, perdem suas condições de produção, não resta senão a colheita das benfeitorias. Ações judiciais próprias desses casos, denominadas ações de indenização por lucros cessantes das benfeitorias, não foram encontradas. O que parece caracterizar esse momento da expropriação é o acordo costumeiro, a permissão para tirar do solo tudo o que foi ali plantado, sem que haja referencia ao amparo legal a lavradores que vivenciam essa situação. (...)” (p. 160)
“Ao transferir para o formador de fazenda o eixo de análise, nota-se que também sua condição social é movimentada em diferentes direções qualificativas. (...) Chamar-se fazendeiro é chamar-se proprietário de fazenda, nunca um candidato a tal condição. É o modelo da fazenda consolidada juridicamente que serve de exemplo às categoriais pelas quais o ‘fazendeiro’ se autodefine, e seu advogado o nomeia nas ações judiciais.” (p. 161)
“Nesse contexto, entrelaçam-se as três categorias para que essa condição social ganhe peso necessário, nas argumentações pretendidas. Nas ações de despejo, o entrelaçamento é básico, para que se caracterize a existência de trabalhadores contratados em não de ocupantes autônomos. Em ações possessórias e divisórias, é crucial enfatizar a posse mansa e pacífica do ‘dominium’, reduzindo a condição de ocupantes a meros tolerados, que devem sair do mesmo ou aceitar sua restrição a uma pequena área, já que o fazendeiro deseja controlar a maior parte.” (p. 161)
PARTE II - RESENHA CRÍTICA
1. INTRODUÇÃO
	A propriedade é um direito excludente, pois ao proprietário é atribuído o poder de se opor à coletividade, posto ser dono de determinado bem. A propriedade sobre a terra surge a partir do momento em que esta se torna objeto de desejo e disputa entre os indivíduos, não sendo mais possível, em razão dos diversos litígios, usá-la sem imposição de limites pré-estabelecidos.
	Teóricos como Locke chegaram a afirmar que a propriedade estaria atrelada ao trabalho humano, de modo que a apropriação se limitasse às necessidades, ao uso efetivo, ou seja, pautada numa perspectiva democrática. Tal pensamento resistiu até que surgisse interesse na defesa de territórios privados, como se soberanos fossem, a fim de que cada particular pudesse ter mais e mais poder, já que o valor atribuído à terra (como a todo bem escasso e desejado) passa a ligá-la à acumulação de riquezas.
	Portanto, há um interesse que faz surgir a propriedade sobre a terra, que não representa um direito natural, mas uma necessidade que se apresenta a determinada forma de organização social, ou seja, é inerente à sociedade contemporânea, não ao homem.
"A terra não era objeto de propriedade excludente, mas sim as coisas produzidas pelo ser humano ou por ele colhidas. A terra como objeto de direito de propriedade independente de produção ou uso é criação do capitalismo". (MARÉS, 2003, pag. 23)
	Num primeiro momento, a propriedade sobre os bens imóveis se estabelece de forma autoritária, disponível àqueles que detinham o poder, sem quaisquer limitações à sua vontade. Ou seja, não havia que se questionar um instituto que acabara de surgir, tornando a terra uma "res nullius" (coisa que nunca foi apropriada), de forma que não poderia haver nenhum instrumento apto a impedir arbitrariedades - melhor dizendo, à época não era uma arbitrariedade, em termos legais, tinha status de legitimidade.
	Nesse sentido, no Brasil a ocupação das terras deu-se de acordo com os interesses da Coroa Portuguesa, através do instituto das sesmarias, e seguiu sendo tutelada pelas classes dominantes, detentoras de poder político e social/ patrimonial. 
[...] "enquanto em Portugal as sesmarias tiveram o sentido de proporcionar a produção de alimentos e desenvolvimento para a população, no Brasil foi instrumento de conquista, mas também de garantia aos capitais mercantilistas de que sua mão de obra, escrava ou livre, não viria a ser proprietária de terras vagas. Se as terras estivessem à disposição de quem as ocupasse e tornasse produtivas, os capitais mercantilistas ficariam sem trabalhadores livres, porque todos iriam buscar um pedaço de chão para viver". (MARÉS, 2003, pag. 57)	
	No que diz respeito à propriedade imóvel rural, é nesse cenário que surgem os latifúndios (fazendas), consubstanciados na liberdade de apropriação por parte das classes que detinham o poder, sendo todo o aparato estatal destinado à idealização de seus interesses, em detrimento das classes menos favorecidas, que sequer enxergavam a terra dessa forma. Passemos então à análise do outro lado da história - o oprimido, sem voz, à margem do sistema pautado em interesses classistas dominantes.
2. DESENVOLVIMENTO
	Estamos habituados a entender a propriedade imóvel rural como "fazenda", quer dizer, como uma extensa faixa de terra, dominada por um senhor (fazendeiro). Numa noção totalmente diversa da qual estamos habituados, temos o situ, caracterizado pelos contornos físicos estabelecidos sobre a terra, com fundamento no trabalho exercido pelos lavradores sobre o terreno. Ter um situ dá a seu responsável a condição de situante. Este é o lavrador que ocupa e trabalha um terreno, para fins subexistenciais, plantando roças e realizando pequenas atividades mercantis, sem grandes pretensões.
	Sendo assim, a ideia de situ rechaça os contornos excludentes, característicos da propriedade privada, da fazenda. É estabelecido de forma coletiva, sob o enfoque do bem comum, sem que a situação de dado situante interfira no livre aproveitamento da terra pelo outro, ou seja, a terra não é vista como um instrumento de troca, de acúmulo de riquezas, mas como fonte de recursos disponível à coletividade.
	A independência do situ em relação à fazenda, constituindo-se sob uma reciprocidade diante dos demais situantes, e a insistência com que estes alegam nada dever, nem ao fazendeiro, nem à coletoria, configura-se, à primeira vista, como uma confirmação da autonomia camponesa.
	Todavia, assediado pela fazenda (sempre propensa a estender seus domínios), tem essa autonomia periodicamente comprometida. Servia-a no desempenho de tarefas, quando solicitado. A troco de homenagens, via sua terra desfazer-se, enquanto forma específica de viver e plantar, transitando entre liberdade e condição.
	Na condição, o situante recebe um aviso de que a área em que mora é domínio de determinado fazendeiro, e que só poderá ali permanecer se ceder dois dias de trabalho e/ ou a terça de suas lavouras. Na eminência de evitar confrontos com os poderosos fazendeiros, o situante aquiesce, supondo que futuramente a terra será dada de papel passado - enquanto, na verdade, passa de livre a tolerado.
"Entre situ e domínio se configurava uma agregação invertida: o favor pedido dava morada na fazenda, que seria mantida com o desempenho correto das tarefas nos típicos de fazenda. Na agregação, o fazendeiro não promete a propriedade da terra, porque possui a posse mansa e pacífica do dominium. A promessa de dar terra de papel passado só se torna inteligível no contexto oposto: a primazia da apropriação privada da terra é do formador de fazenda, mas as representaçõesde retorno à liberdade na terra camponesa têm que ser continuamente ativadas. Nesse contexto, as regras de apropriação do domínio e do situ são resguardadas através de princípios de autonomia possíveis, ainda que o primeiro subordine o segundo periodicamente". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 137)
	À ideia de livre opõe-se a de estar à disposição do fazendeiro. A coexistência com o domínio (enquanto poder de controle sobre a área), que podia transmutar-se em convivência no domínio, dá ao situ esta vivência constante da liberdade ameaçada. Livre aqui é mais um projeto do que uma concretização, pois não se trata de consagrar uma oposição perfeita, pois não há bases empíricas.
	Portanto, apesar de relativa independência, tendo em vista a capacidade de extrair o necessário da terra, o situante continua submisso às exigências do fazendeiro, que socialmente é visto como um senhor (pessoa que exerce poder, dominação, influência). Quer dizer, apesar da situação de fato, ocorre que os fazendeiros são os reais dominadores (eventualmente proprietários) daquela terra ou gozam de meios hábeis a caracterizar essa dominação (fazendas em formação). 
	Há todo um sistema estruturado com vistas à manutenção das relações de dominação, de modo que o situante não tenha força de se opor a qualquer tipo de arbitrariedade. A autonomia do situante é autonomia ameaçada e até subjugada. Sua vida social condensa a lógica de universos contrapostos: 1) autonomia da terra e do trabalho como realização e aspiração; 2) a subordinação de ambos (terra e trabalho) a concepções e relações que buscam submetê-lo.
	Para a classe dominante tradicional, a terra funcionava como suporte de um poder político e econômico que se assentava primordialmente na sujeição da população rural trabalhadora. Regra geral, os fazendeiros não detinham a propriedade jurídica das glebas onde exerciam direito exclusivo, fazendo respeitar esse direito apenas pela força e mantendo suas fazendas de geração em geração, graças à manipulação judiciária e cartorial.
	Se a apropriação legal da terra só pode ser feita pela herança e pelo mercado, no confronto do situ com a fazenda é um terceiro caminho que está em jogo: a sua usurpação pela invasão. O que vem ocorrendo nessa sociedade agrária, e que dá um caráter novo e irreversível às transformações em curso, é que a invasão de posses se tornou para a fazenda o tiro de misericórdia disparado contra agentes sociais mais fracos, com a finalidade de anexar as últimas terras fortes de que se deseja dispor para transformá-las em pastos.
	Nesses termos é que há a formação da fazenda. Trata-se de invadir, para depois expulsar. Colocam cercas que tolhem a movimentação cotidiana dos posseiros, visando descaracterizar a autonomia de sua condição social. Querem impor sua existência gradual e violentamente, em área designada terra devoluta.
"Sempre que uma fazenda se forma em terra devoluta, sem que o Estado reivindique o controle da mesma em última instância, os fazendeiros em potencial (ou os grileiros que os representam) fazem valer sua própria dominação pessoal. Esta se ampara em distintas estratégias: (1) a dominação pessoal, que garante o controle de terras e homens sem prova documental; (2) o título de propriedade forjado; (3) o documento probatório da propriedade incompleto, como, por exemplo, um antigo formal de partilha da área, invocado como prova de propriedade juridicamente superior à ocupação produtiva da terra que resulta do trabalho do pequeno posseiro e sua família. A escritura do abraço constitui o ponto final para a compreensão dessas distintas estratégias. Se um proprietário determinado detém poder político suficiente para impor controle sobre determinada área em comum, sua estratégia será a de dominar tal área, bem mais extensa que a cartorialmente comprovada". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 137)
	A ausência de propriedade privada formal (limitada e titulada) permitia que fossem cometidas arbitrariedades, pois os dominantes (seja no aspecto social, seja no aspecto patrimonial) poderiam, a qualquer tempo, se valer da força e dos instrumentos estatais para se apropriar de terras alheias. O domínio, nessa concepção costumeira, significava área controlada de fato, e não juridicamente. Ou seja, associa-se à ideia de dominação social, mas há flagrante contradição com o significado jurídico da palavra domínio, qual seja, propriedade legítima.
	Tendo em vista a ausência de titulação, tanto pelos fazendeiros quanto pelos situantes, prevalece o poder social/ patrimonial dos dominadores. Como a fazenda não mais se apoia em relações de favor entre o proprietário e os confrontantes (agregados), pode hoje desrespeitar essa etiqueta de convivência, em prejuízo dos menos favorecidos e, por simples violência, apropriar-se do que não lhe pertence. Os pequenos trabalhadores, excluídos do acesso a terreno próprio (frequentemente por terem sido expropriados por algum fazendeiro), se viam forçados a morar e/ ou trabalhar na condição em suas propriedades. 
"Esse processo antecipa-se e sobrepõe-se, costumeiramente, à transformação jurídica da posse em pequena propriedade, seja porque o direito costumeiro do domínio funciona como ameaça concreta à autonomia da posse, que dispensa sua consolidação cartorial, seja porque, ao tentar registrar a terra, irá defrontar-se com os próprios fazendeiros incrustados nos cargos políticos locais, e que poderão manipular sua requisição de modo a transformá-la numa reivindicação imprópria". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 142)
	A ausência da propriedade privada formal, veementemente criticada por muitos, permite arbitrariedades daqueles que detêm o poder, que se impõe através do uso da força, da capacidade de organização e proteção. Mesmo que haja determinadas propriedades tituladas, é possível haver arbitrariedades, sendo comum, ainda hoje, encontrarmos memoriais descritivos nos seguintes termos:
"pela chapada extremando a ela pelo lado de cima na beira de um lajeado, em um moirão na cancela, rumo direito à chapada (...) extremo com a (...) e do outro lado córrego S.J.G., rumo direito com as águas vertentes até extremar com A.R. (...) nas águas do C.N., pelo lado de baixo, extrema com o mesmo comprador onde existe uma cerca até a chapada, de ambos os lados do córrego S.J.G., extremando-se pelo lado de baixo em terras de P.P. (...) em um moirão de aroeira que se encontra à margem da estrada, rumo direito até a chapada; na chapada em águas vertentes com terras de M.J.D.C, pelo lado de cima com terras de E.F.L., (...) em uns moirões de cancela, direto até a chapada, dando no imóvel em comum (...)" (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 128)
	Quer dizer, ainda que se trate de sitiante (aquele que detêm título), a titulação nesses moldes não oferece nenhuma segurança, já que não há precisão nas definições, que podem ser facilmente alteradas e defendidas pelos fazendeiros. Portanto, o que distingue o situante do sitiante não é sua condição acerca da propriedade (apesar deste último ter título de propriedade, ambos veem a terra das mesma forma), mas a forma com que seu terreno é usurpado.
	O situante sofre com a expansão das "divisas" do fazendeiro e com a apropriação de suas terras, enquanto o sitiante tem suas divisas desconfiguradas. Ou seja, de nada valia a titulação, face o poder de fato dos fazendeiros. Não havia, até então, interesse algum no reconhecimento de propriedade (formal) pelos fazendeiros; a ausência dessa característica não obstava em nada seus interesses.
	Todavia, num segundo momento o domínio passa de representação de área controlada de fato a propriedade legítima (leia-se, com título). Óbvio que isso de deu em razão do crescimento mercantil, da complexidade das relações engendradas pelas práticas capitalistas, com vistas a impedir que os livres (incluindo os ex-escravos) pudessem ocupar e apropriar-se livremente de terras, que dificilmente poderiam ser controladas nos antigos moldes. 
	Ocorre que, mesmo com a titulação, a submissão dos situantes não é afastada.Anteriormente não tinham condições de se opor à "força" dos senhores de terra, que poderiam se apropriar dos terrenos a seu bel-prazer, e, posteriormente, por estarem dissociados da propriedade enquanto instituto, cujo acesso ainda perfazia-se segundo os interesses das classes dominantes, ou seja, a terra continuava sendo um instrumento de poder. A grande cartada é o status de legitimidade titulada, bem definida, quer dizer, atrela-se à propriedade a publicidade, a burocratização tendente a controlar o acesso.
 	Antes a visão do fazendeiro restringia-se à produção local e à dominação de territórios com vistas a acumular poder e explorar a mão de obra apenas de forma interna, visando a manutenção e o zelo de seus domínios. Esse tipo de sistema e mão de obra não interessam à lógica capitalista (que um dia implicou o fim das escravidão, por estes mesmos motivos). Ademais, esse novo paradigma atribui grande valor à terra enquanto instrumento de sua idealização.
	A fazenda, para sobreviver, precisa agir consoante este novo jogo de interesses, e para que isso ocorra será preciso: a) invadir situs, fortalecendo-se lado a lado à empresa capitalista adventícia; b) facilitar à própria empresa capitalista adventícia apossamentos rápidos de terras devolutas; e c) valer-se de sua penetração nas esferas de poder municipal e estadual, que lidam mais diretamente com a questão de terras, no sentido de desacelerar a regularização fundiária de ocupantes (ou seja, situantes).
	O situ passa agora a uma forma de apropriação de terra que só coexiste com a fazenda num contexto de compreensão e extermínio. Isso porque o interesse em eliminá-lo não provém só da fazenda, mas da aliança da fazenda com grandes empresas capitalistas ligadas ao reflorestamento, que visam ocupar terras para desenvolver grandes projetos. Como nesse momento não interessa mais à fazenda anexar a terra e seus trabalhadores (dominar a terra para dominar os homens), seu objetivo é duplo, porém excludente: ela quer anexar a terra e livrar-se de seus ocupantes.
	A materialidade do trato só ganhava sentido se percebida através das relações simbólicas do favor: dar a renda era reconhecer implicitamente que se tinha "patrão", e que foi este que liberou o acesso à terra. Desde a década de 70 este quadro se modifica e o próprio situ torna-se objeto de cobiça pelo "fazendeiro", que quer suprimir as relações sociais descritas.
	Antigamente, o "contrato de boca" permitia o domínio dos livres - era a chamada "carta de agregação", como um favor imposto (parceiro). Atualmente, esse favor imposto visa criar condições para terminar o domínio dos homens através de papéis assinados que preludiam a tomada da terra. Essa agitação das categorias posseiro e parceiro, como óticas invertidas de uma mesma relação social - a de pequeno posseiro ou dono de uma situação -, é clara nesse repertório de regras e de práticas sociais.
	Tais processos sociais levam ao desaparecimento das categorias com que são costumeiramente designados: situante, dono de uma situação, pequeno posseiro. Ocorre verdadeira evaporação da categoria posseiro dos textos sindicais, cartoriais e judiciais. Não há livres ocupantes de terras, mas unicamente agregados ou parceiros, cujo contrato o fazendeiro quer agora transformar em distrato.
	O situante, que se entende legítimo posseiro (seja livre ou pague condição), é visto pelo fazendeiro como agregado ou morador de favor, respectivamente tratado, na esfera judicial, como parceiro ou ocupante por esbulho, ou mero tolerado. O fazendeiro sempre se enxerga como proprietário, visando caracterizar o situante sempre como detentor. Na confrontação judicial o situante passa a ser chamado de outro nome, a fim de ser enquadrado em categorias contratuais, ou seja, a demanda é tratada como "ruptura contratual". O que temos é a prevalência da verdade material - fundada no domínio dos aparatos estatais -, em detrimento da verdade real.
	O confronto de formas distintas de apropriação da terra e a decisão sobre qual delas irá prevalecer está no âmago das invasões efetuadas em áreas de posses. O confronto entre os homens é sempre a forma inevitável, através da qual a agitação das diferentes práticas e verdades jurídicas se dá e sobre qual delas deverá prevalecer.
	Nas ações de despejo basta ao fazendeiro caracterizar a existência de trabalhadores contratados, rechaçando a ideia de ocupantes autônomos. Coerente com a designação de proprietário, torna-se, portanto, o despejo de quem ultrapassa os limites de um contrato de trabalho.
	Já nas possessórias e divisórias é crucial enfatizar a posse mansa e pacífica do "dominium", reduzindo a condição de ocupantes a meros tolerados. Há a possessória contra quem não pode viver em estado de compropriedade com quem tem prova de propriedade jurídica superior, e a divisória contra quem abusa da invasão, turbando o legítimo proprietário.
	Se for provado domínio da área, através de documentos, a reintegração de posse é liminarmente obtida pelo fazendeiro, restando duas eventuais soluções ao situante: 1) poderá obter, amigavelmente, a colheita das benfeitorias - ato que, praticado pelo fazendeiro, reativa a dívida simbólica, banhando com benevolência aquilo que, pela lei, o posseiro tem direito; ou 2) não podendo o fazendeiro comprovar o domínio da área plantada pelos situantes, ativa-se nestes a decisão de conduzir a disputa em termos de direitos na terra comum, avivando a memória social da comunidade de que sua condição de campesino livre vem do tempo de seus avós ou bisavós; ou, em termos do Código Civil, avivar na comunidade os artigos que formalizam as prerrogativas da posse. A força desses discursos vem justamente de sua soma. Num conhecido caso de resistência na terra, é esta a dupla razão social que tem garantido os fundamentos jurídicos de uma ação coletiva.
	Nesse sentido, o pagamento da condição torna o livre um detentor, justamente pelo fato de caracterizar uma parceria estabelecida no domínio do fazendeiro. O situante também pode ser caracterizado como parceiro ou colono, ligado a um contrato que se alega ter chegado ao fim ou que tenha sido descumprido, sempre evitando-se caracterizar a relação como trabalhista, que poderia levar o fazendeiro a ser condenado nesse âmbito. Já a defesa do situante é respaldada no fato de não ser contratante, mas livre, de ter sido coagido a pagar condição.
	O objetivo do fazendeiro é dominar sem demonstrar que domina, descaracterizando a posse e qualquer relação empregatícia. Ou seja, o que o fazendeiro sempre discute é o "distrato". Na pior das hipóteses para o fazendeiro, o situante será considerado empregado, fato que, ainda assim, o colocará em situação de dependência, detenção, subordinação àquele.
	O domínio vence com a invocação de usos e costumes pretéritos; que se firmavam na apropriação indisputável da terra que terminava, por esta razão mesma, sendo registrada. Não se cogita da convivência tensa de distintas regras de apropriação, mas de uma única e poderosa dominação, que agora se quer consolidar cartorialmente.
	O juiz reforça a verdade jurídica	dos fazendeiros e o faz através de dois tipos de violência simbólica: quando aceita a tese de uma ruptura contratual entre o suplicante e o suplicado; e, quando usa de palavras estranhas na audiência, causadoras de grandes obstáculos à compreensão do que está ocorrendo, por parte dos lavradores que falam e agem de uma outra forma.
	A frequência com que processos se referem à decisão de oficiais de justiça de serem tolerantes para com o invasor (posseiro), esperando que este compreenda que deve abandonar a área onde mora e planta e, finalmente, sua decisão de invadir a mesma em nome da lei, valendo-se de requisição de força policial, evidencia suas fases do mesmo litígio: o território da caridade e o território das rupturas violentas. A alegação para o segundo tipo de procedimento é de que o posseiro seria, ele próprio, o iniciante da violência física: está armado e poderá resistir.
"A tradução judicial da condição de situanteem posseiro viola o sentido original de sua relação com a terra, já que confere um caráter transitório à sua situação. O situante acaba por compreender que só se salvaguarda, em última instância, da invasão, a posse que se transforma em propriedade parcelar. Radica aí a tensão da situação que só poderá libertar-se da turbação se transforma em sítio. Mas, sem nenhum paradoxo, esse é o momento em que ele também aprende que, diante dessa pretensão, a fazenda em formação tem muito mais força do que ele: 'O direito de propriedade que, afinal de contas, o camponês invoca judicialmente' (ou melhor, que deve ser necessariamente invocado por ele) (...) 'é o mesmo direito que o capitalista invoca para expropriar o camponês (...) É das contradições desse direito, que serve a duas formas de propriedade privada - a familiar e a capitalista -, que nascem as interpretações distintas sobre a terra camponesa e a terra capitalista, terra de trabalho e terra de negócio. Essa contradição está no fato de que o mesmo código garante direitos conflitantes na nossa situação; a do camponês e a do capitalista". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 157)
3. CONCLUSÃO
	A propriedade privada sobre a terra no Brasil surge num contexto totalmente arbitrário, como instrumento de interesse das classes dominantes, que poderiam, a seu bel-prazer, se apropriar das terras, sob a égide do Estado.
"Começavam um arroteamento no terreno concedido, plantavam um pouco, construíam uma casinhola, vendiam em seguida a sesmaria e obtinham outra. O Rei dava terras sem conta nem medida aos homens a quem imaginava dever serviços. (...) Os pobres, que não podem ter títulos, estabelecem-se nos terrenos que sabem não ter dono. Plantam, constroem pequenas casas, criam galinhas e quando menos esperam aparece-lhes um homem rico, com o título que recebeu na véspera, expulsando-os e aproveita o fruto de seu trabalho". (MOURA, Margarida Maria, 1988, pag. 164)
	E é exatamente a prática supramencionada que marca a sequência da propriedade privada em nosso território. Vimos que usou-se de todos os artifícios possíveis para que, cada vez mais, o acesso às terras fosse limitado. Enquanto não havia tanta formalidade acerca do instituto da propriedade, a dominação se impunha através do poder social, político e econômico. Bastava ter interesse nas terras possuídas por outrem e invadi-las ou expulsar o possuidor.
	Todavia, num segundo momento mostrou-se necessário atribuir mais segurança à apropriação, e assim surge a titulação das terras, a fim de impedir o livre acesso dos homens livres. Nunca houve espaço para outra forma de apropriação que não fosse a de interesse das classes dominantes, fosse no Brasil colônia, fosse nos primórdios da ideologia capitalista. Posteriormente há mudanças apenas na roupagem, pois a propriedade passa a ser instrumento do capital, ou seja, engrenagem da dominação patrimonial exercida pelas classes detentoras dos meios de produção.
	A propriedade privada excludente e "absoluta" apresenta-se, então, como instrumento opressor e mantenedor de desigualdades, visto que os proprietários sempre deterão os meios de produção e usarão as classes menos favorecidas como mero instrumento de satisfação de seus projetos, de modo que a elas não seja possível ascender ou se desvincular, pois não terão acesso às terras e aos instrumentos de produção, sequer aos necessários à sua subsistência.
	Num primeiro momento a titulação ocorre com observância do interesse das classes dominantes, mas, conclui-se que a titulação é de suma importância atualmente, pois a "lei da natureza" é rechaçada, à medida que a propriedade ganha atributos legais e jurídicos, que sufocam as arbitrariedades. Como dito no início deste trabalho, entendemos ser a propriedade inerente à sociedade contemporânea - e não necessariamente ao capitalismo. 
	Quer dizer, entendemos ser inafastável a ideia de propriedade privada sem que a liberdade seja atingida, mas refutamos a propriedade enquanto instrumento do capital. Seu surgimento deu-se de forma arbitrária, autoritária, mas é complicado questionar, na atualidade, a legitimidade de algo que ocorreu há tantos anos, quando a estrutura e a experiência existentes hoje não existiam, quer dizer, o que somos hoje se deve, justamente, aos erros do passado. 
	Quer dizer, não entendemos ser racional questionar algo que ocorreu há anos, como se pudéssemos corrigir os erros lá cometidos com a prática de novas arbitrariedades nos dias atuais. À época, por mais que hoje nos pareça um absurdo, as coisas aconteceram dentro de sua normalidade. Temos de enxergar os erros e projetar os acertos, agir com respaldo nas experiências, mas com fulcro na eficácia prospectiva. As arbitrariedades ora cometidas permitem que seja galgado um futuro promissor e democrático. 
	Nesse sentido, defendemos a propriedade privada e julgamos necessário apenas que haja uma releitura do instituto. O que refutamos é a lógica capitalista, que impede o acesso e nunca permitirá que o proletariado tenha acesso ao que necessita, sem precisar se submeter ao sistema que alimenta apenas os detentores dos meios de produção. Ou seja, imaginamos estar, infelizmente, no mesmo caminho dos nossos antepassados. 
	Portanto, o acesso à terra não deve (nem pode, a nosso ver) ser ilimitado ou igualmente distribuído. O que se faz necessário é uma mudança estrutural, com vistas a permitir que, efetivamente, todos possam, através de seus esforços, ser proprietários. Consideramos grande evolução a titulação de terras e a precisão das medições realizadas nos dias de hoje, pois a propriedade formal, registrada, rechaça as arbitrariedades um dia observadas. Por mais que o acesso originário tenha se dado da forma como vimos, hoje evoluímos no sentido de garantir alguma segurança àqueles que detêm o título de propriedade, além da posse ter grande importância no nosso ordenamento jurídico.

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