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13 1. À esquina de um país: panorama potiguar entre 1900-1920 As silent as a mirror is believed Realities plunge in silence by… Hart Crane, “Legend” Precedendo a história recente da produção poética moderna/ contemporânea no Rio Grande do Norte, a condição do autor local sugere estar a uma longa distância dos grandes centros nacionais de produção literária, fato que suscita que a presença da poesia no estado surge em um caso à parte, ainda desconhecida pelo restante do país, e até no seu próprio território de origem, por assim dizer. Se tomarmos as condições oferecidas pela capital potiguar e seus pouco mais de 16.000 habitantes no censo do ano de 1900, segundo Itamar de Souza (2008), pode-se imaginar, no mínimo, uma produção literária insipiente, incluindo o campo da crítica literária. Tanto na poesia quanto na prosa e teatro, o que se percebia – e não poderia ser de outra forma – era a mimetização de escolas cuja força ultrapassava séculos, como o Romantismo, e de outros estilos também vigentes à época, a exemplo do Parnasianismo e Simbolismo. Diante deste contexto notoriamente provinciano, o nome de danie Realce danie Realce 14 Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) surge como inevitável para as questões culturais da cidade nesse início de século, principalmente depois do seu livro de estreia, que é de crítica literária (ou histórico literária, mais propriamente dizendo), publicado no ano de 1921. Na obra Alma patrícia: crítica literária2, o autor demonstra uma síntese da produção de autores potiguares até aquele momento, tanto na poesia quanto na prosa e teatro. Como uma situação símbolo dessa época, ao tratar do poeta Francisco Palma (1875-1952) – autor da obra Santelmos, de 1899 –, o crítico sentencia ficar em evidência “[...] que numa cidade como Natal de 1899, sem livraria, sem corrente de ideias, sem críticas, sem um vínculo ligando aos centros pensadores do país, as produções literárias sejam feitas num ritmo igual de parco vocabulário, deslizes de gramática e de lugar [...]” (CASCUDO, 1991, p. 59). Em suma, os poetas potiguares do início do século XX eram, praticamente, “mimetizadores” da escassa literatura que chegava às terras norte-rio-grandenses, não escapando aos padrões da época, como era de se esperar. No transcorrer de Alma patrícia, a primeira obra no estado a dar conta da esporádica produção literária norte- rio-grandense, há dados biobibliográficos de dezoito autores e entre os citados surgem Auta de Souza (1876-1901), Segundo Wanderley (1860-1909), Henrique Castriciano (1874-1947), Ferreira Itajubá (1876-1912), Gothardo Neto (1881-1911) e Palmyra Wanderley (1894-1978). Nestes poetas citados por Cascudo, os quais Humberto Hermenegildo de Araújo (2004) intitula como “Pós-Românticos” – este adotando a denominação de Antonio Candido (2000b) ao se referir ao período de 1880 a 1922 no Brasil – , os traços de uma 2 Pouco informado pelos estudiosos de Câmara Cascudo, nesta mesma obra o autor expõe um autoexplicativo prefácio no qual relata que o livro foi uma ideia gerada em 1918 junto ao macaibense Murilo Aranha (1890-1919), poeta autor de César Bórgia (1918) e Nevroses (1919). Porém, o amigo veio a falecer no ano seguinte ao começo do plano da publicação e “[...] creio que [Murilo] não chegou a escrever coisa alguma […] e o livro [ficou] dormindo na esterilidade das banquetas tipográficas” (CASCUDO, 1998, p. 13). danie Realce danie Realce danie Realce danie Realce 15 tradição relacionada ao Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo, aparecem com nitidez, revelando um conhecimento sobre as tendências literárias vigentes, embora as notícias e repercussões do Modernismo na literatura, nas primeiras décadas do século XX, ainda fossem uma realidade singularmente distante da cultura potiguar3. Isto não ocasiona uma situação de demérito em um país que, segundo Antonio Candido (2000b), contabilizava um índice de 75% de analfabetismo em 1920. Logo, as questões culturais eram pouco debatidas ou atualizadas, centradas na escassa elite nacional, essencialmente a do Rio de Janeiro (então, capital do país), como centro de irradiação cultural, que possuía os ímpetos de ler e discutir a arte desde o século XIX, o que inclui a literatura, de acordo com Ubiratan Machado (2010). Esta espécie de “atraso literário” acontecia também em significativa parcela do país, pois, tomando como símbolo de situação semelhante, ao contextualizar a produção do texto “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira (1886-1968), presente em sua obra Libertinagem (1930), Davi Arrigucci Jr. (1990, p. 102) aponta a seguinte análise: As noções de poesia que predominavam entre nós eram, sabidamente, as da tradição parnasiano-simbolista. A poesia, produto nobre do espírito, dependia de uma ideia elevada de inspiração, de um vocabulário escolhido e raro, de temas antecipadamente poéticos, de um desgarramento idealista de toda referência à realidade imediata, aspirando à pureza da linguagem da música, conforme a herança do Simbolismo. Por outro lado, a ideia mais clara de poesia era ainda a do soneto parnasiano, com suas regras restritas de versificação, […] sua retórica altissonante, seu culto do material nobre [...]. 3 Segundo Socorro de Fátima P. Barbosa (2009), nessa mesma época foram publicados na Paraíba Ensaios de Crítica e Estética (1919), de Alcides Bezerra (1891-1938), e Ensaios da Crítica Estética (1920), do paraibano Álvaro Pereira de Carvalho (1885-1952), obras que exploram alguns temas correlatos aos de Cascudo em Alma patrícia. Em outros estados, como o Ceará, a crítica literária começou bem antes, como se pode perceber pela publicação de Carta sobre a literatura brasílica (1869), de Araripe Júnior (1848-1911). danie Realce danie Realce danie Realce danie Realce 16 Em resumo, se na poesia publicada em 1930 Arrigucci analisa um fato como este, o da permanência de noções ligadas às escolas do Parnasianismo e Simbolismo já quase uma década após a Semana de Arte Moderna de 1922 – marco divisório para uma fase de ruptura de uma “série de recalques históricos, sociais” (CANDIDO, 2000b, p. 119) –, isto evidentemente denota que a situação da poesia brasileira pós-fase heroica ainda passava por um período de expectativa e validação dos aspectos modernos agora concernentes à poesia nacional, fosse ela a de Manuel Bandeira ou a de desconhecidos poetas do Rio Grande do Norte. Só para comparar tal percepção de Arrigucci com a atitude de Luís da Câmara Cascudo diante da produção dos poetas potiguares nos anos de 1920, torna-se emblemático citar algumas crônicas do autor potiguar publicadas em anos diferentes no jornal natalense A República. O primeiro texto se refere ao segundo livro do já citado Francisco Palma, poeta bissexto nascido em Pernambuco, porém radicado no Rio Grande do Norte desde a adolescência. Apesar de ainda bem jovem, mas já como presença inevitável e opinativa da cidade, Cascudo trata do segundo livro de Palma, Luz e cinza (1924), e aponta em crônica de 04 de maio de 1924, o nítido anacronismo do poeta: [...] uma sensibilidade poética inexplicavelmente fiel aos seus credos. A sua musa, como se escrevia em 1898, é ausente às nossas maneiras de sentir. Os nascidos espiritualmente depois de Saint Beuve, com Verlaine e Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, ainda, com muita vontade, perceberão, o subtil e vaporoso de seus versos. O Sr. Francisco Palma é o derradeiro romântico […] (CASCUDO apud FERREIRA, 2001, p. 77). Somente na citação dos escritores franceses já se percebe o conhecimento de Cascudo sobre uma “nova literatura” que vinha surgindo entre o final do século XIX e os decênios iniciais do século seguinte. Em 24 de abril de 1927, há um texto de Cascudodenominado “O livro de Peregrino Júnior”, publicado no jornal potiguar A Imprensa, na verdade, uma resenha indicando clara danie Realce 17 ironia quanto à obra Jardim da melancolia4, declarando que o tal livro “[...] é claro e lindo. E maciamente inútil. É um livro de frases suaves e espiraladas. De nervos sensíveis, de quintilharia lírica e adorável. Mas, insincero. Homem à 1927 não pensa aquilo [...]” (CASCUDO apud FERREIRA, 2001, p. 80). A evidente crítica de Cascudo já mostrava plena consciência de outros valores presentes nos anos de 1920, como notado anteriormente também no texto referente a Francisco Palma, e nesta mesma época o autor de Joio havia iniciado contatos – epistolares e físicos – com nomes ligados ao Modernismo brasileiro, como Mário de Andrade (1893-1965) e o pernambucano Joaquim Inojosa (1901-1987). 1.1. Poesia fugidia: periódicos do início do século XX Retornando um pouco mais no tempo, houve um fato singular que liga o ventre do Modernismo a esta esquina brasileira. No mesmo ano em que se inaugurava o primeiro local fixo para a projeção de filmes da capital potiguar – o Cinema Natal, símbolo de modernidade, funcionando no Teatro Carlos Gomes –, o vanguardístico Manifesto do Futurismo, de autoria do italiano F.T. Marinetti (1876-1944), impresso no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909, foi publicado pelo jornalista Manuel Dantas (1867-1924) e editado no dia 05 de junho do mesmo ano no periódico potiguar A República. 4 O natalense João Peregrino da Rocha Fagundes Júnior (1898-1983), ou apenas Peregrino Júnior, havia publicado o livro de crônicas Vida fútil (1923). Estudante de medicina no Rio de Janeiro no início da década de 1920, escreveu nos periódicos cariocas A Notícia e no Rio-Jornal. Neste último, “[...] Colabora intensamente com o movimento modernista em uma seção […], além de publicar crônicas [...]” (PROENÇA, 1971, XII). Coincidentemente, após o comentário de Cascudo sobre a obra poética dele, nunca mais publicou livros no gênero, voltando-se à medicina, além de editar contos e crítica literária, como O movimento modernista (1954), obra em que faz uma breve análise sobre o Modernismo brasileiro até a Geração de 45. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras durante alguns anos da década de 1950. 18 Como a cidade de Natal naquela época não possuía praticamente nenhuma tradição literária e nem repercutia sua vida cultural fora das fronteiras estaduais, é normal que a informação sobre a publicação do texto de Marinetti no jornal norte-rio-grandense não tenha repercutido na província potiguar e tampouco no centro cultural do país em 1909. Tal fato confirma esta curiosa ligação, ainda que isolada, de pessoas ligadas à cultura em Natal com os valores futuros que viriam a formar o Modernismo brasileiro, mesmo que se saiba hoje que foi um dos renomados mentores da Semana de Arte Moderna de 1922 quem realmente fez o vocábulo “Futurismo” se espalhar: Regressando da Europa, em 1912, Oswald de Andrade fazia-se o primeiro importador do “futurismo”, de que tivera apenas notícia no Velho Mundo. O Manifesto Futurista, de Marinetti, anunciando o compromisso da literatura [...], pregando o combate ao academicismo, guerreando as quinquilharias e os museus, […] [tais ideias] buliram com as ideias do jovem brasileiro, e, sobretudo, vinham […] abrir-lhe, pessoalmente, possibilidades que até então lhe eram inalcançáveis […] (BRITO, 1964, p. 29-30). Quanto às outras figuras preocupadas com a presença da literatura no Rio Grande do Norte antes de Câmara Cascudo, o nome quase isolado de Antonio Marinho (1876-1902), jovem autor de artigos publicados entre o final do século XIX e início do seguinte no periódico A Tribuna, surge como notório na embrionária crítica local5. Segundo Tarcísio Gurgel (2001), foi a análise feita por Marinho ao longo de três edições de julho de 1901 sobre a dramaturgia de 5 Possivelmente, Antônio Marinho foi o primeiro a tentar sistematizar a literatura local. Em sua conferência realizada por ocasião do segundo aniversário da agremiação Congresso Literário, ocorrido em 21 de abril de 1899, e intitulada “Movimento literário do Rio Grande do Norte”, Marinho traz apreciações entre os anos de 1889 e 1899 claramente influenciadas pelo método naturalista do sergipano Sylvio Romero (1851-1914), relatando que desde 1899 “[...] a vida literária do Rio Grande do Norte há se desdobrado promissoramente […]. É realmente considerável o número de grêmios literários […] nesta última fase da vida mental do Rio Grande do Norte.” (MARINHO apud SILVA, 2011, p. 71). 19 Segundo Wanderley que, provavelmente, gerou o primeiro trabalho crítico literário norte-rio-grandense. O próximo a seguir o padrão de crítico da reduzida literatura local foi Henrique Castriciano, que escreveu, por exemplo, sobre o poeta Lourival Açucena (1827-1907) em uma sequência de artigos para o jornal natalense A República em 1907, conforme Cascudo informa na obra Nosso amigo Castriciano (1965). A figura de Armando Seabra (1892-1920) também surge citada pelo poeta e crítico literário local Esmeraldo Siqueira (1908-1987) em sua obra Do meu reduto provinciano (1969). Seabra seria outro nome a ser lembrado na crítica local durante a segunda década do século XX, atuando na revista Pax e no periódico O Tempo – que circularam na capital potiguar entre 1917 e 1923 – embora sua produção em livro tenha sido publicada apenas postumamente (Ensaios de crítica e literatura, de 1923). As edições de O Tempo esgotavam logo e Armando “[...] recebia dos homens cultos e competentes da Natal as mais francas demonstrações de apoio e solidariedade […], destronando os falsos ídolos e procurando incutir na consciência pública a capacidade de perceber melhor essa questão do mérito intelectual [...]” (SIQUEIRA, 1969, p. 120). O crítico Seabra abordou tanto nomes mais conhecidos no cenário local da época – como Auta de Souza e Ferreira Itajubá – quanto poetas relativamente menos conhecidos, como Ponciano Barbosa e Abner de Brito, embora ele tivesse uma rígida fama de estudioso muito ligado às regras gramaticais, não revelando assim quaisquer propensões às futuras rupturas permitidas nos instantes iniciais do Modernismo nacional, caso do coloquialismo ou da linguagem fragmentada de autores como Oswald de Andrade ou Mário de Andrade, para ficar nos nomes mais renomados. Tratando de aspectos ainda relativos à produção literária no estado durante as primeiras décadas do século XX, existiram algumas publicações locais que marcaram o período, apesar da efemeridade evidente, de acordo com Maria Suely da Costa (2001). Na passagem do século XIX para o XX, houve em Natal a publicação de duas 20 revistas literárias, a já citada A Tribuna – que circulou entre outubro de 1897 e outubro de 1904 –, contabilizando cento e quatro números publicados, e a Oásis, esta editada pelo grêmio literário Le Monde Marche entre 1894 e 1904. O primeiro periódico tinha até um sistema de assinaturas e possuía correspondentes em várias cidades do Rio Grande do Norte – Ceará Mirim, São José de Mipibu, Canguaretama, Pau dos Ferros, Mossoró e Açu entre elas –, além de ter representantes em outros onze estados, como Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. No seu conteúdo editorial, a crítica literária e a prosa dividiam espaço no periódico com o gênero lírico, que trazia nomes como os de Sebastião Fernandes (1880-1941) e Ezequiel Wanderley (1872- 1933), mas também surpreendia com nomes femininos presentes, a exemplo da poetisa açuense Anna Lima (1882-1918), ainda que pese a repetida estética romântica ou parnasiana sendo o cerne poético dos citados. Como as produções literárias também giravam em torno de associações que desempenhavam o papel de “divulgadoresintelectuais”, registra-se a existência de algumas delas que chegaram a lançar periódicos na capital, como os da Agremiação Divisão Branca, que lançou vinte números de um jornal intitulado O Torpedo entre dezembro de 1908 a julho de 1910, da Oficina Literária Lourival Açucena (entre os anos de 1910 e 1911), do Centro Cívico Literário Gothardo Neto – este publicando a revista O Sertão em 1912 – e da Revista do Centro Polimático, editada pela associação de mesmo nome entre os anos de 1920 e 1922. No interior do Rio Grande do Norte, houve a Associação Literária Palmério Filho, que lançou na cidade de Açu a revista O Alphabeto entre os anos de 1917 e 1919, e o Grêmio Literário Augusto Severo, que publicou o periódico O Ensaio no ano de 1925, no município de Macaíba. Além destes, existiu também o periódico Ninho das Letras, que circulou na cidade de Currais Novos entre os anos de 1925 e 1926, inclusive com algumas ousadias gráficas à la Mallarmé. O texto “O dia dos mortos”, de Manoel Victorino, publicado na primeira edição 21 da revista (novembro de 1925), surge em uma disposição gráfica parcialmente em formato de uma cruz, ou a edição de número 8/9 (junho/julho de 1926), na qual há uma sequência de textos intitulado “Cartas litorâneas”, de autoria de Hortência Flores, graficamente exposta em um inusitado formato de um losango. Nesta mesma edição de Ninho das Letras, no que diz respeito ao âmbito da produção lírica, ao lado do tradicional soneto de Mariano Coelho, há o texto “Poemas das serras”6, do primeiro poeta a ter publicado um livro moderno – consciente dos versos livres moldados em cenas cotidianas – em terras potiguares: o natalense Jorge Fernandes (1887-1953), tudo isto observado na recente edição fac-similar da revista (2012). Entre os periódicos norte-rio-grandenses de início de século, alguns deles chamavam a atenção por terem sido produzidos exclusivamente por mulheres, fato, no mínimo, inusitado para a época7, ocorrendo publicações, segundo Duarte e Macêdo (2003) na cidade litorânea de Macau (o jornal Folha Nova, de 1913) e já citada revista O Alphabeto no município de Açu, dirigido por Maria Antônia de Morais. Em Natal, a revista Via-Láctea – cujo subtítulo continha os vocábulos “Religião, Artes, Ciências e Letras”– durou oito números publicados entre outubro de 1914 e junho de 1915. Mesmo constando na capa de cada edição os nomes das colaboradoras, todas as dez mulheres envolvidas usavam, vez por outra, pseudônimos, pois é notório hoje que o uso deles “[...] foi um artifício muito 6 Na verdade, a composição de Jorge Fernandes publicada na revista supracitada é apenas a primeira das partes de “Poemas das serras”, tríade de textos publicada no Livro de poemas de Jorge Fernandes (1927). 7 Posteriormente, a figura feminina no Rio Grande do Norte se tornaria símbolo da recente democracia no país. No governo de Juvenal Lamartine (1928-1930), Celina Guimarães Viana, nascida em Natal e radicada em Mossoró, cidade do meio oeste potiguar, se tornou a primeira eleitora da América Latina em 27 de novembro de 1927, segundo Jane Cortez Firmino (2003). Pouco antes, no dia 12 de setembro de 1927 houve a apresentação da peça O Voto de saias, encenada no Teatro Carlos Gomes (hoje Alberto Maranhão), em um texto que fazia referência aos dois incentivadores norte-rio-grandenses dessa conquista feminina, os políticos potiguares Juvenal Lamartine e José Augusto. Em 1929, o município de Lajes (RN) também seria pioneiro ao eleger Alzira Soriano como primeira prefeita do Brasil. 22 utilizado pelas mulheres nos séculos passados e primeiras décadas do século XX, para proteger e preservar a si mesmas e aos familiares da exposição pública […]. E no Rio Grande do Norte não era diferente […]” (DUARTE; MACÊDO, 2003, p. 22). Como as mentoras da revista foram as poetisas Palmyra Wanderley (1894-1978) e Carolina Wanderley (1891-1975), ambas muito jovens, uma significativa parcela dos pseudônimos pode ser justamente de autoria de ambas, visto que a publicação teve seu fim devido ao fato de que algumas colaboradoras somente escreveram uma única vez para o periódico e outras nem sequer chegaram a estrear, ainda segundo as informações explicitadas por Duarte e Macêdo (2003). Quanto ao registro poético na revista, e mesmo com a ausência de seções fixas, o gênero lírico ganhava destaque desde a capa, na qual figurava sempre um soneto à direita da página. Nestas páginas frontais, a publicação trazia autores como Olavo Bilac (1865- 1918) e Humberto de Campos (1886-1934), um traço que expõe o conhecimento sobre a tradição lírica brasileira e chamando a atenção para o conteúdo poético da revista, que era, obviamente, voltada para o público feminino. Normalmente, a média de poemas em cada edição ficava entre quatro e cinco textos, com somente duas seções mais especificamente voltadas para a poesia: uma chamada “Caricaturas” e outra denominada “Graça infantil”, esta claramente direcionada às crianças. Como exemplo de um das composições poéticas presentes na revista, há os quartetos de “Contrastando” (DUARTE; MACÊDO, 2003, p. 48), de autoria de Carolina Wanderley8 : 8 O poema reproduzido foi extraído retirado da edição Fac-similar das revistas lançada em 2003 (Cf. Bibliografia). Aqui atualizamos a ortografia presente no poema seguindo os padrões recomendados através do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990, através do Decreto 6.583, de 29 de setembro de 2008. Os demais poemas presentes neste trabalho também seguirão o mesmo padrão de atualização, exceto quando for indicada manutenção do texto original por motivos estéticos, por exemplo. 23 Desta existência, na estrada infinda Nos leva juntas o nosso amor; — Tu, Primavera, risonha e linda, — Eu, triste Inverno cheio de dor; Alma dos astros, alma das flores Tendo nos lábios doces canções, Vais espargindo risos e olores E eu vou colhendo desilusões. Dentro de um sonho de amor e calma És da Esperança, loura visão; Tens uma aurora raiando na alma E eu tenho a noite no coração. Como era de se esperar, as rimas alternadas, assim como a simplicidade e repetição temática – a saudade, a noite, o teor religioso, o esplendor da natureza, todos de aura inequivocamente romântica ou levemente simbolista –, características do texto poético citado, refletem a manutenção dos mesmos aspectos formais e líricos da época, também presentes em vários poemas de Via-láctea. Entretanto, ainda assim servem para “[...] dinamizar e iluminar a paisagem cultural do início do século XX em Natal [...]” (DUARTE; MACÊDO, 2003, p. 32), principalmente se for levado em consideração o provincianismo potiguar em relação à atividade intelectual feminina – inclusive a literária –, cujas figuras da macaibense Auta de Souza e da açuense Anna Lima parecem surgir isoladas na poesia potiguar no primeiro decênio do século XX. Em outra clara exemplificação do lirismo bem “comedido e comportado”, lembrando da expressão usada por Manuel Bandeira em um dos poemas de Libertinagem (1930), há a composição poética “Lacrimosa”, de autoria de Dulce Avelino e publicada na edição de número cinco da Via-Láctea, de janeiro de 1915. Eis o soneto (DUARTE; MACÊDO, 2003, p. 78): 24 Ocultas uma dor sem limitivo Sob o manto violáceo da tristeza, Num soluçar dolente e convulsivo Dominada por lúrida incerteza... Enxuga o pranto amargo e pungitivo Afasta a mágoa de feral crueza... Oh! não consintas um pesar tão vivo Nesse teu rosto de gentil beleza! É verde o teu olhar como a esperança Que te pode alentar linda criança, Sem pensares da vida nos escolhos... Portanto expulsa a dor que te crucia Quero ver o fulgir d’uma alegria, Nesse par de esmeraldas de teus olhos. O mais do que evidente traço romântico envolto em expressões como “omanto violáceo da tristeza”, “num soluçar dolente” e “pranto amargo” – além do cuidado vigoroso nas rimas e imagens de uma emotividade explícita – fizeram com que poemas como os de Dulce Avelino e os demais publicados na revista atraíssem uma antipatia por parte de alguns de seus leitores. Na seção denominada “Primeiras nuvens”, presente na edição de número quatro (janeiro de 1915), houve a presença da discordância entre a colunista chamada Dinese e a opinião de um cronista de nome Jacyntho Canela de Ferro, publicada pouco antes no jornal natalense A República e dirigida a Violante do Céu, uma das articulistas da Via-Láctea. Segundo Duarte e Macêdo (2003), o cronista era nada menos do que o jornalista macaibense Eloy de Souza, que, usando um pseudônimo visivelmente irônico, se rebelou contra a revista como um todo. Conforme relata o texto, claramente em tom indignado, de autoria de Dinese (apud DUARTE; MACÊDO, 2003, p. 68-69), “[...] [Jacyntho] revoltou-se contra a VIA-LÁCTEA desde o título até a última página; nada se salvou na sua reprovação. É um desiludido […], que pregou muito bem, mas, qual um Batista moderno, pregou 25 no deserto”. Isto ocorre depois que Jacyntho teria sugerido que a revista Via-Láctea deveria se chamar “Galinheiro” ou “A cozinheira”, dada a extrema feminilidade da publicação, o que pode revelar um tom irônico por parte do cronista quanto ao papel da mulher na área editorial – e por que não dizer social? – da cidade. Curiosamente, como item simbólico para o entendimento estético no que diz respeito à visão sobre o gênero lírico, na capa do terceiro número de Via-Láctea, de dezembro de 1914, está o poema “Natal”, de Auta de Souza, cujo irmão era o supracitado Eloy de Souza. Perdurando até a edição de número oito, lançado em junho de 1915, os textos integrantes das edições de Via-Láctea ainda resvalavam em um passado recente que não queria deixar de existir nas letras potiguares, uma espécie de Romantismo retardatário que também se fazia presente em outros recantos do Brasil. Analisando a produção poética paraibana das primeiras décadas do século XX, Hildeberto Barbosa Filho anota um fato muito semelhante ao das letras potiguares: Evidentemente, o grosso desta produção, nesta fase inicial da literatura na Paraíba, se caracteriza pela imitação servil dos modelos mais ou menos consagrados a nível nacional. Este fato, logicamente, vai resultar na prática de uma poética epigônica, onde os componentes estéticos das “escolas” romântica, parnasiana e simbolista, já em franco processo de desgaste e saturação, são reaproveitados numa espécie de maneirismo literário, em que não se economizam os estereótipos formais e estilísticos, assim como os lugares-comuns das motivações subjetivas (BARBOSA FILHO, 2001, p. 63). Em suma, as manifestações nas letras potiguares do início do século XX seguiam naquilo que se pode chamar de dupla perspectiva: por um lado, havia o reconhecimento sobre a tradição poética nacional e, por outro lado, esta manutenção lírica sobre temas, formas e objetos revelava que a modernidade – assim como a modernização – ainda passava distante tanto da realidade quanto do imaginário norte-rio- grandense. Com isso, Câmara Cascudo afirmou veementemente em Alma patrícia que “A literatura por aqui é um mero diletantismo, passatempo, distração de espírito” (CASCUDO, 1998, p. 161). 26 Para outros críticos, como Duarte e Macêdo (2001a), esta fase inicial do século XX equivaleria a uma “fase de formação” – por sua vez, já pegando emprestado a expressão consagrada de Antonio Candido em Formação da literatura brasileira –, o que, de um modo geral, configura as manifestações poéticas no Rio Grande do Norte como uma contaminação lírica tradicional, vertida sob o verso ainda herdado do século XIX, fato comprovado nos periódicos potiguares entre 1900 e 1920. 1.2. A melancolia solar dos pós-românticos: Auta de Souza, Henrique Castriciano, Ferreira Itajubá, Lourival Açucena I hear it in the deep heart’s core. William Butler Yeats, “The Lake Isle of Innisfree” De acordo com o relato de estudiosos distintos, o primeiro poeta potiguar a publicar um livro tem nomes diferentes. Para Tarcísio Gurgel (2001), Segundo Wanderley – nascido em Assu em 1860 – editou Estrelas cadentes em 1883, quando morou na Bahia. Já para Manoel Rodrigues de Melo (1994), o pioneiro teria sido José Leão com a obra Microscópicos em 1873, mas sem dar detalhes (cidade, prefácio, sumário) acerca de uma informação mais completa sobre a edição. De todo modo, parece ser justamente sobre o semblante trágico de Auta de Souza9 que se iniciou alguma repercussão sobre a poesia potiguar no despontar do século XX, talvez devido ao fato de um 9 Nascida em 1876 em Macaíba, cidade próxima à capital potiguar, Auta de Souza ficou órfã de pai e mãe antes dos cinco anos de idade e a partir do ano de 1890 ficou constatada a tuberculose. Para Câmara Cascudo (2008c), a enfermidade a fez sofrer durante mais de dez anos, falecendo vítima do mal do século em 1901, pouco após a publicação de Horto, seu único livro. 27 lirismo melancólico (precisamente romântico, detendo nuances simbolistas) somada à sua morte precoce, mas também devido a importância de autores como o renomado parnasiano carioca Olavo Bilac – que assinou o curto prefácio da primeira edição do livro em questão, assim como antes havia feito na obra Mãe (1899), de Henrique Castriciano, irmão de Auta – e o crítico literário Alceu Amoroso Lima, que assinou o prefácio da terceira edição da obra, já na década de 1930. O livro da poetisa macaibense teve edições constantes, sendo a segunda edição da obra editada no ano de 1911 em Paris pelos Editores Aillaud, Alves & Cia, e a terceira em 1936 pela Tipografia Baptista de Souza, no Rio de Janeiro, o que configurou um nítido interesse pela poesia dela10. Obras recentes, como Uma história da poesia brasileira (2007), de Alexei Bueno, mantêm o eco causado pelos versos de Auta, visto que o autor – em pleno século XXI – afirma que os versos dela a fizeram ser “[...] a maior poetisa católica do Brasil após Alphonsus de Guimarães. É difícil dar uma definição estilística aos seus poemas, que trazem algo de um Romantismo tardio misturado às vezes a uma musicalidade quase simbolista [...]” (BUENO, 2007, p. 239). A única obra da poetisa macaibense – cuja epígrafe com versos de Castro Alves já dá pistas do que viria a seguir – apresenta mais de uma centena de poemas, nos quais são observados uma junção pendendo ora para o Romantismo ora para o Simbolismo, tangenciando a opinião de Tarcísio Gurgel como esclarecedora sobre os versos de Auta, pois “[...] melhor seria considerá-la romântica com acentuada tendência simbolista” (GURGEL, 2001, p. 48). No prefácio da segunda edição de Horto, seu irmão Henrique Castriciano informava que ela havia lido poetas românticos como Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e um dos românticos da última leva, Luiz Murat, levando o autor de Ruínas a informar que a irmã “Não teve cultura literária vasta” (CASTRICIANO, 2009, p. 34), apesar da leitura supracitada. 10 Outras edições potiguares se seguiram, entre elas uma publicada em 1970 e outra mais recente em 2009 (Cf. referências bibliográficas), esta com acréscimos de textos poéticos. 28 De todo modo, os poemas de Auta renderam a ela uma espécie de “culto” com o passar do tempo e com as seguidas edições que, apesar de esparsas, fizeram “[...] com que seu legado poético permanecesse vivo [...], além de ser o registro de uma geração de escritoras na literatura brasileira que começava a perceber que a produção feminina existia e precisava ser lida sem preconceitos e sem desigualdades” (ALVES, 2010, p. 11). Exemplificar as tendências românticasou simbolistas em Auta de Souza pode ser uma tarefa direcionada já desde os títulos dos poemas (“Desalento”, “Ao luar”, “Místico”, “Meu sonho”, Simbólicas”, “Página triste”, “Crepúsculo”), cuja filiação em busca das rimas perfeitas por entre um lirismo confessional aparece em textos como “Agonia do coração” (SOUZA, 2009, p. 83): Estrelas fulgem da noite em meio Lembrando círios louros a arder... E eu tenho a treva dentro do seio... Astros! velai-vos, que eu vou morrer! Ao longe cantam. São almas puras Cantando à hora do adormecer... E o eco triste sobe às alturas... Moças! não cantem, que eu vou morrer! Pássaros tremem no ninho santo Pedindo a graça do alvorecer... Enquanto eu parto desfeita em pranto... Aves, suspirem, que eu vou morrer! De lá do campo cheio de rosas Vem um perfume de entontecer... Meu Deus! que mágoas tão dolorosas... Flores! Fechai-vos, que eu vou morrer! Se para Câmara Cascudo (1998, p. 126) “Todas as cenas, figuras ou imagens, gravadas no ‘Horto’ são dolorosas, tristes, desiludidas, 29 infinitamente suaves, infinitamente humanas”, é possível perceber os versos de “Agonia do coração” como um exemplar bem definido da lírica pessoal de Auta, cujo uso da primeira pessoa nos versos fica explícito em significativa parcela dos poemas de sua obra. Além destas marcas bem acentuadas, no decorrer de cada estrofe do poema citado há um refrão – “que eu vou morrer!” – intensificador da atmosfera mórbida de um Eu Lírico ciente de sua efemeridade, “[...] mas ao mesmo tempo exibindo toda sua carga de egocentrismo e individualidade ao chamar a atenção para si mesmo” (ALVES, 2010, p. 53). Vocábulos espalhados por todo o poema – estrelas, noite, círios, astros, pássaros, alvorecer, perfume – resvalam na escolha semântica do cruzamento entre Romantismo e Simbolismo, embora este último esteja mais presente nos versos sensoriais, caso de “Lembrando círios louros a arder” ou “Vem um perfume de entontecer”. Visto de forma mais ampla, em “Agonia do coração” a poetisa está sob os auspícios do que se convencionou chamar de Ultrarromantismo, termo cunhado para definir a segunda geração do Romantismo em Portugal. Segundo Massaud Moisés (1983), corresponderia ao período lusitano entre 1838 e 1860, e cujo semblante passava pelo exagero sentimental e uma clara tendência às temáticas melancólicas ou mórbidas. Raras são as composições de Auta de Souza em Horto – cujo título inicial era Dálias – que venham a escapar deste padrão poético alicerçado em um lirismo abundantemente emotivo/sentimental, pessimista perante os fatos da vida e na qual o amor está ligado a elementos da natureza surgidos em profusão nos versos, estes preferencialmente decassílabos, hendecassílabos ou alexandrinos. Em uma das poucas ocasiões em que a poetisa escapa de sua própria redoma poética, pelo menos na temática, está o poema “Manhã no campo” (SOUZA, 2009, p. 188): Estendo os olhos pelo prado afora: Verdura e flores é o que a vista alcança... — Bendito oásis onde o olhar descansa Quando saudades do passado chora. 30 Escuto ao longe uma canção sonora. Voz de mulher ou, antes, de criança Entoa o hino branco da esperança, Hino das aves ao nascer da Aurora. Por toda parte risos e fulgores E a natureza desabrochando em flores, Iluminada pelo Sol risonho, Recorda um’alma diluída em prece, Um coração feliz que inda estremece À luz sagrada do primeiro sonho! Ainda que mantidos os caracteres referentes à natureza como presença indubitável em seus poemas, ao longo de “Manhã no campo” está a visão de um cenário do tempo presente (Estendo os olhos pelo prado afora / Verdura e flores é o que a vista alcança...) que serve de acalanto a um passado diametralmente e sentimentalmente oposto e incômodo, mesmo que para tal ela se utilize de símbolos já bastante desgastados, praticamente usando clichês semânticos. É o caso do vocábulo “oásis”, observado nos primeiros versos como um lugar de vida em meio ao deserto, um refúgio diante da dor (– Bendito oásis onde o olhar descansa / Quando saudades do passado chora.). Em seguida, alguns padrões tidos como notórios ao Simbolismo passam a surgir como referencial, ocorrendo citações sensoriais e musicais (Escuto ao longe uma canção sonora. / Voz de mulher ou, antes, de criança) para depois entrar no campo da sinestesia envolvendo cor e sonoridade sugestivas (Entoa o hino branco da Esperança) e das maiúsculas alegorizantes, normalmente ligadas à personificação da natureza (Hino das aves ao nascer da Aurora.) como representação para um Eu Lírico que percebe a grandiosidade dos elementos naturais. Nas duas derradeiras estrofes, uma visão otimista, focando a vida em uma profusão de elementos humanos e naturais (Por toda parte risos e fulgores / E a Natureza desabrochando em flores) se confunde com a própria atmosfera de sonho/imaginação, fato expressivo entre 31 os poetas do Simbolismo cujas intenções dos dados da realidade “[...] comparecem no poema não para compor uma paisagem, mas para suscitar determinado estado de espírito” (GOMES, 1994, p. 29), obviamente relacionado ao Eu Lírico. No desfecho do poema, o terceto retoma uma aura cristã bastante presente em vários poemas de Auta de Souza (Recorda um’alma diluída em prece,) para, em seguida, trazer mais um clichê voltado tanto à felicidade – ainda que efêmera em “Um coração feliz que inda estremece” – quanto para reforçar o ideal religioso amalgamado à evocação onírica (À luz sagrada do primeiro sonho!), uma provável alusão ao passado infante presente nos versos iniciais. Fica-se, então, o registro de que a poesia de Auta transita entre os polos do Romantismo e do Simbolismo, gerando interesse que ainda deve ser mantido sob o viés teórico, uma vez que sua única obra pode ser tida não como uma mera transição e sim como uma confluência da própria criação poética alavancada diante das influências poéticas no final do século XIX. Neste sentido, o do referencial classicizante oriundo das escolas anteriores ao Modernismo, o lirismo de Auta de Souza guarda algumas semelhanças com o de Henrique Castriciano. O irmão da poetisa autora de Horto publicava seus livros de poesia já aos dezoito anos, com Iriações (1892), obra esta que, segundo o relato de Câmara Cascudo (1965) na biografia intitulada Meu amigo Castriciano, o macaibense queimava todos os exemplares que encontrasse pela frente, em nítida rejeição ao seu feito poético de estreia. Nas obras seguintes, Ruínas (1898), Mãe (1899) – este com o prefácio assinado por Olavo Bilac – e Vibrações (1903), o que se nota é uma poesia cujos temas e formas não escapam aos padrões líricos do período. Castriciano seguiria com um pouco mais de ênfase a linha simbolista, entretanto sem a ela se filiar com vigor, talvez por saber de certa impropriedade quanto ao uso, no Brasil, do Simbolismo de origem europeia, como assim afirmam sobre tal escola críticos a exemplo de Álvaro Cardoso Gomes (1994, p. 47): 32 Acontece que o Simbolismo foi uma estética altamente refinada, oriunda dos países industrializados e frios. […] seus membros mais ilustres […] elegeram o Outono (de preferência) e o Inverno como as estações preferidas para expressar os estados de alma lânguidos, melancólicos. Como é então que o Simbolismo havia de se fixar num país agrícola e tropical? Por exemplo, em seu livro Mãe, Castriciano ergue uma obra poética em torno de um conceito acerca da vida humana desde os versos de abertura. A figura maternal – que está presente no longo poema “Introdução” – e uma criança chamada Branca na parte denominada “Mãe, livro de Berta” perpassam as demais composições da obra. Indo do nascimento à morte de Branca, a presença desta personagem diante de um Eu Lírico paterno – que prefere os quartetose quintetos como estrofes constantes – demonstra a procura pelas tonalidades simbolistas em inúmeros trechos, como os presentes em algumas estrofes de “Acordada” (CASTRICIANO, 1989, p. 39-41): Música etérea, inefável, Mais que a voz do rouxinol, Canção que traz, impalpável, Ao sonho, o clarão do sol. Gorgeio vago e sem notas, Que às aves causa ciúme, Vindo de plagas remotas, Envolto em luz e perfume... […] E cismo, contrita, cismo, Vendo Branca despertar, Como quem vem de um abismo Cheio da luz do luar. Como se pode perceber, os indícios do uso da natureza e seus símbolos (rouxinol, sol, aves, luz, perfume, luar) revelam uma herança advinda do Romantismo, só que agora sob “[...] o misto de suave misticismo e forte esperança que se estende até o infinito” (CASCUDO, 1998, p. 21). A percepção humana se horizonta nos caracteres simbolistas que envolvem os sons harmônicos – “Música 33 etérea, inefável / […] / Gorgeio vago e sem notas” – enquanto a sequência poética focaliza os sentidos (Envolto em luz e perfume) plenos de contraste (Como quem vem de um abismo / Cheio da luz do luar), enfatizando a aura de Simbolismo presente nos versos. Os demais vinte e três poemas integrantes de Mãe sugerem seguir um percurso similar e que culminam no possível diálogo dos derradeiros textos, cuja subdivisão em duas partes se intitula “Berta (louca, à beira-mar)” e “O mar”, precedido por um pequeno texto em ritmo de prosa e sem título, colocado entre parênteses (CASTRICIANO, 1989, p. 78): “(Branca, diz a lenda, atraída por um Gênio mau das águas, desapareceu numa tarde aziaga de Agosto. […] Longos anos vagueou Berta pela praia, até que um dia cuidou ouvir o Pego, num fim de madrugada tempestuosa.)”. Na evidência da temática da loucura e as imagens surreais da conversa entre a figura materna e o Mar (com inicial maiúscula, caracterizando sua personificação, outro referencial simbolista), os versos de Castriciano terminam sob uma reminiscência romântica dramática, trágica, na voz do Eu Lírico marítimo – “Parti uma concha e fiz-lhe um berço, / Cinzento e claro, da cor da bruma: / Quanta alegria pelo Universo, / Se ela dormita, no frio imerso, / O seu vestido feito de espuma!” (CASTRICIANO, 1989, p. 84). A resposta humana de Berta parece ser a confirmação do estado de loucura que chegou o ser humano, em um delírio febril dos derradeiros versos da obra: “Branca, voltemos da vida aos laços! / Para aquecer-te dos frios gelos, / Eu tenho a febre de meus abraços, / Tu tens a aurora de teus cabelos!” (CASTRICIANO, 1989, p. 84). Se ao longo da obra Mãe os versos de Castriciano envolviam as tintas do Simbolismo, tanto que Muricy Andrade (1987) o coloca como representante no Panorama do movimento simbolista brasileiro, Câmara Cascudo observa na última obra de Castriciano um outro semblante poético sobre o potiguar, uma vez que “[...] já na última parte de Vibrações, se nota a grande influência parnasiana” (CASCUDO, 1998, p. 23), dando como exemplo o soneto “Monólogo de um bisturi” (CASTRICIANO apud CASCUDO, 1998, p. 23-24): 34 Primeiro o coração. Rasguemo-lo. Suponho Que esta mulher amou: tudo está indicando Que morreu por alguém, este ser miserando Misto de Treva e Sol, de Maldade e de Sonho... Isto não me comove: adiante! Risonho Fere, nevado gume! E, ferindo e cortando, Aço, mostra que tudo é lama e nada, quando Sobre os homens desaba o Destino medonho... Fere este braço grego! E as pomas cor de neve! E as linhas senhoris que a pena não descreve! E as delicadas mãos que o pó vai dissolver! Mas poupa o ventre nu, onde repousa um feto: Por que hás de macular o sono fundo e quieto Desse verme feliz que morreu sem nascer?... Apesar de ter já criado um poema de teor semelhante (“Tuberculosas”, presente em Ruínas, o livro anterior), “Monólogo de um bisturi” está muito mais próximo da poética aparentemente inclassificável de Augusto dos Anjos – cujo título faz lembrar do poema inicial (“Monólogo de uma sombra”) da obra única do jovem paraibano – do que do Parnasianismo ortodoxo pregado por Olavo Bilac e Raimundo Correia, para ficar na citação dos mais renomados. Cascudo talvez tenha visto no poema de Castriciano as rimas e métrica parnasianas como primordiais – ou seja, o aspecto estrutural – e sendo assim, o autor de Alma patrícia estaria relegando a um segundo plano a temática mórbida de herança do Ultrarromantismo e as imagens de teor naturalista que gradativamente vão tomando espaço nos versos. O título não apenas sugere o ato do uso do bisturi, como também se liga à segunda estrofe de modo até explícito, porém os versos iniciais expõem a mesma simbologia romântica reutilizada como introito (Primeiro o coração. Rasguemo-lo. Suponho / Que esta mulher amou: tudo está indicando) e assim, sob a técnica do enjambement, produzir um efeito cuja morbidez passa a ocupar o centro lírico (Que morreu por alguém, este ser miserando / Misto 35 de Treva e Sol, de Maldade e de Sonho...), enquanto as maiúsculas alegorizantes se tornam antagônicas diante da situação anunciada, a da presença da morte. Com um Eu Lírico cuja frieza tem muito do objetivismo parnasiano de retenção emotiva – uma característica frequente entre os poetas do período, mas não uma unanimidade –, o objeto bisturi se torna o foco entre os versos da segunda e terceira estrofes, cuja negatividade em torno dele assume um tom irrevogavelmente pessimista (Isto não me comove: adiante! Risonho / Fere, nevado gume! E, ferindo e cortando, / Aço, mostra que tudo é lama e nada, quando / Sobre os homens desaba o Destino medonho...), o que resvala no espírito do chamado Decadentismo – outra nuance do Simbolismo –, em que “[...] um pessimismo agudo assomava por toda a parte” (MOISÉS, 2004, p. 420), relata o autor ao se referir aos poetas franceses do fim do século XIX. Na sequência do poema aparece o impulso da morte derrotando a vida (E as delicadas mãos que o pó vai dissolver!), assemelhando-se ao processo de muitos dos poemas de Auta de Souza sob influência ultrarromântica. Entretanto, no terceto final, o lirismo ocorre entre a piedade e a ironia quanto à existência, com a imagem de uma mulher e um recém-nascido sem vida (Mas poupa o ventre nu, onde repousa em feto:), com a interrogação servindo como meio paradoxal da relação invertida de felicidade – aqui sendo a morte – e tristeza, que seria a projeção da vida humana a partir de uma criança (Por que hás de macular o sono fundo e quieto / Desse verme feliz que morreu sem nascer?...). Nos versos repletos de morbidez de “Monólogo de um bisturi”, a mulher não estaria mais no plano da idealização – como ocorre em Mãe – e, sim, “[...] em situação rigorosamente degradante […], inerte e nua, não passa de um cadáver às vésperas de uma dissecação” (GURGEL, 2009, p. 223). Também está certamente no poema uma ligação com aquilo que Álvaro Gomes Cardoso (1994) anotou como sendo o “espírito de decadência”. Seria uma visão do final do século XIX e que entrava em visível contraste com o espírito da 36 belle époque do começo do século XX. Na percepção decadentista, o ser humano “[...] que acreditava ter acesso aos segredos do universo [pós-Revolução Industrial], via razão e via progresso, vê de repente que tudo não passa de ilusão, que o universo é regido por forças incontroláveis que ele desconhece completamente” (GOMES, 1994, p. 11), como é o caso da morte. Ou seja, o pessimismo no poema de Castriciano é uma de suas facetas poéticas e que destoa da normalidade lírica de sua obra, chegando a existir em outros poemas de Vibrações, como no poema “Nada”, “[...] uma pitada de cinismo, postura adotada certamente a partir da leitura de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer” (GURGEL, 2001, p. 44). Indo além do campo restritamente poético ou filosófico, CâmaraCascudo (1965) considera o autor de Ruínas como uma de suas influências – se não no estilo, pelo menos no âmbito das ideias – e um dos agitadores culturais da então provinciana capital potiguar do começo do século XX. Além de ser criador de uma lei estadual no ano de 1900 e cuja principal ação era lançar livros que fossem de importância para o Rio Grande do Norte – isto é, publicando autores locais –, Castriciano ainda buscou divulgar o único livro de Auta de Souza e organizou a obra poética do romântico Ferreira Itajubá (1877-1912) em 1914, publicando Terra Natal, posteriormente reeditada em 1927 na edição Terra Natal/Harmonias do norte. Ao contrário da poetisa macaibense, cujo interesse pela sua poesia começou já bem perto de sua morte, o interesse crítico literário sobre Ferreira Itajubá foi ocorrendo com o passar das décadas. Há diversos ensaios em periódicos potiguares do século XX e também um primeiro trabalho mais cuidadoso de Câmara Cascudo em Alma patrícia (1921), seguindo-se mais um texto em Joio (1924). Vieram outras obras, a exemplo de José Bezerra Gomes, publicando Retrato de Ferreira Itajubá; Othoniel Menezes publica em 1947 o ensaio Ferreira Itajubá – o drama da vida de província. Mais recentemente, entre outros, foram editados Itajubá esquecido (1981), de Nilson Patriota; Ferreira Itajubá: poesia (1981), obra de 37 Francisco das Chagas Pereira; Gracioso ramalhete (1993), publicação de Cláudio Galvão; Revendo Itajubá (2007), de João Batista de Morais Neto; a compilação Dispersos: poemas e prosas (2009), organizado por Humberto Hermenegildo de Aráujo e Mayara Costa Pinheiro; e a dissertação de mestrado (ainda inédita em livro) Terra Natal, de Ferreira Itajubá, e a permanência do Romantismo (2012), de Mayara da Costa Pinheiro. Os versos de Ferreira Itajubá, hoje dono de uma fortuna crítica que rivaliza com a de Auta de Souza no interesse literário, confluem, segundo seus leitores críticos, para a exacerbação de uma originalidade comparando-se aos poetas próximos, de acordo com Cascudo (1998, p. 122-123): Auta de Souza, suava e mística, donzela hipersensível, não nos podia dar uma livro regional, H. Castriciano não é um poeta local, isto não tem escola genuinamente nossa, que o caracterize. Não possui um cenário que seja nosso. É um influenciado de Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Hugo […]. Só Itajubá é nosso. É a própria terra que canta pela sua boca rude. Todavia, Câmara Cascudo (1998) denuncia na mesma ocasião que Itajubá havia lido Luiz Murat, Olavo Bilac, Castro Alves e tinha preferências pessoais por Casimiro de Abreu, ou seja, o poeta travava contatos com a poesia brasileira das mais representativas do século XIX e que mantinha forte presença no século seguinte. Enquanto homem de biografia estranha, quando não misteriosa11, como poeta 11 Segundo Nilson Patriota (2007), Itajubá veio de família humilde e trabalhou como balconista de loja de tecidos, dono e artista de circo, fundador do semanário Echo e professor primário em sua própria residência. Câmara Cascudo (Alma patrícia, 1921) e Ezequiel Wanderley (Poetas do Rio Grande do Norte, 1922) tem o ano de 1876 como do nascimento do poeta. No texto “Como tenho vivido”, de autoria do próprio Itajubá e originalmente publicado no periódico natalense A Capital – de 06 de março de 1910 e republicado no jornal potiguar O Canguleiro, em setembro de 1997 –, o poeta afirma: “Nasci à margem do Potengi” (ITAJUBÁ, 2009, p. 167). Quanto ao ano de nascimento, José Bezerra Gomes, em 1944, conseguiu localizar o termo de nomeação de Itajubá para escrevente da Associação de Praticagem em 1896, data em que está escrito com a letra do próprio poeta: “Manoel Ferreira Itajubá, […] nasceu a 21 de agosto de 1877” (GOMES, 2002, p. 24). 38 sua obra está também ligada, por um lado, à sua atividade de músico “seresteiro”, de acordo com Nilson Patriota (2007, p. 41), “[…] divino ofício diletante de cantar noite adentro, violão em punho, a embalar saudades e estimular românticas fantasias. […] até os anos trinta, o seresteiro, o boêmio, o menestrel, […] era sempre bem acolhido às festas familiares e aos folguedos populares. […]”. Em um estudo específico sobre a música e os seresteiros no estado, Gumercindo Saraiva (2010) aponta em Trovadores potiguares que vários poetas locais tiveram seus versos musicados, a exemplo de Auta de Souza, Segundo Wanderley e Othoniel Menezes, além de Ferreira Itajubá, obviamente. A esta visão de caráter popular sobre a figura de Itajubá soma-se a opinião de Câmara Cascudo, relatando que o longo poema “Terra Natal”, formado por trinta e quatro partes e mais uma composição introdutória, foi escrito “[...] aos pedaços, aos trancos, no intervalo de uma serenata a uma peixada, quase sempre ditados, quase sempre interrompidos por novos planos de festas novas” (CASCUDO, 1998, p. 112). Para estudiosos mais recentes do poeta, como Mayara Costa Pinheiro (2012), os versos de “Terra Natal” teriam uma relação com o poema “Camões”, do lusitano Almeida Garrett (1799-1854), obra inaugural do Romantismo em Portugal no ano de 1825, considerando que as estrofes de Garrett configuram um percurso similar ao versado por Itajubá (a exemplo do sentimento de exílio e das constantes lembranças de infância). Outros leitores críticos, como José Bezerra Gomes (2002), este citando Armando Seabra e a obra Ensaios de crítica e literatura, de 1923, ligam os versos de “Terra Natal” ao francês Frédéric Mistral (1830-1914), autor de Mireia, obra de 1859 e que fixa seus versos no amor de Vincent e Mireia, assim como no poema de Itajubá está exposto o amor do Eu Lírico por Branca, coincidentemente o mesmo nome utilizado por Henrique Castriciano nos poemas de Mãe. Para Esmeraldo Siqueira (2012, p. 14), “No poema de Itajubá [Terra Natal], o largo sopro lírico assume facetas sugestivas e variadas. É romântico, amoroso, saudosista, filial, regionalista, patriótico”. 39 Apesar de apontadas tais virtudes, a figura humana de Ferreira Itajubá parece se ressentir de um descaso – certamente causado por suas condições econômicas sofríveis – quanto à sua produção poética. Embora participando com poemas e textos em vários periódicos potiguares (entre eles, o Oásis e A Tribuna), Itajubá parece não ter sido levado a sério na cidade em que vivia, uma vez que “Olhavam- no como quem olha um animal bonito e mau” (CASCUDO, 1998, p. 113), talvez uma referência à visão da “elite lírica” da capital potiguar frente a um caso de “injustiça cabocla”– a expressão é de Esmeraldo Siqueira (2012) – quanto ao poeta Ferreira Itajubá. De todo modo, voltando à poesia, a sua intenção maior era tratar da temática amorosa, ou melhor de sua impossibilidade: “Ao sublimar o amor em poesia (e dando-lhe uma estrutura onírica ao fazê-lo platônico), Itajubá se faz romântico” (PATRIOTA, 2007, p. 19). Este aspecto se diz presente além do tom definitivamente trágico – e por isto mesmo romântico – dos mais de trinta cantos de “Terra Natal”, pois aquilo que se vê nos demais poemas de Itajubá em Harmonias do norte são um aceno à tradição, só que incorporados à verve idiossincrática do versos do poeta: [...] na maioria, sonetos, muitos deles alexandrinos, tipo de verso predileto de Itajubá. Apesar das incorreções métricas, da pobreza das rimas e de pequeno vocabulário, pois o Poeta era inculto e o pouco que sabia aprendera de ouvido, lemos com prazer esses poemas transbordantes de riqueza lírica […] (SIQUEIRA, 2012, p. 14). Visto que “Terra Natal” seria uma espécie de canto de louvor à beleza feminina – muitas vezes alicerçada na relação com a natureza de esplendor tropical – e ao amor tornado “o poema da tristura”, como o Eu Lírico de Itajubá assim o define logo no terceiro verso da composição citada, os demais poemas do potiguar foram coletadossob a denominação de “Harmonias do norte”. São quarenta e dois textos poéticos cujos títulos – “Dor secreta”, “Cansado de sofrer”, “Recordação amarga”, “Desterro”, “Abençoado exílio” – denunciam, em boa parte, sua tendência literária, uma vez que “Amor, religião, 40 sentimento da natureza e da sociedade são as grandes constantes do lirismo romântico” (CANDIDO; CASTELLO, 2003, p. 159). Os poemas de Itajubá, por vezes, fazem realmente ecoar as vozes de poetas predecessores dele – por exemplo, intitulando um de seus poemas como “Aves de arribação”, mesmo nome dado por Castro Alves a um dos textos de Espumas flutuantes (1870) – e assim marca a sua consciência, ainda que rudimentar em seu campo semântico, sobre a tradição literária. Prova disto são os versos cuja temática não somente escapa aos arquétipos românticos como também se aproxima de uma tonalidade levemente simbolista de “Lua de maio” (ITAJUBÁ, 2012, p. 175): Acordo. Já ventila a madrugada! Sobe a parede escura úmida réstia... É a lua! Como está desfigurada! Parece que se ergueu de uma moléstia! Muda como as tristezas tumulares, Lembra uma monja pálida, sidérea, Uma bola de neve pelos ares, Fria, cobrindo tudo de matéria!... E desce. Desce. E o brilho declinando Imita o de uma veia esmorecendo... É que as dores de maio vão chegando Enquanto as alegrias vão morrendo! Verte pranto invernoso! Orvalha a grade Da solidão do meu viver incerto. Como sangra o punhal desta saudade! Que mal me trouxe este postigo aberto! Na qualidade de escritor vivente entre séculos distintos, a partir de uma simbologia romântica – a lua e a atmosfera noturna como fontes líricas – surge uma espécie de estranhamento poético no terceiro e quarto versos (É a lua! Como está desfigurada! / Parece que se ergueu de uma moléstia!). Em seguida, um certo grau de misticismo circunda a imagem do satélite natural e a de uma figura humana (Muda como as tristezas tumulares, / Lembra uma monja pálida, sidérea, / Um bola de 41 neve pelos ares, / Fria, cobrindo tudo de matéria!...), lembrando uma das marcas do Simbolismo, o da “[...] via das associações de ideias que permite a evocação de outra realidade” (CADERMATORI, 2004, p. 54). Na estrofe inicial, a lua estava aparentando uma enfermidade e agora se torna uma figura religiosa – a monja – sob a insígnia de uma das cores prediletas dos simbolistas, o branco. A aura onírica persegue o começo da terceira estrofe, cujo centro é mais uma aproximação entre o abstrato e o concreto (E desce. E desce. E o brilho declinando / Imita o de uma vela esmorecendo...), tudo isso preparando a antítese sentimental dos versos seguintes (É que as dores de maio vão chegando / Enquanto as alegrias vão morrendo!). Ainda que a derradeira estrofe traga um dos estandartes do Simbolismo – a chegada do inverno (e logo em um poeta dos trópicos!) –, o poema em seu desfecho promove uma ligação direta com o Romantismo. A sensação de ausência e isolamento estão dispostos como figurações do ser humano – “Da solidão do meu viver incerto. / Como sangra o punhal desta saudade! / Que mal me trouxe este postigo aberto!” –, com o Eu Lírico tomando o controle no final da composição, que se torna uma visão da lua enquanto índice de sofrimento e resignação. Em outro exemplar da poesia de Itajubá, as cores locais transitam de forma atenuada, o que denota por conseguinte um cenário mais “tropical” e menos idealizado pela lírica do poeta. Entretanto, ainda assim no soneto “A jangada” (ITAJUBÁ, 2012, p. 149), a natureza é personagem grandioso, fato tipicamente presente entre os poetas românticos, em meio à aventura/desventura humana: Dia pleno. Céu claro. A atrevida jangada Corta ao vento marinho a água salsuginosa... Que coisa simboliza? Uma asa tremulosa De garça, a palpitar sobre a esteira anilada. Marés não perde, até que um dia naufragada Rola no bolo azul da vaga procelosa... É o mistério da vida efêmera, enganosa, Tudo vindo do pó, tudo voltando ao nada... 42 Assim, da alma que suga o mel das utopias, A jangada veloz parte aos ventos de janeiro, Em busca de ilusões no mar das fantasias... E tanto às ondas vai que, sem bolina e pano, Voa com o temporal, deixando ao jangadeiro Se escapa, uma saudade... um tédio... um desengano... Do começo ao fim, a jangada é personagem, às vezes personificada – como na expressão “atrevida jangada”, presente na abertura ou na “busca de ilusões” do décimo primeiro verso – ou até metaforizada (Que coisa simboliza? Um asa tremulosa / De garça, a palpitar sobre a esteira anilada.). Entretanto, é no conflito entre a invenção humana e as forças da natureza que reside a simbologia da fragilidade e pequenez perante às intempéries. A derrota do lado humano é uma resposta do Eu Lírico para a própria transitoriedade dos fatos – “Marés não perde, até que um dia naufragada / Rola no bojo azul da vaga procelosa...” – e de uma vida cuja ação se aproxima de uma constatação niilista, tendo antes como referência conhecidas passagens dos livros bíblicos de Gênesis e Eclesiastes acerca da origem do homem (É o mistério da vida efêmera, enganosa, / Tudo vindo do pó, tudo voltando ao nada...). A penúltima estrofe mantém a prática romântica, com a escrita do Eu Lírico de Itajubá se centrando na idealização da natureza em uma sequência de metáforas que guardam o mesmo traçado do Romantismo tradicional (Assim da alma que suga o mel das utopias, / A jangada veloz parte aos ventos de janeiro, / Em busca de ilusões no mar das fantasias...). A tríade nominativa de utopias-ilusões- fantasias, que serviria como índice onírico e de desejo, acaba se confrontando com a força da natureza que se volta contra o homem, uma figura frágil em meio às intempéries (E tanto às ondas vai que, sem bolina e pano, / Voa com o temporal, deixando ao jangadeiro / Se escapa, uma saudade... um tédio... um desengano...). Nos dois últimos versos, ao jangadeiro somente restou a aventura terminada em desventura, em desilusão, novamente reforçado por outro trio de vocábulos insistentemente de órbita romântica: 43 saudade-tédio-desengano. Em suma, o poema reforça um ideário trágico entre a figura humana e a natureza, com esta provando sua hegemonia e com o homem voltado à recorrente imagem de angústia de prática inerente ao escritor romântico. Ainda assim, os versos de Itajubá foram menosprezados pela imprensa local, único escape para a publicação de um poeta pobre como ele, “[...] porque seus poemas, quando não eram recusados pelos redatores d’A República, órgão oficial e folha mais importante da época, saíam estampados nos recantos menos lidos do jornal [...]” (SIQUEIRA, 2012, p. 12). Em opinião mais recente, João Batista de Morais Neto (2012) chega a usar as expressões de “censura” e “recusa” no trato dos contemporâneos de Itajubá para com a poesia do autor de “Terra Natal”. Mais contundente e menos agravante, Luís da Câmara Cascudo (1998) cita a expressão “verbo tosco e bravio” e a relação aparentemente paradoxal entre “sua pouca cultura e muito talento” ao se referir aos versos de Itajubá. Isto revelava uma admiração sobre a produção poética dele, que diante dos percalços sociais vividos por Itajubá, este ainda escreveu de forma a criar uma obra cuja lírica que estaria um pouco além da homogeneidade dos contemporâneos do poeta. No entanto, a denominação de “genialidade” imputada por nomes como Nilson Patriota (2007) e Armando Seabra (apud GOMES, 2002), além da opinião de que o poeta possui uma “marca inclassificável” em seus versos – de acordo com a afirmativa de João Batista de Morais Neto (2012) –, podem revelar um exagero crítico sobre o lirismo pós-romântico de Ferreira Itajubá. Pelo analisado até aqui, ainda que sendo uma pequena amostragem, confirmam- se os laços que unem Itajubá em uma tradiçãodo poeta idealista, romântico fiel ao caráter lírico amoroso do verso, criando talvez mais um retrato de um escritor subestimado em sua época e superestimado nas que lhe seguiram. Assim como Itajubá – e em se tratando de edições póstumas –, além do exemplo do autor de “Terra Natal”, outro nome aparece como 44 vulto poético do fim do século XIX e início do seguinte, incluindo contatos de ordem pessoal entre o poeta de “Terra Natal” e ele, apesar da diferença de idade entre os escritores, conforme Tarcísio Gurgel (2001). O natalense Lourival Açucena (1827-1907) só obteve sua obra publicada graças ao esforço de Luís da Câmara Cascudo, que editou o volume intitulado Versos em 1927, ano que marca coincidentemente o começo do Modernismo no Rio Grande do Norte com o Livro de poemas de Jorge Fernandes. Estranhamente esquecido por Câmara Cascudo em sua Alma patrícia, o nome de Lourival Açucena foi ainda lembrado no ano de sua morte por Henrique Castriciano em uma série de vários ensaios – de nítida tendência biográfica e histórica – publicados no periódico A República entre julho e agosto de 1907. Sobre Lourival Açucena, Castriciano afirma: Não acompanhou a evolução da intelectualidade brasileira; seguiu, passo a passo, o retardado sentir natalense. […] Fazia amiudadas leituras das obras de Magalhães, de Macedo […] e de Bocage, o seu autor favorito. […] não raro afinava o violão, e saía para a rua onde, às dezenas, os boêmios da época divagavam ao clarão do luar” (CASTRICIANO apud CASCUDO, 2008a, p. 241-242). A opinião de Cascudo reforça a de Castriciano, salientando o fato de que a produção poética de Lourival Açucena atravessa o século XIX quase inteiro e, ao chegar ao seguinte, a constatação é a de um homem preso ainda mais ao passado: Lourival Açucena foi, cerebralmente, do século XVIII. Possuía a ingenuidade inspirativa, a malícia ligeira, a mania mitológica, a superstição do talento improvisador. Seus versos se destinavam ao violão ou ao pedido oficial de alguma coisa. Poetava sobre tema, batia a lira no outeiro, aceitava sugestões banalíssimas. […] De sua cultura e fórmulas arcádicas, bastarão as provas de alguns versos (CASCUDO, 1986, p. 24). Observadas tais declarações, os quarenta e seis textos poéticos de Lourival Açucena coletados em 1927 percorrem produções distintas, 45 uma vez que segundo Cascudo (1986) havia poemas de formulação arcádica – “Pirraças de amor”, “Uma prece”, “Deus” – e os demais seriam uma referência à predileção de Açucena pela música popular, entre elas modinhas tradicionais (entre elas “Eu não sei pintar amor, “Porangaba” e “Eulina”) e lundus (“Política” e “Sabiá”). Atendo-se ao livro em si, as composições de Versos estão relacionadas a esta aura árcade citada por Cascudo e também “[...] alguns poemas de forma mais livre que tentam traduzir a busca de uma dicção própria e adaptada à terra natal, à maneira romântica, com exaltação à natureza e ao amor” (DUARTE; MACÊDO, 2001a, p. 52). A coletânea entrega uma amostragem das diferentes criações poéticas de Açucena – alguns poemas aparecem com as datas de 1854 e 1906 –, que passam pelo acróstico, pelas glosas, pelos sonetos e por composições moldadas em quartetos, a exemplo de “Eheu, fame pereo”, “À Senhora da Apresentação”, “Marília” e “Eulina” (AÇUCENA, 1986, p. 53): Ave noturna, agoureira, Não me apavora o teu canto, Mais desastres não receia Quem de amor desfaz-se em pranto. Se a natureza fadou-te Para males empregares, Não assustam teus pregões A quem sofre agros pesares. Ervada seta de amor Meu triste peito feriu. Ao acúleo da saudade Minh’alma já sucumbiu. Ave tristonha e sinistra: Carpe tua negra sina Chora, que eu choro também, A longa ausência de Eulina. 46 Nota-se a atmosfera noctâmbula já desde o início, além da presença de um personagem símbolo de canto lamurioso – uma possível referência a aves comuns no Brasil, como a coruja, ou de fama mais abrangente na literatura, que é o corvo, título de renomado poema de 1845 do estadunidense Edgar Allan Poe –, mas que também pode ser uma alusão à pessoa que é portadora de más notícias. O clima dramático criado pelo sofrimento (Mais desastres não receia / Quem de amor desfaz-se em prantos) e pela aura negativa (Se a natureza fadou-te / Para males empregares, / Não assustam teus pregões / A quem sofre agros pesares.) segue padrões estabelecidos de forma geral pelo Romantismo, aliás seguidos “[...] por poetas que levaram ao extremo a exacerbação da sentimentalidade […]. E do que se concebe, aspira-se fazer a medida da existência [...]” (CANDIDO; CASTELLO, 2003, p. 161). Várias outras expressões e vocábulos na terceira estrofe do poema (Ervada seta de amor / Meu triste peito feriu. / Ao acúleo da saudade / Minh’alma já sucumbiu.) intensificam o âmbito melancólico de “Eulina”, que termina assimilando as características mais tradicionais pelo fato de Açucena finalizar seus versos com uma espécie de retomada dos versos iniciais (Ave tristonha e sinistra: / Carpe tua negra sina / Chora, que eu choro também, / A longa ausência de Eulina.). Tudo estaria em prol de um lirismo cuja marca mais evidente é de manutenção de um ethos no que diz respeito à explicitação convencional da égide emotiva presente nos versos de Lourival Açucena, o que Henrique Castriciano (apud CASCUDO, 2008a, p. 241) chamou de “[...] pensamento de gerações que se sucederam sem grandes sustos”, marcando assim a permanência de uma tradição lírica emotivamente explícita. Além destes nomes aqui citados diretamente – Auta de Souza, Henrique Castriciano, Ferreira Itajubá, Lourival Açucena – há diversos outros autores que merecem uma pesquisa mais abrangente e relacionada às obras de cada um e que por motivos já explanados de seleção (entre eles a delimitação de apreciação, a produção sequencial 47 e a fortuna crítica) ficaram como pontos a permanecer como análise no período assinalado entre 1900 e 1920. Entre muitos deles, por exemplo, podem figurar nomes como o da açuense Anna Lima, poetisa de Verbenas, volume único publicado em 1901 e cuja segunda edição só ocorreu em 2012; Segundo Wanderley, poeta açuense de Gôndolas (1903); os macaibenses Cícero Moura (1882-1906), com Alvoradas (1905), e Murilo Aranha (1890-1919), com Nevroses (1919); Sebastião Fernandes e sua Alma deserta, obra de 1906 (há uma edição de 1994 sob o título de Poesia inédita, organizada por Cláudio Galvão); Francisco Ivo Cavalcanti – mais conhecido como Ivo Filho –, autor de Crisântemos (1906), editado novamente em 2012; os natalenses Gothardo Neto (autor de Folhas mortas, de 1913, nunca reeditado), Ponciano Barbosa (1889- 1919), com duas obras (Dúvida, de 1915, e Livro humilde, de 1916), e Amaro Barreto Sobrinho (1891-1961) com Mármores (1913). A amostragem analítica de alguns poetas pós-românticos no Rio Grande do Norte serve para exibir que a vida literária nesta esquina atlântica não só era evidente, como também estava alicerçada no mesmo âmbito poético nacional em que as escolas do século XIX guardavam sua hegemonia enquanto as forças do Modernismo ainda estavam por chegar. O que acontece é que o contexto literário da provinciana capital de pouco mais de 30.000 habitantes nos anos iniciais de 1920, segundo Itamar de Souza (2008), é de alcance extremamente reduzido ao seu próprio território e, tratando das manifestações poéticas no Rio Grande do Norte, o foco parecia ser unilateral, de acordo com as palavras de Moacy Cirne (1979, p. 15- 16): A poesia em tela, mesmo a de Auta de Souza, […] refletia o clima provinciano às margens do Potengi e do Seridó do Açu e do Mossoró. […] Os voos mais altos da imaginação e do lirismo não encontravam solo propício para que pudessem ser fecundados. […] Os arroubos literários, então, faziam-se notar nosversos ora simbolistas, ora parnasianos, ora românticos de poetas e seresteiros. […] Sem indústrias, sem uma produção econômica desenvolvida, sem maior arejamento na circulação de ideias, sem tipografias mais sofisticadas e educandários 48 renovadores, o Rio Grande do Norte, no começo do século [XX], não estava intelectualmente preparado para as grandes novidades literárias e artísticas engendradas no resto do mundo desde o grande salto mallarmaico (Un coup de dés) de 1897. Diante deste breve panorama aqui realizado sobre uma parcela dos poetas mais significativos com publicações entre 1900 e 1920, o ajustamento deles na já citada denominação de pós-românticos por Humberto Hermenegildo de Araújo (2004), impõe uma leitura da produção poética norte-rio-grandense que forma um conjunto de poemas “[...] que, se reunidos, permitem uma visão sobre o modo como o processo literário brasileiro aconteceu em uma comunidade situada na região nordeste […], estado praticamente sem tradição constituída [...]” (ARAÚJO, 2004, p. 93-94). Por sobre estes poetas de uma melancolia solar – adjetivo este designado perante a geografia ensolarada desta esquina dos trópicos, criando um paradoxo entre criação e realidade observada –, tratados como pós-românticos, reside um fato essencial à literatura e às artes em geral, justamente um sinal de que “Se a arte é uma noção transcultural, os objetos aos quais ela remete devem necessariamente compartilhar certo número de traços” (JOUVE, 2012, p. 20). Nos poemas e poetas aqui expostos – concretizando o que Vincent Jouve há pouco chamou de “objetos” –, os traços em comum entre eles formam a ideia de que a poesia potiguar do despontar do século XX nomeiam sua inserção no quadro da literatura nacional do mesmo período, ainda tão afeita às influências europeizadas do século XIX. Tal fator não gera um descrédito, apenas uma constatação de que o Rio Grande do Norte e seus poetas se resguardam na mesma admiração dos demais escritores dentro de um país periférico, cujo convencionalismo lírico é mantido sob os aspectos formais e estilísticos em que a maturidade crítica ainda demorará até que o Modernismo polemize sua chegada nos anos de 1920.
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