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LUCAS VIEIRA ZANINI SPOLAOR 1984: DISTOPIA OU PREMONIÇÃO? ANÁLISE DISCURSIVA FOUCAULTIANA DA OBRA DE ORWELL Trabalho monográfico apresentado como requisito parcial à obtenção de título de bacharel em jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas. Orientadora: Profª. Drª. Mabel Oliveira Teixeira Pelotas 2017 RESUMO Este trabalho analisa discursivamente a obra “1984”, de George Orwell, a partir da compreensão de discurso oferecida pelo filósofo francês Michel Foucault (1987, 1996, 2000, 2010). Com o objetivo de analisar as relações de poder e seus mecanismos de reprodução e legitimação, são abordados os conceitos foucaultianos de discurso, poder e verdade. O panóptico descrito por Jeremy Bentham (2008) e o conceito de sociedade espetacular, de Guy Debord (2003), também contribuem à construção do arcabouço teórico que possibilita nossa análise de “1984”. O papel dos meios de comunicação de massa na construção daquilo que os sujeitos entendem por realidade é levantado, visando ampliar nossa perspectiva de análise até o limiar da fronteira entre a sociedade em que vivemos e a sociedade orwelliana. A obra é posteriormente dividida em categorias que englobam as instituições descritas por Orwell em sua sociedade distópica. São apontadas suas características e a maneira com a qual contribuem para a manutenção, reprodução e legitimação da hegemonia discursiva vigente em “1984”. Palavras-chave: Discurso. Poder. Comunicação. Michel Foucault. George Orwell. ABSTRACT This work analyzes discursively the work "1984", by George Orwell, from the understanding of discourse offered by the French philosopher Michel Foucault (1987, 1996, 2000, 2010). With the objective of analyzing the power relations and their mechanisms of reproduction and legitimation, the Foucaultian concepts of discourse, power and truth are approached. The panopticon described by Jeremy Bentham (2008) and Guy Debord's concept of a spectacular society (2003) also contribute to the construction of the theoretical framework that enables our analysis of "1984". The role of the mass media in the construction of what subjects understand by reality is raised in order to broaden our perspective of analysis to the threshold of the border between the society in which we live and Orwellian society. The work is further divided into categories encompassing the institutions described by Orwell in his dystopian society. Their characteristics and the manner in which they contribute to the maintenance, reproduction and legitimation of the discursive hegemony in 1984 are pointed out. Keywords: Speech. Power. Communication. Michel Foucault. George Orwell. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 5 1 DISCURSO E PODER ............................................................................................. 7 1.1 O DISCURSO E A DISCIPLINA COMO FERRAMENTAS DE NORMALIZAÇÃO SOCIAL .................................................................................... 11 1.2 AS RELAÇÕES DE PODER EM FOUCAULT ................................................. 17 1.3 UMA SOCIEDADE VIGIADA: 1984 E O PANÓPTICO DE BENTHAM ............ 20 2 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA E A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO .......................................................................................................... 24 2.1 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE ........................................... 24 2.2 O PAPEL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA E DO JORNALISMO NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE .................................................................... 33 2.3 A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, UM INSTRUMENTO MIDIÁTICO DE PODER .................................................................................................................. 37 3 ANÁLISE ............................................................................................................... 42 3.1 METODOLOGIA .............................................................................................. 42 3.3 INSTITUIÇÕES E MÉTODOS DE CONTROLE DISCURSIVO ....................... 45 3.3.1 OS MINISTÉRIOS .................................................................................... 45 3.3.2 LIGA ANTISSEXO, LIGA DOS ESPIÕES: INSTRUMENTOS DE PERPETUAÇÃO DO DISCURSO DO SOCING ................................................ 48 3.3.3 DUPLIPENSAMENTO ............................................................................... 51 3.3.4 NOVAFALA: O NÍVEL MAIS SOFISTICADO DE CONTROLE DISCURSIVO ..................................................................................................... 55 3.4 INSTITUIÇÕES DE REPRESSÃO DOS DISCURSOS DISSONANTES ......... 59 3.4.1 POLÍCIA DAS IDEIAS ............................................................................... 59 3.4.2 O LUGAR ONDE NÃO HÁ ESCURIDÃO E O QUARTO 101: INSTRUMENTOS FINAIS DE CONVERSÃO DO SUJEITO AO DISCURSO DO PARTIDO ........................................................................................................... 61 3.5 O ESPETÁCULO COMO MANUTENÇÃO DO DISCURSO DO SOCING ....... 66 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 75 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 78 INTRODUÇÃO O propósito deste trabalho é analisar as relações de poder, seus mecanismos de reprodução e legitimação no livro “1984”, escrito pelo jornalista e escritor britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell. A obra, lançada em 1949, mostra um futuro sombrio para a humanidade: sujeitos submetidos ao poder de um governo que os vigia o tempo inteiro, atento ao menor sinal de rebeldia; guerras com o objetivo de manter a paz; a História como objeto editável e sujeito aos caprichos do governo, sempre consoante aos seus interesses. A própria língua é modificada para que, assim, os sujeitos não consigam verbalizar seu descontentamento. A tarefa exige responsabilidade, afinal, a obra é um clássico, sempre à mão para nos lembrar dos perigos de um poder inquestionável e absoluto. Analisar as relações de poder, seus mecanismos de reprodução e legitimação em “1984” é, como já citado, o objetivo geral deste trabalho, que surge da necessidade de entender como se formatam os discursos homogêneos e como podem exercer influência sobre as relações existentes em uma sociedade. Esse conhecimento é essencial à compreensão da realidade na qual estamos inseridos e, principalmente, à compreensão de como esse conceito de “realidade” é formado. Assim sendo, com base na análise discursiva foucaultiana, buscaremos destrinchar, a partir da materialidade textual de “1984”, as diferentes estruturas de poder que agem na sociedade orwelliana com o objetivo de legitimar, reproduzir e perpetuar as relações de poder nela existentes. Com esse objetivo em mente, o primeiro capítulo irá propor um mergulho na obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), a fim de, por meio da compreensão foucaultiana, entender como o discurso atua na manutenção das relações de poder. O capítulo buscará delimitar o que é poder na concepção do filósofo, além de estabelecer a relação existente entre discurso, poder e verdade. O papel exercido pela vigilância constante como instrumento de poder também será abordado e, para isso, será exposto o conceitode panóptico, idealizado por Jeremy Bentham. Já o segundo capítulo buscará compreender o papel dos meios de comunicação de massa, apresentando um pouco de sua história e suas principais características na visão de diversos autores como, por exemplo, John B. Thompson 6 (1995) e Nelson Traquina (2005). Também se fará necessário abordar como os meios de comunicação de massa atuam na construção do que entendemos como realidade e, para isso, utilizaremos o autor francês Guy Debord e sua obra “Sociedade do Espetáculo” (2003). Após as devidas bases teóricas estarem postas, será hora de analisar “1984”, a partir dos pressupostos trabalhados. Nossa proposta é buscar identificar as diferentes instituições de controle e repressão dos discursos dissonantes encontradas na obra, bem como apontar o papel da espetacularização na manutenção do status quo existente na sociedade orwelliana. 1 DISCURSO E PODER Este tópico é o início de um percurso lógico de conceitos que serão abordados e explicados com o objetivo de responder ao problema de pesquisa aqui apresentado. Para uma análise bem embasada e criteriosa de “1984” (2009), é necessário antes discorrer sobre o que talvez seja o principal instrumento de dominação utilizado pelo “onipresente” Partido da obra de Orwell: o discurso. As palavras “discurso”, “poder” e “verdade” aparecem com frequência na vasta obra do filósofo francês Michel Foucault, autor que dedicou sua vida a questionar, através de uma análise histórico-crítica, as origens de noções, ideias, pensamentos e até mesmo ciências aceitas pela sociedade como parte de uma “verdade” universal. A fim de tratar do núcleo de interesse deste capítulo (relação discurso x poder) surge, antes, a necessidade de entender com que sentido o autor utilizava tais termos. No livro “A Arqueologia do Saber”, Foucault (2000, p.124) conceitua o discurso como um “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação”. Expresso assim, o conceito de discurso se apresenta escorregadio e até, de certa forma, um pouco vago. No entanto, podemos compreendê-lo melhor com o auxílio de um outro conceito apresentado por Foucault, ou seja, o conceito de sistema de formação discursiva: [...] um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal ou qual conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática (FOUCAULT, 2000, p.82). Com o auxílio desses conceitos podemos vislumbrar que os discursos seguem um conjunto específico de regras no momento da sua formação. Um trabalho acadêmico como este, por exemplo, deve ser redigido seguindo à risca uma série de normas que foram estabelecidas anteriormente, ou seja, regras exteriores ao autor. Por isso, quem não formatar o seu discurso dentro das normas 8 estabelecidas pelo sistema de formação ao qual seu campo1 de conhecimento está submetido provavelmente não terá voz. É fácil perceber, portanto, que os discursos são submetidos a diversos procedimentos de controle e de delimitação. As próprias regras para seu surgimento fazem isso. Em “A Ordem do Discurso”, Foucault chama isso de rarefação dos sujeitos que falam: “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (1996, p.37). É aqui o momento onde as palavras “verdade” e “poder” devem permanecer em um canto próximo do cérebro, pois serão em breve utilizadas. Com o auxílio de Foucault, podemos perceber que existem uma série de “requisitos” que devem ser preenchidos por aqueles que desejarem proferir um discurso. O discurso médico deve ser de responsabilidade dos médicos, o discurso jurídico deve ser responsabilidade dos juristas etc. A partir desta lógica, só pode falar de determinado assunto aquele que detiver as “credenciais” para tal. Foucault nos diz que isso é uma ferramenta para exclusão dos discursos. Mas em que se baseiam os discursos amplamente aceitos pela sociedade, tais como a psiquiatria? Esse talvez seja o questionamento central que faz Foucault ao utilizar a palavra “verdade”. O que é verdade absoluta para uma época dificilmente será para outra. É possível notar, na obra de Foucault (1987, 1996, 2000), uma certa irritação com discursos revestidos de verdade e que são posteriormente invalidados por outros discursos, que por sua vez revestem-se do mesmo manto de verdade utilizado por seus antecessores. Ainda em “A Ordem do Discurso” (1996), o autor usa o botânico Gregor Mendel (1822-1884) para exemplificar como as noções de verdade de uma época podem contribuir para a exclusão de discursos. Mendel foi pioneiro em realizar estudos sobre a hereditariedade, mas seus trabalhos não despertaram o interesse da comunidade científica da época. Entretanto, após sua morte um grupo de pesquisadores retomou as pesquisas de Mendel, que hoje é conhecido como “Pai da Genética”. 1 Pierre Bordieu diz, em seu livro “O Poder Simbólico” (2000, p.135), que um campo social é um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do capital - quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto das suas posses. 9 É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos (FOUCAULT, 1996, p.35). Podemos vislumbrar que, além dos discursos precisarem obedecer a um conjunto de formação discursiva, eles precisam estar alinhados às noções de verdade vigentes no momento de sua criação para serem aceitos ou simplesmente para terem seu “espaço” garantido. O que, então, caracteriza a “verdade” ou um “discurso verdadeiro”? Para Foucault: Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (1996, p.12). Com isso, podemos entender que, para o autor, não existe o conceito de verdade absoluta, essa entidade única e irredutível da qual tanto se faz propaganda. Uma vez que a verdade apresenta variações de sociedade para sociedade e obedece a um conjunto de coerções impostas por técnicas, procedimentos e autoridades científicas/políticas/religiosas, não podemos tratá-la como algo exato e fixo, um ponto de luz brilhante no Universo, à disposição de quem quiser observar. Foucault nos instiga a receber os discursos de forma crítica, com o olhar sempre atento às nuances que habitam não só nas entrelinhas, mas também no contexto histórico que existe por trás de cada discurso. Passeamos agora, de forma breve, por alguns significados importantes que as palavras “discurso” e“verdade” assumem nas obras de Michel Foucault (1987, 1996, 2000). Resta aprofundar a pesquisa em direção à palavra “poder” para, assim, fechar o ciclo lógico deste início de capítulo, cuja principal intenção é tratar da íntima relação existente entre discurso e poder. Falando sobre as características discurso, Foucault nos diz que ele é: [...] um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas’, a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política (2000, p.139). 10 Este pequeno trecho nos faz perceber como o discurso está intimamente ligado ao poder, ao ponto de ser ele próprio uma ferramenta capaz de exercê-lo. O trecho também traz à tona o valor político por trás do discurso e a forma como o poder exercido por ele é objeto de uma luta. Isso nos faz pensar mais profunda e criticamente sobre a exclusão de discursos e estratégias de coerção utilizadas em nome das “verdades” aceitas por uma sociedade. O poder, para Foucault, não existe. O que existe são relações de poder: O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão (FOUCAULT, 1996, p.183). Logo, não devemos pensar no poder como uma estrutura sólida e imóvel que atua de forma chamativa no corpo da sociedade, causando-lhe dores ou trazendo-lhe alegrias. Ele é móvel, circular, algo que permeia as relações humanas. Ao longo da História, o poder já vestiu diversos trajes: já foi violento, autoritário, absoluto. Entretanto, desde o século XVIII, com o surgimento da disciplina como técnica de exercício de poder (FOUCAULT, 1996), ele assumiu uma faceta mais sutil. Isso será aprofundado no próximo tópico do capítulo. Por ora, o que devemos ter em mente é que Foucault (1987, 1996, 2000) não entende o poder como algo oriundo de uma única fonte. Para ele, todos os sujeitos reproduzem discursos ao mesmo tempo que sofrem a ação de discursos que lhes são impostos. O autor nos incentiva a analisar o poder a partir das relações tidas como “menores” e investigar como esses poderes se legitimaram através da História, ao ponto de se transformarem em formas sólidas e plenamente aceitas de dominação: Deve-se, antes, fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global (FOUCAULT, 1996, p.184). 11 O que talvez seja o cerne da questão do poder, para Foucault, é a capacidade que ele possui de construir saber, técnicas, métodos etc. Para ele, o poder passa longe de ser apenas uma forma de repressão, algo que atua como uma espécie de superego, apenas censurando os sujeitos sobre os quais exerce sua dominação. Nas palavras do autor, [...] se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo - como se começa a conhecer - e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares (FOUCAULT, 1996, p.148). Podemos, desta forma, traçar um paralelo entre a formulação de saberes e o exercício do poder. Trazendo a um plano mais palpável, não é exagero dizer que o poder exercido sobre os mentalmente insanos, nos asilos e hospícios, ajudou a criar as bases do que hoje conhecemos por psiquiatria; que o poder exercido sobre os doentes nos hospitais ajudou a medicina a obter sua faceta atual; que o poder exercido sobre criminosos na prisão originou a criminologia. Resumindo: o poder forma saber e, através dele, produz discursos (FOUCAULT, 1996, p.8). Buscamos, ao longo deste tópico inicial, apresentar os conceitos basilares à compreensão da perspectiva foucaultiana acerca de discurso e poder. Tais noções fundamentarão a discussão central deste trabalho, ou seja, analisar as relações de poder, seus mecanismos de reprodução e legitimação em “1984”. 1.1 O DISCURSO E A DISCIPLINA COMO FERRAMENTAS DE NORMALIZAÇÃO SOCIAL Dando prosseguimento aos temas abordados anteriormente, este tópico irá discorrer sobre como o discurso atua na sociedade. Será apresentada uma forma diferente de poder, sutil e muitas vezes imperceptível: a disciplina. Também veremos aqui como o poder disciplinar consegue legitimar seus discursos e criar na sociedade um efeito chamado por Foucault (1996) de normalização. Isso nos ajudará a entender melhor a maneira como os discursos são inseridos em nossa sociedade e como acabam ganhando, muitas vezes, status científico. O poder perdeu sua aparência de violência a partir do século XVIII, com o surgimento das técnicas disciplinares. Os suplícios e execuções teatrais em praça 12 pública foram rapidamente substituídos por uma forma universal de punição: a prisão. Dentro da prisão, opera o poder disciplinar, que consiste, primeiramente, em uma organização do espaço. “O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir” (FOUCAULT, 1987, p.123). É a partir dessa necessidade de dividir os espaços a fim de hierarquizar as vigilâncias que a arquitetura e o urbanismo adquirem características novas (FOUCAULT, 1987, p.165-166). As construções, que em períodos anteriores tinham objetivos predominantemente estéticos (igrejas, templos, monumentos) ou utilitários (castelos, fortes), passam por uma reformulação na sua razão de existir. Cidades operárias, asilos, casas de educação: todos se organizam de forma a permitir o melhor funcionamento do poder disciplinar. “A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório” (FOUCAULT, 1996, p.106). Complementando, Foucault (1996, p.106) nos diz que “a disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos”. Logo, podemos entender como pontos cruciais para o funcionamento do poder disciplinar a hierarquia e a vigilância. A primeira encarrega-se de dividir os sujeitos em categorias, a segunda garante que os próprios sujeitos mantenham o poder disciplinar em funcionamento. [...] um poder múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa ‘rede’ sustenta o conjunto, e a perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados (FOUCAULT, 1987, p.170). Sai de cena o poder teatral, que se baseava em demonstrações de força e dominação, para subir ao palco um poder sutil, que faz com que os próprios sujeitos exerçam coerções entre si. A genialidade do poder disciplinar está justamente em transformar todos em instrumentos de fiscalização do comportamento alheio, eliminando, assim, o uso direto da violência como instrumento de repressão. Isso só dá certo e se mantém em funcionamento em razão de uma lógica de recompensas e promoções que permitem melhores posições na hierarquia disciplinar (FOUCAULT, 1987,p.174). Podemos exemplificar através da seguinte situação hipotética: um preso, ao delatar a seus carcereiros o comportamento inadequado de outro preso, 13 garante, assim, o seu lugar como “bom”, ficando mais próximo de obter privilégios. Ele contribui para a manutenção da disciplina na prisão simplesmente pela expectativa de ser recompensado por isso. No âmbito dos discursos, podemos dizer que “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1996, p. 36). Além disso, para Foucault (1987, p.176), a disciplina normaliza. Essa normalização serve de alicerce para diferentes tipos de discursos, que se revestem de procedimentos e papéis a serem cumpridos por aqueles que falam (procedimentos e papéis que podem mudar devido à reatualização permanente das regras anteriormente citadas). Assim, instituições como a escola, por exemplo, encontram base para serem propagadoras de discursos doutrinários e, ao mesmo tempo, são locais de exercício do poder disciplinar oriundo de certos tipos de discursos (FOUCAULT, 1996, p.44-45). Podemos perceber que a disciplina, por meio de seu conjunto de regras e práticas normalizadoras, consegue legitimar práticas discursivas e, com isso, impor suas “verdades” ao restante da sociedade. Cabe refletir: como a produção dos discursos ditos verdadeiros parece estar condicionada às “verdades” aceitas em determinados meios da sociedade e, consequentemente, às normalizações impostas aos discursos pela disciplina, ela deve então, necessariamente, carregar em si traços de uma ideologia dominante. Marx e Engels podem nos auxiliar a compor melhor esse raciocínio: Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios da produção material dispõe também dos meios da produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante (MARX; ENGELS, 2007, p. 48). Se concordarmos com os autores, podemos visualizar uma relação direta entre a classe dominante e os pensamentos “aceitos” em uma sociedade. Essa relação direta, como explica o trecho, acontece porque a classe dominante detém os meios necessários à reprodução de seus pensamentos. E quais meios são esses? Para lançar luz sobre essa pergunta, devemos pular de Marx e Engels para Louis 14 Althusser, um filósofo francês que nos traz a ideia de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). “Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades que apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” (ALTHUSSER, 2003, p.68). Para o autor, entram na categoria de Aparelhos Ideológicos do Estado as igrejas, sindicatos, partidos políticos, meios de comunicação etc. Neste momento, é importante ressaltar a diferença nos pensamentos de Althusser e Foucault. O primeiro vincula poder com luta de classe e dominação, enquanto que, para o segundo, o poder se reproduz por meio dos discursos, vistos por Foucault como campos de batalha, onde toda relação humana implica uma disputa discursiva. Diferenciação feita, Althusser nos diz que função dos aparelhos ideológicos é reproduzir a ideologia da classe dominante (para os marxistas, a burguesia) às classes dominadas. A característica mais marcante dos aparelhos ideológicos de Estado é que eles não precisam utilizar violência e repressão: a ideologia basta para manter as massas sob controle. Outra característica importante dos AIE para Althusser (2003, p.69) é que eles pertencem, em sua maioria, ao meio privado. A última afirmação vai ao encontro ao que Foucault nos diz em um trecho de seu livro “A Microfísica do Poder”: O poder não está localizado no aparelho do Estado [...] nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, quotidiano, não forem modificados (1996, p.149). É necessário destacar que Althusser, filósofo de viés marxista, dá mais ênfase ao poder exercido pelo Estado que Foucault, que analisa o poder como uma relação constantemente exercida em diversos campos da sociedade. Entretanto, se traçarmos um paralelo entre o pensamento de ambos, podemos vislumbrar que os aparelhos ideológicos de Estado de Althusser exercem a mesma função de dominação que os mecanismos de poder que, para Foucault, atuam paralelamente ao Estado e em um nível muito mais profundo e cotidiano. Por outro lado, como comenta Terry Eagleton em sua obra “Ideologia” (1997, p.30), o conceito que Althusser, Engels e Marx nos apresentam de ideologia é limitado por enxergá-la sempre como formação dominante. Longe de invalidar a abordagem desses autores, Eagleton nos proporciona uma visão mais abrangente 15 do termo ideologia, na qual podemos inferir mais significados à palavra. Talvez a principal diferença entre os autores seja que Althusser, Engels e o Marx jovem tendem a dar um poder muito grande à ideologia, enquanto Eagleton nos apresenta diversos fatores de contrapeso, portanto os escritos de todos são edificantes à elaboração deste trabalho: As ideologias dominantes podem moldar ativamente as necessidades e os desejos daqueles a quem elas submetem; mas devem também comprometer-se, de maneira significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm. (EAGLETON, 1997, p.26). Essa breve passagem da obra de Eagleton é bastante similar aos conceitos apresentados anteriormente, porém a principal diferença está localizada no papel representado pelos dominados em relação a seus dominadores. Para o autor, uma ideologia dominante deve obrigatoriamente comprometer-se com as necessidades e desejos daqueles a quem domina para assim ficar plausível e atraente aos olhos da população, ou seja, aqui o poder dominante não aparece como algo infalível e supremo, mas sim como uma força que ocasionalmente precisa realizar concessões para manter-se nessa condição. De acordo com essa abordagem, os sujeitos não são retratados necessariamente como uma massa apática e iludida pelas crenças dominantes. Entretanto, o autor em seguida nos apresenta o que talvez seja a maior armadilha escondida sob a palavra ideologia: Um importante expediente utilizado pela ideologia para alcançar legitimidade é a ‘universalização’ e ‘eternização’ de si mesma. Valores e interesses que são na verdade específicos de uma época ou lugar são projetados como valores e interesses de toda a humanidade (EAGLETON, 1997, p.60). Assim sendo, podemos ter uma “visão de mundo” específica a uma classe social permeando as relações da sociedade como um todo. Nesse contexto, a ideologia aparece como algo tão natural e auto evidente que adquire o manto do “senso comum” e ninguém poderia imaginar uma organização diferente da sociedade (EAGLETON, 1997, p.62). A questão que logo é levantada pelo autor é a seguinte: como combater um poder que se tornou senso comum de toda uma ordem 16 social em vez de um poder amplamente percebido como opressivo? (EAGLETON, 1997, p.106). Isso também vai de encontro ao conceito de hegemonia do pensamento do filósofo marxista Antônio Gramsci, para quem hegemonia significa um espectro inteiro de estratégias práticas pelas quais um poder dominante obtém o consentimento ao seu domínio daqueles que subjuga (EAGLETON,1997, p.107). Para tal hegemonia ser mantida, o autor diz ser preferível que o poder permaneça permanentemente invisível e disseminado na ordem social na forma de hábitos, costumes e práticas espontâneas. Logo, é possível identificar o ambiente discursivo como um importante disseminador das ideologias. “Todo discurso tem como objetivo a produção de certos efeitos em seus receptores e é emitido a partir de uma ‘posição subjetiva’ tendenciosa”. (EAGLETON, 1997, p. 177). De certa forma, em termos mais grosseiros, tudo depende de quem está falando o quê e para quem. Apesar disso, ante o exposto até aqui, não podemos atribuir somente significados pejorativos ao termo ideologia, como acontece em boa parte da obra de Althusser, Engels e Marx, pois em certas situações ela pode significar uma espécie de “tomada de consciência”, por parte de um grupo social dominado, em relação à própria dominação a qual está submetido. Althusser, em uma linha de pensamento essencialmente nietzschiana (e um pouco contraditória em relação à sua própria obra) nos diz que “toda ação é uma espécie de ficção” (EAGLETON, 1997, p.146), ou seja: não podemos agir e teorizar ao mesmo tempo. Nossas ações divergem das ideias no momento exato da prática, o que de certa forma pode ser entendido como uma fragilidade nos sistemas de dominação ideológica: esses, embora capazes de exercer dominação, não seriam absolutos. Após ampliar nossa visão dos significados do termo ideologia, Eagleton concluí sua obra dizendo que, “se a teoria da ideologia pode assumir algum valor, este consiste em auxiliar no esclarecimento dos processos pelos quais pode ser efetuada uma libertação diante das crenças dominantes” (1997, p.195). Temos, então, uma série de elementos entrelaçados: discursos, poder disciplinar, ideologia, Estado, normalização etc. De acordo com alguns autores citados, podemos perceber o funcionamento permanente de uma intrincada rede de dominação, que garante o seu domínio e normaliza os membros da sociedade através da legitimação constante de seus próprios discursos, mas que, entretanto, 17 não é absoluta, como podemos perceber se nos afastarmos um pouco do viés marxista e observarmos o que outras correntes de pensamento têm a dizer sobre o tema. A fim de encerrar o tópico, podemos utilizar uma frase de Foucault que é bastante apropriada ao contexto. Ao falar sobre as ideias prontas que aceitamos imediatamente, sem problematização alguma, sínteses produzidas por terceiros, o autor nos diz: É preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises, algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas. (2000, p. 29). Ao longo deste tópico foi exposto o conceito de poder disciplinar, uma forma sofisticada de dominação. Falamos de como ele atua na criação e legitimação de discursos, como estabelece entre os sujeitos uma rede interligada de vigilância. Também abordamos a ideologia e como ela pode atuar na disseminação de discursos normalizadores, sendo que, para isso, utilizamos como embasamento o conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado de Althusser (2003). Além disso, utilizamos a obra Ideologia de Eagleton (1997) como uma espécie de contrapeso aos conceitos Althusser, autor que apresenta a ideologia fundamentalmente como um agente essencialmente subordinado ao poder dominante. A partir da elaboração de ideias que têm como alicerce o pensamento dos autores abordados neste tópico, é possível analisar a sociedade de uma maneira mais crítica, algo essencial para o desenvolvimento dos próximos capítulos. 1.2 AS RELAÇÕES DE PODER EM FOUCAULT O objetivo deste subtópico é aprofundar a discussão, já iniciada no subtópico anterior, sobre as relações de poder em Foucault. Tal conceito ocupa posição central na obra do filósofo francês, bem como na análise proposta por este trabalho. 18 É necessário, portanto, criar um espaço exclusivo para falar sobre ele, ainda que de forma breve. Pois bem, como já mencionado, Foucault (1996) não acredita no poder como uma entidade sólida e dotada de existência independente, mas sim em práticas e relações de poder que acontecem o tempo todo entre os sujeitos em uma sociedade. Dizer isso significa dizer que o poder é algo que se exerce, ou seja, um indivíduo pode, em determinado momento, estar sujeito a um poder superior ao seu e, em outro, estar exercendo poder sobre outrem. Logo, para Foucault (1996), o poder não está centralizado em lugares específicos, mas espalhado por toda a estrutura social. Tomemos um exemplo de natureza cotidiana para ilustrar as relações de poder: um professor, em sala de aula, exerce poder sobre seus alunos, dos quais se espera um comportamento respeitoso em relação ao mestre. Eles devem ouvir com atenção e falar no tempo certo, a fim de evitar interrupções. Em contrapartida, o professor deve transmitir aos alunos um conteúdo previamente estabelecido por uma série de diretrizes criadas pela própria escola e por órgãos governamentais responsáveis por regular a educação. A figura do professor é, portanto, capaz de exercer poder (sobre seus alunos) e, ao mesmo tempo, estar sujeita ao poder (da direção da escola, do governo, dos pais de seus alunos etc). A perspectiva de Foucault (1996) de enxergar o poder como um conjunto de relações eleva a luta de classes descrita por Marx (2007) a um patamar diferente. Enquanto o filósofo alemão enxerga a sociedade como a luta entre burguesia e proletariado, o filósofo francês acredita que todos estão em constante luta. Mas contra quem? Para Foucault (1996), a luta é de todos contra todos, ou seja, estamos constantemente sendo submetidos ao poder de outros e submetendo outros ao nosso poder. Para chegar nesse pensamento, Foucault teve em Friedrich Nietzsche sua principal influência, pois o filósofo alemão acreditava que todos os homens possuem o desejo de impor suas próprias vontades sobre outrem (NIETZSCHE, 2016). As relações de poder analisadas sob a ótica de Foucault (1996) deslocam a atenção do Estado, viés amplamente abordado por diversos pensadores, para as relações capilares que tomam forma na sociedade. Saímos, portanto, do plano macro de um Estado repressor para entrarmos no plano micro das relações entre 19 sujeitos, os quais, para Foucault (1996), podem ser responsáveis pela própria repressão ao endossarem os discursos dominantes. Foucault (1996) acredita ser utopia a ideia de um mundo no qual não se exerçam relações de poder pois, para ele, é impossível para o indivíduo se colocar de fora de alguma situação. Isso não implica, entretanto, que os sujeitos estejam presos e sem possibilidade de ação contra poderes abusivos. Entra aí outra faceta das relações de poder em Foucault (1996): a resistência. Para o filósofo, não existem relações de poder sem resistência. Ele acredita que a palavra resistência é essencial ao pensarmos nas relações de poder, pois ela tem capacidade de obrigar as relações de poder a se modificarem. Portanto, ao contrário do que sua fama de pessimista possa dizer, Foucault acreditava no potencial de resistência dos sujeitos contra poderes opressivos. A resistência é por ele apontada como a palavra-chave nas relações de poder, sendo possível, por intermédio dela, modificá-las e criar novas em seu lugar. Nesse contexto, assimcomo uma relação de poder com caráter de dominação pode possuir estratégias para manter seu status, a resistência pode ser a estratégia que um indivíduo sob o jugo de uma relação de poder abusiva pode utilizar para libertar- se. Outro ponto importante sobre as relações de poder consiste em sua capacidade de formar discursos e saberes. Em “Vigiar e Punir” (1987), Foucault nos faz refletir sobre as relações de poder em ambientes como escolas e prisões, apontando para como essas instituições possuem a capacidade de criar novos discursos a partir das relações de poder exercidas em seu interior. Para Foucault, o processo de exame avaliativo, por exemplo, “põe em funcionamento relações de poder que permitem obter e constituir saber” (1987, p.177). Ele também aborda essa temática em “Microfísica do Poder” (1996), obra na qual comenta como as relações de poder entre médico e paciente contribuíram para a construção do saber da medicina, assim como a relação entre louco e psiquiatra contribuíram à formação de discursos psiquiátricos hoje aceitos como verdadeiros, como já mencionado. Tratamos, neste breve subtópico, da visão de Foucault sobre as relações de poder. Para ele, as relações de poder são capilares e agem em toda a estrutura social. Também vimos que ninguém exerce permanentemente um poder de dominação, pois um indivíduo pode, em um aspecto de sua vida, exercer poder e, em outro, estar sujeito a ele. Por último, abordamos a questão da resistência que, 20 para Foucault, é essencial para a existência das relações de poder e vital para sua constante modificação, bem como o papel exercido pelas relações de poder na criação de discursos verdadeiros. 1.3 UMA SOCIEDADE VIGIADA: 1984 E O PANÓPTICO DE BENTHAM Este breve subtópico tem como objetivo esboçar possíveis relações entre a fictícia realidade distópica apresentada em “1984” e o modelo de vigilância contínua conhecido como panóptico, proposto pelo filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham no século XVIII. Bentham propôs sua ideia de panóptico pela primeira vez em uma série de cartas a um amigo, que posteriormente foram publicadas em formato de ensaio. Nessas cartas, ele descreve os pormenores daquilo que julga ser um modelo ideal de casa de inspeção. Um edifício circular, com celas distribuídas em andares sobre a circunferência, sem possibilidades de contato entre os prisioneiros. No centro de tudo há uma torre, responsável pela vigilância constante de cada detento (BENTHAM, 2008, p.20-21). A premissa básica do panóptico é ver sem ser visto. Toda a organização espacial do edifício é pensada a partir dessa afirmação, ou seja, para realmente funcionar um panóptico precisa ter um inspetor em posição central, atento aos menores desvios de comportamento por parte dos prisioneiros (BENTHAM, 2008, p.28). O autor também dá muita importância à organização espacial, vital para o funcionamento pleno do projeto, dedicando várias páginas a esse tema. É valido relembrar, nesse momento, o que Foucault (1987, 1996) nos diz sobre a importância da organização espacial para a criação e reprodução do poder disciplinar. Mas, na verdade, o panóptico não é apenas um modelo reservado a instituições de encarceramento. Ele é um sistema universal de vigilância, passível de utilização para os mais diversos fins, como escolas, hospitais, indústrias, bastando, para isso, a alteração de pequenos detalhes: Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos 21 propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confinamento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas (BENTHAM, 2008, p.19-20). Muitas das instituições citadas por Bentham que possuem possibilidades de utilizar o modelo panóptico são mencionadas em diversas passagens das obras de Foucault, porém com mais ênfase em “Vigiar e Punir” (1987), na qual o autor francês nos mostra como essas instituições utilizam-se do poder disciplinar para garantir sua hegemonia. A partir daí, é possível traçar certos paralelos entre o panóptico de Bentham e a sociedade permanentemente vigiada apresentada por George Orwell em “1984”. Antes, porém, é necessário fazer um breve comentário: a obra em questão será analisada com a devida profundidade neste trabalho após a finalização do embasamento teórico. Este tópico, portanto, delimita-se a estabelecer aqui mesmo, no referencial teórico, a relação observada pelo autor entre o conceito criado por Bentham e “1984”. Um dos sentimentos constantes do protagonista de “1984”, Winston Smith, é o medo de ser descoberto pelo Partido como um traidor. Uma pergunta pertinente a fazer neste caso seria esta: descoberto por quem? Pois bem, enquanto Bentham nos apresenta o vigilante como a figura central de seu panóptico, responsável por observar constantemente os presos e punir eventuais transgressores, Orwell, entretanto, consegue levar a vigilância a outro nível através do uso de equipamentos conhecidos por “teletelas”, como podemos perceber já nas primeiras páginas de “1984”: A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico (ORWELL, 2009, p.13). As teletelas nada mais são que uma espécie de televisão com capacidade de monitoramento. Na história, todos os membros do Partido eram obrigados a ter o equipamento em suas casas. Ou seja, é um poder similar àquele de vigilância constante pensado por Bentham, o panóptico, porém elevado a proporções extremas e capaz de manter uma população inteira sob controle. 22 A figura do vigilante de Bentham é em Orwell substituída pela Polícia das Ideias, instituição responsável pela vigilância constante das teletelas, sempre atenta ao menor indício de “pensamento-crime”, delito apontado na obra como origem de todos os outros delitos (ORWELL, 2009, p.29). O próprio nome “Polícia das Ideias” já deixa bem claro a função exercida por tal instituição, isto é: um monitoramento constante da população em busca de ideias vistas como subversivas pelo sistema vigente. Funcionando acima da Polícia das Ideias, temos ainda o mecanismo do Grande Irmão, governante fictício apresentado em “1984”, melhor expresso pela frase “o Grande Irmão está de olho em você” (ORWELL, 2009). Essa frase, presente em cartazes, panfletos e em praticamente todos os lugares, invoca uma característica do panóptico de Bentham mencionada pelo próprio autor como uma das principais vantagens oferecidas pelo sistema: a aparente onipresença do inspetor (BENTHAM, 2008, p.31). Além dos dois mecanismos já citados – a Polícia das Ideias e o Grande Irmão – o Estado totalitário apresentado por Orwell em “1984” conta com outro aparelho poderoso de vigilância constante: os próprios cidadãos, principalmente as crianças, são incentivados a denunciar qualquer um que apresente atitudes consideradas suspeitas. Essa lógica de denúncias só é mantida pois os denunciantes esperam recompensas pelas suas delações, ou seja, um mecanismobem similar ao descrito por Foucault (1987) quando ele nos fala sobre como o poder disciplinar utiliza métodos de recompensa e hierarquia para conseguir perpetuar-se. Temos um claro exemplo da ação desse mecanismo quando observamos a relação entre os membros da família Parsons, vizinha do protagonista Winston. O casal Parsons possui dois filhos, um menino e uma menina. Ambas as crianças são treinadas desde cedo para espionar os próprios pais em busca de sinais de crime- pensamento, motivo pelo qual a mãe, principalmente, vive em constante estado de alerta. E com razão: o Parsons pai acaba sendo denunciado justamente pela filha de 7 anos, após ela ouvi-lo dizer “abaixo o Grande Irmão” durante o sono (ORWELL, 2009). Assim como acontece no modelo panóptico idealizado por Bentham, em que os prisioneiros devem ter constantemente a sensação do olho do vigia repousando sobre eles, a sociedade de “1984” vive em constante estado de alerta. Por último, outra semelhança entre o panóptico de Bentham e a sociedade distópica de Orwell é 23 a sensação de solidão constante experimentada pelas pessoas. Em uma sociedade na qual todos são potenciais espiões, confiar e criar vínculos com outras pessoas é um ato similar a assinar a própria sentença de morte. Este tópico abordou o conceito de panóptico, criado pelo jurista inglês Jeremy Bentham, a fim de estabelecer uma conexão entre ele e a sociedade permanentemente vigiada apresentada por Orwell na obra “1984”. Foram citadas as características principais do panóptico, assim como esboçadas as relações imediatas que podemos traçar entre a obra o panóptico de Bentham e a sociedade distópica de Orwell. 2 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA E A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO A vida em sociedade passou por uma transformação marcante durante o século XIX, transformação essa que se intensificou no século XX e adquiriu proporções inimagináveis às épocas anteriores. Estamos falando do surgimento e propagação dos meios de comunicação de massa (MCM), termo comumente utilizado para descrever atividades comunicacionais mediadas por diferentes suportes e com potencial de atingir grande número de pessoas. Não existe, na nossa sociedade, nenhuma pessoa nascida em um momento anterior à comunicação de massa. Somos constantemente atingidos por rádio, televisão e jornal. A exposição aos meios é tão constante e rotineira para nós que parar para pensar em seus possíveis impactos é desafiador. Este capítulo se propõe a fazer exatamente isso, ou seja, a refletir sobre as características dos meios de comunicação de massa e como eles influenciam a nossa convivência em sociedade. 2.1 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE O primeiro tópico deste capítulo abordará conceitos, características e esboçará um pouco da história dos meios de comunicação de massa. A intenção aqui é, principalmente, fundamentar uma base teórica que explique o funcionamento e também a influência social exercida pelos supracitados meios desde o seu surgimento. Tal tarefa é relevante para este trabalho em razão de possibilitar uma maior reflexão sobre os meios de comunicação de massa e o papel por eles exercido na sociedade. Dado o contexto de “1984” e a maneira como a obra aborda a questão da comunicação, torna-se essencial refletir com maior profundidade sobre o tema. Como nos diz Thompson (1995), a invenção da escrita marcou um novo estágio na comunicação humana: antes oral e restrita a um espaço-tempo, a comunicação pôde, com a invenção desta tecnologia, expandir-se para cantos longínquos e sobreviver à ação do tempo. O próximo grande salto comunicacional humano aconteceria no século XV, com a popularização dos métodos de impressão à base de tipos criados por Johannes Gutenberg (1398 – 1468). Após a popularização das técnicas de impressão, o surgimento das primeiras “folhas de notícias”, como eram inicialmente chamados os jornais, foi 25 relativamente rápido e, no século XVI, países como a Inglaterra já fervilhavam de publicações desse tipo. Inicialmente pequenos e com características de empresas familiares, com o tempo os primeiros jornais europeus começaram a crescer e atingir públicos cada vez maiores. A expansão das linhas de trem no velho continente, durante o século XIX, foi um fator definitivo para ampliar a área de distribuição dos primeiros veículos impressos (THOMPSON, 1995). Essa expansão no alcance das publicações foi marcada pela concentração das empresas de comunicação nas mãos de cada vez menos pessoas, um fenômeno que, como aponta Thompson (1995), se mantém. Com o surgimento das tecnologias de difusão sem fio, no final do século XIX, o alcance dos meios de comunicação de massa aumentou dramaticamente: para se ter uma ideia, em 1922 já existiam mais de 570 estações de rádio operando nos Estados Unidos (THOMPSON, 1995). Antes de continuarmos, faz-se necessário estabelecer as diferenças entre os conceitos de público, multidão e massa. Antunes (2017) utiliza-se dos escritos do filósofo francês Gabriel Tarde (1843 – 1904), um dos primeiros autores a elaborar a questão, para nortear seu pensamento. Para Antunes, “o público constitui, simultaneamente, um espaço de afirmação da individualidade crítica” (2017, p.28). Um público é caracterizado por formar opiniões após uma discussão na qual os sujeitos possuem direitos praticamente iguais de expressar e receber opiniões. Pode ser entendido como o nível mais “alto” entre os três. A multidão, por outro lado, é vista como uma coletividade desunida, passiva e dominada por representações espetaculares. É normalmente desordenada (entre outras características) e suscetível a ser transformada em instrumento por determinados líderes. Já a massa, para Antunes, é o “momento supremo da alienação do indivíduo” (2017, p.28). A massa nega o criticismo individual e coletivo e “abraça” as representações fornecidas pelo espetáculo midiático. Depois desse breve desenvolvimento histórico, essencial à compreensão do tema deste capítulo, é necessário conceituar o que são os meios de comunicação de massa. Para Thompson, eles são “a produção institucionalizada e a difusão generalizada de bens simbólicos2 através da transmissão e do armazenamento da informação/comunicação” (1995, p.288). O autor também cita três elementos da 2 Thompson (1995, p.181) chama de formas simbólicas quaisquer ações, objetos e expressões significativas. 26 troca de mensagens entre produtores e receptores, importantes à apreensão do conceito supracitado. São elas: o meio técnico de transmissão, o aparato institucional de transmissão e o distanciamento espaço-temporal implicado na transmissão. Os meios técnicos de transmissão nada mais são que as diversas tecnologias através das quais as mensagens são armazenadas e transmitidas. Marshall McLuhan, por outro lado, entende a questão de maneira diferente e, para ele, “o meio é a mensagem” (2007, p.27). O autor entende os meios como forças independentes do conteúdo por eles veiculado: “os donos dos meios sempre se empenham em dar ao público o que o público deseja, porque percebem que a sua força está no meio e não na mensagem ou na linha do jornal” (MCLUHAN, 2007, p. 245), ou seja, a simples existência do meio garante sua permanência e continuidade. Para McLuhan (2007), a audiência está sempre interessada em consumir os meios porque eles se tratam de extensões dos sentidos humanos. Voltando à exposição dos elementos atuantes da troca de mensagens para Thompson, temos o aparato institucional, ou seja, o conjunto de articulações institucionais3 dentro das quaiso meio técnico é preparado, ou seja, editoras, emissoras etc. Consequentemente, são mecanismos de poder, pois dão o veredito sobre as formas simbólicas que merecem ser gravadas nos meios técnicos. Thompson os chama de “canais de difusão seletiva” (1995, p.224). Por último, temos o distanciamento espaço-temporal, responsável por vencer o espaço, como em uma transmissão de TV transmitida para o mundo inteiro, e também o tempo, pois, se gravada, a transmissão pode ser reproduzida anos depois (THOMPSON, 1995). O pensamento de Dominique Wolton pode ser útil para complementar com uma abordagem crítica os meios técnicos. Para Wolton, “na comunicação, o mais simples tem a ver com as tecnologias e mensagens, enquanto o mais complicado tem a ver com homens e sociedades” (2010, p.12-13). Ele critica pesquisas excessivamente voltadas ao estudo da tecnologia, em detrimento aos aspectos humanos da comunicação. Podemos encontrar a mesma crítica na obra de Cremilda Medina, a qual aponta um foco excessivo à melhora tecnológica e um certo descaso 3 As articulações institucionais são entendidas por Thompson (1995) como um conjunto de normas específicas às organizações responsáveis pelos meios técnicos, ou seja, emissoras, editoras etc. Essas organizações definem aquilo que merece ser publicado com base em suas normatizações internas, preferências ideológicas ou até mesmo na opinião do(a) dono(a). 27 com formação dos “recursos humanos responsáveis pela produção da informação” (1988, p.143). Na passagem a seguir, Thompson vincula os meios de comunicação à sociedade de mercado: O surgimento da comunicação de massa [...] é uma característica constitutiva fundamental das sociedades modernas. É um processo que esteve estreitamente interligado com o desenvolvimento do capitalismo industrial. É também um processo que transformou [...] as maneiras como as formas simbólicas circulam nas sociedades modernas. Com o surgimento da comunicação de massa, o processo de transmissão cultural torna-se cada vez mais mediado por um conjunto de instituições interessadas na mercantilização e circulação ampliada das formas simbólicas (1995, p. 277). Ou seja, “com a mercantilização das formas simbólicas, os canais de difusão seletiva adquirem um papel central no processo de valorização econômica” (THOMPSON, 1995, p. 224). A partir daí, podemos perceber a existência de uma faceta comercial atuando no cerne dos meios de comunicação de massa, abalando a visão de alguns teóricos liberais que os percebem como vigilantes críticos da sociedade, caso de Stuart Mill (1806 – 1873), como veremos logo adiante. No trecho a seguir, Medina nos apresenta uma questão mercadológica similar, porém com ênfase no papel das agências de notícias como centralizadoras das informações que chegam aos veículos ou, se utilizarmos a linguagem de Thompson, canais de difusão seletiva. O monopólio da informação representado pelas agências (de notícias) diminui muito a força do repórter na empresa jornalística de centros em industrialização como os brasileiros. A percentagem de informações coletadas por intermédio de agências é maior que as reportagens ou notícias produzidas pelos recursos próprios das redações. E isso chega ao ponto de até notícias nacionais virem via agência internacional (1988, p.84). Além de estarem submetidos à influência do mercado, os meios de comunicação de massa sempre receberam grande atenção por parte dos poderes governamentais, que deles se utilizaram desde o princípio para transmitir proclamações oficiais de vários tipos, além de procurarem reprimir a publicação de materiais considerados heréticos ou perigosos (THOMPSON, 1995). A participação 28 dos agentes do Estado na regulamentação dos meios de comunicação de massa fica mais clara no seguinte trecho: A história da regulamentação da comunicação de massa pode ser entendida como a história das tentativas dos agentes do estado para construir e impor mecanismos para a implementação restrita de formas simbólicas. Através da supressão da informação, do monitoramento da difusão, do controle ao acesso aos meios técnicos e da punição dos transgressores, os agentes do estado criaram uma variedade de mecanismos institucionais que limitam o fluxo das formas simbólicas e em alguns casos ligam a implementação restrita das formas simbólicas à busca de objetivos políticos claros (THOMPSON, 1995, p.225). Surge aí, fomentada por teóricos liberais e pela própria imprensa, a necessidade dos meios de comunicação de massa se desvencilharem do poder estatal, com o objetivo de garantir a independência e a livre expressão da opinião, pois, para essa vertente, a expressão livre da opinião através de uma imprensa independente é vista “como o meio mais importante através do qual uma diversidade de pontos de vista poderia ser expressa, e uma opinião pública esclarecida poderia ser formada” (THOMPSON, 1995, p. 324). Aqui, como citado acima, os meios de comunicação de massa adquirem caráter de fiscalizadores do Estado, de forma a denunciarem abusos de poder, visão do supracitado Stuart Mill. Thompson (1995) comenta que, após as instituições de comunicação se desvencilharem do poder estatal, viram-se presas à concentração de recursos e de poder do meio privado, ou seja, a questão da “livre expressão” se prejudicada pelos interesses comerciais. Podemos encontrar semelhante observação na obra de Wolton, na qual o autor nos diz que a concentração é inimiga do pluralismo e complementa que existe “o desafio essencial de reduzir a concentração das indústrias da informação e da comunicação, que são incompatíveis com o pluralismo” (2010, p.75). Colaborando ao raciocínio incitado por Thompson, Nelson Traquina nos faz refletir sobre como a maioria dos cidadãos enxerga especificamente o jornalismo, uma das facetas mais importantes da comunicação de massa: A objetividade, ou o que se aceita como seu oposto, a parcialidade, são conceitos que a maioria dos cidadãos associa ao papel do jornalismo e que são consagrados nas leis que estabelecem as balizas do comportamento dos órgãos de comunicação social, em particular do setor público (2005, p.162). 29 A partir daí, podemos perceber a existência, no âmbito social, de um pensamento coletivo que associa os meios de comunicação a um Quarto Poder, espécie de “cão de guarda” com a missão de proteger a população dos abusos de poder, uma questão a ser abordada com mais profundidade mais adiante, quando falaremos sobre o papel dos meios de comunicação de massa e do jornalismo na construção da realidade. Wolton desmistifica esse pensamento que heroifica o jornalista ao classificá-los como intermediários e contrapoderes: “o jornalista não é amigo do cidadão nem o amigo do poder, tampouco do juiz” (2010, p.72). O autor enxerga a figura do jornalista como alguém que precisa combater em duas frentes e atuar como um avalista da honestidade, alguém responsável por realizar a triagem em um universo repleto de informações. Thompson (1995) chama a atenção para como os meios de comunicação de massa rompem a relação entre produtor/receptor existente em uma conversação normal, uma vez que os receptores têm pouca possibilidade de retribuir. Para o autor, seria mais apropriado falar em “transmissão” ou “difusão” que em comunicação. Wolton corrobora essa visão ao explicar a comunicação como algo que “remete à ideia de relação, de compartilhamento, de negociação” (2010, p.19), algo inexistente (pelo menos quanto aos dois primeiros) na “relação” estabelecida por intermédio dos meios de comunicação de massa. Além disso, para Thompsonos meios de comunicação de massa são responsáveis por mediarem a relação dos membros de uma sociedade com os acontecimentos do mundo, ou seja, os meios modificam, através daquilo que transmitem ou deixam de transmitir, a maneira como as pessoas agem e reagem às situações. Os meios técnicos exercem um papel fundamental para os meios de comunicação de massa: Novos meios técnicos tornam possíveis novas formas de interação social, modificam ou subvertem velhas formas de interação, criam novos focos e novas situações para a ação e interação, e, com isso, servem para reestruturar relações sociais existentes e as instituições e organizações das quais elas fazem parte (THOMPSON, 1995, p. 296). Complementando o raciocínio de Thompson sobre os meios técnicos, McLuhan diria que “qualquer invenção ou tecnologia é uma extensão do nosso corpo” (2007, p.63). O autor também comenta que o surgimento de novas 30 tecnologias costuma gerar um ambiente de desconfiança, trazendo às tecnologias predecessoras características de obras de arte. Ou seja, as próprias interações sociais são afetadas pelos meios técnicos utilizados para a comunicação. Ainda que, como já dito por Wolton (2010) e Medina (1988), estudar somente a tecnologia não seja o suficiente para explicar a comunicação. Um determinado programa de televisão, por exemplo, pode virar assunto entre colegas de trabalho, ou seja, uma interação social passa a existir em razão dos meios de comunicação de massa. A cultura moderna, para Thompson (1995, p. 297), é “uma cultura4 eletronicamente mediada, em que os modos de transmissão orais e escritos foram suplementados - e até certo ponto substituídos - por modos de transmissão baseados nos meios eletrônicos”. Vale mencionar o que Hohlfeldt, Martino e França nos dizem sobre os meios técnicos: “toda informação pressupõe um suporte, certos traços materiais (tintas, ondas sonoras, pontos luminosos...)” (2010, p.17). Esses suportes (televisão, rádio, papel) são imprescindíveis, pois tornam possível a comunicação. Sozinhos, entretanto, não comunicam nada: “o suporte não é o conteúdo” (WOLTON, 2010, p.36). Temos em Marshall McLuhan uma abordagem interessante e divergente aos demais autores em relação aos efeitos causados pelos diferentes suportes encarregados de transmitir mensagens. O autor divide os meios em duas grandes categorias: quentes e frios. Resumidamente, os primeiros tendem a não exigir grandes participações do público, uma vez que o conteúdo deixa pouca margem de interpretação (caso do rádio) e os segundos exigem participação constante do público para decifrar a mensagem (caso da televisão) (MCLUHAN, 2007). Para o autor, o rádio é um meio quente com características de tambor tribal: na transmissão radiofônica não existem pontos de vista conflitantes, apenas a uniformidade da mensagem, um espaço propício aos discursos inflamados. McLuhan comenta que, se a televisão já fosse popular na Alemanha durante a década de 1930, provavelmente Hitler não teria alcançado a projeção que conseguiu por intermédio do rádio. O autor justifica essa afirmação ao dizer que a televisão é um meio frio e, por possuir imagens, não valoriza as mesmas características do 4 O autor utiliza uma concepção simbólica de cultura. Para ele, ““cultura é o padrão de significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetivos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções, crenças (THOMPSON, 1995, p. 176). 31 rádio (personalidade, caricatura). Para ele, “a televisão é menos um meio visual do que tátil-auditivo, que envolve todos os nossos sentidos em profunda inter-relação” (MCLUHAN, 2007, p. 378). É possível perceber as oportunidades que os meios de comunicação de massa criaram em relação à publicidade – tanto no sentido de “tornar público” como no sentido mercadológico, este último mais recente. Ao mesmo tempo, essas oportunidades vêm acompanhadas das dificuldades que uma maior acessibilidade e participação podem trazer ao exercício do poder, tanto no domínio público quanto privado. Ou seja, podemos vislumbrar uma correlação entre o controle da informação e o poder e, de certa forma, como esse poder pode ser dependente de tal controle (THOMPSON, 1995). O trecho a seguir expõe isso claramente: A visibilidade criada pela comunicação de massa é uma faca de dois gumes: hoje, líderes políticos podem procurar manipulá-la continuamente, mas eles não podem controlá-la totalmente. A visibilidade mediada é uma condição inevitável da política institucionalizada na era moderna, mas ela tem consequências incontroláveis para o exercício do poder político (THOMPSON, 1995, p. 322). Se nas antigas sociedades absolutistas o poder era exercido longe dos olhos da população, agora ele torna-se visível através das figuras dos políticos e agentes do governo. Ao mesmo tempo, isso não significa que o poder deixou de ser exercido em segredo, porém, podemos dizer, de acordo com o autor, que esse segredo é mais difícil de ser mantido. Existe, portanto, uma preocupação constante por parte de quem exerce o poder com aquilo que é comunicado. Surge, também, uma necessidade impensável na época de reis absolutistas e imperadores poderosos: a comunicação (ainda que mediada) entre líderes e população. A relação entre líderes políticos e sujeitos se tornou crescentemente mediada pela comunicação de massa, isto é, tornou-se uma forma de quase-interação5 mediada tecnicamente através da qual os laços de lealdade e afeto (bem como sentimentos de repugnância) podem ser criados (THOMPSON, 1995, p. 321). 5 O autor chama de quase-interação mediada o fato de que os receptores são capazes de vivenciar determinados acontecimentos através das transmissões feitas pelos meios de comunicação de massa, mas, como essa relação é predominantemente unidirecional, a capacidade de resposta é limitada (THOMPSON, 1995, p.317). 32 Podemos vincular o trecho acima à dualidade entre as figuras respectivamente adoradas e odiadas em “1984”, o Grande Irmão e Goldstein. O primeiro é sempre mostrado como salvaguarda da nação e detentor de todas as virtudes, enquanto o último é sinônimo de toda a corrupção e baixeza, sendo, inclusive, alvo de uma atividade de ódio coletivo conhecida como “Dois Minutos de Ódio”, na qual a população da Oceania desconta toda a sua raiva na figura de Goldstein, uma metáfora poderosa para como sentimentos podem ser criados mediante a influência dos meios de comunicação (ORWELL, 2009). O comportamento descrito pode nos remeter a uma palavra já bastante utilizada no decorrer deste trabalho: a ideologia. Thompson nos diz que: O desenvolvimento da comunicação de massa aumenta, significativamente, o raio de operação da ideologia nas sociedades modernas, pois possibilita que as formas simbólicas sejam transmitidas para audiências extensas e potencialmente amplas que estão dispersas no tempo e no espaço (1995, p. 343). Se somarmos isso à baixa possibilidade de retorno que os receptores das mensagens mediadas possuem em relação aos produtores, podemos perceber como os meios de comunicação de massa podem servir aos interesses mais diversos, ou aos poderes mais diversos. Neste tópico abordamos de forma resumida a história dos meios de comunicação de massa, com o objetivo de entendermos como eles se tornaram o que são: presenças constantes na vida dos membros da sociedade. Foram utilizados conceitos de John B. Thompson (1995) a fim deexplicar a forma como os meios de comunicação modificam as experiências de interação social humana e interferem nas relações de poder. O autor também foi essencial para conceituar toda a construção teórica aqui elaborada a respeito das principais características dos meios de comunicação de massa. Além disso, foram abordados autores como Wolton (2010), Medina (1988) e Hohlfeldt, Martino e França (2010) a fim de apresentar uma visão complementar a Thompson. McLuhan, em contrapartida, foi utilizado para demonstrar a existência de visões discordantes sobre a comunicação. 33 2.2 O PAPEL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA E DO JORNALISMO NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE Este tópico buscará discutir sobre como a influência e as formas de atuação dos meios de comunicação de massa podem influenciar a noção de “realidade” em uma sociedade. Para embasar e ampliar as perspectivas deste trabalho, serão abordados conceitos consagrados há mais de meio século pela comunidade acadêmica dedicada aos estudos na área da comunicação, tais como a teoria do agendamento e outros. É necessário, primeiramente, definir com quais significados a palavra “realidade” será mencionada no decorrer deste tópico, pois trata-se de um conceito extremamente escorregadio e com potencial de render, sozinho, uma bibliografia própria. Pois bem, isto dito, a palavra “realidade”, no contexto deste trabalho, refere- se a uma situação de vida compartilhada por uma sociedade, ou seja, sujeitos membros de uma comunidade com características e valores similares, convivendo em razoáveis padrões de organização social, possuidores de uma certa noção do permitido/proibido no contexto no qual se encontram. Várias perguntas imediatamente surgirão logo após a leitura do trecho acima, porém algumas são centrais ao desenvolvimento deste trabalho e, por isso, devem ser priorizadas, como por exemplo: quais fatores influenciam uma sociedade acerca de sua percepção daquilo que é “real”? Segundo Hohlfeldt, Martino e França (2010), a nossa relação com a realidade não se dá de forma direta, “mas sim mediada por imagens que formamos em nossa mente. Desta forma, percebemos a realidade não enquanto tal, mas sim enquanto a imaginamos” (p.192). Podemos notar a grande carga de subjetividade escondida por trás da palavra realidade, que à primeira vista se apresenta a nós como algo óbvio e concreto. Prosseguindo, Traquina nos diz que “a notícia, dando vida ao acontecimento, constrói o acontecimento e constrói a realidade” (2005, p.174). Ora, se pensarmos na capacidade de difusão de informação que os meios de comunicação de massa citados no tópico anterior possuem, podemos perceber o poder potencial que esses meios carregam. A Teoria do Espelho foi a primeira a surgir para explicar a atividade jornalística, seus produtos e efeitos. Neste modelo, o jornalista aparece apenas como um comunicador desinteressado, cuja única missão seria a de reportar a 34 realidade. Proposta no início do século XX, essa premissa segue bastante popular entre os próprios jornalistas, que relutam em admitir publicamente a presença de subjetividade em suas reportagens (TRAQUINA, 2005). O espelhamento, entretanto, não é uma hipótese plausível, como bem nos mostra Traquina ao adotar outra perspectiva teórica e conceituar o jornalismo como “a realidade, mas uma realidade muito seletiva, construída através de inúmeros processos de interação social entre os profissionais do campo jornalístico” (2005, p.205). Interações essas com as fontes (possuidoras de interesses próprios), com outros jornalistas e com a própria sociedade. Traquina (2005) nos diz claramente: o acesso aos meios de comunicação é um poder. Como já mencionado neste trabalho, os poderes políticos e/ou econômicos sempre buscam controlar e/ou influenciar de alguma forma os meios de comunicação, basta termos em mente as primeiras pesquisas feitas nos Estados Unidos sobre a comunicação, financiadas por grandes empresas e organismos políticos, indicando o interesse dessas esferas da sociedade na comunicação (MEDINA, 1988). Baseados nos conceitos de campos sociais descritos por Bourdieu (2000) e amparados novamente por Traquina, podemos dizer que “o campo jornalístico constitui um alvo prioritário da ação estratégica dos diversos agentes sociais” (2005, p.186). A partir do exposto, fica explícita a ingenuidade (ou desonestidade) da hipótese do espelhamento. Na década de 1950 surgiu a teoria do gatekeeper6, teoria que explica a atividade jornalística com base no poder do jornalista de decidir o que deveria ou não ser publicado. De acordo com a teoria, o jornalista seria uma espécie de porteiro, com o poder de decidir quais notícias publicaria ou deixaria de publicar. Mais claramente: Nesta teoria, o processo de produção da informação é concebido como uma série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates7, isto é, ‘portões’ que não são mais do que áreas de decisão em relação às quais o jornalista, isto é, o gatekeeper, tem de decidir se vai escolher essa notícia ou não (TRAQUINA, 2005, p.150). 6 Porteiro. Tradução livre. 7 Portões. Tradução livre. 35 Ainda que criticada por analisar a produção de notícias apenas do ponto de vista de quem as produz, sem levar em conta fatores burocráticos dentro dos veículos, a teoria do gatekeeper já representa um grande avanço em relação ao espelhamento, principalmente por trazer ao jogo a questão subjetiva do jornalista, antes visto como uma espécie de estandarte da objetividade. Atualmente, é mais aceita a ideia de notícia como uma realidade construída, sujeita aos critérios subjetivos inerentes ao seu processo de criação. É importante mencionar que as notícias são criadas por jornalistas e esses profissionais formam uma comunidade interpretativa própria, ou seja, um grupo unido por interpretações compartilhadas de realidade (TRAQUINA, 2005). Podemos vincular a subjetividade do jornalista ao que Bourdieu nos diz sobre os óculos de percepção: “os jornalistas têm lentes especiais através das quais veem certas coisas e não veem outras, e através das quais veem as coisas que veem da forma especial por que as veem” (1998, p.77). Tendo isso em mente, é interessante mencionar a teoria do agendamento midiático ou agenda setting8. Essa teoria postula que os meios de comunicação de massa pautam as conversas entre os membros de uma sociedade através daquilo que transmitem. Assim, incluímos em nossas preocupações cotidianas assuntos que não chegariam a nosso conhecimento se não fosse a ação midiática. A partir daí, podemos dizer que “o modo de cada indivíduo conhecer o mundo é modificado a partir da ação dos meios de comunicação de massa” (HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA, 2010, p.129). Para enriquecer o raciocínio acerca do agendamento, podemos utilizar o seguinte trecho: Mais informação não cria mais diversidade, mas, antes, mais racionalização e mais uniformização, pois a concorrência desenfreada leva paradoxalmente a que todos abordem a mesma coisa, da mesma maneira e no mesmo momento. A abundância não é sinônimo de verdade (WOLTON, 2010, p.50). Conectando a teoria do agendamento acima descrita com o que Bourdieu (1998) nos diz sobre as lentes de percepção do jornalista, podemos encontrar em Traquina um trecho com alta capacidade de gerar uma reflexão crítica sobre o papel dos meios de comunicação e dos jornalistas na sociedade: “o jornalismo e os 8 Controle/configuração de agenda. Tradução livre. 36 jornalistas podem influenciar
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