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FORMAÇÃO DE TRIBUTARISTA -- Planejamento Tributário -- 2012 Módulo IV 19 MÓDULO IV 1. EVASÃO FISCAL (Continuação) 1.7. ABUSO DE FORMA JURÍDICA E SIMULAÇÃO1 É fundamental a questão relacionada à eleição da forma jurídica para revestir o negócio realizado ou projetado. Também, nesse caso, o contribuinte que se encontrar na perspectiva de consumar determinado negócio poderá escolher, entre as opções legais, aquela que lhe oferecer a forma jurídica mais conveniente. Ao contrário, não seria lícito dissimular uma situação de fato e adotar forma jurídica que não correspondesse à realidade econômica subjacente. Depois de demonstrar que a elisão é legítima, A. R. Sampaio Dória conclui tratar-se de um negócio jurídico indireto, que se caracteriza por permitir que sejam atingidos fins diversos dos que lhe são peculiares. E acrescenta: “Essencialmente, inexistindo simulação, as modalidades de negócio indireto, tirante as hipóteses de fraude, são juridicamente válidas e submetidas à disciplina do negócio realizado, cujas necessárias conseqüências legais demonstraram aceitar as partes intervenientes.”2 1 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.66/68. 2 DÓRIA. A. R. Sampaio. Elisão e Evasão Fiscal. São Paulo, Edições Lael, 1971, p. 54. Módulo IV 20 É importante assinalar, contudo, não ser pacífica a tese da legitimidade da elisão. Ao discutir a interpretação da lei tributária, Amílcar de Araújo Falcão3 comenta que “em direito tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica, a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do caso concreto em face do comando resultante não só da literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito, da mens ou ratis legis”. Todavia, adverte o autor que, “para que tal aconteça, é necessário que haja uma atipicidade da forma jurídica adotada em relação ao fim, ao intento prático visado. Resulta daí que a interpretação econômica só é autorizada, em cada caso, quando haja uma anormalidade de forma jurídica para realizar o intento prático visado e, assim, obter a evasão do tributo”. A teoria da interpretação econômica das leis tributárias remonta ao Código Tributário Alemão de 1919, sendo seu autor Enno Becker. 3 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. São Paulo, Edições Financeiras, 1964, p. 70-77. Módulo IV 21 Conforme assinala Sampaio Dória, o direito brasileiro revela-se infenso a tal método do interpretativo, em virtude de sua notória inclinação legalista. O autor conclui as suas considerações a esse respeito, nos seguintes termos:4 “Vale dizer, o legislador brasileiro aceitou as premissas da teoria da prevalência econômica consagrada no Código Alemão (cuja exatidão, aliás, não se pode realmente negar), mas opôs sérias restrições à admissibilidade de todas as conseqüências delas extraídas. Especialmente opôs a reserva de que a assemelhação das situações econômicas idênticas para fins de tributação idêntica deve partir sempre do legislador, ao expressamente desprezar a diversidade de formas jurídicas sob que se apresentam, e nunca do aplicador da lei, que ou está adstrito à linguagem desta ou bem então inova-a, assumindo o papel de seu fautor. Aplicação singela do princípio da reserva da lei em matéria fiscal.” À parte essa limitação, se constitui uma das razões de legitimidade da elisão fiscal, estruturada dentro dos parâmetros já referidos, a doutrina da preponderância econômica pode despender no direito brasileiro suas demais virtualidades que, a título ilustrativo, resumiremos a seguir: a) a lei tributária pode expressamente alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceito e formas de direito privados (CTN, art. 109), salvo se utilizados, em normas 4 Op. cit. P. 62-63. Módulo IV 22 constitucionais ou de organização política e administrativa, para definir ou limitar competências tributárias (CTN, art. 110); b) havendo equivalência de conceituação formal e sendo uma das categorias jurídicas formais erigida como o protótipo legal da tributação, os efeitos tributários delas todas são idênticos (por exemplo, venda e troca); similarmente, se houver equivalência de conteúdo econômico, quando tal conteúdo seja expressamente adotado como o pressuposto de incidência legal (por exemplo, renda, circulação de riqueza); c) a invalidade, nulidade, anulabilidade, efetividade ou imoralidade do ato não lhe impedem as conseqüências tributárias próprias (CTN, art. 118 e incisos).” Mais adiante, acrescenta:5 “Num sistema jurídico como o brasileiro onde, a par das vantagens apontadas, a simulação fiscal é figura expressamente consagrada no direito positivo, a problemática da legitimidade da elisão, sob o ângulo da licitude dos meios e formas empregadas, no tocante à sua efetividade e compatibilidade com seu objeto, deve resolver-se segundo os princípios informadores da simulação e não segundo a teoria dos abusos da forma.” Assim como a doutrina, também a jurisprudência tem entendido não ser aceita a teoria da interpretação econômica em matéria fiscal, conforme consta da decisão proferida pela Justiça Federal, seção do Estado de Minas Gerais, em ação de mandado de segurança – Processo 5 Op. cit. P. 77-78. Módulo IV 23 nº 93.0000594-4 – impetrado com a finalidade de garantir a exclusão dos descontos, diferenças e abatimentos concedidos pelo vendedor do produto industrializado da base de cálculo do IPI, tal como exigido pela lei ordinária, objeto da impugnação. Na sentença, assegurando razão ao contribuinte, o magistrado, na fundamentação do julgado, dispõe que: “a fraude não se presume, prova-se, nem pode o legislador, por temê-la, violentar os que cumprem a lei, sem intenções evasivas, caso contrário teríamos o retorno da odiosa, por isso que arbitrária interpretação econômica da lei fiscal” (grifos nossos). 1.8. SIMULAÇÃO E FRAUDE DE ATOS JURÍDICOS6 Pressuposto básico do negócio jurídico é a declaração de vontade do agente, em conformidade com a norma geral, com o objetivo de produzir determinados efeitos jurídicos. Entretanto, o direito não cogita de uma declaração de vontade qualquer. Cuida sim de sua realidade, de sua conformidade com o verdadeiro querer do agente e de sua submissão ao ordenamento legal. A manifestação volitiva implica o surgimento de um negocio jurídico. Mas o resultado, isto é, a produção de seus efeitos jurídicos, condiciona-se à verificação das circunstâncias que envolveram tal manifestação. Isto porque pode ocorrer uma declaração de vontade, mas em circunstâncias tais que não traduzaa real atitude volitiva do agente ou persiga um 6 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.68/71. Módulo IV 24 resultado desconforme às prescrições legais (ato jurídico viciado ou defeituoso). Quando atingem a própria declaração de vontade (influências exógenas) os defeitos, denominam-se vícios de consentimento. São estes os casos de dolo, erro e da coação. Simulação e fraude são denominadas vícios sociais porque afetam o ato negocial, gerando a desconformidade do resultado com o imperativo da lei. Nestes casos, o negócio reflete a vontade real do agente, dirigida, porém, desde a sua origem, em direção contrária à norma legal. Há, por conseguinte, um negócio jurídico, existe uma declaração de vontade, mas esta, por fatores endógenos, traduz uma manifestação que objetiva a resultados condenados ou condenáveis. O conceito de ato jurídico simulado está previsto no Código Civil, nos seguintes termos: “Art. 102. Haverá simulação nos atos jurídicos em geral: I – Quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas das a quem realmente se conferem, ou transmitem. II - Quando contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira. III - Quando os instrumentos particulares forem antedatados ou pós-datados.” Módulo IV 25 “Art. 105. Poderão demandar a nulidade dos atos simulados os terceiros lesados pela simulação, ou os representantes do poder público, a bem da lei, ou da fazenda” (grifamos). Simulação é um ato que tem aparência normal, mas que efetivamente não busca o efeito que juridicamente deveria produzir (há uma declaração de vontade, mas enganosa). A simulação consiste, portanto, numa discordância entre a vontade e a sua declaração. É oportuna a respeito a lição de San Tiago Dantas7. “A parte sabe o que quer, tem representação precisa do negócio jurídico que está na sua mente, mas na hora de fazer a declaração de sua vontade, declara coisa diversa daquela que está no seu espírito, não por engano, nem por inexatidão na declaração da vontade, mas, porque, de fato, o seu propósito é declarar uma vontade diversa, isto é, aparentar uma situação jurídica diversa daquela que realmente lhe interessa. Uma pessoa quer fazer a outra uma doação, mas, por uma circunstância qualquer, não deseja que se pressinta a natureza gratuita, a liberdade desse ato, e então simula uma venda; dá ao ato jurídico a aparência de uma compra e venda e declara, por ex. que há um preço, que o preço foi pago, quando, na 7 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1977, p. 281. Módulo IV 26 realidade, nada disso se verificou. Tem-se, então, um ato simulado, isto é, um caso em que a uma vontade dirigida para a simulação de um certo ato corresponde uma declaração em desacordo fundamental com essa vontade.” E acrescenta o saudoso mestre: “Muitos casos levam à simulação dos atos jurídicos. Simula-se, às vezes, o ato jurídico para fraudar a lei, quando o negócio desejado não pode se realizar por algum motivo ou acarreta certas conseqüências jurídicas que se querem evitar. Dá-se, então, aspecto aparentemente diverso, para que a lei não constitua obstáculo ao que se quer. Quer-se apenas evitar o pagamento de certo imposto: quer-se economizar certa despesa fiscal, ou, então se tem mesmo em vista um ato qualquer lesivo de terceiro, ou mesmo um motivo inocente.” Do ponto de vista tributário, é importante lembrar, finalmente, que a doutrina distingue duas espécies de simulação: absoluta e relativa. É absoluta quando atrás do ato jurídico aparente não há qualquer outro ato jurídico dissimulado, como, por exemplo, quando alguém simula a transferência de propriedade de determinado bem, para terceiro, apenas para aparentar não ser proprietário. Módulo IV 27 Na simulação absoluta, o ato é “realizado para não ter eficácia, ou para ser anulado em seguida”8. É absoluta porque “o agente não tenciona realizar ato algum, nem o aparente nem qualquer outro”. Exemplo clássico de simulação absoluta em matéria fiscal é o seguro dotal, realizado, no passado, exclusivamente para lesar o fisco, pactuando-se, previamente, o cancelamento e a devolução do prêmio ao segurado.9 Diz-se relativa à simulação quando existem dois negócios: o aparente (simulado) e o oculto (dissimulado). Atrás do ato jurídico aparente, portanto, existe, nesses casos, outro oculto, que realmente as partes desejaram. Exemplo: disfarça-se a doação com aparência de venda. O negócio jurídico aparente é sempre anulável. Desaparecendo o negócio simulado, o dissimulado pode prevalecer se não for contrário à lei. É importante observar, porém, que, se terceiro interessado promove a anulação do negócio simulado, e a anulação se estende também ao negócio dissimulado, prevalece a norma do CTN, que dispõe: “Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II- dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.” 8 BEVILACQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1976, p. 225. 9 DÓRIA, Sampaio. Op. cit. P. 89. Módulo IV 28 Tanto na simulação absoluta como na relativa, as autoridades fiscais poderão exigir o imposto sobre o ato jurídico simulado, sem prejuízo da declaração de ilegalidade da economia fiscal pretendida. Quanto à fraude, define-se como uma manobra maquinada com o objetivo de prejudicar terceiro. Não se confunde com a simulação porque nesta a declaração de vontade se dissimula no alcance de um resultado que tem a aparência de ato negocial determinado, enquanto na fraude o ato é real, a declaração de vontade é conforme o querer íntimo do agente, tendo como efeito um resultado prejudicial a terceiro. Freqüentemente, ocorre quando um devedor em condição de insolvência: - pratica ato de liberalidade que beneficie um amigo ou parente; - aliena a preço vil bem qualquer; - concede privilégio a um credor mediante outorga de garantia real etc. Os atos fraudulentos são atacáveis pela ação denominada “pauliana” ou revocatória (rescisória). Na linguagem de Direito Tributária, é comumente empregada a expressão fraudar o fisco, com o sentido de sonegar. Vejamos, finalmente, como o legislador tributário encara a matéria de prova no ato simulado. A simulação é defeito do ato jurídico que se caracteriza por recair sobre a vontade; raros são os indícios objetivamente constatáveis. Módulo IV 29 Geralmente, a distinção entre o ato simulado e o ato legítimo depende tão-somente doelemento subjetivo. Daí a dificuldade de ser provada a simulação. O legislador tributário parece ter sentido essa dificuldade ao presumir a simulação, quando determinados atos são praticados entre determinadas pessoas e por preço não condizente com o corrente no mercado. É o caso da distribuição de lucros. A lei fiscal presume a distribuição disfarçada de lucros nas situações que taxativamente enumera. São alienações ou empréstimos atrás dos quais o legislador presume existir uma distribuição de lucros dissimulada. Todavia, diante da dificuldade de provar a simulação, o legislador determinou que, havendo tipicidade, se presuma a distribuição disfarçada de lucros, cabendo ao contribuinte provar em contrário. Não havendo tipicamente, porém, o fisco somente poderá impugnar o ato se provar a simulação (art. 924 do RIR/99). Assim, por exemplo, seria o caso de sociedade comercial que pretendesse distribuir lucro a seus sócios e quisesse evitar ou retardar o pagamento do imposto de renda. Para tanto, entregaria a quantia a seus sócios a título de empréstimo, cuidando para que fossem observados os requisitos legais que evitam a caracterização da distribuição disfarçada de lucros (art. 464 do RIR/99). Em tais circunstâncias, o fisco só poderia impugnar o ato se provasse a simulação. Ao disciplinar a distribuição disfarçada de lucros, o legislador tributário adotou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Certos negócios, realizados com outra pessoa jurídica, são considerados, para efeitos fiscais, como se tivessem sido realizados com o próprio controlador. Módulo IV 30 1.9. NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO10 Não raro, os contribuintes recorrem a determinado negócio jurídico com o objetivo de atingir finalidades diversas das que lhe são típicas. E, geralmente, o fazem para, desse modo, evitar a configuração do fato descrito na hipótese de incidência. Juridicamente, denomina-se negócio jurídico indireto o emprego de determinado instituto jurídico com o objetivo de alcançar finalidades diversas das que lhe são típicas. O negócio jurídico indireto e as conseqüências práticas do seu emprego são muito importantes para o estudo do direito tributário, particularmente no que concerne à definição de alguns princípios gerais de interpretação da legislação tributária. Antes de procedermos a uma análise do negócio jurídico indireto, com vistas a sua aplicação no direito tributário, recordemos, brevemente, a classificação dos fatos jurídicos, assim como o conceito de negócio jurídico. Na classificação dos fatos jurídicos, podemos distinguir os fatos que independem da vontade do sujeito e os fatos voluntários.11 Estes, que nos interessam em particular, incluem os fatos em que a manifestação de vontade é considerada como pressuposto dos efeitos previstos no ordenamento jurídico. Para Pontes de Miranda, o conceito de negócio jurídico serve 10 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.71/73. 11 RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1979, p. 20 ss. Módulo IV 31 “à distinção entre negócio jurídico e ato jurídico não negocial ou stricto sensu, naqueles casos em que o suporte fático do ato jurídico stricto sensu consiste em manifestação de vontade”(grifamos).12 Esclarece Pontes de Miranda que a manifestação de vontade é elemento essencial do suporte fático; enfatiza, porém, que o suporte fático é o negócio; “com a entrada deste no mundo jurídico, tem-se o negócio jurídico”. O aprofundamento do tema escapa ao propósito deste livro; interessa-nos a manifestação de vontade, elemento que justifica a distinção. O negócio jurídico caracteriza-se por ser um meio pelo qual as pessoas regulam as relações com terceiros, criando vínculos, que antes não existiam, com o objetivo de proteger os interesses individuais. No dizer de Betti:13 “El concepto del negocio como acto con el cual individuo dicta ley a sus intereses propios en las relaciones con otros, es también el único que permite estabelecer un satisfactorio criterio diferencial entre él y los demás actos lícitos de diversa naturaleza.” A vontade manifestada com o intuito de regular relações pessoais e de proteger interesses individuais defronta-se na prática com necessidades e situações novas: verdadeiros desafios à imaginação e à criatividade. Essa necessidade prática encontra no direito campo fértil, 12 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte geral. 4ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, p. 3-4, t. III. 13 BETTI, Emílio. Teoria General del Negocio Jurídico. Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, Traducción y Concordancias com el Derecho Español por A. Martin Perez, p. 66. Módulo IV 32 quando se observa que as funções dos institutos jurídicos não se esgotam naquelas que lhe são atribuídas como típicas. Na verdade, embora conservando elementos de sua estrutura, um instituto jurídico, no seu desenvolvimento histórico, apresenta-se capaz de satisfazer sempre a novas exigências da vida prática, através de funções e aplicações não imaginadas até então. Essa característica de elasticidade do ato jurídico, que lhe permite alcançar, indiretamente, funções não previstas na sua tipicidade conceitual, talvez seja a razão da denominação: negócio jurídico indireto. No dizer de Betti14, o problema prático do negócio indireto está na necessidade de aproveitar um tipo de negócio para a consecução de um fim distinto daquele que a sua causa típica representa; necessidade que nasce de carência de tipos mais adequados à disposição da autonomia privada. No planejamento tributário, essa necessidade nasce do intento legítimo – obrigação funcional, no caso do administrador profissional – de buscar o negócio mais econômico para a empresa. Há negócio indireto, portanto, quando as partes recorrem a negócio jurídico, cuja forma e disciplina se sujeitam, com o objetivo de alcançar, consciente e consensualmente, finalidades diversas das que lhe são típicas. As características do negócio indireto são: - negócio é seriamente querido pelas partes; - as partes visam, porém, alcançar um fim diverso do fim típico do negócio adotado; 14 BETTI, Emílio. Op. cit. P. 235. Módulo IV 33 - a forma e a disciplina jurídica – a que se sujeitam as partes – continuam a ser aquelas do negócio adotado. A lição de Ascarelli15 nos relembra que faz parte da própria vida e da evolução do direito preencher novas exigências, com velhos institutos. Ensina o mestre: “As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através de um velho instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece à nova matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro. As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo a nova função vive dentro da velha estrutura,e assim se plasma, enquadrando-se no sistema. Ascarelli16 lembra também que o direito antigo é particularmente rico de exemplos de negócio indireto. Já no direito romano, podemos colher o ensinamento de que um negócio pode, indiretamente, desempenhar funções que não correspondem à função típica decorrente da sua estrutura e pela qual ele se caracteriza. 15 ASCARELLI, Tulio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1969, p. 93. 16 Op. cit. P. 94-95. Módulo IV 34 1.10. NEGÓCIO INDIRETO E SIMULAÇÃO17 Negócio indireto não é negócio simulado.18 A simulação – como já vimos – caracteriza-se pela discordância entre vontade e declaração. Declara-se o que se não deseja, com o objetivo de dissimular. No dizer de Clóvis Bevilacqua – “a simulação é uma declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado.”19 No negócio indireto, ao contrário, as partes querem, efetivamente, o negócio que realizam, e desejam produzir, também, os efeitos ostensivamente indicados. Na simulação, as partes regulam, clandestinamente, as relações jurídicas de conformidade com a vontade querida, mas não declarada. No negócio indireto, o fim prático visado pelas partes é alcançado justamente por meio do negócio adotado e declarado. Não há nada a simular. Ao contrário da simulação, no negócio indireto as partes sujeitam- se à disciplina própria do negócio adotado. Embora visando a fins que não sejam os típicos do negócio adotado – fins confessáveis, declarados, notórios e lícitos – as partes também querem – e aceitam – os fins típicos do negócio adotado. 17 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.73/78. 18 ASCARELLI, Tulio. Op. cit. P. 110 ss. e BETTI, Emílio. Op. cit. P. 235. 19 BEVILACQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1976, p. 225. Módulo IV 35 Ascarelli20 cita exemplo do antigo direito germânico, que reproduzimos pela força de comunicação nele contida: “O antigo germano que adotava, a fim de constituir um herdeiro, queria efetivamente adotar, porque sem adoção não teria podido conseguir seu intento, embora o motivo dominante (e notório) da adoção não fosse o desejo de possuir artificialmente a prole, mas de constituir determinada pessoa sua herdeira.” A licitude do negócio jurídico indireto, em matéria tributária, que nos parece fora de discussão, se manifesta muitas vezes por iniciativa do próprio legislador. É a elisão induzida ou estimulada pela própria lei. De fato, a legislação sobre incentivos fiscais utiliza o negócio jurídico indireto e o estimula, visto que nem sempre a finalidade peculiar de certos negócios jurídicos é suficientemente forte, por si só, para torná-los atraentes. Exemplos desse tipo de lei vamos encontrar no programa de estímulo à formação profissional (ora extinto), à alimentação do trabalhador, à cultura, e os investimentos nas áreas da SUDENE e da SUDAM. Embora desejados, esses negócios jurídicos só o são, em muitos casos, porque também se deseja o efeito indireto do ato, não peculiar ao negócio realizado, consistente na redução do imposto a pagar. Não há, portanto, no negócio indireto nada de ardiloso ou imoral e muito menos qualquer traço de ilegalidade. Se são lícitos os meios e os processos utilizados, se os atos foram praticados antes da ocorrência do fato gerador e não houve simulação, é absolutamente lícito e legítimo o negócio jurídico indireto visando à economia fiscal. 20 Op. cit. P. 111. Módulo IV 36 Concluindo: o negócio indireto é lícito sempre que forem lícitos os fins visados pelas partes; sendo ilícitos tais fins, o negócio indireto será, obviamente, ilícito e, portanto, nulo. O negócio fraudulento constitui, pois, mera subespécie do negócio indireto. Um exame da legislação tributária, e em particular da legislação do imposto sobre a renda, nos revelará inúmeros casos em que a lei tributária altera o alcance de institutos de direito privado, e o faz, não raro, para evitara evasão fiscal que o negócio jurídico indireto poderia licitamente propiciar ao contribuinte. São exemplos de casos em que a lei tributária atribui efeitos tributários específicos a institutos de direito privado: - A norma que equiparava a rendimentos distribuídos, sujeitos ao imposto de renda, os valores entregues, a títulos de empréstimo, pela sociedade civil a seus sócios, quando a sociedade tiver por objetivo a prestação de serviços profissionais regulamentados (§ 2º do art. 2º do Decreto-lei nº 2.397, de 21 de dezembro de 1987, reproduzido no art. 641 do RIR/94, revogado pelo art. 88, XIV da Lei nº 9.430, 27-12-96). - A norma que, para fins de imposto de renda, equipara a pessoa jurídica à pessoa física que, em nome individual, explore habitual e profissionalmente atividade econômica, com o fim especulativo de lucro, mediante venda de bens e serviços, ou que pratique operações imobiliárias nas condições previstas em lei (art. 146 a 166 do RIR/99). - A norma que, para fins de imposto de renda, atribui efeitos, peculiares à compra e venda, aos contratos de locação com cláusula de opção de compra (art. 71 de Lei nº 4.506/64 e art. 351 do RIR/99). Essa norma veda a dedução de despesas com Módulo IV 37 aluguéis e royalties, quando o desembolso constitui aplicação de capital na aquisição do bem ou direito. - A norma que considerava lucro distribuído, sujeito ao imposto de renda, a parcela dos lucros e reservas – não distribuídos – proporcional ao valor das ações em tesouraria ou quotas liberadas, nas hipóteses de cancelamento, distribuição ou permanência das ações no patrimônio da empresa por prazo superior a 90 dias, contados da data da aquisição (art. 15 da Lei nº 7.450, de 1985, revogado pelo art.58 da Lei nº 7.713, de 1988). - A norma que tratava como lucro ou dividendo distribuído – e tributava como tal – a capitalização de lucros e reservas, caso houvesse restituição de capital social, nos cinco anos anteriores à incorporação de lucros e reservas dada pelo art. 2º da Lei nº 9.064, de 20-6-95, reproduzido no § 2º do art. 658 do RIR/99). - A norma que tratava, como se distribuído tivesse sido, o lucro retido na filial de sociedade estrangeira e na sociedade civil de prestação de serviços legalmente regulamentados. O desenvolvimento da argumentação acaba revelando outra questão que se apresenta naturalmente: pode a lei tributária alterar o alcance de institutos de direito privado? No capítulo destinado à interpretação da lei tributária, o Código Tributário Nacional dispõe no seu art. 110: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas LeisMódulo IV 38 Orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Aí está. Os institutos de direito privado, utilizados pela Constituição para definir ou limitar competências tributárias, não podem ser alterados pela lei tributária. Esta limitação decorre da própria hierarquia do nosso sistema jurídico, que concede às pessoas políticas a faculdade de produzir normas jurídicas sobre os tributos incluídos no campo de sua competência. A discriminação constitucional de rendas entre União, Estados e Municípios seria inútil se a lei infraconstitucional pudesse ampliar, modificar ou restringir os conceitos utilizados, pela Constituição, para demarcar as faixas de competências atribuídas às pessoas políticas. Isso significa que o legislador tributário pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos de direito privado, desde que não tenham sido utilizados para definir competências tributárias21. A lei pode, nesse caso, fazê-lo. Mas só a lei; não o aplicador da lei, mesmo porque, segundo o § 1º do art. 108 do CTN, o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. A evolução histórica do direito tributário brasileiro revela que o nosso ordenamento jurídico é pródigo em normas motivadas pela imaginação e pela criatividade do contribuinte. O negócio jurídico indireto, empregado habilmente com o objetivo de reduzir a carga tributária, acaba provocando a reação do legislador; surge então a lei para negar efeitos tributários a certos negócios. 21 COSTA, Alcides Jorge. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo, Saraiva, 1984. Estudos em homenagem ao prof. Ruy Barbosa Nogueira. P.226; e DÓRIA, Sampaio. Op. cit. P. 62-63. Módulo IV 39 O negócio jurídico indireto pode, portanto, ser licitamente empregado como instrumento de economia fiscal, enquanto a lei não o vedar específica e expressamente. Seria oportuno, agora, recapitular o que foi dito até aqui. Vimos que, nos termos e nos limites estabelecidos pelo art. 110 do CTN, a lei pode vedar o emprego do negócio jurídico indireto. Já vimos, também, que essa faculdade legal não se pode delegar ao aplicador da lei. Este não pode atribuir ao negócio jurídico, licitamente eleito pelas partes – a cuja disciplina estas se vinculam e cujos efeitos aceitaram – alcance ou efeitos estranhos aos previstos pelo direito privado, para, com base nessa interpretação, considerar ocorrida a hipótese de incidência do tributo. Não poderia, por exemplo, o aplicador da lei dizer – caso a lei não o houvesse dito antes, como disse de forma expressa – que o empréstimo a sócio caracteriza a hipótese de incidência do imposto de renda, por ter efeito fiscal equivalente à distribuição de rendimento, sempre que a mutuante for a própria sociedade, e sendo esta civil. Se assim procedesse, antes do Decreto-lei nº 2.397 o haver dito, o aplicador da lei estaria assumindo o papel do legislador e, exigindo tributo não previsto em lei, mediante o emprego da analogia. Isto, evidentemente, é vedado, não só pelo art. 108 do CTN, como também por todo o sistema jurídico, que consagra o princípio da reserva da lei em matéria fiscal. Dito isto, resta examinar por que há de ser específica a lei que veda o emprego do negócio jurídico indireto, como afirmamos antes. Mencionamos anteriormente vários exemplos de normas tributárias que alteram, especificamente, institutos de direito privado, e cuja motivação certamente terá sido “fechar portas” que o emprego do negócio jurídico indireto teria aberto. Módulo IV 40 Poderia, entretanto, a lei tributária dispor, simplesmente e de forma genérica, que o negócio indireto seria desconsiderado para efeitos fiscais, prevalecendo sempre a substância econômica do ato? Entendemos que não. E assim nos parece porque, nesse caso, a lei ordinária estaria investindo o aplicador da lei de poderes para alterar o conteúdo e o alcance de institutos de direito privado. E esses poderes a lei complementar só concedeu ao legislador e, assim mesmo, reservas, de vez que a lei ordinária só poderá fazê-lo quando os institutos de direito privado não tiverem sido utilizados para definir ou limitar competências tributárias. É o que diz o art. 110 de CTN. O art. 51 da Lei nº 7.450, de 23-12-85, reabriu essa questão ao dispor: “Art. 51. Ficam compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de capital, qualquer que seja a denominação que lhes seja dada, independentemente da natureza, da espécie ou da existência de título ou contrato escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma específica de incidência do imposto de renda.” O Parecer Normativo CST nº 46, de 17-8-87, que comentamos adiante, interpreta essa norma. O art. 51 da Lei nº 7.450, de 1985, não altera a definição, nem o conteúdo, nem o alcance de determinado instituto de direito privado. Refere-se, Módulo IV 41 antes, aos frutos (rendimentos e ganhos de capital) de quaisquer negócios jurídicos. Diz que todos os ganhos e rendimentos de capital incluem-se no campo de incidência do imposto de renda, independentemente da natureza ou da espécie. Não importa, tampouco, se existe ou não contrato escrito. A incidência depende, apenas, de que o ganho ou rendimento – qualquer que seja a denominação que se lhe tenha sido dada – decorra de ato ou negócio que, pela sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma de incidência do imposto de renda. Na Exposição de Motivos do Anteprojeto da Lei nº 7.450 está dito que: “o artigo 51 estipula que os rendimentos e os ganhos de capital são objeto de tributação, independente da denominação que lhes seja dada. Essa norma visa a coibir prática de operações simuladas com o objetivo de escapar à incidência do imposto” (grifamos). A evasão legítima, que melhor soaria como elisão ou economia fiscal, resulta da manipulação inteligente e lícita das opções e alternativas, que sempre existem, assim como do negócio indireto, com o objetivo de encontrar formas fiscalmente menos onerosas de enquadrar um fato econômico. Excluindo a hipótese de fraude, três são as hipóteses em que os efeitos tributários do negócio jurídico são considerados tributáveis, independentemente da forma adotada pelas partes: - no caso de simulação; - no caso de a lei atribuir efeitos tributários específicos a determinados negócios jurídicos regulados pelo direito privado; - no caso de prevalência de conteúdo econômico sobre a forma – a interpretação econômica. Módulo IV 42 Na interpretação econômica, o interprete é autorizado a ater-se à intenção empírica, sempre que houver anormalidade ou atipicidade de forma jurídica em relação aos fins visados22. Essa interpretação acaba tornando atípica a forma adotada, sempre que o fim visado é diverso dos que lhe são peculiares. E mais: invalida o negócio jurídico indireto como meio lícito de economia fiscal. Entretanto – e essa ressalva é fundamental – no sistema jurídico brasileiro, conforme já demonstramos, a assemelhaçãode situações econômicas idênticas, com desprezo pela forma jurídica adotada, há de ser necessariamente feita pelo legislador. Essa constatação tem duas conseqüências importantíssimas: - reduz a duas as três possibilidades alinhadas no parágrafo anterior; - dá validade ao negócio jurídico indireto como meio lícito para reduzir a carga tributária. Posto isto, cumpre, em seguida, indagar se a norma do art. 51 da Lei nº 7.450/85 simplesmente reafirma o repúdio à simulação, como esclarece a exposição de Motivos, ou – o que seria muito mais amplo – declara não aceitar o negócio jurídico indireto. Na primeira hipótese, inexistindo simulação, as modalidades de negócio indireto, submetidas à disciplina do negócio realizado, são juridicamente válidas e a legislação tributária (incluindo o art. 51) respeitaria a forma adotada, desde que não houvesse norma tributária específica atribuindo efeitos tributários específicos ao ato. Na segunda hipótese, mesmo que inexista simulação, os efeitos de quaisquer atos seriam tributados – independentemente da forma jurídica adotada – desde que pudessem ser assemelhados, pelo aplicador da lei, a efeitos previstos em norma específica de incidência do imposto de renda. 22 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. São Paulo, Edições Financeiras, 1964. P. 43. Módulo IV 43 1.11. ALCANCE DA NORMA DO ART. 51 DA LEI Nº 7.450/8523 O art. 51 da Lei nº 7.450, de 1985, dispõe que ficam compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de capital, qualquer que seja a denominação que lhes seja dada. Ora, rendimentos e ganhos de capital, não excluídos expressamente da tributação, são tributáveis. Se o contribuinte lhes atribuísse denominação diversa, estaríamos diante de um caso de fraude ou de simulação. Até aqui o legislador não acrescentou muito: o art. 102 do Código Civil já o havia dito, com mais propriedade e menos palavras. O final do art. 51, entretanto, acrescenta que os ganhos e rendimentos de capital serão tributáveis – ainda que se lhes denominem de forma diversa – desde que decorram do negócio, que, pela sua finalidade, produza os mesmos efeitos (econômicos) dos efeitos previstos (ganhos e rendimentos de capital) em norma que defina a incidência do imposto. Isso poderia significar que os rendimentos e ganhos de capital – ainda que produzidos por negócios jurídicos indiretos – estariam abrangidos pelo campo de incidência da norma. Examinaremos um caso concreto hipotético, com o objetivo de testar os conceitos abstratos alinhados até aqui. Imaginemos que os sócios (pessoas físicas) de determinada sociedade desejassem vender determinado bem, e que esse bem se encontrasse no ativo permanente da sociedade. Possuindo as ações há mais de cinco anos, essas pessoas certamente optariam pela venda das ações, cujo ganho de capital a lei expressamente excluía da tributação. Para viabilizar a venda de um único ativo, o que fazem referidos sócios? Cindem a sociedade, vertendo para a nova 23 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.78/79. Módulo IV 44 sociedade o ativo que pretendem alienar; em seguida, vendem as ações, que, embora novas, conservam a idade das ações da sociedade cindida. Qual o intuito dos sócios? Vender o ativo, evidentemente. Em vez de vendê-lo pela sociedade, venderam as ações, adotando a cisão para viabilizar o negócio, de forma mais econômica. Trata-se de evidente negócio indireto. As partes sujeitaram-se à disciplina da cisão e da venda de ações, a fim de vender o ativo que pertencia à sociedade, que lhes pertence. Houve ganho de capital? Sim, sem dúvida. Só que a lei exclui da tributação o ganho da forma como foi realizado. Não há fraude, nem simulação. Tampouco a norma do art. 51 teria o efeito de tornar tributável o negócio (venda de ações adquiridas há mais de cinco anos) que a lei expressamente excluía da tributação. Como já vimos anteriormente, a norma jurídico-tributária pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos de direito privado. Fazendo-o, porém, tem de ser específica. Não pode ser genérica, tal como é a norma do art. 51, pois, sendo genérica, teria um sentido orientador, e acabaria delegando ao aplicador da lei o poder que o Código Tributário Nacional conferiu à lei ordinária, tão-somente, e em alguns casos, apenas. Exclua-se, portanto, a hipótese de o art. 51 estar vedando o negócio indireto. E exclua-se essa hipótese porque o Código Tributário Nacional considerou-a privativa da lei ordinária, restringindo-a aos casos em que o instituto de direito privado não tenha sido usado para definir ou limitar competências tributárias. Não fosse esse o entendimento da norma, teríamos de concluir que o ganho ou o rendimento de capital seria, para efeitos fiscais, qualificado sempre Módulo IV 45 segundo determinado negócio jurídico padrão – eleito pela administração fiscal – qualquer que fosse o negócio jurídico eleito pelas partes. Esse entendimento é absurdo, além de vedado pelo Código Tributário Nacional. Pelo exposto, entendemos que o sistema jurídico brasileiro, o art. 51 da Lei nº 7.450/85 não tem outro efeito senão o de reafirmar ser inaceitável a simulação. O novo Regulamento do Imposto de Renda – RIR/99, aprovado pelo Decreto nº 3.000, de 26-3-99, no parágrafo único do art. 219 e no art. 727 reproduz o texto do art. 51 da Lei nº 7.450/85, anteriormente estudado. 1.12. O PARECER NORMATIVO CST Nº 46/8724 O Parecer Normativo CST nº 46, de 17-8-87, procura interpretar a norma do art. 51 da Lei nº 7.450, de 1985. Trata-se de matéria de importância fundamental para o planejamento tributário e vital para a segurança dos contribuintes. Examinemos, pois, esse pronunciamento normativo, iniciando a análise pela transição integral do seu texto. “Parecer Normativo CST nº 46, de 17-8-87, DOU de 18-8-87” IR – Operações simuladas objetivando a obtenção de vantagens fiscais – Aplicação de preceitos específicos da legislação 24 LATORRACA, Nilton. Direito Tributário : imposto de renda das empresas. São Paulo, Atlas, 2000, pp.79/82. Módulo IV 46 Ementa: A realização de operações simuladas, com o objetivo de elidir o surgimento da obrigação tributária principal ou de gerar maiores vantagens fiscais, não inibe a aplicação de preceitos específicos da legislação de regência, bastando que, pela finalidade do ato ou negócio, sejam obtidos rendimentos, ou ganhos de capital submetidos à incidência do imposto de renda, qualquer que seja a denominação que lhes seja dada. 1. Suscitam-se dúvidas sobre os efeitos tributários decorrentes de determinados procedimentos de contribuinte que, pretendendo furtar-se da imposição do imposto de renda ou obter maiores vantagens fiscais, ajustam negócios com outras pessoas, praticando formalmente ato jurídico sob certo manto legal que tem por objeto ato de natureza jurídica diversa. É o caso, por exemplo, deoperações que vêm sendo realizadas freqüentemente entre pessoas jurídicas integrantes de grupo de sociedades, mediante a transformação, incorporação, fusão e cisão de empresas controladas. 2. Em caso concreto, foi identificada transação em que certa pessoa jurídica A domiciliada no país, com capital inteiramente pertencente a grupo sediado no exterior, constituiu a sociedade B mediante cisão parcial de seu patrimônio, mantendo-se nas sociedades A e B Módulo IV 47 a mesma participação acionária dos investidores estrangeiros. Posteriormente, a empresa cindida A adquiriu dos acionistas alienígenas (também seus próprios acionistas) parcela do capital da empresa B, pretendendo remeter para o exterior o valor da transação, a título de retorno de capital, com o que não haveria incidência do imposto de renda. 3. O artifício engendrado carrega subjacentemente a intenção de realizar negócio entre as mesmas pessoas, que assumem simultaneamente posição de compradora e vendedora, adquirindo para si mesmas quotas de capital que já lhe pertence. O objetivo real é promover uma remessa de lucros para o exterior sem pagamento do imposto de renda, ao mesmo tempo que fica mantida intacta a participação acionária dos investidores estrangeiros, sem alteração do controle das duas empresas envolvidas nas transações, modificando-se apenas a forma de controle, que seria indireta na empresa B. 4. Esse tipo de artifício não pode produzir os proveitos fiscais planejados, mormente após a edição da Lei nº. 7.450, de 23-12-85, cujo artigo 51 introduziu na legislação do imposto de renda preceito que visa exatamente coibir a realização de operações simuladas com objetivo de escapar da incidência do imposto Módulo IV 48 ou obtenção de vantagens fiscais ilícitas. A norma legal estipula que os rendimentos e os ganhos de capital são objeto de tributação ‘qualquer que seja a denominação que lhes seja dada, independentemente da natureza, da espécie ou da existência de títulos ou contrato escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela sua finalidade tenha os mesmos efeitos do previsto na norma específica de incidência do imposto de renda’. 5. Assim, tendo em vista que a fórmula artificiosa empregada no caso descrito pretendeu promover de fato uma distribuição de lucros, tem plena aplicação a hipótese de incidência prevista no inciso I do artigo 554 do Regulamento do Imposto de Renda, baixado com o Decreto nº 85.450, de 4 de dezembro de 1980. 6. Em face do objetivo do artigo 51 da Lei nº 7.450/85 e de seus próprios termos, a realização de operações simuladas com o fito de elidir o surgimento da obrigação tributária principal ou de gerar maiores vantagens do que as proporcionadas pela lei fiscal, não deve inibir a aplicação de hipótese de incidência do imposto de renda sobre a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de rendimentos e ganhos de capital. Essas operações são procedimentos legais apenas no seu aspecto formal, mas ilícitas na medida Módulo IV 49 em que pretendem encobrir ato de natureza jurídica com efeitos tributários mais onerosos para o contribuinte; por isso mesmo, devem prevalecer os efeitos tributários do negócio dissimulado, ao revés daqueles decorrentes do ato jurídico formalizado apenas para gerar conseqüências entre as partes. A consideração superior, CST, em 17 de agosto de 1987. Juarez de Morais Assessor Aprovo. Publique-se e, a seguir, encaminhem-se cópias às Superintendências Regionais da Receita Federal para conhecimento e ciência aos demais órgãos subordinados. Jimir S. Doniak Coordenador do Sistema de Tributação O Parecer Normativo CST nº 46/87 fala em artifícios engendrados, operações simuladas e vantagens fiscais ilícitas. Parece-nos injusto dirigir tais expressões aos contribuintes que, por pagarem corretamente os impostos devidos, têm todo o direito de administrar e de planejar a sua relação obrigacional tributária, de forma a obter o máximo de economia fiscal lícita, como aliás é obrigação funcional de uma administração eficiente. Além de injusto, o Parecer Normativo confunde simulação com negócio jurídico indireto. Essa confusão de conceitos jurídicos vai prejudicar Módulo IV 50 definitivamente a conclusão do Parecer. Com isso, cria-se confusão desnecessária entre os contribuintes e gera-se um clima de insegurança. Não é esse o papel nem a finalidade do Parecer Normativo. No negócio descrito, no item 2 do Parecer, como sendo um caso concreto, o intento das partes é evidente e notório: pretendem retornar capital para o exterior. Não há nada a simular. A simulação – já vimos – caracteriza-se por uma discordância entre a vontade efetivamente desejada e a vontade declarada (cf. Tullio Ascarelli, Ferrara, Santiago Dantas). No caso citado no Parecer Normativo CST nº 46/87 não há essa discordância. As partes querem retornar capital para o exterior, realizam o negócio jurídico (cisão, seguida de compra e venda de ações) para viabilizar esse intento. A vontade declarada é autentica. O intento buscado é notório. Não há simulação nem em termos doutrinários, nem na letra da lei. De fato, recorrendo à norma do art. 102 do Código Civil, vamos concluir que não houve (pelo menos o Parecer Normativo não menciona ter havido): - conferência de direitos a pessoas diversas daquelas a quem realmente, se conferem, ou transmitem; - declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; - documentos antedatados ou pós-datados. As partes desejavam retornar capital para o exterior. A legislação vigente permite que esse intento seja realizado por várias formas. Entre essas, incluem-se: - a redução de capital; - a compra, pela sociedade, das suas próprias ações ou quotas; - a compra das ações de sociedade resultante da cisão. Módulo IV 51 As partes escolheram a cisão. Não simularam a cisão. Realizaram-na efetivamente e - ao que tudo indica – sujeitaram-se à forma e à disciplina jurídica do instituto. O negócio foi seriamente querido pela partes, que, no entanto, visaram fim diverso – mas lícito – da finalidade típica do negócio adotado (a cisão). Não obstante isso, as partes também quiseram e aceitaram os fins típicos da cisão. O caso concreto, trazido pelo Parecer Normativo, é um exemplo típico de negócio indireto. É possível – acenamos com a hipótese apenas para argumentar, pois o Parecer Normativo não o diz – que as partes não tenham adotado a solução óbvia – a redução de capital – porque esta torna tributáveis os lucros capitalizados nos cinco anos, anteriores e posteriores à redução de capital. É possível – ainda especulando – que tenham evitado a compra, pela sociedade, das próprias ações ou quotas, em virtude das restrições introduzidas pelo art. 15 da Lei nº 7.450/85. Optaram pela forma menos onerosa: a cisão, seguida de compra das ações do capital da sociedade resultante da cisão, pela própria sociedade cindida. Posto isto, resta indagar: pode o aplicador da lei tornar tributável na compra e venda, o rendimento ou o ganhode capital (admitindo a hipótese da tributação dos lucros e reservas capitalizadas nos últimos cinco anos) que seria tributável se tivesse sido adotada a redução de capital? A resposta é, evidentemente, negativa. O aplicador da lei não tem esse poder. O art. 51 da Lei nº 7.450 não o fez. Assim sendo, caso as autoridades administrativas considerem essa forma de elisão indesejável ou injusta terão de obter do legislador a edição de lei que, de alguma forma, equipare os efeitos da compra e venda de ações, em certas circunstâncias, aos efeitos da redução de capital. Módulo IV 52 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO MÓDULO IV: ASCARELLI, Tulio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. BETTI, Emílio. Teoria General del Negocio Jurídico. 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Paris: Livrarie Générare de Droit et de Jurisprudence, 1990. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado: parte geral. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979. M No módulo seguinte, entraremos especificamente na elisão fiscal ou planejamento tributário; suas diferenças com a sonegação fiscal; histórico; finalidades; operacionalização; análises do planejamento: econômico-financeira, jurídica, fiscal e contábil. Módulo IV 54 Realização: Av. Cândido Hartmann, 50 - Bigorrilho - 80730-440 - Curitiba, PR Tel.: (41) 3232-9241, ramal 6 - cursos@ibpt.com.br - www.ibpt.com.br
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