Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Clóvis Jair Prunzel Introdução Há uma frase de Arquimedes, filósofo e matemático grego, que diz: “Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”. Ao destacarmos aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero, queremos aprender algumas alavancas que Lutero usou e qual o seu ponto de apoio para mover o mundo em seu tempo e grande parte da segunda metade do milênio passado. Considerado a terceira personalidade do milênio passado pela revista norte-americana Life,1 atrás de Thomas Edison e Cristóvão Colombo, e pelo jornal canadense Toronto Globe & Mail como a segunda personalidade do milênio passado, atrás de Albert Einstein,2 Lutero usou ferramentas apropriadas no seu tempo, como a imprensa, a formação humanística, o ideal renascentista e a Escritura Sagrada como ponto de apoio para mover o mundo. 1 A lista da revista | Life pode ser encontrada no endereço: http://www.life.com/Life/millennium/ people/01.html 2 A lista pode ser consultada em http://www.adherents.com/people/100_millennium.html | 10 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero O presente capítulo é dividido em três partes: de 1483 a 1521, em que caracterizamos alguns aspectos que conduziram Lutero até a Reforma da Igreja; de 1521 a 1532, caracterizados pelos contornos e definição de Reforma propostos por Lutero; e de 1532 a 1546, período em que Lutero luta para preservar a identidade da Igreja.3 1.1 1483 a 1521 – A caminho da Reforma Filho de uma família que ascendeu socialmente, da agricultura para a mineração, Lutero cresceu em um ambiente de classe média. Entre os 8 irmãos, Lutero foi o segundo. Nascido em Eisleben, cidade com 4 mil habitantes, criado até os 14 anos em Mansfeld, cidade com 2 mil habitantes. Das relações familiares de sua infância, Lutero não guardou boas recordações. A rigidez dos pais por causa de sua concepção teológica (o castigo aplicado era uma punição pelos “pecados” praticados pelos filhos) ajudou Lutero a reavaliar sua relação com sua esposa e seus próprios filhos. Muito do que Lutero irá dizer sobre relações familiares é uma resposta à sua própria experiência com seus pais.4 A concepção teológica de Lutero da relação pai-filho mudou quando ele entendeu o significado do Quarto Mandamento a partir da vocação cristã. Quando da entrada no mosteiro, em 1505, a relação com o pai ficou extremada porque o pai queria que o filho fosse advogado. Mas Lutero o desobedeceu, escolhendo a vida monástica. Lutero reavaliou sua posição em 1521, reconhecendo o papel do pai no Quarto Mandamento e o dever do filho de obedecê-lo, e esta obediência está acima dos votos monásticos.5 Pessoalmente, 3 Estas três partes refletem a biografia de Lutero escrita por Martin Brecht, nos seus três | volumes. 4 Em uma carta escrita a seu filho Hans durante sua estada em Coburgo, durante a Dieta de | Augsburgo, Lutero demonstra seu lado paternal: mesmo sendo um pai severo, era ao mesmo tempo amigos dos filhos. O pai Lutero acompanhava seus filhos e dedicava tempo a eles. Utilizava-se da música para um maior entretenimento dos filhos. Ver LUTERO, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo (PEC) 335. 5 Durante sua estada no Wartburgo, Lutero publicou em 1521 | O Julgamento de Martinho Lutero sobre os votos monásticos, WA 8, 573, dedicando a obra ao seu pai. Repudiou os votos monásticos por cinco motivos: não são ordenados por Deus e ir além do que Cristo ordena não é fé, mas pecado; os votos monásticos entram em conflito com a fé, pois valorizam as obras, negando o valor do sacrifício de Cristo; os votos permanentes e obrigatórios violam a liberdade cristã. A vida no 11Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero as relações do pai com Lutero voltaram à normalidade após o casamento de Lutero em 1525. Agora Lutero poderia lhe dar um neto. Enquanto que seus pais nunca aprenderam a ler e escrever, Lutero e seus irmãos tiveram a melhor educação da época. A ascensão econômica dos pais em Mansfeld proporcionou um estudo fundamental apropriado para Lutero. O Trivium – gramática, lógica e retórica – e a música foram as principais habilidades que Lutero adquiriu na educação primária. Aqui temos a primeira experiência de Lutero com o humanismo. Mais tarde, quando Lutero e seus colegas em Wittenberg retiraram a formação escolástica da universidade, implantando as ferramentas do humanismo na formação teológica, a retórica clássica foi adicionada ao grego, hebraico e latim.6 Também, na pedagogia presente nos Catecismos, Lutero remonta ao humanismo aprendido nas suas experiências educacionais básicas.7 As condições econômicas da família também levaram Lutero à Universidade em Erfurt. O trote dos calouros na Universidade era vesti-los com uma máscara de macaco com dentes de porco. Através desta cerimônia de iniciação, os alunos saíam do animalismo irracional e entravam para o mundo da racionabilidade, o mundo acadêmico. A experiência de quatro anos (1501-1505) no humanismo renascentista na Universidade também foi crucial para Lutero, especialmente quando teve que tratar o assunto da capacidade do homem em questões espirituais no debate com Erasmo.8 mosteiro pode ser escolhida livremente, mas não é superior à vida de cristãos que trabalham no campo ou nas manufaturas; os votos monásticos transgridem o primeiro mandamento, pois substituem fé por obras, elevam os fundadores das ordens monásticas acima de Cristo e negam a responsabilidade do cristão para com o próximo; os votos vão contra o bom senso, pois, quando há motivos que tornam impossível o cumprimento de outros votos, são concedidas dispensas. Mas não se faz o mesmo no caso do celibato. 6 JUNGHANS, Helmar. “Luther’s Wittenberg.” In: MCKIM, Donald. | The Cambrigde Companion to Martin Luther, p.26. 7 VEITH JR., Gene Edward. | A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther, p.109, caracteriza o método de Lutero a partir das técnicas da educação clássica, o trivium: primeiro, aprendendo o básico de coração (gramática), segundo, entendendo o seu significado através da dialética, respondendo à pergunta: “O que significa isto?” (lógica) e, terceiro, assumindo e confessando diante da Igreja (retórica). O sucesso do Catecismo deveu-se a esta estrutura simples, sucinta, eloquente e profunda. Ver também VEITH JR., Gene Edward. “Catequese, Pregação e Vocação.” In: BOICE, James (editor). A Reforma Hoje. Uma convocação feita pelos Evangélicos Confessionais, p.75-93. 8 A resposta de Lutero a Erasmo quanto a suas proposições reformatórias estão no | De Servo Arbitrio de 1525. Para uma análise deste confronto, ver PRUNZEL, Clóvis Jair. “Lutero e Erasmo: o contato e a Divergência.” In: Igreja Luterana, 1994/2, p.159-178, e PRUNZEL, Clóvis Jair. “A 12 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Seis meses após concluir seu mestrado em artes, Lutero entrou no Mosteiro Agostiniano em Erfurt, o mais conservador da cidade. Treinado na teologia escolástica, que refletia a ética aristotélica, Lutero viu nesta atitude uma forma de minimizar seus problemas com Deus.9 Através dos votos monásticos da castidade, pobreza e obediência, Lutero tentou resolver seus problemas. Posteriormente, com consciência, Lutero iria afirmar que era o medo do juízo de Deus Todo-Poderoso, o pantocrator, o medo da prestação de contas no dia do Juízo Final. Era mais a alma do que o corpo que preocupava Lutero. Desde a entrada no mosteiro até a descoberta no texto bíblico da salvação pela graça em Cristo Jesus, Lutero teve a oportunidade de se aprofundar no escolasticismo teológico, através da leitura de textos que explicavam a Bíblia. Uma viagem a Roma também foi marcante para Lutero. A teologia medieval, do pagamento dos pecados através dasobras/sacrifícios humanas, ficou acentuada nesta visita. Após seu doutorado em Teologia, em 1512, Lutero se sentiu pressionado em relação à prática teológica corrente. Com ferramentas apropriadas aprendidas no humanismo e com responsabilidade de ser professor de Bíblia, Lutero começou a questionar práticas da Igreja. Suas aulas iniciais na recém-fundada Universidade de Wittenberg (1502) foram as leituras nos Salmos (1513/14), Romanos (1515/16), Gálatas (1516/17) e Hebreus (1517/18). Foi durante suas leituras nos Salmos que ele teve a “experiência na torre”, na qual percebeu o significado da “justiça de Deus através da fé em Cristo” do texto de Paulo. E esta descoberta levou Lutero à conclusão de que a fonte do estudo teológico não é a teologia escolástica e sim a Escritura Sagrada. A partir de 1516, com o surgimento do texto grego de Erasmo, Lutero começou a apontar problemas na tradução latina, a Vulgata. Também, apontou relação entre Lutero e Erasmo na área da educação.” In: HEIMANN, Leopoldo (org.). Lutero, o Educador. Fórum ULBRA de Teologia – volume 2, p.29-36. As consequências deste escrito levaram a uma separação do humanismo teológico do humanismo secular. A capacidade do homem em questões espirituais defendidas por Erasmo foi rechaçada por Lutero. O número de alunos na Universidade Wittenberg caiu drasticamente após este embate; muitos perceberam que o interesse de Lutero era teológico e não humanista. 9 ELERT, Werner. | The Structure of Lutheranism. Saint Louis: Concordia, 2000, dedica o primeiro capítulo de sua obra para descrever esta situação de Lutero até chegar ao consolo do Evangelho. Quando razão e culpa não fazem mais efeito, entra aí o evangelho, com sua doce Boa Nova. 13Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero problemas na própria edição grega de Erasmo, especialmente no texto de Romanos 3. Este princípio hermenêutico que Lutero estava usando trouxe à tona o seu primeiro escrito importante: Debate sobre a Teologia Escolástica.10 Nele propõe desbancar a teologia baseada em Aristóteles e na razão humana e colocar Cristo como o centro da mesma. O passo seguinte foi atacar as indulgências como fonte de recursos financeiros. O que estava em jogo nas assim chamadas 95 teses11 não era o poder e a autoridade do papa, mas sim a salvação gratuita encontrada em Cristo. A produção de Lutero nesta época caracteriza-se por demonstrar como uma teologia centrada na Bíblia pode ser feita e praticada. Se observarmos atentamente os escritos de 1520,12 vamos perceber que Lutero tinha uma intenção bem pastoral e, por causa desta praticidade teológica, o alcance de seus escritos foi além dos muros eclesiásticos e universitários; atingiu a sociedade em todos os seus setores: economia, política, educação, etc. Com toda esta produção, sobrou para Lutero. Em meados de 1521, Lutero foi considerado herege pela Igreja13 e fora da lei pelo Estado.14 Foi diante do Imperador em Worms que Lutero pronunciou as palavras: “Como Vossa Majestade e Vossas Altezas exigem de mim uma resposta simples, quero dar uma tal sem chifres e dentes. Caso não for convencido por testemunhos da Escritura e por motivos racionais evidentes – pois não creio nem no papa nem nos Concílios, pois é evidente que erraram muitas vezes e se contradisseram –, estou convencido, pelas passagens da Sagrada Escritura que mencionei, e minha consciência está presa à Palavra de Deus e não posso nem quero revogar qualquer coisa, pois não é sem perigo nem salutar agir contra a consciência. De outra maneira não posso, aqui estou, que Deus me ajude, amém”.15 10 | Ver Obras Selecionadas I, 13ss. 11 | “Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências.” In: Obras Selecionadas I, 21ss. 12 | O conjunto das obras que compõem o programa da reforma de Lutero está no volume 2 das Obras Selecionadas em português. 13 | O papa Leão X excomungou Lutero através da bula Decent Romanum Pontificem de 3 de janeiro de 1521. 14 | Lutero compareceu perante o Imperador Carlos V na Dieta de Worms, em abril de 1521. No dia 18 de abril foi considerado um fora da lei. 15 | Conforme DREHER, Martin. “Lutero e a Dieta de Worms de 1521.” In: DREHER, Martin (org.). Reflexões em Torno de Lutero II, p.87. 14 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero 1.2 1521 a 1532 – Contornos e definição de Reforma Contando com o apoio do príncipe eleitor da Saxônia, Lutero saiu de circulação por algum tempo. O objetivo principal do tempo que permaneceu no Wartburgo foi de providenciar mais conteúdo ao programa de reforma. Sem dúvida, foi o período que Lutero mais produziu. Do período no Wartburgo se destacam a Tradução do Novo Testamento, as Apostilhas para a Igreja, o Magnificat, a Refutação do Parecer de Látomo, o Tratado sobre os Votos Monásticos. Com todo o conhecimento linguístico e com ferramentas apropriadas, Lutero traduziu o Novo Testamento para a língua do povo alemão. A versão circulou em setembro de 1522. Como prática, Lutero não cobrou pelos direitos autorais da produção do texto bíblico, prática esta que manteve até o final de sua vida. Ele sabia o custo de uma Bíblia para o povo comum.16 A primeira Bíblia que ele encontrou foi na Biblioteca da Universidade em Erfurt e ela estava acorrentada por causa de seu valor: equivalia a um ano de trabalho de um trabalhador comum. O Antigo Testamento foi impresso em partes, a partir da metade de 1523, sendo concluído em 1532. A edição completa do texto bíblico foi publicada em 1534. Nesse meio tempo, Lutero editou 85 versões do Novo Testamento. Antes de morrer, Lutero publicou mais uma vez o texto bíblico completo, em 1545. Calcula-se que foram vendidas mais de 100.000 Bíblias em 15 anos só na cidade de Wittenberg. Também havia as edições clandestinas da Bíblia. Muitas gráficas enriqueceram com a publicação das Bíblias de Lutero. Para esta tarefa árdua, Lutero contou com a ajuda de um Colégio Bíblico que se reunia em sua casa em Wittenberg para auxiliá-lo na tradução. Comenta 16 | Segundo JUNGHANS, Helmar. “Catarina Lutero à luz e sombra da Reforma.” In: JUNGHANS, Helmar. Temas da Teologia de Lutero, p.180, “Lutero é o escritor de maior êxito do século XVI. Ele poderia receber uma considerável quantia de florins por isso. Mas não quer: ‘Eu quero pregar e escrever de graça por desprezo do mundo, para que o mundo veja que é possível alguém fazer algo de bom sem soberba, e sim simplesmente por ser cristão’ (WA TR 2, 24, 20-21). Quando os tipógrafos de Wittenberg lhe ofereceram 400 florins por ano – isto é o mesmo que o seu salário anual – ele não aceita vender a graça de Deus, isto é, o que recebeu de Deus. Catarina, que precisa se preocupar com as finanças do crescente orçamento doméstico, vê isso de outra forma, mas aceita a posição de Lutero”. A edição crítica de Weimar (aqui citada como WA) é composta de 127 volumes, totalizando 75 mil páginas de texto. 15Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Lutero que muitas vezes precisaram investir até um mês na tradução de uma simples palavra.17 Justificando o uso do termo solum na passagem de Romanos 3.28, que não consta no original, Lutero afirma: “aqui em Romanos 3.28, eu sabia muito bem que no texto latino e grego não consta a palavra solum. Isso os papistas não precisavam me ensinar. É verdade, estas quatro letras sola não constam ali, letras essas que os burros enxergam como uma vaca enxerga uma porteira nova, mas não veem que, mesmo assim, elas contêm o sentido do texto, e quando se quer traduzir com clareza e contundência, é preciso incluí-las, pois eu quis falar alemão, e não latim nem grego, uma vez que me propusera traduzir para o alemão. E esse é o estilo do nosso idioma alemão: quando se fala de duas coisas, das quais uma é afirmada, a outra negada,utiliza-se a palavra solum (allein, além da palavra nicht ou kein), como quando se diz: ‘colono traz somente grãos, e nenhum dinheiro’; ‘não, agora não tenho dinheiro mesmo, mas somente grão’; ‘eu somente comi, ainda não bebi’; ‘você somente escreveu e não leu?’”.18 Outro exemplo do trabalho na tradução é a explicação para a expressão “Salve, Maria, cheia de graça, o Senhor seja contigo” (Lc 1.28), texto da Vulgata. Comenta Lutero: “Pois bem, assim é que se traduziu até agora, simplesmente seguindo a letra latina. Mas diga-me: isso é bom alemão? Quando o alemão fala assim: ‘estás cheia de graça’? Qual o patrício que vai entender o que significa ‘cheia de graça’? Ele vai pensar num barril cheio de cerveja, ou num saco cheio de dinheiro; por isso eu traduzi: ‘graciosa’ (holdselige), de modo que um alemão conseguirá associar melhor com o sentido pretendido pelo anjo em sua saudação. Mas aí os papistas ficam doidos comigo, por ter adulterado a saudação angelical. Isso que ainda não consegui acertar a melhor formulação alemã. E se eu tivesse tomado a melhor formulação vernácula, traduzindo da seguinte maneira a saudação: ‘Deus te abençoe, querida Maria’ (Gott grusse dich, liebe Maria) (pois isso é o que o anjo quer dizer, e assim teria falado, se quisesse saudar em nossa língua), acredito que eles se teriam arrancado os cabelos, devido à sua grande devoção para com a querida Maria, por eu ter arrasado de tal maneira a saudação”.19 17 | Ver “Carta Aberta do Dr. Martinho Lutero a respeito da Tradução e Intercessão dos Santos.” In: Obras Selecionadas 8, 210. 18 | Obra citada, 211. 19 | Obra citada, 212, 213. 16 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Deste período na vida e na obra de Lutero, outro destaque são os debates e controvérsias nas quais Lutero teve que se envolver. Do já citado embate com Erasmo e do escrito contra Látomo, as principais controvérsias e os debates na década de 1520 foram com outros reformadores. O primeiro momento crucial foi o apagar do fogo em Wittenberg provocado pelos Entusiastas, liderados por Karlstadt, colega de Lutero. Para acalmar o ânimo da população e mostrar que tipo de reforma Lutero estava propondo, retorna de Wartburgo no início de 1522 e pronuncia uma série de sermões, os chamados Sermões de Invocavit.20 São oito sermões pregados e no segundo sermão há uma célebre frase de Lutero que bem caracteriza a reforma por ele proposta: “Eu preguei, falei, escrevi mas a ninguém forcei; porque a fé é voluntária. Tomem-me como exemplo. Eu me levantei contra o papa, as indulgências e todos os papistas, mas sem violência ou coação. Somente anunciei a Palavra de Deus, nada mais. E enquanto eu estava dormindo, ou bebendo cerveja com Melachthon e Amsdorf, a Palavra de Deus agiu nos príncipes e no imperador. Nada fiz, mas a Palavra fez tudo. Se tivesse apelado à força, toda a Alemanha estaria ensanguentada. [...] Fiquei quieto e deixei que a Palavra tomasse livre curso através do mundo. Você sabe o que o Diabo pensa quando vê homens que usam a violência para propagar o evangelho? Ele, sentando no fogo do inferno com suas armas, e diz com um olhar maligno: “ah, como estes homens fazem o meu jogo; e eu adoro isso”. Quando somente a Palavra é anunciada, é ela que faz o campo de batalha estremecer e abalar de medo. Só a poderosa Palavra de Deus pode mover os corações”.21 Estas sábias palavras não foram suficientes. Três anos mais tarde, em 1525, Karlstadt e Müntzer conduziram os camponeses numa revolta contra os príncipes. Estima-se que até 100 mil pessoas morreram durante a revolta.22 Aqui cabe um dado interessante. Na noite de núpcias de Lutero com Catarina, no dia 27 de junho de 1525, quem bate à porta do casal nubente? Karlstadt, como fugitivo 20 | PRUNZEL, Clóvis Jair. “Análise retórica do sermão de Invocavit de Lutero.” In: Igreja Luterana, 2004, 1, p.85-95. 21 | Traduzido a partir de VEITH JR., Edward Gene. A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther, p.84,85. 22 | Este número pode ser exagerado. 17Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero de guerra. Lutero fez um acordo com Karlstadt, que nunca mais poderia pregar, escrever e ensinar. O casal manteve Karlstadt em sua casa por oito semanas.23 Outro momento decisivo para Lutero e seus colaboradores foram as disputas teológicas com os sacramentários. O auge desta disputa foi o Colóquio de Marburgo, em 1529. A partir daí, nitidamente a reforma protestante se dividiu em dois grupos, os reformados e os evangélicos ou luteranos. De certa forma, os assuntos sobre a Palavra de Deus e sua interpretação, relacionada com os sacramentos, foi o grande divisor de águas.24 Fora os problemas teológicos com Roma e os Sacramentários/Reformados, Lutero se apaixonou pela prática pastoral e pela organização de uma sociedade ética a partir da vocação cristã. A sua doutrina dos dois reinos, separando Igreja e Estado, se mostrou apropriada para trabalhar o que Deus oferece gratuitamente em Cristo e a responsabilidade cristã no dia a dia. A vida na Igreja já foi preocupação para Lutero desde sua chegada em Wittenberg em 1512.25 Além de professor universitário, fora chamado para ser pregador (em 1514 assume o posto de pregador). Além das apostilas para uso na igreja preparadas enquanto esteve no Wartburgo, do Catecismo em 1529 e da Bíblia, Lutero foi um intenso pregador. Chegou a pregar 121 vezes em um ano.26 Escreveu 37 hinos a partir de 1523. Só no ano de 1524 foram 21 hinos. Os dois últimos, em 1543, dois anos antes de sua morte.27 O ministério pastoral foi clarificado por Lutero. O papel dos ministros evangélicos e seu contínuo estudo teológico foram notabilizados nas palavras de Lutero registradas no Prefácio ao Catecismo Maior: “[...] Peço a todos os cristãos, especialmente aos pastores e pregadores, que não queiram ser doutores muito cedo e não imaginem que sabem tudo. Presunção e tecido novo encolhem muito. Antes, exercitem-se bem nesses estudos diariamente e sempre os inculquem. 23 | VEITH JR., Gene Edward. A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther, p.106. 24 | SASSE, Hermann. Isto é o meu corpo retrata a luta de Lutero em defesa da presença real de Cristo no Sacramento do Altar. 25 | O volume 8 das Obras Selecionadas reproduz obras essenciais para entendermos como Lutero queria uma comunidade evangélica. 26 | VEITH JR., Gene Edward. A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther, p.89. 27 | VEITH JR., Gene Edward. A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther, p.112. 18 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Acautelem-se, além disso, com todo cuidado e diligência, contra o venenoso material contagiante daquela segurança ou presunção. Perseverem em ler, ensinar, aprender, meditar e refletir, e não desistam até fazerem a experiência e adquirirem a certeza de que matariam o diabo de tanto lecionar e se tornaram mais sábios que o próprio Deus e todos os santos. Se aplicarem tal diligência, prometo-lhes – e eles hão de percebê-lo – que alcançarão grande fruto e que Deus fará deles pessoas excelentes. Com o passar do tempo, eles mesmos bem hão de confessar que, quanto mais estudam o Catecismo, tanto menos dele conhecem e tanto mais têm de aprender. E só então, como a famintos e sedentos, lhes há de saber bem o que agora, por grande plenitude e saciedade, não podem cheirar. Que Deus conceda sua graça para isso. Amém”.28 A ordem na Comunidade também seria estabelecida com a não aceitação de ministros intrusos e clandestinos. Contra estes, Lutero defende um ministério a partir da ordenação e vocação, que tem a autoridade e a responsabilidade de pregar e ensinar a pura pregação e doutrina.29 Outro aspecto importante destacado por Lutero na administraçãoeclesiástica foi o caixa comunitário. No princípio da liberdade para servir, Lutero estimulou a organização de fundos para ajudar as pessoas necessitadas que circulavam nas cidades e para a manutenção do trabalho dos pregadores e diáconos. Enquanto estava no mosteiro em Erfurt, Lutero perceberá o papel da Igreja na época: um banco. As transações financeiras organizadas pela Igreja de Roma e reproduzidas nos mosteiros foram atacadas em outros momentos. A ganância e a falta de justiça e equidade precisavam ser atacadas e nada melhor do que a postura da Igreja evangélica para fazê-lo. A organização da Igreja seria um modelo para a organização social.30 O reconhecimento social de Lutero em nossos dias, como uma personalidade do milênio passado, sem dúvida tem suas razões. Lutero mexeu nas feridas da sociedade de sua época. A partir de sua antropologia teológica, desenvolveu uma ética mais instrumental e vocacional. Se diante de Deus estou nu, diante 28 | “Catecismo Maior”, in Obras Selecionadas 8, p.329. 29 | No escrito “Carta do Dr. Martinho Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos”, in Obras Selecionadas 8, p.114, Lutero veementemente ataca os pregadores intrusos e clandestinos. 30 | Para ampliar a visão de Lutero sobre a organização da Igreja quando a aspectos econômicos, ver PRUNZEL, Clóvis Jair. “Economia e Manutenção do Trabalho da Igreja a partir de Lutero e das Confissões Luteranas”, in Igreja Luterana, 2005, 2, p.51-63. 19Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero do próximo tenho o que fazer. Governantes, políticos, banqueiros, professores foram avaliados e receberam de Lutero um estímulo a cumprirem seus papéis de forma apropriada. “A ética de Lutero afirma que a fé não apenas se apega a Cristo para a salvação, mas também discerne um sentido mais profundo nas estruturas normais ou ordinárias da vida. [...] somos obrigados a uma família específica e uma ocupação específica com todos os papéis prescritos que são exigidos pelos lugares de responsabilidade. [...] Enquanto comprometidos com suas responsabilidades individuais, os cristãos não apenas correspondem às exigências que o mundo estabelece para essas vocações; eles vão além. Esta é a ação dinâmica do amor.”31 A compreensão das duas maneiras que Deus tem de governar não pode ser separada em termos espaciais ou existenciais; para Lutero, elas interagem de maneira criativa. Na medida em que fé, amor e esperança são acessos no coração dos cristãos, pelo Espírito, eles vão praticar essas virtudes dentro e através das vocações seculares que lhe foram dadas. Essas virtudes impulsionadas pelo Espírito afetarão os papéis de responsabilidade que os cristãos têm como membros de família, trabalhadores, cidadãos e membros da Igreja. Eles farão dessas responsabilidades seculares verdadeiras vocações cristãs. O amor criativo de Deus entra no mundo através do exercício da vocação cristã.32 Dentro desta dinâmica, Lutero se sentiu à vontade para solicitar que pastores pregassem contra a usura33 e que governantes ajudassem na difusão do trabalho da Igreja.34 Lutero aqui aplicou o princípio da equidade, quando emergencialmente um regimento poderia intervir no outro. 31 | Para aprofundar a visão ética de Lutero, consultar os volumes 5 e 6 das Obras Selecionadas. Ver também PRUNZEL, Clóvis Jair. “A arte de viver da fé – a ética luterana em perspectiva.” In: WACHHOLZ, Wilhelm. Identidade Evangélico-Luterana e Ética. Anais do III Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana, p.27-44. 32 | WINGREN, Gustaf. A Vocação segundo Lutero é uma boa leitura para ampliarmos esta visão de Lutero. 33 | Por exemplo, “Aos pastores, para que preguem contra a Usura”, in Obras Selecionadas 5, p.446. 34 | As visitações feitas entre os anos de 1526 e 1528 foram bancadas pelos governantes. 20 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero 1.3 1532 a 1546 – Preservando a identidade da Reforma A década de 1530 iniciou com a convocação dos Evangélicos/Luteranos para comparecerem na Dieta de Augsburgo. A tentativa política por parte do Imperador em unir o Império contra os turcos, que estavam em Viena, acabou se tornando um grande debate teológico para os Luteranos. Lutero, zangado, não pôde comparecer. Ficou em Coburgo. Os resultados teológicos não foram agradáveis aos Luteranos. Os últimos 14 anos de Lutero foram concentrados em definir a verdadeira Igreja. Dos escritos que tratam desta identidade citamos Os Artigos de Esmalcalde,35 de 1537, Dos Concílios e da Igreja,36 de 1539, e Contra Hans Worst,37 de 1541. Quando, em 1521, após Worms e o problema com os entusiastas, Lutero simplesmente quis ser identificado como um pastor da Igreja universal. Afirmou: “[...] peço que meu nome seja calado e que ninguém se chame de luterano, senão de cristão. Que é Lutero? Pois a doutrina não é minha. [...] Como poderia eu, pobre e fedorento saco de vermes, fazer com que os filhos de Cristo fossem chamados por meu nome desprovido de qualquer valor? Não assim, caros amigos, eliminemos os nomes partidários e chamemo-nos de cristãos de acordo com a doutrina que temos... Não sou nem quero ser mestre de ninguém. Tenho junto com a comunidade a única doutrina de Cristo, o qual só ele é nosso mestre”.38 Se por um lado a Verdade não está atrelada ao nome de Lutero, ela o está ao nome de Cristo. Escreve Lutero nos Artigos de Esmalcalde: “Graças a Deus, uma criancinha de sete anos sabe o que é a Igreja, a saber os santos crentes e os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor. Pois assim rezam as crianças: ‘creio uma Santa Igreja Cristã.’ Esta santidade não consiste em sobrepelizes, tonsuras, alvas e outras cerimônias deles, inventadas para além das Sagradas Escrituras, porém consiste na Palavra de Deus e na fé verdadeira”.39 E, “[...] a Igreja nunca 35 | Texto em português, in Livro de Concórdia, p.305. 36 | Obras Selecionadas 3, p.300. 37 | WA 51, 469-572. 38 | Conforme Altmann, Walter. Lutero e Libertação, p.126. 39 | “Artigos de Esmalcalde”, in Livro de Concórdia, p.320. 21Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero pode ser melhor governada e conservada do que quando todos vivemos sob uma só cabeça, e os bispos, todos iguais quanto ao ofício, diligentemente se mantêm juntos em unidade de doutrina, na fé, nos sacramentos, nas orações, nas obras de amor”.40 Se internamente o cristão depende exclusivamente do Espírito Santo para criar a fé, externamente a Igreja é reconhecida nas assim chamadas notae ecclesiae destacadas por Lutero já nos Artigos de Esmalcalde, mas ampliadas nos outros dois escritos. No Dos Concílios e da Igreja Lutero aponta para sete marcas: a Palavra de Deus, o Batismo, o Sacramento do Altar, o Ofício das Chaves, o Ministério conforme instituição de Cristo, o Agradecimento e o Louvor Públicos e a Santa Cruz.41 No escrito Contra Hans Worst, Lutero enfatiza dez marcos da Igreja universal: Batismo, Sacramento do Altar, Chaves, Ministério da Pregação, Credo, Pai-Nosso, Honrar o Governo Secular, Matrimônio como Ordenação de Deus, Perseguição e Nada de Vingança e sim Intercessão Pública pelos Perseguidores.42 Os últimos anos de Lutero também foram marcados por algumas polêmicas. Destacamos a posição de Lutero a respeito dos judeus. Na tentativa de orientar cristãos a respeito dos judeus, em 1543 Lutero escreve Sobre os Judeus e suas Mentiras, provavelmente o maior texto escrito por Lutero. Estimulando as autoridades cristãs e os pregadores a advertirem os cristãos contra os judeus, Lutero se pronuncia com os seguintes conselhos (para nós estes conselhos podem ser chocantes, mas retratam um momento histórico complexo): incendeiem- se suas sinagogas e escolas; destruam-se as casas; confisquem todos os seus livros de oração e escritos talmúdicos, nos quaisse ensinam idolatria, mentiras, maldições e blasfêmias; sob ameaça de pena de morte, proíba-se aos rabinos de continuarem ensinando; não se lhes concedam mais escoltas; proíba-se-lhes a usura e confisque-se e guarde-se todo o seu dinheiro, suas joias em prata e outro, para subvencionar judeus que aceitem o batismo; judeus e judias jovens fortes devem executar trabalhos braçais e ganhar seu pão no suor do seu rosto; por 40 | “Artigos de Esmalcalde”, in Livro de Concórdia, p.338. 41 | A terceira parte do escrito “Dos Concílios e da Igreja”, in Obras Selecionadas, p.404-432 descreve estas marcas. 42 | Conforme BRANDT, Hermann. “Identidade Luterana: ética, missão, diálogo das religiões”. In: WACHHOLZ, Wilhelm. Identidade Evangélico-Luterana e Ética. Anais do III Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana, p.45-67. 22 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero fim, aconselha os caros príncipes e senhores a seguirem o exemplo da França, Espanha e Boêmia e a expulsarem os judeus de seus territórios.43 A vida particular de Lutero é marcada por um casamento estável e pelas doenças. Numa conversa à mesa, de 1532, Lutero chama a sua Catarina de “Kete von Born, a estrela-d’alva de Wittenberg”.44 Esta metáfora pode ser interpretada de diversas formas, mas em todo o caso ela realmente foi uma grande luz na vida de Lutero. Se olharmos teologicamente para o casamento de Lutero, percebemos que a intenção de Lutero era dar nos dedos de Satanás. Se Roma estava tentando arranjar uma situação para que Lutero deixasse de protestar (alguns historiados sugerem que Roma estava se preparando para dar o título de cardeal para Lutero), com o casamento seria impossível. Inicialmente, pouca gente apoiou o casamento de Lutero, especialmente com Catarina, uma freira provavelmente muito feia. Alguns diziam: “Não ela, mas sim uma outra”. Um jurista de Wittenberg comenta: “Se este monge se casar, o mundo inteiro e o diabo rirão dele e ele próprio vai aniquilar toda a sua obra”.45 Birgit Stolt, germanista sueca que analisou as cartas de Lutero com Catarina, conclui: “Dos textos se depreende claramente que esse casamento entre duas pessoas maduras transformou-se em uma relação calorosa e harmônica, um casamento por amor, cuja intimidade não diminui com os anos, mas, pelo contrário, se aprofundou”.46 Realmente, Lutero aprendeu a amar Catarina, porque do casamento arranjado surgiu um grande amor. Os filhos foram seis. Duas experiências dramáticas com dois deles: Elizabete, com menos de um ano falece, e Madalena, que falece com 13 anos e que profundamente marca o final da vida de Lutero. 43 | O texto “Lutero e os Judeus”, de Helmar Junghans, é um bom começo para entendermos um pouco mais esta situação complexa nos tempos de Lutero. JUNGHANS, Helmar. Temas da Teologia de Lutero, p.97-120. 44 | WA TR 2, 649, 14. 45 | Citado em JUNGHANS, Helmar. “Catarina Lutero à luz e sombra da Reforma.” In: JUNGHANS, Helmar. Temas da Teologia de Lutero, p.169-188. É uma boa fonte para entendermos o papel de Catarina na vida de Lutero e sua influência na Reforma. 46 | Citado em JUNGHANS, Helmar, “Catarina Lutero à luz e sombra da Reforma”, p.175. 23Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero A morte de Lutero ocorreu em 18 de fevereiro de 1546. Mas lembrar da morte de Lutero é “trazer à memória o poder de Deus, que torna a pessoa de fé forte para enfrentar tantos fardos sem desanimar”, conclui Helmar Junghans.47 O primeiro momento em que a morte parece próxima de Lutero foi em 1527, quando um forte zunido no ouvido esquerdo, que soa como ondas do mar, leva-o a deitar-se. Aqui Lutero já se despediu de sua esposa e de seu filho João. Mas as forças voltam. Mais tarde Lutero brinca dizendo que esse zunido na cabeça é Satanás tomando banho. Diz ele: “[...] para que eu não me ensoberbeça com a elevada revelação, foi-me posta uma estaca na carne, a saber, o anjo de Satanás, que deve golpear-me com os punhos para que eu não me ensoberbeça”.48 Lutero se sente em meio à luta entre Satanás, que quer impedi-lo, até através dos males físicos, de lutar pelo Reino de Deus. Esses zunidos vão acompanhar Lutero até o final da vida e seguidamente o incapacitam a fazer o seu trabalho. Lutero também foi acometido de cálculos, tanto no rim como na bexiga. Problemas de circulação sanguínea dificultam o caminhar. Em 1543, é necessário aplicar um dreno na perna para que fluidos malignos sejam expelidos. Toda esta situação leva Lutero a ficar acamado praticamente o tempo todo. Suas atividades são interrompidas: não escreve mais, não prega e nem leciona. O máximo que a medicina pôde fazer por Lutero na sua época foi o dreno na perna. As infecções diminuíram, voltou a caminhar, lecionar e a pregar, por quase três anos, no final da vida. Numa carta à princesa da Saxônia, escreve: “Conosco as coisas, graças a Deus, andam bem e melhor do que merecíamos da parte de Deus”.49 Preparando-se para morrer, Lutero escreve a um chanceler: “Orai às vezes também por mim, para que eu tenha uma boa horinha. Trabalhei e vivi até a exaustão, a cabeça para nada mais serve, anseio por graça e misericórdia. Já as tenho e delas haverei de receber mais ainda. Amém”.50 Quando sua filha Madalena faleceu, em 23 de setembro de 1542, Lutero escreveu ao amigo Justo Jonas: “Creio que ficaste sabendo que minha querida filha Madalena renasceu para o Reino eterno de Cristo. Eu e minha esposa nada 47 | Em “Os últimos anos de Lutero”. JUNGHANS, Helmar. Temas da Teologia de Lutero, p.96. 48 | WA BR 10, 228. 49 | A carta é datada de 30 de março de 1544. WA BR 10, 548. 50 | Carta de 6 de janeiro de 1543. WA BR 10, 238, 34-37. 24 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero mais deveríamos fazer senão agradecer com alegria por um passamento tão feliz e um final tão bem-aventurado, através do qual ela escapou do poder da carne, do mundo, dos turcos e do diabo. Mesmo assim, o poder do amor natural é tão grande que nós não o podemos fazer sem soluçar e gemer o coração, sim, nem mesmo sem grande mortificação. Pois os olhares, palavras e gestos da filha obediente e respeitosa ao extremo, quando viveu e quando morreu, se prendem ao fundo de nossos corações, de maneira que nem mesmo a morte de Cristo pode retirar esse pesar como deveria. E o que é a morte de todos em comparação com a de Cristo? Por isso, agradeça a Deus em nosso lugar. Pois ele realmente fez uma grande obra em nós e glorificou sobremaneira nosso corpo. Ela tinha – como sabes – um caráter suave e amável, sendo querida para com todos. Louvado seja o Senhor Jesus Cristo, que a chamou, escolheu e glorificou. Tomara que eu, todos os meus e todos os nossos tenhamos por sorte uma morte assim. É o único que peço a Deus, ao Pai de todo o consolo e de toda a misericórdia”.51 Com estas palavras, podemos perceber como Lutero estava preparado para sua própria morte. Na noite que antecede a sua morte, Lutero, mesmo debilitado, participando das tentativas de acordo entre os condes de Mansfeld e Eisleben, participa do jantar em que se discute se as pessoas irão se reconhecer nos céus, e Lutero está convencido de que isto irá acontecer. Na madrugada de sua morte, rodeado de dois filhos, Martinho e Paulo, e de amigos, sua última palavra é um “sim” a favor de sua doutrina e pregação.52 Conclusão Quem é Lutero? Se formos considerá-lo como um grande líder da humanidade, podemos destacar algumas características. Simplesmente, um homem de palavra porque tinha a Palavra. Um grande pecador; nada tinha a dizer de bom de si mesmo. Mas ao mesmo tempo era um santo, pois fora chamado por Deus através da graça em Cristo Jesus. Soube carregar a sua cruz, porque tinha sua vida sob o controle de Deus. Era uma pessoa agradável; as conversas à mesa demonstram isso,pois com muita propriedade as pessoas ouviam Lutero. O senso de perspectiva de Lutero era impressionante; diante da imensidão do 51 | WA BR 10, 149, 20-34. 52 | WA 54, 492, 9-12. 20-23. 25Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero amor de Deus, Lutero se viu pequeno. Um homem paciencioso, percebeu isso enquanto esteve no Wartburgo. O grande erro de sua vida aconteceu quando ele usou do pragmatismo para orientar Filipe de Hesse na sua bigamia. Por isso, Lutero pode ser considerado não pragmático porque sempre esperou que a vontade de Deus se fizesse presente em sua vida, já que Deus é que controla o passado, o presente e o futuro. Foi um homem solitário diante de Deus e diante dos homens. Muitos o seguiram e o tentaram imitar. Mas, ele era ele mesmo. Foi ousado, nada tinha a temer, nem sua própria vida diante do Imperador em Worms. Um homem aberto, não escondia o que pensava. Quando escondeu sua opinião sobre a bigamia de Felipe de Hesse se deu mal. Um homem de oração. Sempre orou. Um homem que meditou na Palavra de Deus. Um homem que foi tentado. Lutero ignorou o seu próprio interesse, sempre viveu para os outros. Tinha aversão ao caos. Ordem e decência é o que Lutero pregava tanto para indivíduos como para a Igreja e a sociedade. Mas era um homem medroso. Mesmo que tenha pregado contra o medo, assumiu sua própria dificuldade em lidar com ele. A generosidade fez parte de sua vida. O incidente com Karlstadt na noite de núpcias é uma marca da generosidade de Lutero. Homem do povo. Com sua máxima de que o cristão está livre sobre todos, mas ao mesmo é servo de todos, Lutero conquistou as pessoas. Com isso, pôde chamar a atenção de pessoas mostrando a elas o seu próprio chamado e responsabilidade. Percebemos isso quando Lutero estimulou seguidamente Melachthon, seu secretário teológico, a se tornar um pregador. Melachthon aceitou o convite no enterro de Lutero. Lutero lidava tranquilamente com o paradoxo: somos ao mesmo tempo livres e escravos, o homem é justo e pecador, Cristo é verdadeiro Deus e Homem. Lutero lutou com Satanás. Talvez hoje possamos afirmar que isso só acontece nas igrejas pentecostais, mas aconteceu com Lutero. Certa vez, Lutero afirmou: “Se você ri, você tem fé”. Lutero fez uso do humor. Lutero era imóvel, não mudou de opinião. Talvez seja esta mais uma atitude que lhe causou problemas. Basta lembrarmos do incidente com Zwínglio em Marburgo. A liberdade do cristão da imposição da lei. Contra os entusiastas, Lutero lutou contra o seu legalismo. Confiou na Palavra de Deus. Enquanto posso errar, a Palavra de Deus não erra. Agarrou-se a Cristo. Em todo o seu sofrimento, tentação, dúvida e alegria, Lutero defendeu a Cristologia das Escrituras. E morreu na fé. A última oração de Lutero: “Ó, meu Pai Celeste, Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. A ti, Deus, de todo consolo, agradeço por teres me revelado teu amado Filho Jesus Cristo, em quem creio, a quem preguei e confessei, a quem amei e louvei, a 26 Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero quem o repugnante papa e todo os ímpios ridicularizam, perseguem e caluniam. Peço-te, meu Senhor Jesus Cristo, coloca minha alminha sob tuas ordens. Pai celeste, se já agora eu tiver que abandonar esse corpo e ser arrebatado desta vida, então sei com certeza que posso permanecer eternamente contigo e ninguém me arranca de tuas mãos”.53 Questões 1. Enumere as colunas considerando a biografia de Lutero. (a) Ano do casamento de Lutero. ( ) 1505 (b) Entra no mosteiro. ( ) 1520 (c) Ano em que escreve os livros básicos de sua teologia. ( ) 1521 (d) Conclui seu doutorado em Teologia. ( ) 1525 (e) Ano em que foi expulso da Igreja e do Império. ( ) 1512 Respostas: b; c; e; a; d 2. Caracterize o conceito de Deus que Lutero desenvolveu na sua infância e durante o período em que estava no mosteiro. 3. Em que aspectos o humanismo se mostra uma ferramenta útil para a teologia de Lutero? 4. Além dos problemas com a teologia romana, Lutero enfrentou problemas com seus próprios colegas e outros “protestantes”. Pesquise mais sobre esses problemas, resumindo-os, especialmente na fundamentação teológica desses grupos. 5. A partir da definição de igreja que Lutero estabelece nos Artigos de Esmalcalde, sistematize a estrutura eclesiástica proposta por Lutero. 53 | WA 54, 491, 21-30. 27Alguns aspectos especiais que marcam a vida e a obra de Lutero Referências ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação. São Paulo: Ática, 1994. BOICE, James (ed.). A Reforma Hoje. Uma convocação feita pelos Evangélicos Confessionais. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. BRECHT, Martin. Martin Luther. 3 volumes. Minneapolis: Fortress Press, 1990. DREHER, Martin (org.). Reflexões em Torno de Lutero II. São Leopoldo: Sinodal, 1984. ELERT, Werner. The Structure of Lutheranism. Saint Louis: Concordia, 2000. HEIMANN, Leopoldo (org.). Lutero, o Educador. Fórum ULBRA de Teologia – volume 2. Canoas: Editora da ULBRA, 2005. JUNGHANS, Helmar. Temas da Teologia de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2001. LIVRO de Concórdia. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2006. LUTERO, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1984. ______. Obras Selecionadas. Volumes 1 a 11. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1987 a 2010. MCKIM, Donald. The Cambrigde Companion to Martin Luther. Cambrigde University Press, 2003. PRUNZEL, Clóvis Jair. “Lutero e Erasmo: o contato e a Divergência.” In: Igreja Luterana, 1994/2, p.159-178. SASSE, Hermann. Isto é o meu corpo. Porto Alegre: Concórdia, 2004. VEITH JR., Gene Edward. A Place to Stand. The Word of God in the Life of Martin Luther. Nashville: Cumberland House, 2005. WACHHOLZ, Wilhelm. Identidade Evangélico-luterana e Ética. Anais do III Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: EST, 2005. WINGREN, Gustaf. A Vocação segundo Lutero. Canoas: Editora da ULBRA, 2006.
Compartilhar