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1 slGutenberg, Lutero e a Reforma - 500 anos em leitura Palestra na 63ª Feira do Livro de Porto Alegre Santander Cultural - 07/11/2017 A invenção de Gutenberg, por volta de 1450, fez com que imediatamente espiões industriais franceses fossem a Mainz. A cultura urbana florescente precisava cada vez mais de livros. Não sabemos de onde o ourives Johannes Gutenberg tirou a ideia de transformar uma prensa de uvas para produzir livros. Certamente, sua intenção não era fortalecer o individualismo ou sepultar a autoridade da Igreja Católica. As consequências trazidas por esta nova tecnologia não tinham como ser estimadas. O próprio Lutero surpreendeu-se com a ampla e rápida expansão de suas obras. A Igreja usou a nova tecnologia de pronto para reproduzir cartas de indulgência. Depois que o exército turco conquistou Constantinopla, em 1453, pondo fim ao milenar Império Romano do Oriente, o Anuário Turco de 1454/55 (Eyn manung der cristenheit widder die durken” foi divulgado com o uso da nova técnica. É o mais antigo trabalho remanescente com mais de uma página produzida por Gutenberg. A arte de imprimir livros expandiu-se espetacularmente. Por volta de 1500, havia na Europa 260 localidades com mais de 1.120 casas de impressão. Entre 1450 e 1500 (meio século) foram produzidos tantos livros quanto no milênio anterior. A maioria em latim. Isso significa que, durante os primeiros 50 anos após a invenção da imprensa de tipos móveis, os livros, apesar do incremento e da velocidade das edições, permaneceram um símbolo de status da minoria ilustrada. Salas de leitura permaneceram, livros seguiram sendo escritos a mão. E os impressores, que passaram a usar a nova tecnologia, seguiram almejando produzir edições preciosas e sofisticadas. 2 A inovação tecnológica não foi imediatamente acompanhada por uma revolução midiática. A divisa inicial foi: mais do mesmo, porém mais rápido e mais barato. Os livros antigos, dos quais existiam apenas poucos exemplares copiados a mão, passaram a ser impressos e multiplicados. Principalmente, o conhecimento antigo passou a estar mais disponível para aqueles que podiam ler latim. Por volta do final do século XV, às vésperas do início da Reforma protestante, esse mercado estava se esgotando. Marshall McLuhan tem uma frase célebre: “The medium is the message” (Understanding Media: the extensions of man, 1964). Com a Reforma protestante, no sentido de McLuhan, a nova tecnologia representada pela imprensa de tipo móveis finalmente encontrou sua “mensagem”. O conhecimento passou a ser divulgado de forma massiva nas línguas vernáculas. O conhecimento deixou de ser privilégio das autoridades. Passou a ser disponibilizado em folhas de papel de custo mais acessível. Aquilo que as autoridades diziam começou a ser comparado com o conhecimento disponibilizado no material impresso. A indústria da imprensa estabeleceu-se como “freie Kunst” (arte ou ofício livre), desvinculada do controle das corporações de ofício. As casas de impressão orientavam-se no mercado nascente - daí as edições mais baratas em um só página (Flugblatt/Flugzettel), ou na forma de panfleto (Flugschrift), daí as línguas populares ao invés do latim. Mesmo que os números brutos dos livros impressos nas primeiras décadas da história da imprensa sejam impressionantes, a nova forma de divulgação de ideias de fato tornou-se popular pelos folhetos (Flugzettel; Flugblatt) com textos redigidos nas línguas populares, que eram lidas em voz alta nos lugares públicas, e ilustradas com gravuras decifráveis pelos analfabetos. O folheto (Flugzettel) da Reforma foi catalisador de uma revolução midiática. Entre 1517 e 1530 foram publicados 10.000 panfletos com ca. de 10 milhões de exemplares, parte considerável deles nos anos decisivos da fase inicial da Reforma, entre 1517 e 1523. O tema principal era a certeza da salvação: como faço para alcançar o paraíso? A educação letrada transformou-se aos poucos em novo sonho da humanidade, mesmo nos estratos subalternos da população. Com os folhetos e panfletos, tornou-se público e notório, em cada aldeia, que era possível formar com as letras latinas as palavras que se 3 quisesse,; que era possível, a partir delas, decifrar um sentido alheio, desconhecido até há pouco. Algo até então impensável. Pessoas alfabetizadas e pregadores espalharam freneticamente suas mensagens e, com isso, a “mensagem” no novo meio. Lutero formulou suas 95 teses contra o comércio de indulgências em latim e não pretendia discuti-las além do restrito âmbito acadêmico. Ele queria alcançar exclusivamente o público teológico especializado. Sem o seu conhecimento as teses foram traduzidas e divulgadas pelos editores. Lutero reagiu rapidamente e já em seu “Sermon von dem Ablass vnnd gnade” (1518) usou diretamente o recurso da impressão na língua vernácula. Isso obrigou seu oponente Johann Tetzel a responder usando o mesmo recurso. A réplica de Tetzel cita o próprio Lutero, a fim de refutá-lo, segundo o modelo da disputação oral. Motor da inovação foi a experiência revolucionária de que o conhecimento, transportado e conservado na escrita, pode tornar-se um bem comum a todos, aberto a todos e disponível para todos. De repente, não havia mais um saber secreto, clerical e restrito aos senhores. Com o meio de comunicação folheto/panfleto um monge insignificante, Lutero, em uma universidade insignificante em uma cidade insignificante, galgou os degraus da hierarquia 4 eclesiástica e disputou publicamente com o próprio papa, quer este quisesse ou não. Lutero saudou a arte da impressão como o “último e ao mesmo tempo maior presente de Deus”. Como propagandista congenial da nova tecnologia, Lutero fez da Escritura Sagrada impressa o único e incondicional critério da fé “correta”: somente pela Escritura (sola scriptura). Isso significava naturalmente a Bíblia impressa, aquela que contém a verdade divina, segundo a compreensão protestante. A igreja católica reagiu a seu modo clássico, conservadoramente, mas também de modo desesperado. Ela determinou que apenas a única, oficial e latina versão da Bíblia poderia ser aceita como a verdadeira. As prédicas proferidas por Lutero eram impressas e duas ou três semanas depois divulgadas em outras cidades. Com isso, multiplicavam “n” vezes o público de Wittenberg. Atingiam um público ilimitado e desconhecido. Os opositores de Lutero se sentiram obrigados a enfrentá-lo neste mesmo campo de batalha da “opinião pública popular”, referendando com isso o papel do povo como juiz na disputa. Ainda que, ao mesmo tempo, reclamassem de que Lutero abria mão do latim erudito, pois queria agitar o povo ignorante. A consequência foi uma revolução cultural na comunicação. O filósofo Platão, na antiguidade, tinha criticado a possibilidade de fixar o discurso na escrita. Já a imprensa provocou, desde o princípio, uma euforia. As pessoas foram assumindo a consciência de que estavam vivendo um novo tempo. Duas gerações após a proliferação da imprensa de Gutenberg era difundida a inconformidade em relação à cegueira e à falta de conhecimento das gerações antecedentes, pessoas que teriam vivido na “Idade Média”. 5 A ideia do “sacerdócio geral das pessoas crentes” significou tanto quanto uma valorização teológica das culturas leigas. Foi uma “message”, foi uma mensagem de alto impacto na nova cultura midiática. As pessoas leigas foram interpeladas na qualidade de leitores. Passaram a ser consideradas autorizadas e capazes de formular juízos sobre os temas propostos. Panfletos contrapunham a figura do leigo esperto e bom ao clérigo ignorante e decadente. A “opinião pública” como estrutura básica do novo meio, passou a promover os próprioscontemporâneos. Alguns autores - como Karl-Heinz Wollscheid e Jan Assmann - apontaram para uma consequência histórico cultural da fixação de verdades absolutas em um Escrito Sagrado. Haveria fundamentalistas religiosos acima de tudo nas religiões monoteístas. Religiões do Extremo Oriente, como o hinduísmo, budismo e o taoísmo teriam uma maior tradição em termos de tolerância religiosa. Isso estaria associado à característica de não terem uma Escritura Sagrada com autoridade equivalente à da Bíblia ou ao Corão. A partir da grande ruptura promovida pela Reforma deixou de existir no cristianismo ocidental a única Escritura Sagrada, protegida e interpretada exclusivamente pelo papa. Passaram a existir diferentes opiniões sobre a Escritura, incontáveis Escrituras com incontáveis “verdades”. 6 A Reforma como evento midiático A rápida e ampla divulgação das idéias e do ensino de Lutero foi possibilitada pela imprensa. Ele próprio reconheceu em várias ocasiões o significado deste grande avanço da técnica (cf. WA TR 1, 1038; 2, 2772; 4, 4697) e creditou a isso a possibilidade de fazer tremer em suas bases a Igreja de Roma. Nesse sentido, Lutero pode ser visto como o primeiro escritor a conduzir com êxito um movimento intelectual mediante o recurso à imprensa. O número de impressões de textos de Lutero até sua morte chega a 4000. Com isso, ele é responsável por cerca de 1/3 de toda a produção literária em língua alemã no período. Vale observar, também, que parte considerável dos 2/3 restantes são obras voltadas ao assunto “Lutero” ou a questões por ele levantadas. Somente de 30 de seus escritos, publicados entre 1517 e 1520 para um público maior, conhecemos mais de 370 impressões, representando em seu conjunto mais de 250 mil exemplares. O panfleto “À Nobreza Cristã” teve somente no ano de seu lançamento (1520) 13 edições. O Catecismo Menor teve 78 edições identificadas entre 1529, seu ano de lançamento, e 1546, ano da morte de Lutero. Dentre elas, edições em tradução para o dinamarquês, o francês e o holandês, as quais logo foram seguidas por traduções em outros idiomas europeus. Mais numerosas ainda são as edições da Bíblia Alemã, traduzida por Lutero. Mais de 420 edições da Bíblia completa ou de porções bíblicas aconteceram até o ano de sua morte. Calcula-se cerca de 500 mil exemplares individuais. A maioria das edições aconteceram sob o acompanhamento e a autorização de Lutero, em Wittenberg, mas ainda em vida ele chegou a se incomodar com a publicação de edições clandestinas (cf. WA DB 9/II S. XXIIs). O número de exemplares de impressões de escritos de Lutero só pode ser calculado de modo aproximado, pois são poucos os dados exatos acerca das tiragens. Segundo um informante da época, os panfletos publicados no âmbito do movimento da Reforma tinham em geral uma tiragem de 1000-1500 exemplares. Comparado a isso, a primeira edição de “À Nobreza Cristã…” teve uma tiragem incomum: 4000 exemplares. O “Septembertestament” chegou ao mercado com uma tiragem de 3000 exemplares. A tiragem de edições de outras porções bíblicas, posteriormente, tinham em média de 2000 a 3000 exemplares. 7 Sobre a rapidez da venda e o alcance de mercado das obras do escritor Lutero, há algumas informações interessantes. A primeira edição de “À Nobreza Cristã…” (4000 exemplares) esgotou-se em uma semana. As famosas 95 Teses (1517), por uma informação do próprio Lutero (WA 51, 540), em 14 dias já estavam disponíveis por toda a extensão do Sacro Império Romano Germânico. A primeira edição do Novo Testamento em alemão (setembro de 1522) teve uma demanda tal que em 19 de dezembro do mesmo ano uma edição revisada e melhorada já estava disponível no mercado. A Bíblia alemã, traduzida por Lutero, rapidamente tornou-se a versão preferencial. De 455 panfletos em língua alemã publicados entre 1523-25, 287 (ca. 63%) citavam passagens bíblicas na versão do reformador. A significativa distribuição e venda dos escritos de Lutero precisam ser avaliadas levando em conta os preços de livros na época. O “Septembertestament” (444 p., 21 xilogravuras de página inteira e inúmeras iniciais ilustradas) custava, dependendo da encadernação, entre ½ e 2 florins. Isso equivalia pelo menos ao salário semanal de um oficial de carpinteiro. Em 1534, a primeira edição completa da Bíblia alemã, na tradução de Lutero (1816 p. em formato grande, com 117 xilogravuras) era vendida sem encadernação por 2 florins e 8 centavos (Groschen). Era o equivalente a três semanas de trabalho de um mestre pedreiro. Levando em conta que até a morte de Lutero foram vendidos 500 mil exemplares de Bíblias e porções bíblicas, pode-se concluir que sua aquisição representou um gasto financeiro tremendo da parte dos compradores. Lutero e a relação entre teologia e literatura “Nam melius est ruere literas quam religionem, si literae nolent servire” (WA Br 2123, Lutero a Nicolau von Amsdorf em Magdeburgo, 28/06/1534 – Pois é melhor que se arruíne a literatura do que a religião, se a literatura não quiser colocar-se a serviço da religião). Essa manifestação ilustra exemplarmente a visão de Lutero acerca da relação entre literatura e religião. Simultaneamente revela a proeminência que a religião e a igreja atribuem a si mesmas em 8 relação à literatura. A própria produção publicística e literária de Lutero, apoiada pela imprensa, que possibilitou o estabelecimento da Reforma, pode ser vista como confirmação para sua concepção, de que a literatura tem sua existência legitimada tão só pelo suporte dado à religião. A comparação com a postura do movimento humanista em relação à mesma questão deixa isso evidente. Para o humanismo renascentista, a formação básica nas artes liberales e o estudo da Antigüidade clássica colocavam-se no centro da concepção de educação formal, sendo a poesia (Poesie) a base de todas as ciências (p. ex., Conrado Celtis). A erudição adquirida a partir daí possuía, por si mesma, seu valor. A teologia, contudo, não teve como deixar de incorporar os métodos filológicos humanistas. Recorreu às edições de textos originais, elaboradas com base nestes novos critérios científicos (p. ex., a edição grega do N. Testamento, de Erasmo de Roterdã, cuja primeira edição foi do ano 1516). Incorporou também as explicações gramáticas e históricas, com as quais procurava-se alcançar um amplo e aprofundado exame dos textos, mais efetivo e qualificado do que o possibilitado pelo método escolástico em relação a passagens e conceitos individuais. A incorporação por Lutero de alguns princípios da exegese textual humanista pode ser observada em suas preleções Dictata super Psalterium e Operationes in Psalmos. No decorrer delas, ele foi migrando da exegese que buscava o sentido quádruplo do texto e, ao lado disso, rejeitando a alegoria como meio preferencial de interpretação, para enfatizar – especialmente contra Roma - o sentido literal ou gramático, considerado não ambivalente. Com isso enfatiza ser o texto bíblico inequívoco, mas ao mesmo tempo destaca a diferenciação entre Antigo e Novo Testamento, bem como o condicionamento histórico de cada livro do Antigo Testamento. Por fim, procura fundamentar a exegese com o princípio escriturístico do sola scriptura, que contrapõe à tradição magisterial da Igreja Romana a autoridade a compreensão e interpretação da Escritura Sagrada. Isso porque esta “per sese certissima, facillima, apertissima sui ipsius interpres” (WA 7, 97, 23 – por si é a certíssima, facílima, acessibilíssima intérprete de si mesma). A filologia humanista disponibilizou a armadura para que Lutero empreendesse o caminho ad fontem, aquela única fonte sobre a qual a teologia e a igreja deveriam basear-se. Por outro lado, limites precisos são colocados em relação 9 àarte de interpretação humanista, pois uma compreensão do conteúdo da Bíblia baseada exclusivamente no intelecto e na erudição é errônea. Isso porque Lutero vincula a compreensão à experiência viva da fé. É partir desta base que a interpretação gramática e histórica podem contribuir no sentido de uma clara compreensão. Se a nova teologia devia ser acompanhada por pessoas leigas interessadas, se sua fundamentação devia ser testada e comparada com as doutrinas da igreja antiga, então a Bíblia precisaria estar acessível a elas, ou seja, deveria ser traduzida ao Alemão. Em 1522, com o chamado “Septembertestament”, Lutero disponibilizou sua primeira tradução do Novo Testamento. Os resultados do esforço criativo e lingüístico de Lutero podem aqui ser apresentados somente de forma resumida, em rápidos traços. Com grande freqüência, ele toma palavras e atribui a elas novos significados. Ou, então, inúmeras palavras assumem uma forma escrita pela primeira vez com ele. Termos-chave da linguagem teológica, tais como “Glaube”, “Gnade”, “Busse”, têm seu conteúdo fortemente modificado em relação ao convencionado até então, isso como decorrência de concepções teológicas de Lutero. Agrega-se a isso a criação de múltiplas palavras e conceitos, tais como “Feuereifer”, “friedfertig”, “Herzenslust”, “Menschenfischer”, “Schädelstätte”, “wetterwendisch”. Lutero recorre ao acervo de ditados e sentenças, modifica-os parcialmente, ou então formula expressões e sentenças que posteriormente assumem o caráter de ditados. A influência vai muito além do âmbito religioso protestante. A tradução da Bíblia de Lutero circula pelo meio católico-romano, é usada e plagiada por seus opositores. Com isso impediu-se não só uma divisão confessional, mas também deu-se à língua superior e literária de todo um povo sua marca mais decisiva. Até a época do iluminismo os gramáticos alemães de maior expressão elaboram suas tendo na tradução da Bíblia por Lutero sua principal referência. Esta “obra mestra da prosa alemã”, conforme Friedrich Nietzsche (Jenseits v. Gut u. Böse. Zur Genealogie der Moral), representou até o séc. XIX, juntamente com o Catecismo Menor e o Hinário e principal livro- texto não só no âmbito do ensino confirmatório e religioso, mas também nas aulas de língua alemã. Com sua linguagem, com as narrativas de histórias e sobre personagens, acima de tudo com a narrativa da vida, paixão e morte de Jesus, constituiu-se todo 10 um mundo – o mundo da linguagem e das imagens de determinadas figuras primais e modelos (Ur- und Vorbilder) – que disponibilizou parâmetros de orientação e simultaneamente possibilidades de identificação. A partir deste centro, representado pela Bíblia, é que se deve considerar o esforço literário de Lutero, bem como sua relação com a literatura. A necessidade de divulgar a nova doutrina determinou a escolha das formas literárias. De igual modo, foi isso que determinou a decisão pelo Latim para escritos destinados a intelectuais e pelo Alemão para escritos destinados a pessoas leigas. Autores contemporâneos de Lutero, como Sebastian Brant, Ulrich von Hutten e Thomas Murner, difundiram formas literárias como a prosa rimada (Reimrede), o poema instrucional (Lehrgedicht) e a sátira, que não foram utilizados por Lutero. Ao invés disso, o reformador preferiu adaptar a seu interesse formas tradicionais como o tratado, o sermão, a polêmica e o prefácio (ou prólogo; cf. especialmente os prefácios individuais aos livros bíblicos). É possível falar de uma renovação dessas formas literárias por Lutero. Isso vale especialmente para seus hinos religiosos. Mesmo que conscientemente vinculados a modelos mais antigos, a repercussão dos hinos de Lutero foi tal que se pode falar em sua contribuição para moldar essa forma da poesia alemã. De igual modo deve 11 ser visto seu aporte para literatura devocional (meditação e oração) e para a forma epistolar. O objetivo de divulgar a nova doutrina não determinou apenas as opções literárias de Lutero. Pode-se dizer tranquilamente que o conjunto da literatura em língua alemã da época da Reforma pode ser caracterizado com o lema “A palavra como arma”. Tratava-se de uma literatura voltada precipuamente à confissão de fé, à propaganda e ao convencimento das consciências. As duas tarefas principais eram promover o conhecimento da nova doutrina e, de modo satírico e polêmico, fazer agitação contra os opositores. Com base nessa aplicação da arte literária, como instrumento de formação e convencimento de adeptos e de ataque e defesa contra os inimigos, foram escolhidas as categorias mais apropriadas: o libelo, ou panfleto (Flugschrift), a prosa em forma de diálogo, o drama/teatro quaresmal (Fastnachtsspiel) e o drama/teatro escolar. De maneira especial o drama alcançou grande significado, pois era uma forma de levar conteúdos bíblicos e doutrinários a serem encenados no palco, ampliando-se assim sua divulgação. Também a Contrarreforma adotou de modo exemplar essa categoria literária, com destaque para o drama jesuítico (especialmente entre 1560 e 1660), que foi marcante na divulgação da literatura de edificação espiritual em contextos urbanos de então. A literatura não precisou ser desmantelada. Pelo contrário, a Reforma justamente foi introduzida porque os reformadores e seus adeptos fizeram uso de meios e categorias literárias. Surgiu uma nova comunidade comunicativa, onde seus integrantes puderam dar expressão ao conjunto de seu contexto de vida mediante formas literárias, especialmente alemãs. A Reforma religiosa e teológica abriu-se em um movimento político, social, pedagógico e cultural. Por causa dessas tarefas é que se justificou a existência e a permanência da literatura. Por isso também, a literatura não precisou prestar contas de suas bases teóricas. O fato dela ter sido vista com naturalidade por Lutero como um meio de divulgação está vinculado a sua posição em relação às artes. Estas integravam, no seu entender, o conjunto dos adiáfora (elementos acessórios, secundários). Tal posição não se limitava à literatura alemã, as também à poesia neolatina de humanistas, que em poemas, dramas e diálogos apoiaram 12 a causa da Reforma. Isso é significativo, especialmente se considerarmos que a Reforma calvinista posteriormente viu a questão de forma diferente, considerando a literatura parte das coisas inúteis, que desviam da doutrina pura. E no caso de partes das obras literárias que não se colocavam diretamente a serviço da Reforma? Johann Sturm (1507-1589, humanista e pedagogo em Estrasburgo) lança luz sobre a questão com sua fórmula “sapiens et eloquens pietas”, que daria os parâmetros para a autolimitação de pastores, mestres e professores formados nos autores clássicos a Antiguidade. Por causa de sua dependência profissional precisam justificar sua atividade poética não só diante da religião, mas também – acima de tudo em obras sobre temas seculares – cultivar o decoro exigido. _________________________________________ Referências bibliográficas Arndt, Erwin; Brandt, Gisela. Luther und die deutsche Sprache: wie redet der Deudsche man jnn solchem fall? 2. Aufl., Leipzig: VEB Bibliographisches Institut, 1987, 231 p. Benjamin, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, 276 p. Bornkamm, Heinrich. Luthers geistige Welt. 3. Aufl., Gütersloh: Bertelsmann, 1959, 319 p. Carpeaux, Otto Maria. História da literatura ocidental. Vol. 3, 3a ed., Rio de Janeiro: Alhambra, 1985. Fröhlich, Luciane Reiter. Sendbrief vom Dolmetschen de Martinho Lutero – was dolmetschen fur kunst und erbeit sey. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Curso de Pós-Graduação em Lingüística, 2004, 87 fl. 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Foram justamente estes textos, relacionados à vida litúrgica e à instrução cristã, os primeiros a serem traduzidos ao idioma oficial brasileiro, o português. Curiosamente, membros de outros grupos confessionais, como o metodismo e o catolicismo, promoveram traduções de Lutero antes mesmo do que os luteranos o fizessem sistematicamente. Dentre os escritos traduzidos e publicados em português isoladamente até os anos 1970, podemos citar: as 95 Teses, o Catecismo Maior, os Artigos de Esmalcalde, Da Liberdade Cristã, Da Autoridade Secular, Do Cativeiro Babilônico da Igreja e o Magnificat. Também foram publicadas duas coletâneas com trechos de obras do reformador. (Fischer) Os jubileus relativos à Confissão de Augsburgo (1977), ao Livro de Concórdia (1980) e ao nascimento de Lutero (1983) estimularam as editoras da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e da Igreja Evangélica Luterana do Brasil a promover projetos de tradução de escritos da Reforma, em especial de Lutero. Formadas a partir do mesmo povo de imigrantes e descendentes, mas instituídas e lideradas por pastores de diferentes vertentes do luteranismo europeu e norteamericano, as duas igrejas mantinham relações distantes até 15 então. A obra de tradução do legado literário da Reforma, em especial de Lutero, porém, desencadeou um processo de superação, ao menos parcial, desta situação. Uma função chave na publicação de Obras Selecionadas cumpre a Comissão Interluterana de Literatura (CIL), desde 1966, instituída pelas duas igrejas. (Remeter ao site). Além de publicar anualmente o devocionário „Castelo Forte“, a CIL tem estado à frente dos projetos de tradução dos escritos de Lutero, delegando sua execução à Comissão Editorial Obras de Lutero (CEOL). A Editora Sinodal (São Leopoldo, RS), ligada à IECLB, e a Editora Concórdia (Porto Alegre, RS), ligada à IELB, tiveram desde o princípio um papel importante na edição. A elas somou-se posteriormente a Editora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA; Canoas, RS). Ambas as igrejas luteranas brasileiras têm subsidiado diretamente o projeto, ou então intermediado o apoio financeiro por igrejas e fundações dos EUA e Alemanha. Obras Selecionadas tem um editor geral que supervisiona todas as etapas da publicação de um volume. Luís Marcos Sander foi o primeiro a ocupar a função, sendo sucedido por Ilson Kayser, Darci Drehmer e, atualmente, por Yedo Brandenburg. O editor trabalha estreitamente vinculado à CEOL, um grupo de especialistas responsável por definir um conceito temático para cada volume, selecionar os escritos, supervisionar sua tradução, redigir introduções históricas para cada texto, auxiliar o editor geral na elaboração de notas de rodapé. Hoje, a CEOL é integrada por Claus Schwambach, Clóvis Jair Prunzel, Mário Francisco Tessmann, Paulo Wille Buss, Wilhelm Wachholz e Ricardo Willy Rieth, seu atual presidente. Já integraram a CEOL Joachim Fischer, Donaldo Schüler, Martim Warth, Nestor Beck, Mário Rehfeldt, Martin Dreher, Albérico Baeske, Osmar Witt, Silfredo Dalferth, Paulo Nerbas (conferir se falta algum nome). Um marco na estruturação do projeto de OSel foi o lançamento de uma coletânea em um só volume de textos básicos de Lutero por ocasião da celebração dos 500 anos de nascimento do reformador. Intitulado „Pelo Evangelho de Cristo: obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma“ (1984), com tradução de Walter O. Schlupp e introdução geral de Nestor Beck o volume representou um ensaio do ponto de vista de sua proposta editorial, das lideranças e equipes técnicas envolvidas do que seria empreendido posteriormente. No prefácio, Leopoldo Heimann menciona os poucos escritos até então disponíveis em português e antecipa a constituição de um projeto voltado ao „lançamento de mais dez a doze volumes das obras selecionadas de Lutero.“ (p. 7). 16 O primeiro volume foi publicado em 1987, trazendo uma coletânea de escritos dosanos 1517-1519 intitulada „Os primórdios“. Na introdução geral, Joachim Fischer, que foi o primeiro coordenador da CEOL, descreve o desafio do projeto iniciado da seguinte forma: „A produção literária de Lutero é vastíssima: prédicas, interpretações bíblicas (sua ‚profissão‘ era professor para a interpretação da Sagrada Escritura!), escritos teológicos eruditos, polêmicos e pastorais, a tradução da Bíblia para a língua de seu povo, o alemão, pareceres sobre as mais diversas questões, cartas e muito mais. A edição completa de suas obras abrange mais de 100 volumes. Porém apenas um número reduzidíssimo de seus escritos foi traduzido para a língua portuguesa. O registro dessas traduções (até o ano de 1982) não ocupa nem sequer duas páginas. Nos países de fala portuguesa era praticamente impossível tomar conhecimento do pensamento profundo e rico deste ‚evangelista de Jesus Cristo‘. (p. 9) A abrangência da coleção e sua estruturação temática também são descritas por Fischer na mesma introdução: „A CIL e a COL, no entanto, estavam cientes, desde o início, de que um volume só não é suficiente para um aprofundamento mais abrangente no pensamento de Lutero. Decidiu-se preparar uma edição em vários volumes. O projeto elaborado pela COL prevê, no decorrer dos próximos anos, a publicação de 12 a 14 volumes. Os dois primeiros apresentam escritos de Lutero dos anos anteriores a 1520 (vol. 1) e do ano de 1520 (vol. 2) em ordem cronológica. Quer-se mostrar, desta maneira, como Lutero chegou a se tornar o reformador da Igreja cristã. Os demais volumes serão temáticos, abrangendo obras de teologia erudita, escritos relacionados com congregação e culto cristãos, obras polêmicas, obras sobre ética cristã (família, economia, Estado, educação, etc.), interpretação da Sagrada Escritura, além de sermões e cartas e um índice geral de toda a coleção.“ (p. 9s) Volumes já publicados: Volume 1 (1987): Os primórdios – escritos de 1517 a 1519 Volume 2 (1988): O programa da Reforma – escritos de 1520 Volume 3 (1991): Debates e controvérsias I Volume 4 (1993): Debates e controvérsias II Volume 5 (1995):Ética: Fundamentos - Oração - Sexualidade - Educação – Economia Volume 6 (1996): Ética: Fundamentação da Ética Política: Governo - Guerra dos Camponeses - Guerra contra os Turcos - Paz Social 17 Volume 7 (2000): Vida em comunidade: Comunidade - Ministério - Culto - Sacramentos - Visitação - Catecismos – Hinos Volume 8 (2003): Interpretação bíblica – Princípios Volume 9 (2005): Interpretação do Novo Testamento: Mt 5-7; 1 Co 15; 1 Tm Volume 10 (2008): Interpretação do Novo Testamento: Gl; Tt Volume 11 (2010): Interpretação do Novo Testamento: Jo 14-1; 1 Jo Volume 12 (2014): Interpretação do Antigo Testamento: Gn Volumes a serem publicados: Volume 13: Interpretação do Antigo Testamento: Dt; Profetas (2017) Volume 14: Cartas Volume 15: Sermões Volume 16: Tischreden; Índices http://www.lutero.com.br/novo/obras_de_lutero.php Se você quer conhecer os textos de Lutero já disponíveis em português, você pode acessar uma chave multilíngue das obras de Lutero no endereço http://www.lutero.com.br/novo/chave_multilingue.php 18 Além da opção impressa, você também pode adquirir Lutero em formato eletrônico. Alguns dos volumes já estão neste formato. Que critérios podem ser identificados para a seleção de escritos empreendida em Martinho Lutero, Obras Selecionadas? Naturalmente, os escritos relacionados a momentos chave na trajetória de vida e na carreira literária de Lutero, em especial aqueles relacionados aos inícios do movimento reformatório. Cartas, Tischreden e sermões inserem-se de igual modo aqui. Igualmente, os documentos relacionados às controvérsias, que obrigaram o reformador a decrever os limites teológicos em relação ao exterior do movimento reformatório e às divisões internas que se produziram. Nesse caso, a tarefa ficou facilitada pela análise de edições em outros idiomas de obras selecionadas, às quais têm abrangência mais ou menos equivalente à dos 16 volumes previstos para a edição brasileira. Também levou-se em consideração que Lutero, como teólogo, teve sua trajetória literária direcionada principalmente à interpretação bíblica. Seis volumes foram reservados para tal. Felizmente,foipossível incluir na íntegra o grande comentário à Epístola de São Paulo aos Gálatas (1530). Já para as preleções sobre a Epístola de São Paulo aos Romanos (1515-1516) e Gênesis (1535-1545) foi preciso assumir o desafio de selecionar trechos. Para tal, buscaram-se critérios e seleções em edições que enfrentaram o mesmo desafio e investigou-se também junto ao público especializado, em especial docentes de exegese vetero e neotestamentária, acerca de quais seriam as partes mais relevantes do ponto de vista da interpretação bíblica atual nos contextos de fala portuguesa. A característica fortemente comunitária do luteranismo brasileiro desde suas origens levou a que escritos com foco em culto, liturgia, ministério e educação cristã recebessem um volume exclusivo. Por fim, aspectos que marcaram o contexto latino-americando mais recente, a exemplo do intenso debate em torno às teologias da libertação, nas últimas três décadas do século passado, bem como o interesse pelo impacto social, político, econômico, cultural e educacional da Reforma como movimento religioso fez com que os escritos sobre temas de ética recebessem dois volumes. Referências bibliográficas
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