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Sociedade e Contemporaneidade ??????????? Sociedade e Contemporaneidade Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2016 Arlete Aparecida Hildebrando de Arruda Deivison Moacir Cezar de Campos Everton Rodrigo Santos Gabriela Ramos de Almeida Honor de Almeida Neto Julieta Beatriz Ramos Desaulniers Paulo G. M. de Moura Rodrigo Perla Martins Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. ISBN: 978-85-5639-192-6 Dados técnicos do livro Diagramação: Marcelo Ferreira Revisão: Geórgia Marques Píppi No Brasil, quem decide ser um profissional ou empreendedor com formação em nível superior revela diversas expectativas. Quer que seu currículo seja considerado diferenciado em meio a inúmeros outros currículos profissionais. Quer ter maior satisfação em seu trabalho ou empreendimento. Quer ganhar mais, seja como assalariado, seja como empresário. Quer pautar seu exercício profissional por maior qualificação em termos de conhecimento e prática, tornando-se, com isso, um agen- te de transformação social, política, econômica e cultural. Quer tornar-se um formador de opinião. Sem dúvida alguma, é muito provável que estas e outras expectativas sejam alcançadas. De modo sistemático, estudos e análises revelam que profissionais com formação em nível superior têm grandes vantagens e destaque na sociedade, no ambiente empreendedor e no mercado de trabalho no Brasil. Os cursos de graduação da ULBRA são projetados tendo por referência tais expectativas e querem acompanhar os estudantes que neles ingressam para que elas sejam alcançadas. São quatro as diretrizes fundamentais propostas pelos cursos: 1) Intermediar conhecimento atualizado, pertinente à área profissio- nal e pautado permanentemente por inovação; 2) Mover os estudantes a cultivarem de modo intensivo sua formação pessoal (valores, princípios, caráter, hábitos e referências éticas); 3) Avaliar incessantemente seus conteúdos, práticas e formas sob o critério da empregabilidade de seus egressos; 4) Valorizar o empreendedorismo, ou seja, estabelecer em todos os âmbitos do curso e da universidade as condições para que os Apresentação Apresentação v acadêmicos estejam imersos em uma cultura empreendedora e de- senvolvam ou aperfeiçoem sua consciência empreendedora. A disciplina Sociedade e Contemporaneidade está entre as que de forma mais direta interpelam estudantes e professores em relação a essas diretrizes fundamentais. Independente do curso de graduação, é essencial que todos os envolvidos – estudantes, docentes e equipes administrativas de suporte ao ensino – estejam referenciados em dois trilhos que correm paralelamente de modo indissociado, orientando o processo de formação como um todo: o projeto pedagógico do curso com sua matriz curricular e todos os demais elementos que o compõem e a carreira profissional a ser construída. Nesta disciplina, abre-se concretamente a possibilidade de compreender no contexto social, seja no mais próximo ou naquele mais amplo, levando em conta suas múltiplas facetas, as consequências e as possibilidades para quem decidiu fazer um curso superior e construir uma carreira profissional diferenciada no mercado de trabalho e no ambiente empresarial. Os conteúdos a seguir, cuidadosamente redigidos e sistematizados por professores de alta qualificação e experiência, serão, por vezes, considera- dos desafiadores e complexos quanto a sua compreensão. O foco perma- nente na carreira que se está desenvolvendo, justamente por isso, será um grande auxílio a iluminar os passos de cada estudante em seu progresso e descobertas. Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth Sociólogo, teólogo, professor do PPGEDU e vice-reitor da Universida- de Luterana do Brasil 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica ..............1 2 Redes Sociais na era Digital ................................................31 3 Novas Identidades em uma Sociedade em Transformação ...55 4 Jogo de Espelhos: A Crise das Identidades Sociais na Sociedade Contemporânea .................................................75 5 Educação na era Digital ......................................................99 6 Fronteiras da Tolerância: Etnicidade, Gênero e Religião .....120 7 Trabalho e Emprego no Mundo das Novas Tecnologias.......................................................................144 8 O Brasil no Cenário Internacional da Contemporaneidade 180 9 Organizações e Participação Política e Social no Mundo Contemporâneo ...............................................................198 10 Meio Ambiente e Sustentabilidade ....................................223 Sumário Honor de Almeida Neto1 Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica1 1 Doutor em Serviço Social pela PUCRS (2004), Mestre (1999) e Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (1995). Coordenador do curso CST em Gestão Pública na modalidade EAD e do curso de Ciência Política da ULBRA Canoas. Integra o grupo de pesquisa Sociedade Informacional, Individualidades, Políticas Sociais da ULBRA. Pesquisador com experiência na área das Ciências Hu- manas e Sociais com ênfase na análise de processos de formação da Criança e do Adolescente e do impacto das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) na qualidade das relações humanas e sociais. 2 Sociedade e Contemporaneidade Introdução Vivemos em um período marcado pela inovação tecnológica cuja velocidade dos fenômenos e a complexidade, que envol- ve toda e qualquer temática a ser pesquisada, deixa a todos uma sensação de incerteza quanto ao futuro. Para um melhor entendimento dos códigos que distinguem a era em que vi- vemos - Era Digital- e o estágio atual do capitalismo, aponto nesse capítulo alguns pressupostos. O objetivo é instrumentali- zar você, aluno, para que possa apreender alguns princípios e categorias teóricas contemporâneas das Ciências Sociais, ou seja, para que tenha mais elementos para entender esse nosso tempo, tempo em que nas palavras de Baumann “o homem ganha em liberdade, mas perde em certezas [...]” (BAUMANN, 2001). Categorias de análise e conceitos são instrumentais das ciências, sobretudo das ciências humanas e sociais, e funcio- nam como “óculos”, como lentes que ampliam o nosso olhar sobre a realidade aproximando-nos com mais rigor e objeti- vidade desta realidade. Proponho nesse capítulo uma breve análise do impacto das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) na qualidade das relações humanas e sociais, uma análise sócio-técnica da sociedade contemporâ- nea, que tenha como centro ou como nó central as mediações sociais, os meios através dos quais nos comunicamos uns com os outros. A história das relações humanas e da construção social dos fenômenos não pode ser desvinculada da história das me- diações sociais, das técnicas, das tecnologias disponíveis em cada período histórico, bem como, das rupturas que a pe- Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 3 netrabilidade dessas mediações instaura nas sociedades, em todas as suas dimensões. Ao se complexificarem, as media- ções instaurammudanças nas relações sociais e geram novas possibilidades. Mas então, quais são essas novas mediações? Quais são as suas características? Qual é a penetrabilidade nas socieda- des e quais os impactos e transformações que instauram? 1.1 Novas mediações tecnológicas: novas revoluções Jornais, revistas, programas de rádio e TV, simpósios acadê- micos, filmes, documentários, sites, convergência de mídias e inúmeros novos aplicativos móveis apontam para o fato de que vivemos em uma sociedade da informação, era digital, planetária, sociedade midiática, fluída, em rede. O conceito de mídia, segundo Pierre Levy, refere-se “ao suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rádio, a televisão, o cinema ou a Internet, por exemplo, são mídias” (LEVY, p. 61). Embora o acesso e a troca de informações sempre estives- sem presentes na sociedade, hoje, as mediações disseminam a informação de uma maneira inédita e com características que a distinguem das mediações anteriores, instaurando profundas mudanças na dinâmica dos fenômenos. Os dispositivos comu- nicacionais, hoje disponíveis, possibilitam diferentes formas de comunicação entre as pessoas, rompem com a comunicação passiva, típica de mediações anteriores. Abrem novas possibi- paull Realce paull Realce 4 Sociedade e Contemporaneidade lidades aos sujeitos cujas ações retroagem sobre a sociedade, complexificando-a. Lembrem-se que o homem constrói a cul- tura que constrói o homem e assim sucessivamente. Quanto às características dessas mídias, Levy aponta para três grandes categorias, um-todos, um-um e todos-todos. A imprensa, o rádio e a televisão são estruturados de acordo com o princípio um-todos: um centro emissor envia suas men- sagens a um grande número de receptores passivos e disper- sos. O correio ou telefone organizam relações recíprocas entre interlocutores, mas apenas para contato indivíduo a indivíduo ou ponto a ponto (LEVY, 1999). O advento das mídias inte- rativas, como a Internet, trouxe de original, para as relações sociais, a maior possibilidade de conexão entre as pessoas, em tempo muitíssimo mais veloz e independente da distância, do espaço. Ou seja, os computadores além de agregarem for- mas de comunicação típicas de outras eras, como a escrita, a imagem e o som, e acelerarem a velocidade das informações, permitem uma interconexão planetária inédita que efetivamen- te nos transforma em moradores de uma “aldeia global”. O ciberespaço permite que comunidades constituam de forma progressiva e de maneira cooperativa um contexto comum (dispositivo todos-todos); [...] são os novos disposi- tivos informacionais (mundos virtuais, informações em fluxo) e comunicacionais (comunicação todos-todos) que são os maiores portadores de mutações culturais (LEVY, 1999, p. 63). O ciberespaço, este novo espaço de troca, de relação, é construído em função das novas tecnologias e de suas ca- racterísticas. Na comparação com as mediações anteriores, sobretudo a imprensa e a televisão, a Internet é potencialmen- paull Realce paull Realce paull Realce Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 5 te transformadora, visto que, a televisão e a imprensa podem impor uma visão da realidade e proibir a resposta, a crítica e o confronto entre posições divergentes. [...] Em contrapartida, a diversidade das fontes e a discussão aberta são inerentes ao funcionamento de um ciberespaço2 que é incontrolável por essência (LEVY, 1999). A Internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos e em escala global. Assim como a difusão da máquina impressora no Ocidente criou o que MacLuhan chamou de a Galáxia de Gutenberg, ingressamos agora num novo mundo de comunicação: a Galáxia da Internet (CASTELLS, 2003). O impacto das tecnologias é central para que possamos entender o que define-se como Terceira Revolução Industrial e/ou Era Digital, e as novas possibilidades associadas a esse nosso tempo. Como tipo ideal, podemos identificar três gran- des rupturas, três grandes revoluções. Motor da acumulação e expansão capitalista, a máquina a vapor promoveu a revo- lução tecnológica do Séc. XVIII. O mesmo ocorreu com a ele- tricidade no século XIX e com a automação, que representam o estágio mais recente da evolução tecnológica, ou a terceira onda da Revolução Industrial (ALBORNOZ, 2000). Caracteri- zada como um processo de mudança de uma economia agrá- ria e manual para uma economia dominada pela indústria, a Primeira Revolução Industrial tem início na Inglaterra em 1760 e se alastra para o resto do mundo, provocando profundas mudanças na sociedade. Caracteriza-se pelo uso de novas fontes de energia; invenção de máquinas que permitem au- 2 Ver conceito no glossário ao final do capítulo. 6 Sociedade e Contemporaneidade mentar a produção com menor gasto de energia humana; di- visão e especialização do trabalho; desenvolvimento do trans- porte e da comunicação e aplicação da ciência na indústria. A revolução também promove mudanças na estrutura agrária e o declínio da terra como fonte de riqueza; a produção em grande escala voltada ao mercado internacional; a afirmação do poder econômico da burguesia; o crescimento das cidades e o surgimento da classe operária, tendo como espaço de tra- balho a fábrica. Segundo Lester Thurow (EXAME, 2001), se há trezentos anos cerca de 90% da população vivia da agricultu- ra, atividade que era exercida com a mesma tecnologia primi- tiva - cavalos, bois, pessoas e fertilizantes de origem animal, foi a invenção da máquina a vapor que fez com que 8 mil anos de agricultura como atividade dominante da humanidade che- gassem ao fim. E, em 30 anos, os industriais da Inglaterra conseguiram reunir uma fortuna maior que a dos nobres, que foram os homens mais ricos dos séculos anteriores. A Primeira Revolução Industrial caracterizou-se pela con- centração dos trabalhadores nas fábricas e pelas transforma- ções na rotina das cidades e no próprio trabalho. O uso de máquinas permitiu o ingresso de mulheres e de crianças no mundo do trabalho, principais vítimas do trabalho precarizado do começo do período de industrialização. Para aumentar o desempenho dos operários, a produção foi dividida em várias operações. O operário executava uma única etapa, sempre do mesmo modo, o que o alienou do processo de trabalho, ou seja, fez com que este perdesse a noção do produto final de seu trabalho. Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 7 Entre a segunda metade do século XIX e a primeira meta- de do século XX, após a Primeira Guerra Mundial, surgiu um novo período denominado “Segunda Revolução Industrial”. Uma das principais características deste período foi a crença na lucratividade advinda da ciência, ao contrário do empiris- mo tecnológico, avesso à ciência, típico da Primeira Revolução Industrial. A invenção da eletricidade potencializou a capaci- dade produtiva do homem, libertando-o dos limites da noite e do dia. A energia elétrica esteve para a Segunda Revolução Industrial como a máquina a vapor esteve para a Primeira. Trouxe um enorme aumento da produção industrial e para au- mentar a produtividade do trabalho, Frederick W. Taylor criou o método de administração científica que se tornaria conheci- do como taylorismo. Taylor apontava como grande problema das técnicas administrativas existentes o desconhecimento pela gerência, bem como pelos trabalhadores, dos métodos que otimizassem o trabalho, tarefa que seria efetivada pela gerên- cia, através de experimentações sistemáticas de controle de tempos e de movimentos. Uma vez descobertos, os métodos foram repassados aos trabalhadores que se transformaram em executores de tarefas pré-definidas. Vê-se aqui a diminuiçãode espaços voltados à auto-organização3 dos trabalhadores, típicos da época e do então estágio de desenvolvimento das forças produtivas4, rígidas, controladoras, hierarquizadas e com tarefas compartimentadas e mecânicas. O salário tinha uma relação estreita com o tempo de execução da tarefa, da 3 Ver glossário ao final do capítulo. 4 Ver glossário ao final do capítulo. 8 Sociedade e Contemporaneidade jornada de trabalho. Veremos posteriormente que essa relação entre tempo e salário modifica-se na atualidade. Primeiro foi a substituição das ferramentas manuais pelas máquinas; depois, a eletricidade e o motor de combustão in- terna, bem como o início das tecnologias de comunicação, como o telégrafo e o telefone, sendo ambos períodos mar- cados por transformações constantes e de grande velocidade (CASTELLS, 1999). A gênese da Terceira Revolução Industrial encontra-se no período Pós Segunda Guerra Mundial, quando as indústrias química e eletrônica desenvolveram-se. Tempo e espaço são dimensões centrais para entendermos as mudan- ças pelas quais a sociedade vem passando, o tempo hoje é atemporal (as respostas se dão em tempo real) e o espaço é desterritorializado (daí vivemos em uma aldeia global). A transformação do modelo produtivo começou a se apoiar nas tecnologias que já vinham surgindo nas décadas do pós- -guerra e nos avanços das novas tecnologias da informação. Em substituição ao taylorismo (americano), o método de pro- dução japonês (toyotismo) combina máquinas de alta comple- xidade com uma nova forma gerencial e administrativa de pro- dução, menos hierarquizada. As empresas estão achatando suas tradicionais pirâmides organizacionais e delegando, cada vez mais, a responsabilidade pela tomada de decisão às equi- pes de trabalho. Hoje, os computadores e dispositivos móveis tornam-se a principal ferramenta em quase todos os setores da economia, do conhecimento, da informação e, também, requisito primordial ao trabalhador. Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 9 Na relação entre capital (recursos) e trabalho (mão de obra), típica do nosso período histórico, um novo perfil de trabalhador é exigido pelo mercado, com maior valorização de sua capacidade criativa. As tecnologias, hoje disponíveis, demandam novas competências aos trabalhadores, para além de meras habilidades, restritas a tarefas repetitivas e rígidas. A valorização de competências humanas, em meio ao proces- so produtivo, leva diversos autores a denominar a sociedade atual como sociedade do conhecimento. A maior exigência de qualificação da mão de obra aumenta também o fosso de desempregados e subempregados. Ou seja, a inclusão social, hoje, passa pela inclusão digital. Quanto aos pressupostos da Sociedade Informacional, Castells (1999) distingue modo de desenvolvimento de modo de produção. O modo de produção diz respeito à forma como é distribuído o produto do trabalho, como são feitos a apro- priação e o uso do excedente e podendo ser, portanto, capi- talista (sob o domínio do capital), ou estadista (sob o domínio e controle do Estado). Já o modo de desenvolvimento é deter- minado pelo elemento principal para a produtividade, outrora o modo de desenvolvimento agrário (cuja riqueza maior era a posse da terra), depois a indústria (fontes de energia, industria- lismo) e, hoje em dia, o controle e a produção de informação (informacionalismo). Tratam-se de “procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria para gerar o produto, em última análise, determinando o nível e a qualida- de do excedente” (CASTELLS, 1999, p. 34). Historicamente, os modos de desenvolvimento modelam o comportamento social e, inclusive, a comunicação simbólica 10 Sociedade e Contemporaneidade dos povos. No modo de desenvolvimento informacional, as relações técnicas de produção difundem-se por todo o con- junto de relações e estruturas sociais, ou seja, há uma íntima ligação entre cultura e forças produtivas que tende a trazer o surgimento de novas formas históricas de interação, controle e transformação social. As instituições, as companhias e a so- ciedade em geral transformam a tecnologia, qualquer tecno- logia, apropriando-a, modificando-a, experimentando-a [...] esta é a lição que a história social da tecnologia ensina [...]. A comunicação consciente (linguagem humana) é o que faz a especificidade biológica da espécie humana. Como nossa prática é baseada na comunicação, e a Internet transforma o modo como nos comunicamos, nossas vidas são profun- damente afetadas por essa nova tecnologia da comunicação (CASTELLS, 2003). Se, ao longo da história da humanidade, a riqueza este- ve sempre ligada à posse e ao controle de recursos materiais como a terra, o ouro, o petróleo (fonte de energia); hoje a riqueza não é algo material, palpável, ela é imaterial: o co- nhecimento. O conhecimento é a fonte primária de riqueza na sociedade pós-industrial. A revolução tecnológica e a transfor- mação social estão ligadas à penetrabilidade da informação por toda a estrutura social, daí que o grau de desenvolvimento das sociedades, atualmente no modo de desenvolvimento in- formacional, tem no número de computadores por habitante um indicador fundamental (CASTELLS, 1999). Ao transformar e produzir tecnologia, em busca de novos conhecimentos e novas formas de processamento das informações, nossa so- ciedade acaba inevitavelmente se organizando em forma de rede, sendo esta uma de suas características principais. Hoje, Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 11 com a acentuação da globalização através das NTIC, redi- mensionam-se as noções de espaço e de tempo, e ao aproxi- mar distâncias e comunicar os fatos em tempo real, as novas mediações permitem que muitas intervenções no contato entre as pessoas possam acontecer. O maior número de mediações faz com que as pessoas interajam mais, o que aumenta a ve- locidade dos fenômenos e a sua complexidade. O que é inerente à sociedade informacional é o fato de as tecnologias agora disponíveis ampliarem, em quantidades impensáveis e imprevisíveis, as ações humanas e o seus alcan- ces, quaisquer que sejam essas ações, boas ou ruins. Imagine, por exemplo, que pela internet podemos realizar uma obra social, mas também organizar uma briga de torcidas organi- zadas de futebol. Imagine a extensão da ação de um pedófilo, por exemplo, que antes tinha apenas os grupos familiares e os vizinhos como potenciais alvos de sua ação. Hoje ele tem o mundo todo. Concomitantemente, novos espaços e formas de articula- ção são potencializados pois a informação, fonte de poder na sociedade informacional, é mais socializada fazendo com que relações sociais antes desconhecidas, venham à tona modi- ficando culturas. A maior visibilidade dos fenômenos sociais faz com que estes sejam construídos através de relações cada vez mais secundárias e menos primárias: “[...] vivemos numa época de mundialização, todos os nossos grandes proble- mas deixaram de ser particulares para se tornarem mundiais [...]” (MORIN, 1999, p. 19). Os fenômenos sociais, hoje, são construídos de forma cada vez mais complexa, necessitando por parte do analista outros “óculos”, daí o uso da categoria 12 Sociedade e Contemporaneidade de análise “Rede Dinâmica”. A “Rede Dinâmica” é um concei- to que condensa a complexidade e a diversidade do mundo atual, e os potenciais trazidos pelas novas mediações que ca- racterizam a Terceira Revolução Industrial. Manuel Castells de- monstra a lógica que rege a teia que une e move as inúmeras mutações verificadas no social, estreitamente associadas ao ritmo veloz com que ocorrem, denominadas por ele de socie- dade informacional. Há uma lógica de funcionamento desse nosso mundoaparentemente ilógico, mesmo construído com um grau cada vez maior de imprevisibilidade e de incerteza. Tal lógica é a lógica da rede à qual vivemos conectados, in- terligados, interdependentes. Trata-se de um novo paradigma que perpassa a dinâmica social. A figura abaixo apresenta as dimensões do conceito de Rede Dinâmica: O movimento de produção das sociedades sempre foi, ao longo da História, auto-eco-organizativo, porém, na Tercei- Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 13 ra Revolução Industrial, ou era pós-industrial temos mais es- paços para realizar os nossos potenciais, pois as mediações, hoje, têm mais elementos voltados à autonomia, estão mais de acordo com o ritmo de cada um. Por exemplo, não neces- sitamos mais aguardar o ritmo e a boa vontade do caixa do banco para pagarmos uma conta. Não precisamos sequer nos deslocar até o banco (cujo atendimento presencial está, aliás, em extinção), mas precisamos de conhecimento sobre como operar uma transferência bancária pelo computador. Temos hoje, potencialmente, melhores condições de interagir com o social a partir de uma postura mais autônoma. O pressupos- to de produção das sociedades, atualmente, constrói-se do individual para o coletivo, através dos movimentos que desen- cadeiam seus agentes, das energias e interesses dos agentes individuais para o todo. Trata-se, também, por isso, de uma sociedade eminentemente aprendente, no sentido de poder constituir-se enquanto um espaço de formação para os seus agentes (ALMEIDA NETO, 2007). Há, hoje em dia, a necessidade de forjar um novo habitus5 no trabalhador, mais flexível e que acompanhe esse frenético ritmo de inovações. Como as tecnologias rompem as barrei- ras de tempo e de espaço, observa-se uma descentralização crescente das tarefas no âmbito do trabalho (do emprego em processo de extinção). A remuneração não se dá mais na re- lação direta entre tempo e salário, ou seja, não se calcula mais em função do tempo em que o trabalhador cumpre sua jornada na empresa, fábrica, mas sim pelo produto do seu tra- 5 Ver glossário ao final do capítulo. 14 Sociedade e Contemporaneidade balho. Assim, o controle do tempo passa à mão do trabalha- dor. Emergem profissionais liberais com vários empregadores e que têm na mobilidade de sua mão de obra um diferencial. As tecnologias permitem essa fluidez nos locais de trabalho, atualmente em grande parte restritos ao computador pessoal, ou mesmo a um celular de última geração. Esse novo profis- sional é ele próprio sua empresa. Na sociedade informacional tende a envelhecer a organiza- ção cuja capacidade de reestruturação, de desburocratização das ações e agilidade na gestão sejam limitadas. Aqui, repor- tamo-nos a uma outra dimensão que caracteriza a sociedade do conhecimento, a de não se organizar em uma perspectiva apenas local, mas sim glocal. A riqueza da sociedade em rede está em sua diversidade e não na uniformidade, temos condi- ções de explorar a diversidade dos agentes que a compõem, os diversos e impensáveis capitais que possuem, que formam o que Levy denomina de inteligência coletiva, coletivos inteligen- tes a serem construídos de forma intencional pela Rede. Levy refere a engenharia do laço social como “a arte de suscitar coletivos inteligentes e valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas” (LEVY, 1998, p. 32). Quanto melhor os grupos humanos conseguem se constituir em coletivos inteli- gentes, em sujeitos cognitivos, abertos, capazes de iniciativa, de imaginação e de reação rápidas, melhor asseguram seu su- cesso no ambiente altamente competitivo que é o nosso (LEVY, 1998). Outra dimensão da metáfora “Rede Dinâmica” é a visi- bilidade, a “aldeia global” é possibilitada pelas NTIC que permitem fazer circular as informações internas e externas, o Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 15 que a torna também cada vez mais interdependente e, por isso, também, mais complexa. Quando Levy refere o potencial democrático da sociedade informacional, ele fala da possibi- lidade de construção de coletivos inteligentes que valorizem a diversidade das inúmeras redes que a dinâmica do social constrói e reconstrói, que escapem de controles verticalizados, que misturem lazer, cultura, trabalho e produção, pois se inse- rem na lógica econômica dos mercados. É importante ressal- tar que, inevitavelmente, toda a sociedade está sendo afetada pela nova dinâmica social, fato que reforça a importância de lançar um olhar que dê conta destas transformações. 1.2 Movimentos Sociais: o poder em xeque na Sociedade em Rede Dinâmica Como forma de materializar esse conceito abstrato na aproxi- mação com a realidade contemporânea, podemos nos repor- tar às manifestações que ocorreram no ano de 2013 no Brasil, na esteira de outros movimentos sociais concomitantes que fo- ram observados em outros países. Se as relações humanas e sociais são relações de poder e de dominação, as relações de poder na sociedade da informação são colocadas em xeque frente ao potencial democrático e revolucionário da sociedade em rede, inerente ao nosso novo ecossistema informacional, digital. Em primeiro lugar, trata-se de uma relação horizonta- lizada e não verticalizada. A informação que sempre foi fonte de poder é hoje socializada e reconstruída a todo instante, sem 16 Sociedade e Contemporaneidade um controle central. A Rede Dinâmica é horizontal, democrá- tica, não linear. A cultura associada às novas tecnologias é a cultura da autonomia, muito presente na relação dos jovens (geração internet), em relação às instituições e aos poderes instituídos da sociedade. As práticas nas redes sociais materializam essa cultura que se choca com a cultura, por exemplo, da sala de aula, cujo tipo de organização (escola) é ainda vertical e tra- dicional, assim como de outras tantas instituições tipicamente modernas (rígidas, hierarquizadas, burocráticas, controlado- ras). Nas palavras de Castells (2012) a nova cultura da auto- nomia empodera os jovens e traz a eles felicidade. Traz felici- dade, pois a internet aumenta duas áreas fundamentais para isso, a sociabilidade e o empoderamento. A Rede não tem centro, começo, nem fim, tem várias entra- das e várias saídas. Sendo assim, os movimentos sociais que emergiram em 2013 começaram na Internet, estes são: “espa- ços de autonomia, muito além do controle de governos e em- presas que monopolizavam os canais de comunicação como alicerces de seu poder” (CASTELLS, 2012, p. 7). Assim, “indi- víduos formaram redes [...] uniram-se e sua união os ajudou a superar o medo, essa emoção paralisante em que poderes constituídos se sustentam”. Bem de acordo com a velocidade que distingue nosso tempo, “os movimentos espalharam-se por contágio num mundo ligado pela internet caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias”. Como vivemos em uma aldeia global e em rede, podería- mos perguntar onde começaram os movimentos? Desenvolve- paull Realce Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 17 ram-se em rede: no mundo árabe, Espanha, Grécia, Portugal, Itália, Grã-Bretanha, além de Israel e Estados Unidos, Ásia e Brasil, Tunísia e Islândia. Mas o que há de comum entre todos eles? Observa-se que “em todos os casos, os movimentos ignoraram partidos polí- ticos, desconfiaram da mídia, não reconheceram nenhuma li- derança e rejeitaram toda a organização formal, sustentando- -se na internet e em assembleias locais” (CASTELLS, 2012, p. 16). E de onde vêm os movimentos sociais? “São a resposta às injustiças de todas as sociedades: exploração econômica; pobreza desesperançada” (idem). São ainda frutos da “desi- gualdade injusta; comunidade política antidemocrática; Esta- dos repressivos;Judiciário injusto; racismo; xenofobia; nega- ção cultural; censura; brutalidade policial; incitação à guerra; fanatismo religioso; descuido com o nosso planeta azul; des- respeito à liberdade pessoal; violação da privacidade; geron- tocracia; intolerância; sexismo; homofobia e outras atrocida- des que retratam os monstros que somos nós” (2012, p. 16). Qualquer relação com o cenário político brasileiro atual, não é mera coincidência. Dessa forma, os movimentos transformaram o medo em indignação e a indignação em esperança. Isso porque as re- lações de poder são constitutivas da sociedade, pois aqueles que têm o poder constroem as instituições conforme seus va- lores e interesses. E quais as formas de exercer o poder? Pela coerção (violência exercida pelo Estado) e/ou pela construção de significados na mente das pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica. Até porque “torturar corpos é me- nos eficaz que moldar mentalidades” (idem, p. 11). Mas onde paull Realce paull Realce 18 Sociedade e Contemporaneidade há poder há também contrapoder, pois, “esse processamento mental é condicionado pelo ambiente da comunicação, e a mudança do ambiente (como observamos com as NTIC) afeta diretamente as normas de construção de significado e, portan- to, as relações de poder” (2012). Como vimos a comunicação que temos hoje é de “todos com todos”, uma comunicação em massa, baseada em redes horizontais de comunicação in- terativa que, geralmente, são difíceis de controlar por parte de governos ou empresas, “por isso empresas e governos temem a internet” (idem, p. 12). Se é verdade que o ciberespaço é também um espaço, um lugar, é preciso que um movimento que ocorre neste novo lugar, imaterial, materialize-se nos espaços públicos locais, urbanos. Pois “ao assumir e ocupar o espaço urbano, os ci- dadãos reivindicam sua própria cidade, uma cidade da qual foram expulsos pela especulação imobiliária e pela burocracia municipal”. Não é por acaso que observamos de forma cres- cente a substituição de espaços públicos, voltados ao interesse público (nem do Estado nem do mercado), por espaços de consumo. Shoppings centers, por exemplo, não são espaços públicos, são espaços privados e voltados ao consumo e não à convivência social. Se uma das características principais da rede dinâmica e do nosso tempo é a velocidade, cabe ressaltar o quão efême- ros foram e são esses movimentos, ”constituem assim, comu- nidades instantâneas de prática transformadora”. Interessante observar o poder de viralização de postagens e mobilizações nas redes sociais, em torno de determinadas causas, a uma velocidade impensada e atingindo um número expressivo de paull Realce paull Realce paull Realce paull Realce Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 19 pessoas. Essa é uma possibilidade associada a características das novas tecnologias e do grau de comunicação e interação que engendram. Ou seja, após postada uma mensagem na rede, ela assume “vida própria”, não tem mais dono, é por natureza imprevisível uma mensagem auto-eco-organizativa. Lembro de um caso emblemático que ocorreu justamente nesse período em sala de aula, quando uma aluna expressou sua preocupação e pavor com o fato de que, na esteira das mobilizações dos jovens que ocorreram concomitantemen- te (em rede) em diversas cidades do Brasil e do Rio Grande do Sul, ela havia proposto uma mobilização com o objetivo de qualificar e garantir o transporte de sua cidade do inte- rior gaúcho até a universidade e de forma gratuita. A aluna relatou que em poucos minutos havia mais de 100 curtidas, comentários e compartilhamentos e que, ao longo do dia, na medida em que aumentavam as curtidas e interações a partir de sua provocação, ela havia arrastado, involuntariamente, uma multidão de jovens até a frente da prefeitura da cidade para protestar e pressionar. Trata-se de um caso sintomático, pois “no Brasil, sem que ninguém esperasse [...] sem líderes e sem partidos nem sindicatos [...] um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes reuniu multidões em mais de 350 cidades” (CASTELLS, 2012, p. 178). Um dos motivos das manifestações, mas não o único, foi a questão do preço do transporte público, o Passe Livre, pois “ a mobilidade é um direito universal e a imobilidade estrutural das metrópoles bra- sileiras é resultado de um modelo caótico [...] produzido pela especulação imobiliária e pela corrupção municipal” (idem, anterior). E ainda, na esteira desse processo ”um transporte paull Realce paull Realce 20 Sociedade e Contemporaneidade a serviço da indústria do automóvel, cujas vendas o governo subsidia” (idem, anterior). O movimento colocou em cheque o neopatrimonialismo brasileiro, tanto a classe política como as instituições políti- cas, modernas, burocráticas, morosas e que usam a demo- cracia a serviço dos profissionais da política. Exigiu também mais democracia não mais reduzida a “um mercado de votos em eleições realizadas de tempos em tempos, mercado do- minado pelo dinheiro e pelo clientelismo e pela manipulação midiática” (idem, p. 179). Colocou em xeque a classe política pela própria natureza e morfologia do movimento, em rede dinâmica. Afinal: em uma manifestação sem líderes, ou com inúmeros líderes, com quem negociar? Quem cooptar? Como comprar o líder? As lideranças, assim como o próprio movimento, são efê- meras, fluidas. Por essa razão, essas manifestações pegaram a todos desprevenidos: políticos, mídia, intelectuais (sobretu- do os modernos) e sociedade como um todo: “milhares de pessoas eram ao mesmo tempo indivíduos e coletivos, sempre conectadas em rede e enredadas na rua, mão na mão, tuítes a tuítes, post a post, imagem a imagem” (idem, 2012). Tratou-se de um movimento dos jovens, da cultura da internet “[...] que a gerontocracia dominante não entende e suspeita, quando seus próprios filhos e netos se comunicam pela internet e ela sente que está perdendo o controle” (idem, p. 179). E não há mesmo como ter controle, imprevisibilidade é uma das dimen- sões da rede dinâmica, “pois a autocomunicação de massas é a plataforma tecnológica da cultura da autonomia” (idem, p. 180). paull Realce Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 21 Inúmeras foram as bandeiras desse movimento em rede, bem de acordo com a diversidade e complexidade que carac- terizam nosso tempo: transporte público gratuito; a corrupção entre o Estado e a especulação imobiliária; o meio-ambiente e a diversidade (inclusive o direito dos homossexuais); o di- nheiro gasto na copa; a PEC 37 (proposta de emenda cons- titucional); a saúde e a segurança pública; o salário do Ney- mar. O movimento contemplava inúmeras bandeiras, inclusive antidemocráticas. Mas havia algo ainda mais em comum: a restrição aos políticos e aos partidos, essas estruturas políticas tipicamente modernas (hierarquizadas, com caciques, chefes). Todos disseram “chega” à política tradicional feita pelos e para os políticos, para a elite econômica aliada ao Estado em todas as suas formas. Hoje a capacidade de mobilização das pessoas é espon- tânea, não depende da permissão de um partido de massa, como ocorria nas antigas manifestações. O paradoxo é que temos instituições “democráticas” piramidais para atender as demandas em rede (horizontais). Outro aspecto central à essa análise está ligado à nova visibilidade típica da sociedade contemporânea. O movimento não foi em nada pautado pela mídia tradicional, aliás, de pouca importância na vida cada vez mais individualista, customizada e autônoma dos jovens. Assim, rompe-se o monopólio da opinião e da informação que circula, pois cada elemento da rede é a mídia, com seu celular ligadoe registrando em tempo real os fatos, retroagindo sobre outros fatos e outras postagens (informações), exercitando as- sim a inteligência coletiva. Por fim o movimento, assim como a rede, é fluído, flexível e efêmero, pode desaparecer, como desapareceu realmente aqui no Brasil e reaparecer com outra paull Realce paull Realce 22 Sociedade e Contemporaneidade roupagem, outros propósitos, novas bandeiras, afinal a rede é dinâmica. Finalizando esse capítulo aponto para a absoluta imprevisi- bilidade que distingue nosso tempo e que desafia os intelectuais, e a mudança radical que as novas mediações trouxeram e vêm instaurando na vida das pessoas e das sociedades, pois “o que é irreversível no Brasil e no mundo é o empoderamento dos cidadãos, sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens de que tudo que sabemos do futuro é que eles o farão” (CASTELLS, 2012, p. 182). Mas fiquemos atentos, pois tudo ainda está por se definir, o ciberespaço é também uma arena de lutas, de disputas e as forças conservadoras têm uma ca- pacidade imensa de reorganização e reestruturação. Assim ao instrumentalizar os alunos e os jovens, sobretudo, a respeito dos códigos que distinguem nosso tempo, neste diálogo ne- cessário com a ciência, pensamos poder contribuir para esse fazer e esse novo devir. Glossário Auto-organização - Os seres vivos são auto-organizadores que se autoproduzem incessantemente. O princípio de auto- -eco-organização vale, evidentemente, de maneira específica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia na de- pendência da cultura, e para as sociedades que dependem do meio geoecológico (MORIN, 1999, p. 33). paull Realce paull Realce Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 23 Ciberespaço - É o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo espe- cifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e ali- mentam esse universo (LEVY, 1999, p. 17). Força produtiva - Força produtiva não é senão a capaci- dade de trabalhar real dos homens vivos: a capacidade de produzir por meio do seu trabalho e com a utilização de de- terminados meios materiais de produção, os meios materiais para a satisfação das necessidades sociais da vida, o que quer dizer em condições capitalistas, a capacidade de produzir mer- cadorias. Tudo o que aumenta esse efeito útil da capacidade humana de trabalhar (e portanto, em condições capitalistas, inevitavelmente também o lucro dos seus exploradores) é uma nova força produtiva social. Disponível em: <https://comu- nism0.wordpress.com/o-conceito-de-forcas-produtivas/>. Habitus - “é um sistema adquirido de preferências, de prin- cípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencial- mente produto da incorporação de estruturas objetivas e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada). O habitus é essa espécie de senso práti- co do que se deve fazer em dada situação [...]” (BOURDIEU, 1997, p. 42). 24 Sociedade e Contemporaneidade Recapitulando  A história da humanidade, das relações humanas e so- ciais esteve sempre, senão determinada, altamente in- fluenciada pelas tecnologias disponíveis em cada perío- do.  As tecnologias mudam as formas de produção de rique- za e de distribuição destas riquezas.  Novas formas de produção engendram novas formas de relações e modificam culturas, transformando socieda- des.  Modos de produção são as formas como são produzi- das e, sobretudo, distribuídas as riquezas de uma socie- dade. Podem ser estatais (sobre o controle do estado, estatismo) e capitalistas (sobre o controle das empresas privadas).  Modo de desenvolvimento refere-se àquilo que produz a riqueza de uma sociedade, podem ser agrário, cuja maior fonte de riqueza é a terra; industrial (indústria) e informacional (a informação).  A revolução industrial teve três grandes rupturas, três grandes transformações, todas associadas às tecnolo- gias disponíveis nesses períodos históricos.  Vivemos no modo de desenvolvimento informacional que rompe com as noções clássicas de tempo e de es- paço, impondo uma nova velocidade aos fenômenos sociais. Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 25  Os dispositivos comunicacionais complexificam as rela- ções humanas e sociais, pois se constroem na relação todos-todos, sendo assim, essas relações são construí- das de forma cada vez mais secundária e menos primá- ria.  Vivemos na sociedade em rede com maior velocidade e visibilidade nos fenômenos sociais.  O indivíduo e a formação demandada a ele são centrais para a nova produção do social, por isso “ganhamos em liberdade, mas perdemos em certezas”.  Temos a capacidade de disseminar e compartilhar nos- sos conhecimentos, construindo coletivos inteligentes. Referências ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasilien- se, 2000, Coleção Primeiros Passos. ALMEIDA NETO, Honor de. Trabalho Infantil na Terceira Revolução Industrial. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. Disponível em E-book: <http://www.pucrs.br/edipucrs/on- line/trabalhoinfantil.pdf>. ASSMANN, Hugo; MO SUNG, Jung. Competência e sen- sibilidade solidária - educar para a esperança. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. paull Realce paull Realce 26 Sociedade e Contemporaneidade BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. R.J.: Ed. Zahar, 2001. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1997. CAPRA Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1989. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - A era da infor- mação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ______________. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003. _____________. Redes de Indignação e Esperança: movi- mentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pen- samento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. ______. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. ______. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998. ______. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, Cultura e Sociedade. IECPS (Instituto de Estudos de Complexidade e Pensamen- to Sistêmico). Disponível em: < http://www.geocities.com/ complexidade>. Acesso em: 29 abr. 2004. Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 27 MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento com- plexo. In: MARTINS, Francisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da. (ORGs.) Para navegar no século XXI: tecno- logias do imaginário e cibercultura. Porto Alegre: Sulina/ EDIPUCRS, 1999. THUROW, Lester. A Terceira Revolução Industrial. Entrevis- tado por Nely Caixeta, Revista Exame, São Paulo, ideias, p. 100-108, 28 de nov. 2001. REFÊNCIAS DIGITAIS: A SEGUNDA revolução industrial. Disponível em: <http:/www. ufv.br>Acesso em: 08 jan. 2004. TERCEIRA Revolução Industrial e a Reengenharia. Disponível em: <http:/www.ime.usp.br/projetos/fim-dos-empregos> Acesso em: 08 jan. 2004. Atividades 1) Assinale a alternativa incorreta: a) As tecnologias são centrais para a produção das so- ciedades, pois constituem-se em mediações, em meio de comunicação entre os homens. b) O que há de novo hoje, na sociedade informacional, é o papel central que assume a mídia de massa como a televisão, o jornal e o rádio. 28 Sociedade e Contemporaneidade c) A internet revoluciona o mundo e a forma como nos comunicamos unscom os outros, pois coloca em rela- ção direta todos com todos. d) Vivemos em um mundo onde a velocidade e a visibi- lidade transformam as relações primárias em relações construídas cada vez mais de forma secundária. e) As novas mídias permitem a construção de uma Inte- ligência coletiva pela maior possibilidade que cria de conexão entre as pessoas. 2) Quanto à diferença entre modos de produção e modos de desenvolvimento é correto afirmar que: a) Modos de desenvolvimento referem-se à forma como é distribuída a riqueza do trabalho do homem. b) Informacionalismo é o modo de produção típico do capitalismo industrial. c) No modo de produção capitalista, o controle da distri- buição do produto do trabalho é do Estado. d) O modo de desenvolvimento é determinado pelo ele- mento principal para a produtividade, antes agrário, depois industrial e hoje informacional. e) No modo de desenvolvimento agrário a principal fonte de produção de riqueza foi a indústria. 3) A sociedade, atualmente, organiza-se em rede, em Rede Dinâmica nas palavras de Castells. Quais das alternativas Capítulo 1 A Sociedade Contemporânea: Uma Rede Dinâmica 29 abaixo não apresentam dimensões do conceito de Rede Dinâmica? a) Visibilidade, fluidez, velocidade. b) Autonomia, aumento do potencial democrático, flui- dez. c) Rigidez, controle, relações verticalizadas. d) Interdependência, auto-organização, complexidade. e) Indeterminação, abertura, flexibilidade. 4) Não são características do novo mundo do trabalho hoje: a) A demanda por trabalhadores com inúmeras compe- tências, muito além de habilidades restritas a tarefas pré-determinadas. b) A remuneração em função do produto do trabalho em detrimento ao tempo gasto na função. c) A incerteza e a constante necessidade de reinvenção de produtos e de trabalhadores. d) O fim do emprego, mas não o fim do trabalho. e) O controle cada vez mais rígido por parte das gerên- cias das empresas, sobretudo empresas de ponta. 5) Quais das alternativas abaixo não são características da cultura associada às novas mídias e à sociedade do co- nhecimento? a) Autonomia; 30 Sociedade e Contemporaneidade b) Empoderamento; c) Participação; d) Passividade; e) Democratização. Gabriela Ramos de Almeida1 Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital1 1 Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS (2015), Mestre em Comu- nicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA (2009), Bacharel em Comunica- ção Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Estácio - FIB (2004). Atualmente é professora e pesquisadora no curso de Comunicação Social da ULBRA, nas habilitações em Jornalismo e Produção Audiovisual, e coordenado- ra adjunta do curso de Jornalismo. Como pesquisadora e docente, atua na área de Comunicação, com ênfase em Audiovisual, principalmente nos seguintes temas: narrativas audiovisuais, cinema documentário, ensaio fílmico, poéticas contempo- râneas, teorias do cinema, teorias da arte e jornalismo em vídeo e televisão. 32 Sociedade e Contemporaneidade Introdução A morte de uma dona de casa por espancamento, em 2014, no Guarujá (São Paulo), após ter sido “condenada” pelo tribunal popular das redes sociais e linchada brutalmente pelos conter- râneos nas ruas do bairro onde vivia, se tornou paradigmático ao revelar, a um só tempo, o poder de viralização da informa- ção na Internet e os perigos decorrentes da falta de cuidado e de critério ao tomar como verdade e passar adiante aquilo que se lê online. Fabiane Maria de Jesus era casada, tinha dois filhos ainda pequenos e foi vítima de um boato de uma página do Facebook que publicou um suposto retrato falado de uma mulher acusada de sequestrar crianças em Bonsucesso, no Rio de Janeiro, para praticar rituais de magia negra. Fabiane foi confundida com o desenho, atacada na rua e linchada por um grupo de pessoas da sua própria cidade, que não questionou a veracidade da informação, a data da publicação ou o local onde teriam acontecido os crimes atribuídos à mulher (como se soube posteriormente, toda a história era falsa: não havia sequestro e nem magia negra, e um retrato falado relativo ao caso não havia sido divulgado originalmente pela polícia). Para aumentar os contornos brutais do acontecimento, os algozes de Fabiane registraram o linchamento com celulares e publicaram vídeos explícitos no YouTube, como se não hou- vesse problema algum no justiçamento com as próprias mãos; na execução sumária de uma pessoa que passa de suspeita a culpada, e de culpada a condenada à pena de morte, sem sequer saber do que estava sendo acusada, sem ser levada à Justiça e sem possibilidade alguma de defesa (física e moral). paull Realce paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 33 Para piorar ainda mais, os vídeos se tornaram virais2, ou seja, foram compartilhados por milhares de usuários de redes so- ciais digitais. A polícia identificou nos vídeos alguns dos agressores e arrolou no processo também o administrador da página do Facebook em que o retrato falado foi publicado, que foi res- ponsabilizado pela divulgação do boato. No entanto, ainda que não seja possível culpabilizar criminalmente os usuários de redes sociais que compartilharam um boato como se fosse verdade, podemos questionar se eles também não são res- ponsáveis, em alguma medida, pelo trágico desfecho do caso. O questionamento se torna ainda mais plausível quando se considera que a página em questão não era de um jornal ou meio qualquer de imprensa (ou seja, conteúdo produzido por jornalistas profissionais) e sim, apenas uma página amadora de divulgação de notícias policiais locais. O exemplo que abre este texto permite iniciar uma discus- são sobre diversos aspectos que envolvem a chamada sociabi- lidade online e alguns fenômenos a ela associados, especial- mente o consumo de notícias e de conteúdo de entretenimento; a presença dos indivíduos nas redes sociais digitais; a criação de narrativas pessoais sobre suas próprias vidas; os laços que 2 Mendes Júnior e Costa definem o viral como algo que “se refere à forma de comunicação cuja dinâmica replica a da introdução de um vírus num sistema, disseminação abrangente, veloz e fora de controle. Na era da tecnologia, quando milhares de pessoas estão conectados à webesfera o tempo todo, ideias são propagadas rapidamente nas redes sociais.” (MEN- DES JÚNIOR e COSTA, 2014, s/p). 34 Sociedade e Contemporaneidade estabelecem com outros usuários e os seus comportamentos de produção e difusão de informações e conteúdos diversos. Redes sociais “analógicas” sempre existiram em alguma medida como espaços de sociabilidade envolvendo grupos unidos por laços familiares, profissionais, de amizade ou in- teresses em comum. Mas, ao mesmo tempo, o cenário que se desenha após a popularização da Internet banda larga, das redes sociais e dos dispositivos móveis de comunicação (como smartphones, tablets e notebooks) embaralha alguns conceitos e torna confusos alguns limites que dizem respeito aos fenôme- nos mencionados acima como, por exemplo: as fronteiras en- tre o público e o privado (muito mais fáceis de serem definidas no passado, quando as pessoas se expunham prioritariamente em seus círculos pessoais mais próximos); as diferenças entre a notícia e o boato; entre um jornalista e um cidadão comum que presencia um fato e o relata numa rede social; ou entre uma rede social e um veículo de comunicação tradicionalmen- te instituído. No entanto, antes de avançar, é necessário definir o que são exatamente as redes sociais na era digital e estabe- lecer alguns parâmetros que vão nortear a discussão proposta pelo texto. 2.1 As redes sociais como espaços de sociabilidade Talvezas redes sociais não sejam responsáveis pela criação de fenômenos sociais ou comunicacionais até então inexisten- tes, mas certamente modificam seus modos de operação, ao paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 35 afetar a sociabilidade humana ampliando exponencialmente o seu alcance. Nossa perspectiva, alinhada com Manuel Cas- tells, evita o dilema do determinismo tecnológico e considera que “a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecno- lógicas” (CASTELLS, 2009, p. 43, grifo do autor). Entretanto, algumas questões podem ser levantadas a respeito do modo como a tecnologia, em sua inevitável inserção no cotidiano dos indivíduos nas sociedades industrializadas, interfere nesta sociabilidade. Muitos exemplos podem ser convocados para exemplificar a discussão ou iniciar um debate sobre as possibilidades da comunicação pós-redes sociais digitais (qualquer usuário de ferramentas e plataformas como Facebook, Instagram, Twitter ou YouTube é capaz de citar um caso viralizado que tenha lhe chamado muito a atenção). Como explica Raquel Recuero, estes fenômenos representam mudanças nos modos de “orga- nização, identidade, conversação e mobilização social”, pois a comunicação passa a permitir uma capacidade de conexão diferente: as redes conectam não apenas computadores, mas pessoas (RECUERO, 2010, p. 16-17). A autora aponta a possibilidade de expressão e sociabi- lização por meio das ferramentas de comunicação mediada pelo computador (e posteriormente pelos demais dispositivos móveis, podemos acrescentar) como a principal mudança que a Internet trouxe à sociedade. O que define uma rede social, segundo Recuero, são seus elementos: “atores (pessoas, insti- tuições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)” (RECUERO, 2010, p. 24). paull Realce paull Realce paull Realce 36 Sociedade e Contemporaneidade Os sites de redes sociais, a exemplo do Facebook, permi- tem a criação de espaços públicos mediados, ou seja, “am- bientes onde as pessoas podem reunir-se publicamente através da mediação da tecnologia” (BOYD apud RECUERO, 2009). Estes ambientes guardam algumas características que são de- finidas por Boyd e recuperadas por Recuero: • Persistência: Refere-se ao fato de aquilo que foi dito permanecer no ciberespaço. Ou seja, as informações, uma vez publicadas, ficam no ciberespaço; • Capacidade de Busca (searchability): Refere-se à capa- cidade que esses espaços têm de permitir a busca e per- mitir que os atores sociais sejam rastreados, assim como outras informações; • Replicabilidade: Aquilo que é publicado no espaço di- gital pode ser replicado a qualquer momento, por qual- quer indivíduo. Isso implica também no fato de que essas informações são difíceis de ter sua autoria determinada; • Audiências Invisíveis: Nos públicos mediados, há a presença de audiências nem sempre visíveis através da participação [...] (RECUERO, 2009). Apesar do lugar de protagonismo que as redes sociais ocu- pam na sociabilidade do nosso tempo, é importante lembrar que elas se expandem fora e além do ambiente virtual, no modo como os indivíduos se utilizam delas para criar novos laços ou manter os já existentes – laços estes que irão afetar a sua vida de forma concreta. E não apenas isso: as pessoas passam boa parte do tempo em que estão acordadas aces- paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 37 sando redes sociais para fins de relacionamento pessoal, mas também para falar de si, trabalhar, se informar, divulgar, co- mentar e compartilhar conteúdos, tornando mais complexa a sua presença online. Este comportamento contribui para a criação de comuni- dades virtuais, definidas por André Lemos como agregações “em torno de interesses comuns, independentes de fronteiras ou demarcações territoriais fixas”, instituindo um território sim- bólico e não físico (LEMOS, 1997, s/p). O alargamento dos laços sociais em espaços que não são definidos geografica- mente constitui uma mudança importante do cotidiano pós- -redes sociais digitais, embora, como aponta Recuero (2010, p. 135), tecnologias anteriores como o telefone e a carta já proporcionassem a comunicação entre os indivíduos indepen- dente de sua presença física num mesmo lugar. O que ocorre, segundo Lemos, é que o ciberespaço (for- mado pelas redes informáticas, a realidade virtual e o universo multimídia) promove uma forma distinta de cultura que se de- senha a partir da convergência do social com o tecnológico. Como aponta o autor, não deixa de ser interessante que a tec- nologia, vista historicamente como um instrumento de aliena- ção, desencantamento e individualismo se torne a ferramenta promotora de um novo tipo de sociabilidade: “A cibercultura que se forma sob os nossos olhos mostra como as novas tec- nologias são efetivamente ferramentas de compartilhamento de emoções, de convivialidade e de retorno comunitário” (LE- MOS, 1997, s/p). 38 Sociedade e Contemporaneidade 2.2 A construção da presença online No presente, quando falamos em redes sociais, as referên- cias imediatas são Facebook, Twitter e Instagram. No entan- to, alguns anos antes da popularização destas ferramentas já existiam outras plataformas de autopublicação e troca de mensagens que permitiam a qualquer usuário da rede pro- duzir e compartilhar seus próprios conteúdos e opiniões em blogs e fotologs, bem como existiam sites, fóruns e serviços de comunicação instantânea que os usuários utilizavam como chats (a exemplo dos instant messengers como o extinto MSN e de sites como Bate-Papo UOL ou Terra Chat, para ficar nos brasileiros). O tipo de uso que deles se fazia é semelhante ao que ocor- re atualmente, embora as redes mais populares hoje operem uma espécie de junção entre as funcionalidades das ferramen- tas de autopublicação e os serviços de troca instantânea de mensagens. Este uso que visa à exposição e ao relacionamento interpessoal situa-se naquilo que Paula Sibilia (2003) nomeia como “imperativo da visibilidade”, um desejo de exibição que muitas vezes torna pouco definíveis as fronteiras entre o públi- co e o privado, a depender de como um sujeito decide existir e se expor nas redes sociais digitais. A existência de uma rede específica para o compartilhamento de fotografias como o Ins- tagram, por exemplo, denuncia e ao mesmo tempo alimenta a lógica da exposição online baseada numa construção de si a ser tornada pública. Para Sibilia (2003, s/p), mais do que simplesmente respon- der se os limites entre público e privado se apagaram, é im- paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 39 portante considerar que a subjetividade contemporânea está passando por um processo de alteração bastante significativo, do qual as redes sociais são sintoma e fomentadoras, mas que também aparece na busca por visibilidade presente em publicações como revistas de celebridades, em reality shows, documentários em primeira pessoa e biografias e autobiogra- fias literárias. As chamadas “narrativas do eu” vivem transfor- mações profundas, “acompanhando as mudanças que estão acontecendo em todos os âmbitos – marcados pela acelera- ção, a virtualização, a globalização, a digitalização” (SIBILIA, 2003, s/p). A presença online é transformada, portanto, numa espécie de “performance” em que o indivíduo alimenta uma projeção de si num perfil de rede social (ou de várias, de forma com- plementar). Há pessoas que passam inclusive a ganhar a vida em função desta exposição, transformando seu cotidiano em produto a ser consumido por outros usuários das mesmas re- des: não são artistas, modelos, atletas, políticos ou figuras de referência em qualquer área. São celebridades daInternet, e hoje este título tem valor por si só, principalmente comercial. Talvez a socialite norte-americana Kim Kardashian seja o exemplo maior neste segmento que extrapola em muito as re- des sociais digitais: ganhou fama após a divulgação de um vídeo amador de sexo explícito que ela mesma tornou público (nem a intimidade do ato sexual resistiu ao imperativo da vi- sibilidade), expandiu sua presença da Internet à comunicação massiva tradicional (especialmente a televisão e as publica- ções impressas) e, enfim, passou a atuar como modelo e em- presária, nunca deixando de alimentar os seus perfis nas redes paull Realce 40 Sociedade e Contemporaneidade sociais, principal espaço de divulgação do produto que ela vende, que é a sua própria persona. Diferentemente do que quer o senso comum, a ideia de performance atrelada à presença online não está vinculada à mentira ou ao fingimento, pois as coisas são mais complexas do que nos diz o meme segundo o qual todas as pessoas são felizes nas redes sociais. O fato de a presença online pressu- por performance não significa necessariamente que as pesso- as mintam em relação ao que expõem, mas sim que escolhem, selecionam aquilo que querem tornar público a respeito da sua vida, trabalho, convívio familiar, interesses pessoais, lazer e dos diversos aspectos da sua rotina. Mesmo que por vezes haja a impressão de superexposição, os indivíduos fazem recortes segundo aquilo que consideram suas maiores qualidades, ou ainda de acordo com o modo como gostariam de ser vistos socialmente. E a partir deste re- corte, cada um vai construindo as suas possibilidades de so- cialização nas redes sociais digitais e constituindo grupos de interesse. Como explica Recuero: Judith Donath (1999) sustenta que a percepção do Outro é essencial para a interação humana. Ela mostra que, no ciberespaço, pela ausência de informações que geral- mente permeiam a comunicação face a face, as pessoas são julgadas e percebidas por suas palavras. Essas pala- vras, constituídas como expressões de alguém, legitima- das pelos grupos sociais, constroem as percepções que os indivíduos têm dos atores sociais. É preciso, assim, colocar rostos, informações que gerem individualidade e paull Realce paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 41 empatia, na informação geralmente anônima do ciberes- paço (RECUERO, 2010, p. 27). As pessoas constroem, assim, através da distinção, uma persona pública “adequada” às redes sociais digitais que gosta de algumas coisas e detesta outras (sim, falar do que se detes- ta é tão importante quanto falar do que se ama na elaboração desta performance); que frequenta determinados ambientes e círculos sociais (embora certamente não apenas aqueles que mostra); que manifesta opiniões políticas a partir de um deter- minado lugar de fala; que tenta tomar cuidado com o que diz a depender de quem vai ler. Mas não é esta, afinal, a forma como todos nós tentamos nos expor e nos projetar enquanto sujeitos nos mais diversos âmbitos da vida fora da Internet? 2.3 O consumo e a difusão da informação com o advento das redes sociais digitais A seção anterior do texto foi iniciada com menções aos blogs e fotologs, apontados como espaços de sociabilidade online que antecederam as redes sociais que conhecemos e utiliza- mos atualmente. É possível, no entanto, apontar uma diferen- ça fundamental de alcance entre os conteúdos publicados nos blogs dos primórdios da Internet e aquilo que circula nas re- des sociais do presente: nos blogs, o usuário publicava algo e esperava que alguém desempenhasse a ação de ir até a sua página para ler o seu conteúdo (divulgado prioritariamente por email e por messengers). 42 Sociedade e Contemporaneidade Enquanto isso, redes sociais como Facebook e Twitter são alimentadas de forma endógena pelos próprios usuários, que produzem conteúdos ou compartilham conteúdos produzidos por terceiros (que podem ou não ser empresas jornalísticas ou de entretenimento formalmente constituídas), de acordo com uma lógica segundo a qual basta estar online com estas pá- ginas abertas para “receber” aquilo que seus contatos nestas redes irão compartilhar. A possibilidade de compartilhamento potencializa imensa- mente o alcance dos conteúdos, e um post publicado numa rede social pode se tornar viral em poucas horas (algo que dificilmente acontecia com as publicações daqueles primeiros blogs). Atualmente, o potencial de alcance dos blogs é maior do que no passado em função da profissionalização do campo e também da possibilidade de viralização dos seus links nas re- des sociais mais populares. Os blogs foram vistos, inicialmen- te, como uma forma amadora de divulgação de textos e ideias ou como uma espécie de diário virtual, mas hoje, apesar de seguirem abrigando conteúdos amadores e pessoais, também formam, em sua vertente mais profissionalizada, um espaço importante de produção de conteúdo e publicação fora do es- paço convencional dos grandes veículos de comunicação (ou mesmo hospedados nos portais destes veículos). No entanto, o fato de, a princípio, qualquer pessoa poder se tornar um produtor de conteúdo ao publicar um texto, fo- tografia, vídeo ou informação numa rede social não significa que todo usuário produza notícia ou possa ser considerado um jornalista. A distinção entre informação e notícia é funda- mental, especialmente em um momento em que a falta de cri- paull Realce paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 43 tério em relação àquilo que se decide passar adiante – seja no Facebook, no Twitter ou mesmo no Whatsapp – pode resultar em tragédias como a da dona de casa Fabiane de Jesus ou, de forma menos grave, na destruição da reputação de indivíduos e empresas em poucos minutos. Por este motivo é importante, também, pensarmos no nosso próprio lugar enquanto consu- midores e divulgadores de todo tipo de conteúdo nas redes sociais, especialmente aqueles que incluem juízos de valor. A Internet inaugurou possibilidades até então inéditas de autopublicação, ou seja, qualquer pessoa que disponha de um computador ou dispositivo móvel com acesso à rede e um perfil em rede social ou plataformas de compartilhamento como o YouTube pode divulgar o que quiser. Se, antes, tínha- mos um cenário em que poucas empresas e grupos de comu- nicação produziam quase todo o conteúdo e as informações que eram consumidas pelas populações em escala mundial (o que caracterizava a comunicação de massa), atualmente esta produção é muito mais difusa e descentralizada, o que tem inclusive provocado uma crise no jornalismo como o conhece- mos e ocasionado enxugamentos em redações. No entanto, quando se tem um volume de informações cir- culando tão grande que inclusive supera as possibilidades de que todas elas sejam efetivamente consumidas, o jornalismo opera como um balizador fundamental no sentido de orien- tar os cidadãos em relação à diferença entre notícias e meras informações produzidas e divulgadas de forma amadora, que não passaram pelos processos envolvidos na criação de con- teúdo jornalístico. São algumas destas etapas: elaboração de uma pauta, checagem e verificação, apuração, realização de paull Realce 44 Sociedade e Contemporaneidade entrevistas com todos os lados envolvidos e pesquisa docu- mental, bem como a avaliação dos chamados “valores-notí- cia” (conjunto de qualidades ou atributos de um fato, que são levados em consideração no momento em que se analisa se um acontecimento qualquer deve ou não ser noticiado, como a quantidade de pessoas envolvidas e a sua importância so- cial, fator tragédia, a proximidade local, atualidade, concor- rência, perfil editorial da empresa, as chances de interessar a um grandenúmero de pessoas, entre outros)3. É possível que o caso da dona de casa assassinada no Guarujá não tivesse um fim trágico e cruel se a história do fal- so retrato falado tivesse sido devidamente apurada. A notícia não seria a suspeita de que uma mulher sequestrava crianças para usá-las em rituais de magia negra, e sim que um perigo- so boato envolvendo um crime falso estava mobilizando uma cidade e poderia resultar numa tentativa de vingança por parte da população. Esse equilíbrio entre a liberdade proporcionada pela auto- publicação na Internet e o respeito à informação de qualidade é bastante difícil de ser alcançado, mas a função balizadora do jornalismo segue forte: normalmente, quando queremos verificar se uma informação publicada numa rede social é ver- dadeira ou não, consultamos a imprensa tradicional, buscan- do as rádios conceituadas na produção de notícias, acessando os portais dos jornais de maior credibilidade ou mesmo aguar- dando o noticiário televisivo. O problema ocorre quando o 3 Ver, a este respeito: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1999. paull Realce paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 45 ímpeto de compartilhar se sobrepõe à necessidade de saber se um fato qualquer é falso ou verdadeiro e quais são as suas nuances, contribuindo para a circulação de boatos que só au- mentam a sensação de confusão e excesso de informação que é partilhada por muitos usuários das redes sociais. A existência da imprensa e de veículos de comunicação com grande credibilidade construída historicamente não quer dizer que o jornalismo é infalível. É possível que o Jornalismo, como instituição, nunca tenha sido tão criticado quanto no presente. Se, antigamente, tínhamos um cenário em que se tomava como verdade absoluta o que era noticiado pelo jor- nalismo, atualmente as redes sociais não apenas ampliam a circulação das notícias como também oferecem outras visões, contrapontos, espaços de resposta e desmentidos, exigindo do usuário um papel bastante ativo na filtragem e na avaliação daquilo que ele consome e que vai ajudar a constituir a sua experiência no mundo. A relação do jornalismo com as redes sociais, portanto, é de retroalimentação, tanto do ponto de vista de quem produz notícias quanto de quem consome4: a imprensa baseia a sua produção de notícias em parte na repercussão real ou poten- cial de determinados assuntos nas redes sociais, de modo que as redes pautam efetivamente o jornalismo. O contrário tam- bém ocorre, e as discussões nas redes sociais são pautadas 4 Sobre a ausência de uma vocação essencialmente jornalística das redes sociais digitais e sua relação de complementariedade com o jornalismo, ver o artigo Redes Sociais na Internet, Difusão de Informação e Jornalismo: Elementos para discussão, de Raquel Recuero (2009). 46 Sociedade e Contemporaneidade pelo que o jornalismo noticia, especialmente no âmbito da política e dos costumes. Ao mesmo tempo, como consumidores, quando lemos algo numa rede social que pode ser conteúdo amador ou falso, buscamos acessar o portal da Folha de São Paulo, da Globo, ou localmente da Zero Hora ou da rádio Gaúcha para veri- ficar se aquilo é verdade; em seguida, voltamos para a rede social e somos expostos ao compartilhamento massivo destas mesmas notícias, acompanhado de comentários que confir- mam, problematizam, desmentem ou complementam aquela informação que acabamos de consumir, num fluxo bastante complexo e circular. Ocorre que esse fluxo será quase sempre determinado por aquilo que cada um escolhe consumir nas re- des sociais, a depender de quem sejam as suas conexões nas redes e do tipo de conteúdo publicado pelas páginas e perfis que o indivíduo segue. Em outros tempos, o máximo que o consumidor de notícias e conteúdos podia fazer era trocar de canal, de estação, desli- gar a TV ou o rádio e fechar o jornal/revista (mas nunca alterar aquilo que tinha sido produzido e estava sendo exposto). Hoje em dia, o usuário pode selecionar de forma mais ativa os con- teúdos e as notícias com os quais deseja ter contato de acordo com diversos critérios, como o interesse pessoal por um con- junto de assuntos, o seu posicionamento político-ideológico, seus valores familiares, religiosos etc. Assim se decide, por exemplo, quais páginas e perfis cada um quer acompanhar. No entanto, quando as pessoas aplicam esses filtros, por vezes acabam restringindo também o seu universo informativo paull Realce Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 47 e de referências, fazendo com que a experiência de consu- mo de notícias e conteúdos se baseie somente no que seus contatos nas redes e as páginas que segue compartilham. Ao mesmo tempo em que esta abertura representa uma possibili- dade de autonomia do indivíduo que passa a ser responsável pelo seu consumo de bens simbólicos, também pode significar uma restrição da sua “dieta” informacional e cultural, levando a uma interpretação do mundo pouco tolerante e aberta à diferença, já que é possível que a pessoa receba apenas con- teúdos com os quais concorda de antemão e que dialogam com a sua própria visão de mundo. Isto pode acontecer a partir do momento em que as pessoas passam a tomar como universais alguns conjuntos de parâme- tros e valores que na verdade são individuais ou, no máximo, dizem respeito apenas àquele grupo de pessoas que são suas conexões nas redes, criando falsos consensos. É importante considerar a existência de uma relação pendular e dialética entre a experiência individual e a coletividade. Do contrário, ao restringir o nosso consumo de informações apenas ao que nos interessa pessoalmente ou a pessoas e páginas que di- vulgam notícias alinhadas à nossa visão de mundo, podemos passar a achar que esses valores são universais. O consenso sobre um assunto qualquer nas minhas redes sociais não significa que aquela é a visão geral da opinião pública, apenas que é a visão compartilhada pelos meus con- tatos (que pode condizer com a visão da opinião pública, mas não o vai necessariamente). É fundamental, portanto, que os indivíduos sejam capazes de dialogar, inclusive, com outros que comungam valores distintos, mas que habitam o mesmo paull Realce 48 Sociedade e Contemporaneidade bairro, cidade, estado, país, contribuindo para a formação de uma experiência coletiva mais plural. A ideia de performance e de produção de uma projeção de si que aparece no uso que é feito das redes sociais digitais está associada não apenas àquilo de muito pessoal que um sujeito publica (como relatos de viagens, impressões sobre lugares e produtos ou fotografias de momentos íntimos e familiares). O que ele comenta, opina e compartilha nas redes também constitui uma parte importante desta performance, pois ajuda a construir uma persona que comunga de uma determinada visão de mundo e utiliza o espaço das redes para manifestá-la. O modo como nos relacionamos com os indivíduos que nos são próximos no contato físico (como parentes, colegas de trabalho ou da universidade, amigos etc.) também é afetado por essa projeção, pois, ao estabelecer conexões nas redes sociais com as pessoas que conhecemos pessoalmente, toma- mos contato com opiniões e interesses que por vezes nos eram desconhecidos, descortinando outras facetas destas pessoas, para o bem e para o mal. Podemos dizer que a experiência da rede social não se encerra no ambiente virtual, e sim trans- cende a vida concreta. E porque, também, é fundamental agir nas redes sociais com a mesma responsabilidade e critério que pautam a vida fora delas. Capítulo 2 Redes Sociais na era Digital 49 Recapitulando Este capítulo buscou discutir a participação dos usuários nas redes sociais digitais
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