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EA D Teorias Geopolíticas 6 1. OBJETIVO • Apresentar os temas e as discussões relacionadas às teo- rias geopolíticas. 2. CONTEÚDOS • A crise da Geopolítica clássica e a emergência de novos temas. • As possibilidades de conflito devido às questões econô- micas. • Os choques culturais entre civilizações. • O discurso da democracia liberal ocidental e suas impli- cações. • Geopolítica da água. © Geopolítica162 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para uma leitura mais aprimorada sobre o tema da uni- dade, recomendamos a obra VESENTINI, W. J. Novas geopolíticas. São Paulo: Contexto, 2004. 2) Sobre um dos novos temas das teorias geopolíticas con- temporânea, chamada de Geopolítica Ambiental, reco- menda-se a leitura de BECKER, B. K. Geopolítica da Ama- zônia. Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, n. 53, p. 71-86, 2005. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24081.pdf>. Acesso em: 28 maio 2013. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, estudamos as questões geopolíticas no continente americano, notadamente nos Estados Unidos da Amé- rica e na República Federativa do Brasil no século 20. Conforme mencionado, o declínio do pensamento geopo- lítico clássico e a nova configuração do mundo pós-Guerra Fria, dissolução do bloco soviético, neoliberalismo, globalização, blocos econômicos, dentre outros novos temas, tiveram forte direciona- mento dos Estados Unidos, que representavam a maior potência em termos militares e econômicos nessa nova ordem mundial. No entanto, outros atores estatais e não estatais (empresas, ONGs, ONU, entre outros) passam a influenciar as relações inter- nacionais, tanto nos aspectos políticos quanto econômicos, sociais e ambientais, de modo que o contexto atual é caracterizado pelo multilateralismo e a presença de diversos temas na agenda inter- nacional. Nesta unidade, estudaremos os principais temas ligados às teorias geopolíticas. Claretiano - Centro Universitário 163© U6 - Teorias Geopolíticas 5. A CRISE DA GEOPOLÍTICA CLÁSSICA E A EMERGÊN- CIA DE NOVOS TEMAS A partir do final da Segunda Grande Guerra, a Geopolítica Clássica ingressou em um período de questionamento em relação aos seus pressupostos fundamentais. Tal fato se deve à sua relação com o nazifascismo na Alemanha e Itália, assim como com as po- líticas expansionistas da nação germânica e do Japão. No entanto, vale ressaltar que a Geopolítica no Brasil, no Chile e na Argentina, por exemplo, continuaram a se desenvolver como fundamento para as políticas territoriais do Estado. Na década de 1970, a Geopolítica assume uma nova roupa- gem, impregnada pelo embate ideológico entre as potências do bipolarismo e seus sistemas econômicos antagônicos. Nesse senti- do, as discussões sobre o poder marítimo versus o poder terrestre ou sobre o heartland são substituídas pelas teorias a respeito do socialismo e do capitalismo em um contexto de Guerra Fria, assim como as possibilidades de uma Terceira Grande Guerra. O futuro da humanidade, a relação entre corrida armamen- tista e gastos nacionais exorbitantes, assim como as questões re- lacionadas ao desenvolvimento dos Estados, notadamente o mo- vimento dos não alinhados, eram temáticas colocadas em pauta dada a conjuntura internacional da época. Dessa forma, "[...] pen- sar a guerra (ou opor-se) tornou-se uma necessidade imperiosa para os movimentos sociais, as instituições de pesquisa e os inte- lectuais em geral" (VESENTINI, 2004, p. 26). As radicais mudanças ocorridas entre os anos de 1989 e 1991, sobretudo o fim do conflito bipolar e o esfacelamento da União Soviética, fez com que discussões envolvendo o futuro do sistema internacional viessem à tona, ou seja, o estabelecimento de uma nova ordem mundial apresentou-se como um novo e im- portante objeto de pesquisas e reflexões, assim como quem seria a potência mundial dominante. Vale ressaltar que a excessiva milita- © Geopolítica164 rização do período da Guerra Fria gerou, como já mencionado, al- tos gastos nacionais, fato que desconsiderou a chamada economia civil. Nesse sentido, a nova reorganização do sistema internacional daria maior ênfase nas questões relacionadas à globalização, revo- lução técnico-científico-informacional e formação ou consolidação de blocos econômicos em detrimento das questões militares. Nesse ponto, pode-se inferir que "a excessiva militarização das políticas externas" e a "negligência de outras ameaças ao bem- -estar nacional" durante o período da Guerra Fria, assim como os efeitos da globalização, fizeram com que a insegurança global au- mentasse, ao passo que novas contendas começaram a ganhar cada vez mais destaque, como as questões ambientais, políticas, econômicas e sociais, assim como os chamados "problemas sem passaporte" (tráfico internacional de drogas e pessoas, terrorismo, AIDS, dentre outros), fazendo com que o conceito de segurança humana fosse cada vez mais enfatizado, gerando a necessidade de ampliar/revisar o conceito de segurança militar. Segundo Cravo (2009, p. 69), "[...] os conflitos intra-estatais substituíram os interestatais como principal ameaça à segurança do sistema internacional [...]". Dessa forma, o fim do conflito bipo- lar fez com que as questões de cunho humano fossem enfatizadas, notadamente a chamada segurança humana, especialmente como se assistiu na década de 1990 nos conflitos civis onde os direitos humanos foram desrespeitados em larga escala. Apesar do conceito de segurança estar ainda inserido nas questões de soberania estatal, nota-se a ênfase nas relações de coo- peração e diálogo em detrimento das relações de competição e con- flito da Guerra Fria, destacando-se ainda o papel das instituições in- ternacionais (ONGs e OIGs), assim como da própria sociedade civil, rompendo-se com a visão unicamente estadocêntricas do realismo. Nesse contexto, a teórica Mary Kaldor (2001, p. 1-12) aponta o surgimento de um novo tipo de violência que marcaria as cha- madas "novas guerras" no contexto da globalização. Tais guerras Claretiano - Centro Universitário 165© U6 - Teorias Geopolíticas (intraestatais) se diferenciam das guerras clássicas (interestatais) pela dificuldade de se diferenciar o interno do externo, ou seja, há participação de diversos atores internacionais, como os orga- nismos internacionais governamentais ou não governamentais, a mídia e as multinacionais, que são movidas pelos interesses das grandes potências. Nesse sentido, as novas guerras seriam mar- cadas por objetivos políticos e econômicos que envolveriam o cri- me organizado e a violação dos direitos humanos em larga escala, como assistiu-se nos conflitos civis da década de 1990 no conti- nente africano e no leste europeu. Assim, faz-se necessário atentar às questões envolvendo as novas temáticas da Geopolítica, enfatizando-se o predomínio das questões econômicas sobre as militares. Nesse sentido, as teorias seguintes apresentam em comum a importância dada ao pode- rio econômico em detrimento do poderio militar. Estas foram for- muladas em plena crise do mundo socialista e do conflito bipolar, época em que a disputa de alinhamentos ideológicos era intensa, especialmente na busca de mercados para a ideologia capitalista. Além disso, nesse período pode-se identificar a formação dos pri- meiros blocos econômicos. 6. AS POSSIBILIDADES DE CONFLITO DEVIDO ÀS QUESTÕES ECONÔMICAS Segundo Vesentini (2004, p. 33), as disputas mundiais pas- saram a ser essencialmente econômicas. Baseado nas ideias de Luttwak, expressas no artigo "Da Geopolítica à Geoeconomia", pu- blicado na revista TheNational Interest em 1990, aponta que, com o colapso da União Soviética, houve a substituição das guerras mi- litares por conflitos econômicos. A existência de guerras militares não teria uma importância significativa como teve antes da Guerra Fria. A lógica da guerra não seria mais ideológica ou armamentista; seria regulamentada pelas conquistas de novos mercados, aprimo- ramento de novas tecnologias e deficits de balança de mercado. © Geopolítica166 No entanto, aceitando-se que a Geopolítica estaria sendo substi- tuída por uma Geoeconomia, seria importante apontar também o en- fraquecimento do Estado-Nação, pois este não possui um papel único no processo. Ele divide uma parte de seu poderio com as empresas trans- nacionais, novas tecnologias, organizações globais e até mesmo com as privatizações, que diminuíram o espaço do poder público na economia. Nesse contexto, pode-se observar uma maior interferência nos assuntos internos dos Estados em nome dos direitos humanos ou do sistema global, alterando o conceito de soberania definido no Tratado de Westfália de 1648, que contemplava o princípio da não intervenção e da integridade dos Estados Nacionais. Haveria uma tendência de disputa entre três regiões: Japão, Europa e os Estados Unidos. Porém, essa disputa não seria como no passado, quando o objetivo era destruir o adversário, uma vez que a interdependência dos Estados, sobretudo por meio da eco- nomia e do comércio internacional, gerou a necessidade de pro- moção da cooperação, pois as crises internacionais poderiam facil- mente atingir todos os Estados no sistema internacional, como se tem assistido nas crises econômicas recentes. Neste sentido, a única ameaça ao capitalismo seria o descon- tentamento gerado pela desigualdades sociais, migrações e injus- tiças econômicas, que está promovendo o aumento da xenofobia e movimentos extremistas. Para isso, são necessários investimentos em desenvolvimento, melhor distribuição de renda, infraestrutura, educação, assistência médica e qualificação da força de trabalho. No que se refere às novas Geopolíticas, os megablocos ou blocos regionais, em detrimento dos Estados Nacionais, serão cada vez mais fundamentais nas relações internacionais, tendo as relações de poder forte ênfase nas questões econômicas. De acor- do com Vesentini (2004, p. 36): "[...] essa interpretação consiste basicamente na idéia de que são os megablocos, e não mais os Estados Nacionais, que dominam o cenário mundial ou as relações de poder no espaço planetário. Claretiano - Centro Universitário 167© U6 - Teorias Geopolíticas Essa ideia começou a ser formulada e percebida antes mes- mo do término da Guerra Fria, durante a qual pode-se identificar o crescimento econômico da Europa Ocidental e do Japão que, jun- tamente com os Estados Unidos, dominavam o sistema capitalista. Assim, o mundo seria dividido em três blocos regionais preponde- rantes: o americano, o europeu (que incluiria a África) e o asiático (que incluiria a Oceania). O sucesso da integração europeia, cujo exemplo tenta ser imitado em outras partes do mundo, por meio do Nafta, Mercosul, Apec, Alca, fizeram com que muitos acreditassem que, por inter- médio da formação desses blocos, haveria uma nova ordem geo- política mundial que seria multipolar e marcada pelas associações de países ao redor de um Estado central. No entanto, do ponto de vista geopolítico, essa ideia é du- vidosa, pois, com exceção da União Europeia, que possui uma coesão político-diplomática concreta, a maioria dos blocos é es- sencialmente formada por questões econômicas, não tendo uma atuação conjunta como sujeitos em assuntos políticos e militares. Existe, sem dúvida, uma tendência à regionalização, ocorri- da em decorrência da interdependência econômica; no entanto, tal processo não se dá igual em todo o mundo. Cada bloco evolui de acordo com seu interesse, e essa evolução ocorre por etapas. Porém, segundo Vesentini (2004, p. 35-38), essa regionalização, na verdade, é apenas uma forma pela qual avança a globalização e não uma nova divisão do mundo ou um fechamento dos continen- tes em "blocos" alternativos. No que se refere à globalização, Milton Santos (1997) aponta que seus processos ocorrem de formas e intensidades diferentes nas diver- sas partes do globo. A evolução da ciência, tecnologia e informação, re- ferida pelo geógrafo como "meio técnico-científico-informacional", [...] se dá em muitos lugares de forma extensa e contínua (Europa, Estados Unidos, Japão, parte da América Latina), enquanto em ou- tros (África, Ásia, parte da América Latina) apenas pode se manifes- tar como manchas ou pontos (SANTOS, 1997, p. 39). © Geopolítica168 Observe, na Figura 1, um esquema que representa as etapas de um processo de integração regional e suas características. Nível de integração Área de livre comércio União aduaneira Mercado Comum União econô- mica e (even- tualmente) monetária União política Os menbros concordam em eliminar tarifas e barrei- ras não tarifárias entre si, porém cada qual mantem suas próprias restrições comerciais com países não menbros. Exemplo: Nafta, Efta, Asean, Australia and New Zealand Closer Economic Relations Agreement (CER) 8.63 Tarifas externas comuns. Exemplo: Mercosul Livre movimentação de bens, mão de obra e capital. Exemplo: Comunidade Econômica Européia pré-1992 Política monetária e fiscal unificadapor uma autori- dade central. Exemplo: a atual União Europeia exibe políticas comer- ciais, agrícolas e monetárias comuns. Todas as políticas por meio de uma organização comum: desaparecimento da distinção entre as instituições nacio- nais. Exemplo: permanece como um ideal, ainda a ser atingido. Fonte: Cavusgil, Knight e Riesenberger (2010, p. 168). Figura 1 Níveis de integração regional entre países. De acordo com alguns geógrafos, a nova Geografia do mun- do seria baseada no sistema global, que seria uma espécie de ator muito mais importante do que os próprios Estados Nacionais e as Organizações Internacionais ou blocos econômicos. Há diferentes versões para essa teoria, mas todas elas apos- tam na crise do Estado-Nação, que deixaria de ser o ator principal no cenário internacional. O conceito de potência, segundo essa teoria, também estaria ultrapassado e a análise desse sistema glo- bal seria a chave para entender as relações de poder, cujo alicerce estaria no sistema capitalista. Talvez o principal teórico dessa linha de interpretação seja Im- manuel Wallerstein, ele acredita que existem potências hegemôni- cas, e que estas ainda têm um papel importante para desempenhar, mas já não são elas que comandam de fato as mudanças. Essa mu- dança é responsabilidade do sistema global e da economia. Claretiano - Centro Universitário 169© U6 - Teorias Geopolíticas Autor de "The Modern World System" (2011), Wallerstein enfati- za os fatos históricos como determinantes para se entender a dinâmica do sistema internacional, contrariando a posição realista das Relações Internacionais que se baseiam na análise sistêmica e sua influência na história. Nesse sentido, o teórico faz referência à ebulição social do ano 1968 como fator de grande influência para as "revoluções" do século 21, como a recente chamada "Primavera dos Povos Árabes". Wallerstein chega a aceitar o termo "geocultura" como de- corrência da análise do sistema-mundo e da cultura global e seus conflitos. O problema é que essa construção totalitária do globo precede as ações de atores menores, como os Estados, empresas e associações internacionais. Essa teoria, embora tenha aspectos em comum com a teoria do sistema-mundo a respeito de que a globalização e seus pro- cessos propiciam uma regionalização e enfraquecem os Estados Nacionais, tem umaabordagem distinta, pois favorece os atores menores (região, lugar, indivíduos, pequenas empresas). O sistema global, de acordo com essa teoria, é visto como algo extremamente positivo e como a garantia da humanidade para um mundo próspero. Para Paul Kennedy, em sua obra Ascensão e queda das gran- des potências: transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000, o maior conflito gerado pela nova ordem mundial é o au- mento das disparidades entre os países do Norte em relação aos países do Sul, problema este causado pela "nova revolução indus- trial", com o aumento da produtividade e o desemprego em mas- sa, a explosão demográfica e os perigos para o meio ambiente. Como exemplo, Kennedy (1989, p. 342) cita que a robótica da nova revolução industrial é imprópria para os países do Sul, pois, com seu alto índice demográfico, há a necessidade de preservar empregos além da carência de capitais necessários para essas inovações. Além disso, esses avanços na robótica tornam a força de trabalho mais ba- rata e desqualificada, características típicas de países periféricos. © Geopolítica170 Kennedy (1989, p. 418), acredita que é necessário regula- mentar e dar mais confiabilidade ao sistema global, pois a globa- lização e o enfraquecimento do Estado agravariam ainda mais as desigualdades e tornariam o mundo mais instável. Portanto, seria necessário um investimento dos governos em melhoria na edu- cação, pesquisa tecnológica, melhoria da posição das mulheres, especialmente nos países pobres, e em negociações internacionais mais democráticas e sensíveis à diminuição dessas desigualdades. A nova reorganização do sistema internacional daria maior ênfase às questões relacionadas à globalização, revolução técnico- -científico-informacional, formação ou consolidação de blocos eco- nômicos em detrimento das questões militares. Além disso, as ques- tões culturais voltavam a ser variáveis que influenciariam as relações internacionais, notadamente nos conflitos étnicos-civilizacionais. 7. OS CHOQUES CULTURAIS ENTRE CIVILIZAÇÕES Samuel P. Huntington, em seu livro O choque das civiliza- ções, publicado em 1994, criou um novo paradigma geopolítico para explicar os conflitos do pós-Guerra Fria. Para o teórico, o fim da Guerra Fria e a vitória do capitalismo fez com que a política internacional entrasse em uma nova fase, na qual eram debatidas visões acerca da mesma e como esta seria a partir de então. O teórico defende que os novos conflitos na política internacional seriam de ordem cultural, e não essencialmente de ordem econô- mica e ideológica por causa da existência de uma heterogeneidade cultural no mundo. A política internacional teria como foco a interação entre a civilização ocidental e a não ocidental. Dessa forma, Huntington (1994, p. 120) se mostrava contrário à teoria do "fim da História" contemplada por Francis Fukuyama em seu livro O fim da História e o último homem (1992), cuja definição se baseava na supremacia do liberalismo capitalista no mundo. Claretiano - Centro Universitário 171© U6 - Teorias Geopolíticas Huntington (1994, p. 121) enfatiza que os Estados continu- arão a ser os atores mais poderosos, mas pontua que os conflitos ocorrerão entre nações que pertencem às diferentes civilizações, com a seguinte definição: "[...] o mais amplo agrupamento cultural de pessoas e o mais abrangente nível de identidade cultural que se verifica entre os homens". Assim, os Estados deveriam ser agru- pados de acordo com a sua cultura e civilização e não pelos seus sistemas político e econômico. O teórico ainda pontua que uma civilização pode conter vá- rias Nações-Estados, como a ocidental, ou apenas uma, como o Japão e a China. Dentre as civilizações, podem ocorrer ainda sub- divisões, como as variantes europeia e americana na ocidental, e a árabe, turca e malaia na islâmica. Mas todas as civilizações podem ascender, chegar no apogeu, declinar, fundir-se ou dividir-se. Huntington (1994, p. 122-124) aponta a existência de sete ou oito civilizações que moldarão o mundo por meio de suas in- terações: ocidental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslava ortodoxa, latino-americana e, possivelmente, a africana. O teórico aponta que os conflitos girarão em torno das linhas de cisão que dividem essas civilizações e apresenta seis argumentos para fun- damentar essa ideia: 1) As diferenças entre as civilizações são reais e fundamen- tais (história, língua, religião, cultura, tradição), existem há muito tempo e já foram motivos para conflitos que vão além das diferenças em âmbito ideológico e político, sendo especialmente cultural. 2) "O mundo está ficando menor". Por isso, as interações entre as civilizações (migrações, por exemplo) aumenta- rão ainda mais o potencial de conflito entre as mesmas (contrasta com liberalismo sociológico). 3) A modernização econômica e a mudança social estão criando um distanciamento entre pessoas e identidades locais e, assim, se assiste a um processo de desseculari- zação do mundo, no qual as bases de identidade cultural estão se reforçando cada vez mais na religião, que pre- © Geopolítica172 enche tal distanciamento (enfraquecimento do Estado- -Nação) por meio dos movimentos fundamentalistas. 4) O duplo papel do Ocidente, que, por um lado, está em seu auge e, por outro, assiste a um processo de enraiza- mento entre as civilizações não ocidentais, reforçando diferenças e animosidades entre as civilizações. 5) As diferenças de ordem cultural são menos mutáveis do que as de ordem econômica e política e, portanto, são mais difíceis de conciliar. 6) O regionalismo será bem sucedido se baseado em uma civilização comum (cultura comum e fortalecimento da consciência civilizacional). Segundo Huntington (1994, p. 126), "[...] ao definir suas identidades em termos étnicos e religiosos, as pessoas tendem a enxergar suas relações com pessoas de etnias e religiões diferen- tes como um jogo de 'nós' contra 'eles' [...]", e o choque poderia ocorrer nos seguintes níveis: • Micro: grupos adjacentes ao longo das linhas de cisão em conflito. • Macro: Estados de diferentes civilizações em conflito. Com o fim da Guerra Fria, a Cortina de Ferro (divisão políti- ca e ideológica na Europa) deu lugar à Cortina de Veludo (divisão cultural na Europa) perante a qual se opõem o Cristianismo oci- dental, de um lado, e o Cristianismo ortodoxo e o Islã, de outro. Essas linhas são o berço de crises e conflitos violentos entre as civilizações, pois, segundo o teórico, ao norte e oeste da Europa, habitam povos protestantes ou católicos que dividiram experiên- cias comuns, são bem sucedidos economicamente, democráticos e berço da comunidade europeia. Já ao sul e leste, habitam povos muçulmanos e ortodoxos que pertenceram ao império czarista ou otomano, menos desenvolvidos economicamente, sem governos democráticos estáveis e não afetados pelos acontecimentos que moldaram a Europa. Claretiano - Centro Universitário 173© U6 - Teorias Geopolíticas Huntington (1994, p.130) pontua que o conflito na linha de cisão entre as civilizações ocidental e islâmica está ativo há 1.300 anos, notadamente desde o período das Cruzadas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o teórico aponta que o Ocidente co- meçou a recuar, com o desaparecimento de colônias, enquanto o fundamentalismo islâmico ascendia. A necessidade energética do Ocidente e a alta dependência do Golfo Pérsico fizeram com que os países muçulmanos se enriquecessem em dinheiro e armas. Quando os países de diferentes civilizações entram em conflito, os países de um mesmo grupo de civilização tendem a buscar ajuda com outros países de mesma civilização. Isso foi o que Hunting-ton (1994, p. 129-130) chamou de "arregimentação civilizacional" e "síndrome dos países parentes", na qual ocorre a "substituição da ideologia política e das considerações sobre equilíbrio de poder como base principal para a cooperação e coalizão", contrastando com a escola realista. Para exemplificar tal situação, o autor utiliza a Guerra do Golfo, em que um país árabe invadiu o outro (exceção à regra de conflito entre civilizações diferentes), e os movimentos fundamen- talistas islâmicos apoiaram o Iraque, enquanto o Kuwait recebeu apóio da Arábia Saudita e do Ocidente (é o Ocidente contra o Ira- que). Segundo o teórico, o mundo de conflito entre civilizações apresenta critérios duplos, ou seja, o que vale para um grupo de países parentes não vale para outro grupo diferente. Como exem- plo, pode-se citar o conflito da Iugoslávia, na ex-União Soviética, e a Guerra Civil Espanhola. Contudo, defende que os conflitos entre grupos de uma mesma civilização são menos prováveis e menos intensos, e que os maiores conflitos serão aqueles entre as linhas de cisão (bósnios contra sérvios, por exemplo). A tendência é que tal síndrome se intensifique. Já os países com grande número de povos que pertencem a diferentes civilizações tem forte tendência a se desintegrarem, © Geopolítica174 como a URSS e a Iugoslávia. Existem, ainda, países que apresentam grau considerável de homogeneidade, mas nos quais não existe consenso interno sobre a que civilização pertencem, como a Tur- quia, na qual, geralmente, seus líderes pretendem integrar-se ao Ocidente, apesar da tradição não ocidental preconizada pela elite e população em geral. Outro exemplo é o México, que passou de país latino-americano a norte-americano. A Rússia se apresenta como a mais dividida, pois pode ser considerada tanto uma civi- lização ocidental ou civilização eslava ortodoxa. o que resulta em situações conflituosas ao longo do seu território. Huntington (1994, p. 133), cita a conexão confuciana-islâ- mica como a que surgiu para desafiar os interesses ocidentais. O teórico ainda cita que existe um nível de dificuldade variante para que países não ocidentais se juntem aos ocidentais. Para os latino- -americanos, essa dificuldade é menor, o que não é válido para as sociedades muçulmanas (a França não conseguiu implantar o ocidentalismo na Argélia, um país muçulmano, por exemplo). Com o objetivo de concorrer com o Ocidente, países não ocidentais, como a China e Coreia do Norte, desenvolvem sua capacidade militar por meio de importação de armas do próprio Ocidente e do não Ocidente ou desenvolvem a sua indústria bé- lica " armas nucleares e biológicas também são reclamadas como direito para os não ocidentais (o objetivo da conexão confuciana- -islâmica é o armamento). Os desafios do pós-Guerra Fria são controlar o armamento do não ocidente e garantir que os interesses ocidentais não sejam ameaçados por meio dos acordos internacionais, pressão econô- mica e controle de transferência de armas e tecnologia bélica. O potencial conflito – predominantemente de caráter cul- tural – que pode existir entre as linhas de cisão das civilizações, juntamente com o aumento da consciência civilizacional, coloca tal potencial cada vez mais iminente. As civilizações não ocidentais serão agentes das Relações Internacionais, não apenas objetos. Claretiano - Centro Universitário 175© U6 - Teorias Geopolíticas Dessa forma, o globo cada vez mais é ameaçado pelo potencial de guerras globais que se justificam nas fundamentais e reais diferen- ças entre as civilizações. As relações serão basicamente divididas entre o "Ocidente e o resto". Perante esses fatos, o teórico faz algumas recomenda- ções necessárias para que o Ocidente mantenha sua supremacia: combater o armamento dos países não ocidentais, reforçar sua ci- vilização, moderar a diminuição de seu poderio militar, apoiar gru- pos que demonstrem simpatia pelos valores ocidentais, fazer um estudo antropológico das outras civilizações, manter seu poderio militar e econômico, conciliar modernidade com tradição, entre outras. E aponta, também, a importância dos Estados Nacionais no sistema internacional, que são movidos, segundo a perspectiva realista, pela busca dos seus interesses nacionais, como poder e recursos. No que tange à questão da nova ordem mundial multipolar e multicivilizacional, além dos agrupamentos mais importantes de Estados, que são as sete ou oito grandes civilizações que existem no globo, o teórico também apresenta os conflitos ocorridos intra- civilizações, devido à sua importância em nível regional. Todavia, aponta que os choques na Bósnia, por exemplo, são mais perigo- sos e possuem repercussão global. O conceito de "Estado-núcleo de uma civilização" seria con- siderado como característica da nova configuração da Geopolítica " "novas geopolíticas" " que difere da Geopolítica Clássica, que é basicamente fundamentada por meio dos pressupostos militares e expansionistas das superpotências da Guerra Fria e das chamadas guerras clássicas. Nesse sentido, Huntington (1994, p. 137), atribui aos Esta- dos-núcleos a função de "chefiar" cada bloco civilizacional per- tencente. Os mesmos teriam o papel de mediadores nos conflitos mundiais e, dessa forma, seriam fundamentais para a manutenção da paz mundial. As civilizações latino-americana e africana care- © Geopolítica176 ceriam de um Estado-núcleo, mas não enfrentam conflitos com outras civilizações, com exceção do conflito africano para evitar a expansão do Islamismo no continente. Tais civilizações são consi- deradas frágeis e tendem a se apoiar no Ocidente. E, como a paz mundial estaria ameaçada não por questões econômicas ou co- merciais, mas sim, por choques entre as civilizações, a Europa e os Estados Unidos deveriam se unir para não serem "destruídos". Huntington (1994, p. 138), não acredita na expansão da de- mocracia para outras civilizações, então argumenta que a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e os Estados Unidos não deveriam se envolver em conflitos de outras civilizações ("re- gra de abstenção"). Os Estados-núcleos teriam a responsabilidade de estabelecer negociações entre si no intuito de evitar guerras. A principal crítica da teoria Realpolitik culturalista do respei- tado teórico tange a questão dos direitos humanos, pois os Esta- dos Unidos representariam uma legitimação das desconsiderações pelos direitos humanos e o abandono de qualquer universalismo e uma espécie de divisão do mundo entre os Estados-núcleos, visto que poderiam fazer o que quisessem em suas zonas de influência. 8. O DISCURSO DA DEMOCRACIA LIBERAL OCIDEN- TAL E SUAS IMPLICAÇÕES Francis Fukuyama, em seu artigo de 1989 The end of His- tory?, provocou uma grande discussão geopolítica no que se re- fere ao novo reordenamento do sistema internacional em relação à nova ordem mundial que despontava no pós-Guerra Fria, pois, ao utilizar o termo "O fim da História?", não se refere ao fim dos eventos históricos, como os conflitos, mas sim à chegada ao seu "destino teleológico", que representaria o estágio final da huma- nidade nos moldes da democracia liberal, que se tornara a única alternativa política após o fracasso do projeto comunista. Segundo o teórico Fukuyama (1992): Claretiano - Centro Universitário 177© U6 - Teorias Geopolíticas [...] a história da humanidade consistiria numa progressão de eta- pas ou estágios " as comunidades primitivas, as sociedades tribais, o escravagismo, as teocracias etc. " até chegar à fase democrática- -igualitária [...] (VESENTINI, 2004, p. 64). A visão idealista de Fukuyama, anteriormente já apontada por Hegel em 1806 em um contexto de ideais revolucionáriosba- seados nas Revoluções Francesa e Americana, tem sido desafiada, assim como fora Hegel, por uma visão materialista impregnada pe- las forças produtivas ou materiais da humanidade que desempe- nhariam um papel importante na evolução histórica. A democracia liberal ainda teria que lidar com duas ques- tões: o fundamentalismo religioso e o nacionalismo. O primeiro seria representado pela possibilidade do estabelecimento de um Estado teocrático e o segundo seria influenciado por uma consci- ência étnica, mas não totalmente incompatível com os preceitos democráticos liberais. As relações de poder no sistema internacional seriam mar- cadas pela progressiva uniformização dos regimes políticos e eco- nômicos por meio da expansão do liberalismo e da evolução do capitalismo, porém poderia haver problemas ligados ao passado, trazendo à tona o calculismo, competição e conflito. Outro ponto importante da visão do teórico é o fato de que um mundo composto por democracias liberais estaria menos su- jeito a guerrear. No entanto, problemas relacionados à criminali- dade, ao declínio das relações familiares, ao aumento da descon- fiança, à cultura individualista, à falta de respeito às regras, e à desordem social poderiam ameaçar a manutenção/expansão do capital social e da democracia liberal. No que se refere às discussões geopolíticas, o teórico era for- temente influenciado pela visão norte-americana de mundo, pois ocupava cargo no Departamento de Estado em Washington. Seu discurso estava fortemente condicionado pelos princípios do go- verno de George Bush (nova ordem mundial, cooperação interna- cional, não agressão, final da ameaça terrorista e justiça). © Geopolítica178 Tais princípios fizeram com que os Estados Unidos assumis- sem uma postura intervencionista em países que julgavam não compartilhar desses pressupostos e usassem a promoção da paz e defesa dos direitos humanos como forma de legitimar sua ação intervencionista, rompendo com um dos postulados westfalianos. No entanto, ao mesmo tempo em que os direitos humanos se universalizam de diferentes formas pelo mundo, o modelo de- mocrático ocidental é ameaçado pelos processos da globalização e pelo enfraquecimento dos Estados Nacionais. Os chamados "pro- blemas sem passaporte" abarcam questões que permeiam desde as questões econômicas até as ambientais e vão erodindo as bases da democracia, uma vez que as forças de outros atores internacio- nais, como as empresas multinacionais, não levam em conta, na maioria das vezes, a participação da sociedade que sofre com as externalidades causadas pelas atividades desses atores. Outra questão se refere à noção de localidade que muitas sociedades possuem, como no caso das tribos africanas, fazendo com que esses grupos não sejam diretamente ou indiretamente afetados pelos preceitos democráticos liberais. Segundo Vesentini (2004, p. 70), os direitos do homem "[...] se redefinem, se recriam, incorporando novos atores e novas demandas, alargando continu- amente a noção de democracia". Vale relembrar que o período da Guerra Fria foi marcado pelo congelamento do Conselho de Segurança, sendo que as inter- venções da ONU nesse período foram praticamente interrompidas devido à disputa das duas superpotências que são, até os dias atu- ais, membros permanentes do Conselho de Segurança. No entan- to, com o fim do conflito bipolar, a década de 1990 assistiu a um aumento tanto nos conflitos intraestatais como nas intervenções praticadas pela Organização das Nações Unidas no intuito de rees- tabelecer a ordem por meio dos preceitos democráticos e liberais, como foi discutido anteriormente. Claretiano - Centro Universitário 179© U6 - Teorias Geopolíticas No que se refere aos princípios democráticos liberais, Visen- tini (2004, p. 72) aponta que: A apologia da democracia liberal e do enfraquecimento da sobe- rania nacional em prol dos direitos humanos, apesar de encerrar um aspecto positivo (o ideal da democracia sendo operacionalizada também nas relações internacionais), na realidade generaliza de- mais e cai num otimismo infundado. Os arautos dessa visão ima- ginam que a democracia está em expansão pelo mundo afora, que um Estado democrático tem uma política externa democrática e que uma vez atingido o estágio da democracia não existe mais vol- ta. Ora, infelizmente todos esses pressupostos são questionáveis. Dessa forma, pode-se afirmar que não há garantias quanto à con- tinuidade dos regimes democráticos. Além do mais, a ideia de que a democracia está se espalhando pelo mundo, apesar de ser considerada como parcialmente verdadeira, pode ser discutida. O fato de eleições elegerem governantes que garantam o livre mercado não pode ser con- siderado suficiente para garantir a democracia. Tal situação se deve ao fato de que a cultura democrática, caracterizada especialmente pelos valores igualitários, nem sempre se faz presente em sociedades que aparentemente são baseadas em princípios democráticos. Na América Latina, por exemplo, o fim das ditaduras mili- tares não garantiu necessariamente a implementação de um go- verno dito democrático, devido à permanência de questões que desfiguram os preceitos democráticos, como a permanência de uma cultura patrimonialista que não separa o público do privado e favorece a corrupção, desvalorizando as relações de trabalho e educação, e um corporativismo que não reconhece devidamente o cidadão, gerando profundas desigualdades sociais que são cada vez mais intensificadas pelos preceitos do liberalismo econômico. Nesse contexto, pode-se inferir que a construção/perpetuação da democracia está acontecendo e sendo feita pelos Estados Nacionais de forma mais significativa, mas também outros atores internacionais participam desse processo, conforme afirma Vesentini (2004, p. 74): As organizações que se preocupam com a atuação internacional de seus governos e de suas empresas, que se denunciam desrespeitos aos direitos humanos ou agressões ambientais no exterior, consti- tuem talvez o embrião dessa nova consciência democrática. © Geopolítica180 Finalmente, as intervenções em Estados considerados como fracos ou falidos, sob o pretexto de defender os reprimidos, le- vam consigo, muitas das vezes, interesses econômicos, políticos e geoestratégicos. Nem sempre as políticas interna e externa de um Estado são condizentes. Frequentemente, países ditos democrá- ticos no âmbito de sua política interna agem de forma contrária na busca pelos seus interesses, financiando e apoiando governos totalitários, como é o caso dos Estados Unidos da América que, por muitas vezes, promoveu golpes militares na América Latina em prol da implantação da ideologia capitalista, liberal e democrática em um contexto de embate ideológico entre o capitalismo estadu- nidense e o socialismo soviético. Desse modo, dada a globalização e a consequente intercone- xão tanto dos Estados como dos problemas do sistema internacio- nal, faz-se necessário a construção de um "sistema internacional de regras" para a coexistência democrática entre os povos. Consi- derando a anarquia do sistema internacional, aponta-se a necessi- dade de uma instituição que garantisse tal sistema de regras. No entanto, essa instituição não deveria ser representada primordialmente por uma potência militar e sim por um organismo internacional legítimo que incluísse especialmente organizações não governamentais, dado o seu envolvimento visível com ques- tões que tocam os direitos humanos, por exemplo, ao trabalhar diretamente com a sociedade civil. Vale ressaltar que tais menções ainda estão no plano do idealismo, mas são temas considerados como variantes das novas geopolíticas, e que contribuem para a construção do pensamento geopolítico contemporâneo.9. GEOPOLÍTICA DA ÁGUA Os recursos hídricos são preponderantes para as discussões envolvendo poder, conflito e cooperação nas Relações Internacio- nais. A disponibilidade e a distribuição de tais recursos podem le- Claretiano - Centro Universitário 181© U6 - Teorias Geopolíticas var países e comunidades ao conflito e buscarem a satisfação de suas necessidades, uma vez que tais recursos são de vital impor- tância tanto para a manutenção da vida quanto para o funciona- mento das sociedades em geral. Dessa forma, pode-se afirmar que a disponibilidade dos recursos hídricos influencia diretamente as possibilidades econômicas, políticas e sociais de um Estado. Nesse sentido, Raffestin (1993, p. 251) aponta que: Hoje o petróleo, amanhã o trigo. Quem sabe? Todos os recursos são ou podem ser instrumentos de poder. Se é verdade que certos recursos " conforme a sua capacidade de satisfazer as necessida- des fundamentais " manifestam uma grande permanência no papel que podem desempenhar, eles não deixam de se ligar ao contexto sócio-econômico e sócio-político quanto à sua significação como instrumento de poder. O contexto de escassez hídrica, seja esta física (quando di- tada pela natureza) ou econômica (quando não há recursos eco- nômicos suficientes para prover o acesso digno aos recursos hí- dricos), vem sendo cada vez mais apontado por estudiosos de Geografia, Relações Internacionais e Ciência Política como o cau- sador das guerras do século 21. Assim, algumas bacias hidrográ- ficas no mundo têm sido identificadas como potenciais fontes de conflito, notadamente devido à distribuição desigual dos recursos hídricos transfronteiriços que são diretamente afetados pela divi- são política dos Estados Nacionais. Observe o mapa da Figura 2: 70% do planeta Terra é compos- to por água, e apenas 2,5% desse total é considerado água doce. No entanto, apenas 0,26% desse total é considerado como acessí- vel em rios, lagos e aquíferos de fácil acesso. © Geopolítica182 Figura 2 A distribuição política da água. Os possíveis conflitos que podem se desenvolver em torno das bacias hidrográficas apontadas anteriormente podem ser en- quadrados no contexto das chamadas novas guerras e das discus- sões envolvendo as novas geopolíticas, uma vez que podem acon- tecer dentro dos territórios nacionais (intraestatais), envolvendo grupos mobilizados por etnia, raça ou religião, assim como diver- sos atores internacionais. De acordo com Homer-Dixon (1999 apud LOPES, 2009, p. 83- 84), os conflitos envolvendo o chamado estresse hídrico não são cau- sados diretamente pela escassez ou má distribuição dos recursos hí- dricos, mas sim pelas consequências sociais, políticas e econômicas advindas de tal situação, como pobreza, migrações e queda da pro- dução econômica, uma vez que os processos produtivos estão direta- mente relacionados à disponibilidade energética de um Estado. Tal situação de escassez pode levar a conflitos, caso o apa- rato político-institucional seja afetado de forma drástica. É impor- Claretiano - Centro Universitário 183© U6 - Teorias Geopolíticas tante evidenciar, ainda, que o teórico pontua que tais conflitos se concentram em escala nacional, mas não descarta a possibilidade de transcenderem as fronteiras nacionais. A água é um insumo es- sencial para a manutenção da vida dos seres vivos, pois Ela integra padrões e sistemas produtivos de diversos segmentos da economia, além de fazer parte do dia-a-dia dos mais de 6 bi- lhões de seres humanos da Terra e de diversas outras formas de vida. Por isso é fundamental sua manutenção em condições de aproveitamento (RIBEIRO, 2008, p. 32). A Figura 3 aponta as bacias hidrográficas localizadas nas re- giões do mundo que podem servir de motivação para conflitos, justamente pelas questões descritas anteriormente. Fonte: Wolf, Yoffe e Giordano (2003 apud LOPES, 2009, p. 82). Figura 3 Bacias hidrográficas em risco. Dessa forma, o acesso aos recursos hídricos pode ser consi- derado um fator determinante para a chamada segurança ambien- tal, especialmente em casos de escassez e/ou utilização destes por mais de uma nação, como os rios transfronteiriços. A água possui duas perspectivas que são diretamente ligadas à questão da segurança ambiental: pode ser fonte de conflitos e ameaça à reprodução da vida. Assim, pode-se considerar o aces- so à água como uma temática intimamente ligada à distribuição © Geopolítica184 política desse recurso natural, uma vez que os cursos d'água atra- vessam ou delimitam as fronteiras das nações soberanas, eviden- ciando-se a relação entre território e poder, uma vez que tal distri- buição política é feita de forma desigual, fazendo com que certos Estados tenham uma maior abundância hídrica que outros. Ribeiro (2008, p. 13) faz referência a pontos importantes que tocam a questão dos recursos hídricos, na qual Verifica-se uma crise de governança em relação à sua gestão, e a necessidade de gerenciá-los de forma mais eficiente, englobando tanto a recuperação de sua qualidade e quantidade, como sua dis- tribuição justa e equitativa. De acordo com o relatório Water for People, Water for Life (UNESCO & WWAP, 2003, p. 25, tradução nossa): Equidade e gerenciamento sustentável para a divisão dos recursos hídricos demandam flexibilidade, instituições holísticas capazes de responder às variações hidrológicas, às mudanças nas necessida- des socioeconômicas, valores societais, e, particularmente no caso dos cursos d'águas internacionais, mudanças nos regimes políticos. Dada essa significativa acepção, pode-se ressaltar a neces- sidade de criar mecanismos que contribuam para uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos em países que possuem rios transfronteiriços, como ocorre no caso em que bacias hidrográfi- cas, como a do Rio Amazonas, se situam em diferentes territórios nacionais. Assim, destaca-se a necessidade da promoção e da co- operação entre esses países para que regimes internacionais re- lacionados à gestão conjunta dos recursos hídricos sejam criados e, assim, padrões de comportamento sejam estabelecidos. Nesse sentido, Ribeiro (2008, p. 129) aponta que: [...] A água deve ser analisada na perspectiva de sua distribuição política e não na natural, porque o sistema interestatal atua com base na soberania, determinando aos países o direito de definirem o uso dos seus recursos naturais, incluindo os hídricos. No tocante às novas geopolíticas e ao seu enfoque nas ques- tões econômicas, pode-se afirmar que a ausência de uma conven- ção internacional sobre o acesso aos recursos hídricos faz com que Claretiano - Centro Universitário 185© U6 - Teorias Geopolíticas grupos transnacionais atendam seus interesses ao enxergarem a água como uma fonte de lucros. A heterogeneidade do sistema internacional no que se re- fere aos interesses dos Estados Nacionais, assim como às capaci- dades econômica e militar, faz com que países como os Estados Unidos possam empreender sua capacidade militar na busca por recursos hídricos que, em sua maioria, se situam em países que não possuem tais capacidades, como o Brasil, que abriga grande parte da bacia amazônica. A América Latina abriga uma parte significativa dos recursos hídricos do mundo. No entanto, a falta d'água que se faz presen- te em muitos dos países latino-americanos, causada pela má ad- ministração do poder público, faz com que as iniciativas privadas estrangeiras interfiram na questão por meio da privatização, con- texto que se caracteriza pela ingerência nos assuntos internos de um Estado e traz externalidades que afetam a sociedade como um todo, como no caso de Cochabamba na Bolívia, em que a popula- ção se mobilizou contra os preços abusivos cobrados pela empresa norte-americana Bechtel. Em outras áreasdo globo, a relação entre conflito e recursos hídricos se faz presente, como no caso de Israel e Palestina, em que o primeiro país determina o consumo de água do segundo. Segundo Ribeiro (2008, p. 133), O controle do fornecimento de água como pressão política é uma das variáveis a ser ponderada no sistema internacional de gestão dos recursos hídricos. Os países detentores das nascentes estão em vantagem com os que seguem à jusante, pois, além de usarem como bem lhes aprouverem os recursos hídricos, podem regular o fornecimento dos demais. Diante dos debates apresentados ao longo da unidade, pode-se perceber que novas/velhas temáticas estão permeando a Geopolítica na contemporaneidade, de modo que evidencia a importância da multiplicidade dos atores (indivíduos, empresas, ONGs, OIs e Estados), os recursos fundamentais para o desenvol- © Geopolítica186 vimento social e econômico atrelados diretamente ao território, e as questões ideológicas e culturais ampliando a complexidade das análises geopolíticas. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Reflita sobre os motivos que levaram ao declínio do pensamento geopolítico clássico. 2) A nova reorganização do sistema internacional daria maior ênfase às questões relacionadas à globalização, à revolução técnico-científico-informacional, à formação ou consolidação de blocos econômicos em detrimento das questões militares. Nesse sentido, reflita sobre o contexto de transição presente no final da década de 1980 e início da década de 1990. 3) Aponte e exemplifique o que é a chamada segurança humana e em que con- texto a mesma surgiu, incluindo ainda em sua resposta a questão das cha- madas novas guerras. 4) As disputas mundiais de poder são essencialmente econômicas? Reflita tal questão referenciando os teóricos apontados ao longo da unidade. 5) Reflita a importância dos blocos econômicos no contexto das novas geopo- líticas. 6) Reflita sobre a ideia de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. 7) "Globalização" e "descentralização" são sinônimos? 8) As disparidades Norte-Sul podem levar a conflitos? 9) Os choques culturais marcarão o século 21? Reflita tal questão com base no que foi apresentado sobre a teoria de Huntington. 10) A democracia liberal tende a dominar o mundo? Reflita tal questão de acor- do com o que foi apresentado sobre a teoria de Fukuyama. 11) A democracia e os direitos humanos são universais? 12) A ONU ou as grandes potências têm o direito de intervir nos diversos recan- tos do planeta? Claretiano - Centro Universitário 187© U6 - Teorias Geopolíticas 13) Por que as discussões geopolíticas ligadas às questões que envolvem recur- sos hídricos dão maior ênfase à divisão política do que à divisão natural des- ses recursos? 14) Quais são as possíveis razões que podem levar Estados ou comunidades ao conflito por conta do acesso aos recursos hídricos? 11. E-REFERÊNCIAS Figura Figura 2 A distribuição política da água. Disponível em: <http://www.fao.org/nr/water/ aquastat/globalmaps/01_TRWR_CAP.pdf>. Acesso em: 29 maio 2013. Sites pesquisados BECKER, B. K. Geopolítica da Amazônia. Estudos Avançados: Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, n. 53, p. 71-86, 2005. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24081.pdf>. Acesso em: 29 maio 2013. UNESCO & WWAP. Water for people, water for life. Barcelona: Berghann Books, 2003. Disponível em: <http://wvlc.uwaterloo.ca/WWDRMaterials/front_matter.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2012. 12. 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