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UNIDADE 4 ANTROPOLOGIA Para iniciarmos é preciso entender que a cultura e suas particularidades necessitavam de uma esquematização, isto é, um método de investigação. Foi nesse contexto que surgiram os grandes teóricos que formularam e disciplinaram as regras para a construção do saber antropológico. Você sabia que a antropologia e a sociologia, dentre as ciências sociais, definiram de forma bastante satisfatória seus objetos de estudo, seus objetivos e métodos? Enquanto à sociologia cabia o estudo da sociedade europeia, à antropologia cabia o estudo dos povos colonizados na África, Ásia e América. A primeira procurava descobrir as leis gerais que regulamentavam o comportamento social e as transformações da sociedade, por meio de análises qualitativas e estudos estatísticos que pudessem dar a maior amplitude possível às suas descobertas. A antropologia, por sua vez, desenvolvia um método mais empirista e qualitativo, voltado para a descoberta das particularidades das sociedades que estudava. O OBJETO DE ESTUDO E MÉTODOS DA ANTROPOLOGIA O objeto da antropologia é tão complexo que não podia dotar-se de um único modo de acesso sem correr o risco do espirito de ortodoxia. E, efetivamente, no período de aproximadamente meio século que estudaremos, veremos nossa disciplina utilizando sucessiva ou simultaneamente vários modos de acesso (LAPLANTINE, 2003). Como podemos observar, ao longo dos anos de sua formação, a antropologia deixa de se preocupar apenas com a origem das sociedades para se dedicar ao entendimento das relações e dos fatos sociais dos diversos agrupamentos humanos. Durante esse processo, a cultura humana se consolidou como o objeto principal da antropologia. Inúmeras e diferentes entre si foram as correntes e os teóricos que contribuíram para com a formação da antropologia e tentaram explicar, por exemplo, conceitualmente a palavra cultura. Mas, afinal, o que é cultura? Existe mais de um tipo de cultura? O que é diversidade cultural? Neste tópico iremos discutir, de forma breve, mas não menos contundente, o que torna a cultura o diferencial entre os seres humanos e os seres não-humanos pois, afinal de contas, esta é uma pergunta que provavelmente nunca chegaremos a um consenso para responder de maneira satisfatória. A palavra cultura, no sentido de conjunto das relações, práticas, hábitos, linguagem e modos de organização humana, foi utilizada pela primeira por Edward B. Tylor, de forma que abrangia todas as ações do homem que não fossem transmitidas por mecanismos biológicos – hereditária – (LARAIA, 1986). Dessa forma, utilizaremos este mesmo sentido quando tratarmos de cultura neste livro e, especialmente, neste capítulo. Para ampliarmos nossos horizontes, é importante termos em conta que o conceito é uma forma de fusão entre os termos Kultur, utilizado na Alemanha do final do século XVIII, mais a palavra francesa Civilization, bastante explorada no século XVIII, na era do Iluminismo. ● Kultur: definição que simbolizava todos as concepções espirituais ou o modo de ser de uma determinada comunidade, de um povo. ● Civilization: realizações materiais de um povo cultivados pelo nível de instruções técnicas. Ao sintetizar os dois conceitos, Taylor formalizou definitivamente a ideia de cultura na antropologia. Fora dela, o termo pode designar outros sentidos como: cultura agrícola, culturas celulares, cultura política e ainda em substituição a termos como “mentalidade”, “tradição”, “folclore”, arte etc. Não é estranho, por exemplo, comprarmos um jornal aos finais de semana e no interior dele encontrarmos um caderno de cultura, o qual traz como conteúdo apenas coisas relativas à arte, tais como teatro, música, literatura, dança, pintura, cinema. É importante chamar atenção para o fato de que essas manifestações artísticas fazem parte do conjunto de coisas culturais, mas elas isoladamente não são suficientes para explicar o que é cultura. Ao estudarmos a cultura dos povos, temos que nos atentar para saber à qual uso, dos diversos dessa palavra, estamos nos referindo. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que, quando, academicamente, uma pessoa se propõe a realizar uma pesquisa científica sobre um tema – aqui, no caso, a cultura –, ela deve informar qual a perspectiva teórica e conceitual que irá trabalhar, pela qual irá abordar o assunto. Isso é válido em qualquer área do conhecimento, pois é uma regra de ouro do pensamento científico. Para o antropólogo francês Denys Cuche, a cultura é “a soma os saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua História”(CUCHE, 1999, p. 39). Construção teórica do conceito de cultura Em decorrência do estudo das sociedades, a cultura e suas particularidades necessitavam de uma esquematização, isto é, um método de investigação. Foi nesse contexto que surgiram os grandes teóricos que formularam e disciplinaram as regras para a construção do saber antropológico. Então, como o pesquisador teoriza os saberes imateriais de um povo? Como já havíamos ressaltado, há dois métodos de pesquisa utilizados pelos antropólogos: ● Método etnológico: consiste no desenvolvimento de teorias a partir de análises em registros e documentos, descritos por terceiros. Os antropólogos que o utilizam nunca ou raramente saem a campo, devido a isso são chamados de “antropólogos de gabinete”. ● Método Etnográfico: o método mais aceito e utilizado desde as primeiras décadas do século XX, que se fundamenta na ida direta ao campo, participação ativa com o mundo do investigado e a descrição dos elementos de sua cultura. Segundo o antropólogo brasileiro, Roberto Cardoso de Oliveira, o trabalho com o método etnográfico constitui-se em três fases distintas: olhar, ouvir e escrever. Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar” (CARDOSO de OLIVEIRA, 2006, p. 38). Para esse autor, quando o pesquisador está imbuído apenas de embasamento teórico, nem sempre está preparado para a averiguação em campo dos fundamentos que pretende analisar. Assim, o olhar é a primeira fase, pois, ao inferirmos o universo ao redor, somos permitidos observar minúcias que na teoria não são percebidas, como detalhes arquitetônicos, quantidade de indivíduos da comunidade, entre outros. Porém, por si só, o olhar não é capaz de captar o significado das relações e das práticas de um povo. Assim como observar, ouvir também faz parte desse trabalho. É preparando os ouvidos que tomamos conhecimento de componentes importantes como, por exemplo, a língua e a música do agrupamento humano. O ato de escrever detalhadamente é, portanto, o que Cardoso de Oliveira considerava a configuração final do produto de trabalho. É este ato que trará os fatos observados – vistos e ouvidos – para o gabinete durante o processo de observação participante. Dessa maneira, “o olhar e o ouvir seriam parte da primeira etapa, enquanto que o de escrever seria parte da segunda” (CARDOSO de OLIVEIRA, 2006). Além dos métodos principais da antropologia, existem alguns conceitos que são fundamentais para a antropologia, especialmente quando a discussão é sobre os aspectos culturais. Dentre os diferentes conceitos, elencamos alguns que seguem abaixo: ● Cultura: Do alemão Kultur. Definição que simbolizavatodas as concepções espirituais ou o modo de ser de uma determinada comunidade, de um povo. É o conjunto de valores, práticas, normas e tradições que orientam a conduta de um povo. ● Civilisation: Palavra francesa que expressa o nível de desenvolvimento material e técnico-científico de uma nação, de um povo, as realizações materiais de um povo cultivadas pelo nível de instruções técnicas. ● Etnocentrismo: É uma visão unilinear, de que é possível uma cultura ser superior à outra. Foi a visão etnocêntrica que permitiu que europeus, considerados civilizados e superiores aos povos tribais, estes, por sua vez, considerados primitivos e atrasados, explorassem e exterminassem aos segundos. Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas (ROCHA, 1984, p. 5). ● Relativismo cultural: O conhecimento acerca das sociedades só é realizado quando o pesquisador mergulha no mundo do indivíduo, relativizando suas percepções e dispensando conceitos etnocêntricos, construídos durante sua formação enquanto sujeito de uma outra sociedade. Nesse sentido, a neutralidade do estudioso se faz necessária. O problema não é o de somente reproduzir e observar o fenômeno, mas substancialmente o de como observá-lo. [...] Nas ciências sociais trabalhamos com fenômenos que estão bem perto de nós, pois pretendemos estudar eventos humanos, fatos que nos pertencem integralmente (DaMATTA, 1987, p. 21). ● Alteridade: Atitude de ver o outro em sua dimensão cultural, a partir de sua própria lógica, sua visão de mundo. ● Identidade: Conceito utilizado para explicar a vinculação de indivíduos/sujeitos a uma determinada visão de mundo (cultura) coletiva ou grupal. Esses são alguns dos conceitos que fazem parte do repertório antropológico e não podem faltar numa abordagem de pesquisa ou de escrita, pois a antropologia é uma ciência que se faz na relação entre pesquisador e outras pessoas que têm suas práticas observadas, descritas. O “objeto”, por excelência, da antropologia é o próprio ser humano e suas práticas sociais, seus modos de vida, isto é, sua cultura, suas instituições sociais. Sociedades e os Sistemas de Troca ou a Economia Podemos dizer que não existe sequer uma sociedade humana que não tenha em sua dinâmica um sistema de trocas. A esse sistema de trocas, a antropologia denomina, também, por economia. Economia não quer dizer apenas relações monetárias, isto é, à base do dinheiro. É a dinâmica, por meio da qual, coisas são trocadas. Levando-se em consideração que esse é um tema de fundamental importância e é visto sob o ponto de vista da teoria antropológica, de influência durkhimiana, do fato social, que foi desenvolvida por Marcel Mauss, sobrinho de Durkheim, como “sistema de prestações totais”, as trocas estão ainda hoje presentes, mesmo que não prestemos a devida atenção. Essa prática se caracteriza pelo que Marcel Mauss (2003) descreveu acerca de vários povos como um “sistema de prestações totais” em que os membros de uma determinada sociedade ou grupo se veem obrigados, por um conjunto de normas morais ou do direito, a prestar ajuda (dádiva) numa lógica de reciprocidade. O fato social total é proposto por Mauss (2003) dentro da lógica da reciprocidade. É o ato do dar, receber e retribuir. Assim, não pode reter o que se recebe, sob pena de ser amaldiçoado, pois o que se recebe deve ser entregue a outro, passado adiante, circular, fluir. Roberto Cardoso de Oliveira (1979) diz que esses “são princípios de moral e de economia que regem as transações humanas ‘sociedades arcaicas’, e que sob a aparência do dom, da dádiva, escondem-se regras de reciprocidade obrigatória” (p. 31). Desse modo, estudar os fatos sociais é algo muito mais complexo do que se possa imaginar. É diante dessa complexidade que os teóricos das diferentes correntes antropológicas explicam as manifestações sociais. Em O Oficio do Etnólogo (1987), DaMatta descreve que dentre as atribuições do pesquisador social, a mais importante é Aprender a realizar uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a) transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico. E, em ambos os casos, é necessária a presença dos dois termos (que representam dois universos de significação) e mais basicamente, uma vivencia dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los(DaMATTA, 1987, p. 22). Você deve estar se perguntando: Onde eu posso perceber a relação da teoria do fato social total nos meus dias e, mais ainda, na sociedade em que eu vivo ou na minha vida pessoal? Essas perguntas são pertinentes e cheias de sentido, pois como se diz, uma teoria só pode ser considerada boa se durar um tempo indefinido e pudermos aplicá-la no nosso dia a dia ou na vida cotidiana. Vamos ver alguns exemplos que fazem parte de nossa história e outros que estão presentes em nossa sociedade atual? Vejamos. Fonte:http://detetivesdeclio.blogspot.com.br/2014/01/brasil-colonia.html Fonte:http://detetivesdeclio.blogspot.com.br/2014/01/brasil-colonia.html Nas imagens acima, podemos ver dois momentos clássicos do início da colonização, caracterizados pelo chamado escambo, isto é, a troca. A exploração do pau-brasil foi a primeira atividade portuguesa em solo brasileiro. A seguir podemos analisar outras imagens. Troca de presentes na sociedade contemporânea – há sempre uma esperança de que dá em receber. Fonte: https://vozesmormons.org/2012/12/30/o-verdadeiro-presente/ Compras na época de natal e a troca de presentes. Local por excelência da busca por presentes, o shopping. Fonte: http://www.mundodastribos.com/troca-dos-presentes-apos-o-natal.html Antigamente, a troca de coisas estava relacionada com práticas sociais que diziam respeito à ética de um povo, aos compromissos sociais, às expectativas ao recepcionar alguém em uma aldeia, às obrigatoriedades familiares ou de amistosidade etc. Atualmente a coisa mudou! Em ambos os casos, das duas últimas imagens, podemos perceber que, aquilo que no passado foi uma prática social constitutiva dos povos, passou, nos nossos dias, a ser uma prática estritamente comercial, interesseira e economicista. A troca de presentes restringe-se a “aquecer” a economia, a alavancar o mercado etc, e perdeu, de certo modo, o seu caráter de comportamento e compromisso ético entre os grupos. Contudo, não cabe aqui um julgamento moral sobre as trocas na sociedade contemporânea, mas chamar atenção que uma prática, que parece corriqueira do nosso dia a dia, reside, no fundo, em práticas antigas e pode, desse modo, ser estudada. A troca se tornou algo como o lazer. O Lazer nas Sociedades e um Exemplode Caso Entendemos o lazer não apenas como o uso do tempo livre pelos indivíduos e isso é somado à vivência de um conjunto de valores os quais os indivíduos em companhia dos amigos e familiares. Tomamos essa concepção porque ela contrasta com a concepção geral que se tem do lazer, como por exemplo, o que foi estudado por José Guilherme Cantor Magnani (2000) entre moradores da periferia da cidade de São Paulo. Isso não invalida a noção de uso do tempo livre, mas complementa. Em relação à maioria dos trabalhadores, a modalidade do lazer ocorre num contexto semelhante do que foi estudado por Magnani (op. cit.), porque é o financeiro que está em questão. Evita-se gastar dada a remuneração salarial relativamente baixa – em média de um a dois salários mínimos por mês. Esses valores precisam cobrir despesas de aluguel, alimentação, vestimenta, higiene e, ainda, ser aquilo que sustenta a família e se insere no sistema de prestações totais, já referido (MAUSS, 2003). Em relação aos membros das famílias, o fato social total se manifesta por intermédio de um sistema amplo nos processos migratórios, com suas regras de ajuda mútua na origem, no trajeto e no destino. Ir a festas ou a cinemas, portanto, configura-se um gasto que desfalca a receita mensal e isso pode, com razão, interferir no envio de recursos aos familiares. Como se pode ver, os momentos de lazer não podem ser considerados apenas por seu lado instrumental, passivo e individualizado – reposição de energias gastas no processo produtivo (MAGNANI, 2000, p. 33). A opção que fizemos de não limitarmos o nosso entendimento do lazer apenas ao uso que as pessoas fazem de seu tempo fora do contexto de trabalho se deu por esbarrarmos, inicialmente, numa questão linguística, pois como sabemos, não existe em alguns outros idiomas a palavra lazer como a compreendemos em português, como aponta Luiz Octávio de Lima Camargo (1992), a respeito do “espanhol, italiano e alemão” (p. 17). No caso de boa parte dos trabalhadores, os momentos que fazem uso do tempo fora das atividades laborais formais, às vezes, envolvem trabalhos domésticos e, em outros, recorrem à prática de se encontrarem e trocarem experiências, vivenciarem alegrias, comemorarem um evento religioso, seja no âmbito familiar ou coletivo, como uma festa de aniversário em família. À exceção de uma atividade coletiva – jogo de futebol, churrasco –, em geral, os trabalhadores vivenciam suas atividades de lazer de modo endógeno, isto é, entre as pessoas do mesmo grupo. Dessa forma, o lazer constitui uma atividade social, pensando na perspectiva de Magnani, que nos diz: Contrariamente a uma visão corrente, para a qual o lazer era uma questão de pouca relevância no cotidiano dos trabalhadores, o que se constatou por meio da observação de campo foi um amplo e variado leque de usos do tempo livre nos finais de semana dos bairros de periferia: circos, bailes, festas de batizado, aniversário e casamento, torneios de futebol de várzea, quermesses, comemorações e rituais religiosos, excursões de farofeiros, passeios etc. Eram, evidentemente, modalidades simples e tradicionais, que não tinham o brilho e a sofisticação das últimas novidades da indústria do lazer, nem apresentavam conotações políticas ou de classe explícitas, mas estavam profundamente vinculadas ao modo de vida e às tradições dessa população. Observando mais de perto as regras que presidem o uso do tempo livre por intermédio dessas formas de lazer, verificou-se que sua dinâmica ia muito além da mera necessidade de reposição das forças despendidas durante a jornada de trabalho: representava, antes, uma oportunidade, por meio de antigas e novas formas de entretenimento e encontro, de estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que garantem uma rede básica de sociabilidade (MAGNANI, 2002, p. 20). Como podemos ver, os momentos de lazer estão associados a atividades vinculadas aos espaços familiares, fora do ambiente de trabalho e de modo a relacionar-se com as tradições e com aquilo que é familiar. Num estudo realizado na cidade de Porto Velho, sobre a presença dos imigrantes haitianos, o antropólogo Geraldo C. Cotinguiba verificou que os momentos de lazer desses imigrantes estão relacionados ao seu modo de vida particular e de acordo com as práticas sociais desses familiares. Vejamos o que aponta o estudo do autor: Os momentos de lazer dos haitianos que priorizamos nessa discussão são aqueles vivenciados em encontros com os amigos em suas casas, quando se reúnem para se visitarem, para conversarem, ou em algumas festas particulares, especialmente aniversários, com uma festividade regada à culinária ou bebidas preparadas com ingredientes semelhantes ao de sua terra natal, como frango frito – à maneira do que se conhece no Brasil como “frango a passarinho” –, sobretudo as partes como asa, sobre asa, coxa e sobrecoxa. Complementam a alimentação arroz branco “solto”, feijão, que é amassado e peneirado para ser degustado em forma de caldo, salada “tipo maionese”, cujos ingredientes são batata, beterraba e cenoura. Ainda há a banana madura frita, em fatias, ou verdes e amassadas, também fritas, salgadas. As bebidas típicas em geral são doces, regadas à base de cachaça, creme de leite, canela, cravo e casca de limão raspada. Das nossas observações, o que mais chamou atenção foi o futebol. Por trabalharem de segunda a sábado – à exceção dos evangélicos adventistas –, a equipe de futebol se reúne em campo apenas em dia de jogo, aos domingos à tarde. O jogo geralmente ocorre por volta das 16h:00min e a equipe é formada pelos amadores que, ao que temos assistido, com pouca familiaridade com a “pelota”, ou seja, a bola. A exceção é um jogador, conhecido como Mèt Nèg, que se diz profissional e é o destaque do time. É um atacante e em todas as seis partidas que disputou marcou gols, entretanto o máximo que sua equipe conseguiu foi um empate de 2 x 2 com os brasileiros. Ao lado do trabalho, da habitação e da religião, percebe-se que o futebol é um dos momentos de suma importância no processo de inserção social dos haitianos na cidade de Porto Velho. É possível imaginar vê-los ao lado de um campo de futebol amador da cidade, localizado numa área com a maior concentração desses imigrantes. Depois das partidas de futebol realizadas, eles dão continuidade a suas atividades de lazer. Certamente, a descrição das atividades apresenta, de forma mais vivaz, o campo para o leitor e denota a perspicácia do etnógrafo. Como apontado por um antropólogo brasileiro, Roberto Cardoso de Oliveira (1988), além da escrita, o ato de ver e ouvir são fundamentais para a pesquisa em antropologia, para que se possa compreender o mundo das relações sociais dos sujeitos. Comemoração de um gol. Resultado do jogo Brasileiros 4 x 3 Haitianos. Foto: Geraldo C. Cotinguiba. Agosto de 2013. Fonte: (COTINGUIBA, 2014) A ocupação e a utilização de espaços demarcados geograficamente pelos membros do grupo apontam, com as devidas limitações, para o que Magnani (2000) classificou como “pedaço”. Pedaço diz respeito a uma espacialidade em que membros de um determinado grupo trocam informações, como oportunidade de trabalho, discutem perspectivas de migração para outras cidades, aconselham-se, encontram os parentes e os amigos, constroem alianças, usufruem da rede de sociabilidade do grupo, conflitam. Nesse sentido, quem é do “pedaço” transita de maneira tranquila, é identificável e identifica-se, conhece as regras, porémquem é de “fora” passa por um processo relativamente tenso, pois é facilmente identificável como estranho e, por isso, quando em trânsito nesse contexto, age de maneira circunspecta, vive uma situação tensa. Em relação aos haitianos, em Porto Velho, ainda não podemos falar propriamente em um pedaço, mas em uma área geográfica relativamente ampla em que esses imigrantes se concentram. Ao transitarmos pelas ruas da região, vê-lo-emos muitas vezes reunidos em grupos que variam de três a seis indivíduos, parados em uma esquina, próximos a um telefone público (orelhão), telefonando, sentados ou em pé, a conversar, ao lado de suas bicicletas estacionadas. Outras vezes, vê-lo-emos sentados em bancos de madeira, em volta de um campo de futebol, ou em frente às casas que moram. Mesmo nesses espaços e com algumas adversidades, os haitianos vivenciam seu lazer à sua maneira, encontram-se, ligam os telefones celulares no modo toca música e ouvem o ritmo kompa, tradicional no Haiti, e mesclam com algumas faixas de cantores brasileiros do “sertanejo universitário” ou algo do gênero. Em um evento realizado em maio de 2013, percebemos a importância de momentos de confraternização e diversão para o grupo. Referimo-nos ao dia 18, data da comemoração do dia da Bandeira, um acontecimento de suma importância histórica e que muito revela da haitianidade, ou seja, o que vimos pode ser descrito como sinônimo de orgulho. Em coro, cantaram durante cerca de cinco minutos o Hino Nacional do Haiti, com o braço direito dobrado em noventa graus e a mão junto ao peito. Era a rememoração dos fundadores da nação, do povo, a memória dos heróis revolucionários, o momento de externar o símbolo máximo de sua origem, a bandeira, enquanto símbolo de orgulho, é o que os identifica e o que os une pelo sentimento, diversas vezes expresso e externado pela inscrição nesse objeto simbólico, par excellence, na forma da inscrição, l’union fait la force, ou seja, a união faz a força. Na festa da Bandeira, o serviço de Assistência Social de Estado ofertou a alimentação, um lanche composto por pão com salsichas picadas ao molho de tomate e, para beber, refrigerantes. Porém, a sensação foi um manje Ayisien, oferecido pela Associação Haitiana, é uma comida haitiana, composta por arroz, feijão e frango frito, ricamente temperada e picante. Faltou para quem queria. Danças tradicionais foram realizadas ao som de kompa e encenação teatral sobre contos folclóricos tradicionais. A oportunidade de vivenciar um momento como esse nos proporcionou ouvir de um haitiano a seguinte frase, em português: “eu estou muito feliz, eu me sinto no Haiti, na minha terra”. “Dança”. Festa da Bandeira Haitiana. Foto: Hosana Morais. 18 de maio de 2013.Fonte: (COTINGUIBA, 2014) Considerações Finais Etimologicamente a palavra antropologia deriva do grego antropos = homem (pessoa, o gênero humano) + logos = discurso, estudo racional, ciência, técnica. Dessa forma, antropologia é o discurso científico que estuda o ser humano por meio de um conjunto de técnicas de abordagens. As questões que se justapõem são: o que é ser humano e para quem? Que técnicas são estas? Talvez, após a leitura deste texto seja possível aos leitores encontrarem respostas para essas questões. Podemos estabelecer uma data arbitrária sobre o surgimento da antropologia por volta de 1850 em diante. O contexto de formação coincide com o processo de expansão do capitalismo imperialista da Inglaterra e França, principalmente. Adam Kuper (1978) relata em sua obra a descrição de uma pintura na sala do presidente de um país africano, no pós-colonialismo, em que ele enxotava três figuras ocidentais: o capitalista, o missionário religioso e o antropólogo. É inegável que a antropologia teve enormes contribuições do colonialismo. Existe a diferença entre o intelectual de gabinete e o etnógrafo. Como vimos, a antropologia é uma das diferentes vertentes das Ciências Humanas e, mais especificamente, das Ciências Sociais. Sua relação com a sociologia é muito próxima, porém, o que a difere da sociologia é a sua história de formação e o que ela elegeu como seu objeto inicial de estudo. Enquanto a sociologia se dedicou a estudar as sociedades urbanas e as industriais, majoritariamente, a antropologia se dedicou a estudar as sociedades não ocidentais – povos africanos, indígenas, da Oceania, dentre outros. Muitos são os pensadores que contribuíram com a formação da antropologia e a relação com o seu surgimento está praticamente centrada na Europa, em países como Alemanha, França e Inglaterra, tendo as contribuições vindas dos Estados Unidos, um pouco depois. Os pensadores iniciais da antropologia se dedicaram a identificar o objeto e criar conceitos ou abordagens teóricas na busca de explicações sobre as diferenças entre os diferentes grupos humanos em volta do planeta. As diferentes escolas antropológicas deixaram, cada uma, suas contribuições em seu tempo e, dessa forma, marcaram profundamente a história da antropologia, a escolha dos referenciais teóricos. Como vimos, essas escolas realizaram suas abordagens culturais, estruturalistas, evolucionistas, difusionistas, por exemplo. Os métodos de abordagens, da mesma forma, variaram ao longo dessa história, seja o método comparativo, o cultural ou o etnográfico, cada um teve como objetivo descrever e explicar as diferenças humanas. Dessa forma, a antropologia, mesmo sendo uma ciência nova, é uma forma de conhecimento que se dedica exclusivamente sobre o fazer humano, material ou imaterial, seja a prática direta ou o mundo simbólico. É uma ciência que aparentemente não tem uma aplicação prática, contudo, seu conhecimento serviu para diferentes propósitos e ainda hoje pode ser aplicado para explorações sobre consumo, mercado, comportamento. O que apresentamos aqui foi uma abordagem inicial, introdutória da antropologia, dado que esta é uma ciência que se propõe a estudar o ser humano como um todo, exigiria que nos dedicássemos por alguns anos para que pudéssemos compreendê-la melhor. As referências bibliográficas deste livro indicam alguns estudos que merecem ser conhecidos e, também, uma base para melhor conhecer a antropologia. MORGAN, Lewis Henry. A sociedade primitiva (I e II). Editorial Presença, Lisboa: 1973. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo? São Paulo. Editora Brasiliense. 1ª Edição, 1984. SALZANO, F. M. A Antropologia no Brasil: é a interdisciplinaridade possível?In. Amazônica - Revista de Antropologia da Universidade Federal do Pará, 1 (1): 12-27. 2009. Disponível em: <http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/viewFile/133/221> Acesso em 23 nov. 2012. TYLOR, Edward Burnett. A ciência da cultura [1871]. In. Celso Castro (Org), 2005a. Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer (p. 31 – 45). VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In. NUNES, Edson de Oliveira. A aventura sociológica. Zahar Editores, Rio de Janeiro: s/d. (pp. 36-46). Associação Brasileira de Antropologia – ABA. Disponível em: <http://www.abant.org.br/?code=1.0> Acesso em: 24 nov. 2012. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Celso Castro (org.) e tradução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 2ª ed. ____. A formação da antropologia americana, 1831 – 1911: antologia. George W. Stocking Jr. (org.). Tradução Rosaura Maria Cirne Lima Eichengerg. Rio de Janeiro: Contraponto – UFRJ, 2004. BERNADI, Bernardo. Introdução aos Estudos Etno - Antropológicos.Lisboa, 1988, Ed. 70, Col. Perspectivas do homem;
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