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GIORGIO DEL VECCHIO , HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Tradução e Notas de João Baptista da Silva ~~~~ ~~~1n ~ Belo Horizonte - 2010 - Catalogação na Fonte da Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG e ISBN Departamento Nacional do Livro D367h DeI Vecchio, Giorgio, 1878 História da filosofia do direito I Giorgio DeI Vecchio ; tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p. 284. ISBN: 85-88466-33-3 1. Direito - Filosofia - História 2. Direito comparado 1. Silva, João Baptista da, trad. lI. Título CDU: 340.12(091) COORDENAÇÃO Dilson Machado de Lima REVISÃO Maria de Lourdes Costa Queiroz - Tucha EDITORA Editora Líder Rua Loreto, 25 - São Gabriel CEP: 31.980-550 - Belo Horizonte - Minas Gerais Tel./Fax: (31) 3447-0375 Iiderjr@oLcom.br Copyright @ Dilson Machado de Lima Júnior - 2010 Licença editorial para Livraria Líder e Editora Ltda. Todos os direitos reservados. IMPRESSÃO Promove Artes Gráficas - (31) 3486-2696 - promoartes@terra.com.br Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios ou formas, sem a expressa autorização da Editora. Impresso no Brasil Printed in BraziJ Prefácio do autor Na falta de uma ampla e completa história da Filosofia do direito (falta que se sente não só em nossa literatura, mas também na estrangeira, não obstante a grande variedade de monografias), foi-me proposto, faz tempo, publicar, em edição separada, esta exposição resumida, que corresponde à parte histórica das Lições, do mesmo autor, na sétima edição que vem à luz ao mesmo tempo. É óbvio que um livro de tão pequenas dimensões, como este, não poderia preencher toda aquela enorme lacuna. Todavia (segundo observação do editor e de não poucos estudiosos), este compêndio poderá servir para integrar os cursos de Filosofia do direito, que contêm apenas uma exposição sistemática da matéria, e também para oferecer esboço e subsídio aos cultores de outros ramos mais ou menos afins do saber, que desejariam, todavia, conhecer as principais tendências do pensamento antigo e moderno sobre os problemas do direito e do Estado. I A exposição histórica vem acompanhada, freqüentemente, de observações e apreciações críticas que, todavia, não prejudicam, segundo a visão do autor, a maior objetividade possível e a exação nas referências das várias doutrinas. Mas a história do pensamento filosófico, e especialmente do pensamento filosófico-jurídico, não pode ser mera série de dados; deve, sim, ser um I A publicação da parte histórica das Lições em volume separado ocorre já em algumas edições estrangeiras (por exemplo, na espanhola de 1930). -- repensamento deles. Por essa mesma razão, o propósito deste livro será plenamente atingido somente se o leitor quiser retirar deles significado por suas próprias reflexões e juízos. Sumário ---- INTRODUÇÃO... ................................................................. 11 A FILOSOFIA GREGA ....................................................... 13 Os primórdios... ............................................................... .13 Os sofistas ...................................................................... ..14 Sócrates ........................................................................... .16 Platão ........................................................ " ....................... " ......................... .19 Aristóteles ....................................................................... .23 A escola estóica ............................................................... .30 A escola epicuréia ........................................................... .32 Os juristas romanos .......................................................... 34 O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MÉDIA .................................................................... .41 A Patrística ...................................................................... 4 3 A Escolástica ................................................................... .45 Os escritores gibelinos e a doutrina contratualística ....... 49 O Renascimento .............................................................. .57 A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MODERNA ..... 61 Maquiavel e Bodin .......................................................... .61 Grócio e outros escritores de seu tempo .......................... 65 Hobbes.............................................................................. 75 Espinosa ........................................................................... 79 Pufendorf ....................... ..., .............. ... .......... , ............. ...81 Locke e outros escritores ingleses .................................... 84 Leibniz, Thomasius e Wolf ................................................ 89 Vico e Montesquieu......................................................... 96 Rousseau e a Revolução Francesa ................................. 103 Kant ........ """"""""'" ......................................................... ... ........ ..1 09 Fichte e a escola do direito racional .............................. 125 O historicismo ............................................................. ..131 O historicismo filosófico, ou idealismo objetivo (Schelling, Hegel) ......................................................... .132 O historicismo político, ou a Filosofia da Restauração .138 O historicismo jurídico, ou a escola histórica do direito 141 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA IT ÁLIA, NOS TEMPOS RECENTES ............................. 149 1. Da época de Vico a 1870 ............................................... 149 2. De 1870 até aos nossos dias ........................................... 168 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA FRANÇA, NA BÉLGICA, ETC., NOS TEMPOS RECENTES (SÉCULOS XIX-XX) .................................. .197 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA INGLATERRA E NOS ESTADOS UNIDOS, NOS TEMPOS RECENTES ..................................................... .209 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA ALEMANHA, NA ÁUSTRIA E NA SUíÇA, NOS TEMPOS RECENTES .............................................................. .229 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA ESPANHA, EM PORTUGAL, NA AMÉRICA LATINA, NA ROMÊNIA, NA HUNGRIA, NA GRÉCIA, NA HOLANDA, NA ESCANDINÁ VIA, ETC .............................. 243 VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NOS PAÍSES ESLAVOS (POLÔNIA, RÚSSIA, CHECOSLOV ÁQUIA, ruGOSLÁ VIA, BULGÁRIA) ........... 269 "Compreender que há outros pontos de vista é o início da sabedoria." Campbell INTRODUÇÃO É vantajoso conhecer a história de toda ciência. Mas a importância do conhecimento histórico revela-se espécialmente nas disciplinas filosóficas, tanto que, nestas, não se entende o presente sem o passado; o passado revive no presente. Os problemas filo- . sóficos hoje discutidos são, no fundo, os mesmos que se apresentaram, ainda que apenas em forma embrionária, aos pensadores da antiguidade. O exame dos sistemas filosóficos oferece-nos como uma série de. experimentos lógicos, nos quais podemos logo ver a quais conclusões se chega partindo de certas premissas, e delas podemos tirar partido na direção de um mais perfeito sistema, evitando-lhe os erros já cometidos e tirando proveito dos progressos atingidos. A história da Filosofia é ainda um meio de estudo e de pes - quisa que nos ajuda grandemente em nosso trabalho; oferece-nos um acumulado de observações, de raciocínios, de distinções, que será impossível a um único indivíduo reunir, como seria impossívela todo artífice inventar, ele próprio, ex novo, todos os instrumentos de sua arte. A história da Filosofia do direito, especificamente, nos mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o problema do direito e da justiça, o qual, em verdade, não foi artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade natural e constante do espírito humano. Todavia, a Filosofia do direito, em sua origem, não se apresenta autônoma, mas mesclada à Teologia, à Moral, à Política; sóaos poucos se operou a distinção. 11 GIORGIO DEL VECCHIO Nos primeiros tempos a confusão é completa. Aparece-nos de modo característico no Oriente, em cujos livros sacros são tratados em conjunto a cosmogonia, a moral e os elementos de várias outras ciências, teóricas e práticas. Neles domina o espírito dogmático; o direito é concebido como um comando da divindade e como superior ao poder humano, e, por isso, não como objeto de discussão ou de conhecimento, mas apenas de fé. Assim, as leis positivas consideram-se indiscutíveis, e inquestionável o poder existente, como expressão da divindade. Nesse estágio próprio dos povos orientais, o espírito crítico não tinha ainda despertado. Deve-se, todavia, recordar que alguns desses povos, especialmente os hebreus, os chineses e os indianos, deram valiosos contributos aos estudos filosóficos, sobretudo no que concerne à Moral. 2 - FILOSOFIA GREGA Os primórdios A Grécia é a terra clássica da Filosofia, que assume nela um desenvolvimento próprio. Em um primeiro momento, a mente grega não se envolveu, porém, com problemas éticos e muito menos jurídicos, mas considerou apenas a natureza física. Assim, a Escola Jônica, a mais antiga (VI século a.c.), tentou a explicação dos fenômenos do mundo sensível reduzindo-os a certos tipos. Essa Escola, à qual pertenceram, dentre outros, Tales, Anaximandro, Anaximene, Heráclito, Empédocles (o qual formulou a teoria dos quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não teve, porém, importância para o nosso estudo. Outra Escola quase contemporânea da Jônica, a Eleática, representada por Xenofonte, Parmênides, Zenão, de Eléa, e Melisso, de Samo, tentou o mesmo problema, de modo mais profundo do que aquela, no ponto em que, elevando-se a um conceito metafísico, sustenta que o ser é uno, imutável, eterno. Para ela há uma só distinção: o que é e o que não é; em seguida, negação, pois, do conceito de movimento e de vir-a-ser, que seria uma ilusão dos sentidos. Não seria possível um nascer, um morrer, um vir-a-ser. Maior nexo com a nossa disciplina teria uma outra Escola - a Pitagórica. Conhecemos Pitágoras imperfeitamente, seja quanto à sua vida, seja quanto à sua doutrina. Nascido em Samo, em 582 a.c., transferiu-se para a Itália Meridional, para Crotona, onde fundou uma seleta sociedade de adeptos da doutrina que professava. To 13 GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRJA DA FILOSOFIA DO DIREITO Os Sofistas Diálogos de Platão, nos quais Sócrates disputa freqüentemente com os Sofistas). Homens de grande eloqüência e bravura dialética, percorriam cidades, sustentando em seus discursos teses assaz disparatadas; compraziam-se em se opor às crenças dominantes, muitas vezes suscitando escândalo público em razão de seus paradoxos. É notável, sobretudo, o fato de que, então, começou-se a discutir, a criticar o princípio da autoridade, a abalar a fé tradicional, a despertar a atenção popular, isso em um período de discórdias internas, em que se encontrava a Grécia. O trabalho dos sofistas relaciona-se com essa efervescência. Os Sofistas eram individualistas e subjetivistas. Ensinavam que cada homem tem um modo próprio de ver e de conhecer as coisas, do que resultava a tese de que não pode existir uma verdadeira ciência objetiva e universalmente válida. Célebre é o dito de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas" (DáV'tÚ)v XPll/lá'tú)v /lÉ'tpov av8pÚ)7to<;). Isto é: todo indivíduo possui uma visão própria da realidade. Em sentido bem diverso foi dito, por exemplo, por Kant, que a mente humana é a medida de todas as coisas. Kant entendia a mente humana como necessariamente idêntica em todos os indivíduos, e, por isso, afirmar que ela seja a medida de todas as coisas não destrói a validade universal da ciência. As formas subjetivas, segundo Kant, apreendem, de certa forma, a realidade, de maneira que toda experiência está por ser feita (mas estas formas são comuns a todos os sujeitos pensantes). Para os Sofistas, ao contrário, existem apenas as opiniões divergentes de cada individuo. Negando os Sofistas toda verdade objetiva, negam igualmente que exista uma justiça absoluta; também o direito, por si, é relati vo, é uma opinião mutável, a expressão do arbítrio e da força: 'justo é o que favorece o mais poderoso". Assim, Trasímaco se pergunta se a Justiça é um bem ou um mal, e responde: "A justiça é, em realidade, um bem alheio, uma vantagem para quem manda, um dano para quem obedece". davia, esse aristocrático sodalício, de caráter moral e religioso, sujeito a uma forte disciplina, durou pouco tempo porque, tendo surgido dissidência política, teve de refugiar-se em Metaponto, onde morreu por volta de 500 a.c. Parece que Pitágoras não escreveu. Seu ensinamento foi apenas oral. Suas teorias nos são conhecidas, em parte, por fragmentos de seus discípulos e, em parte, pelas contestações de Aristóteles. Especialmente importante é o escrito de Filolau, seguidor de Pitágoras e contemporâneo de Sócrates, com o título DEpt qJvcrEú)<; (Da natureza). Desse escrito chegaram-nos notáveis fragmentos. O pensamento fundamental da doutrina pitagórica é que a essência de todas as coisas é o número; ou seja, os princípios dos números são os princípios das coisas. Esse conceito matemático abriu ensejo a considerações astronômicas, musicais e também políticas. Na verdade, a Justiça é, para os pitagóricos, uma relação aritmética, uma equação ou igualdade; daí a retribuição, a troca, a correspondência entre o fato e o seu tratamento ('to avn7tE7tov8ó<;). Neste conceito (que se aplica também, mas não somente, à'pena) está o germe da doutrina aristotélica da Justiça. A Escola que por primeiro se decidiu a enfrentar os problemas do espírito humano, o problema do conhecimento e o problema ético foi a dos Sofistas, no VO século a.C. Os Sofistas, cujos principais foram Protágoras, Górgias, Hípias, Calixto, Trasímaco, Pródico, etc., nascidos na Grécia ou na Magna Grécia (Itália Meridional, Sicília), costituíam um grupo de pensadores e oradores que, mesmo ensinando doutrinas às vezes contrárias, tinham muitas características comuns. Conhecemos suas doutrinas não diretamente, mas mediante os escritos de seus adversários (fontes principais são, para nós, os 14 15 GIORGIO DEL VECCHIO Como se vê, os Sofistas eram moralmente céticos, e antes negadores ou destruidores que construtores. Com tudo isso, tiveram o grande mérito de ter desviado a atenção sobre dados e problemas inerentes ao homem, ao pensamento humano. A própria dúvida a respeito deles, levada à consciência pública, foi fecunda e benéfica, tendo projetado o espírito crítico sobre muitos problemas que antes não tinham sido postos para o pensamento. Desta forma, enquanto os filósofos da Escola J ônica tinham considerado apenas a natureza exterior, os Sofistas voltaram-se para a consideração de problemas psicológicos, morais e sociais. Foram eles que, por exemplo, puseram abertamente o problema se a justiça tinha um fundamento natural, quer dizer, se o que é justo por lei, ou,como diremos, por direito positivo, seja também justo por natureza (antítese entre VÓ!lCú ÕíKalOV = justo por lei, e <púcrtt ÕíKalOV = justo pela natureza), problema ao qual responderam em geral negativamente, observando que, se existisse um . justo por natureza, todas as leis seriam iguais. Mais importante ainda que esta resposta, porém, foi a colocação mesma do problema; em verdade, depois da solução negati va tentada pelos Sofistas, outros filósofos puderam tentar uma solução afirmativa para ela. Os Sofistas foram, em suma, o fermento que deu causa à grande Filosofia idealística grega, uma tlorescência do pensamento, da qual talvez nenhum outro povo pôde vangloriar-se. Essa tlorescência resume-se, principalmente, nos nomes de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, que brilharam soberanamente na história do pensamento. Sócrates O grande adversário dos Sofistas foi Sócrates, que viveu em Atenas, de 469 a 399 a.c. Ele foi mais o sábio da vida que o filósofo teórico. 6 - HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Também quanto a Sócrates estamos em condição análoga àquela em que nos vemos perante os Sofistas, isto é, não temos escritos autênticos dele; conhecemo-Io apenas por meio de referências de outros, porém de seus admiradores (ao contrário do que se deu com os Sofistas, cujas teorias nos foram transmitidas tão só por seus adversários), a saber: dos Diálogos, de Platão, e dos Memoráveis, de Xenofonte. Os Diálogos platônicos são, de longe, a fonte mais importante, mas neles o pensamento de Sócrates é muito superado pelo do grande discípulo, com o qual se confunde. Isto especialmente nos últimos diálogos. Os primeiros (Apologia, Eutifrone, Crito, etc.) reportam mais fielmente as palavras de Sócrates, as quais Platão recolheu de viva-voz. Sócrates disputava de maneira característica, devolvendo muitas perguntas e trazendo conclusões simples das respostas; afirmava nada saber, bem diversamente dos Sofistas, que presumiam saber tudo; golpeava-os com ironia, e os confundia, interrogando os (ironia = pergunta) sobre questões aparentemente simples, porém, no fundo, muito difíceis, e deste modo constrangendo-os indiretamente a dar-lhe razão. Em um ponto Sócrates avizinhou-se dos Sofistas, a saber: no haver dirigido o seu estudo ao homem. Sabe-se que a sua divisa era a inscrição délfica: "Conhece-te a ti mesmo" (yv&8t crwuróv). Ninguém mais que Sócrates insistiu na necessidade de conhecer a si mesmo. Mas nesse estudo chegou ele a conclusões opostas às dos Sofistas. Mostrou que cumpre distinguir o que é impressão dos sentidos, onde domina a variedade, o arbítrio individual, a instabilidade e a acidentalidade subjetiva, daquilo que é produto da razão, onde encontramos conhecimentos necessariamente iguais para todos. Assim, é preciso remontar dos sentidos à unidade conceitual, racional. Sócrates ensinava a inquirir o princípio da verdade. Saber e operar significa para ele uma coisa só, como ciência e virtude, já que esta não é senão a aplicação daquela. A virtude é a verdade conhecida e aplicada. 17 HISTORlA DA l'lLOSOHA DO DIRElTO GIORGIO DEL VECCHIO Isto que se afmna do saber em geral vale também para o saber jurídico. Sobre cada coisa devemos saber ver a universalidade. Aqueles que vêem a variedade das coisas justas em cada tese ou norma jurídica, mas não a justiça em si, não são filósofos (q:nÀócroq>Ot = filósofos), mas q>lÀóÕOçOt = amantes da glória) isto é, não amantes da sabedoria, mas da opinião da nomeada. Sobre as contradições do mundo empírico, objeto da opinião, está a unidade do mundo inteligível, objeto da ciência. Filosofia é justamente o amor à ciência. Desta maneira, Sócrates deu os primeiros acenos de um sistema filosófico idealístico, mesmo não o construindo, como fez, depois, Platão. Ensinou o método do filosofar, com especial atenção para a Ética, reagindo contra o ceticismo prático dos Sofistas, por dirigir-se para o bem; ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas haviam ensinado a desprezar), e não só as leis escritas, mas também aquelas que, mesmo não escritas, valem, como dizia, igualmente, em toda parte, e são impostas aos homens pelos deuses. Assim Sócrates afirmou a sua fé em uma justiça superior, por cuja validade não é necessária uma sanção positiva, nem uma formulação escrita. A obediência às leis do Estado é, pois, em todos os casos, para Sócrates, um dever. O bom cidadão deve obedecer também às leis más, para não encorajar o cidadão perverso a violar as boas. O próprio Sócrates pôs em prática esse princípio quando, acusado de haver introduzido novos deuses e de ter corrompido a juventude, e, tendo sido condenado à morte por esses pretensos delitos, quis que se executasse a condenação, e enfrentou serenamente a morte, da qual tinha podido escapar. A acusação de querer introduzir novos deuses, já acenada por Aristófanes nas Rãs, tinha sido possível porque Sócrates diziase inspirado por uma di vindade (õat/-lwv = divindade), que não era outra que não a sua consciência; e tal atitude, que parecia contrária à religião dominante, serviu de pretexto para seus inimigos. O modo sereno e sublime com que encarou a morte toma ainda mais admirável a sua figura e faz dele um precursor dos outros mártires do pensamento. Por seu ensinamento, com o qual pre tendeu procurar os princípios racionais do agir, Sócrates merece ser considerado um dos principais (se não absolutamente o primeiro) entre os fundadores da Ética. Platão As obras do grande discípulo de Sócrates, Platão (427-347 a.c.), escritas em forma dialogal, apresentam o mestre discutindo com seus discípulos e com Sofistas, seus adversários, de modo que o inteiro sistema de Platão vem expresso aparentemente por Sócrates. Este, porém, não é o seu construtor. Sócrates iniciou na especulação filosófica, mas não produziu ele mesmo um completo sistema. O Sócrates de Platão não é, pois, o Sócrates histórico, mas, em grande parte, o próprio Platão. Das doutrinas deste último não podemos tratar senão enquanto contempla mais especialmente a nossa disciplina. Faremos um resumo dos dois diálogos Politéia ou República (melhor se traduziria "Estado"), e Nó/-lOt, ou "Leis", aos quais pode-se acres centar como terceiro, intermediário entre os dois, o intitulado TIoÀtnKÓç; (= O homem político) O mais importante é o primeiro, no qual Platão apresenta completamente a sua concepção ideal do Estado. Quer ele considerar a justiça no Estado, porque, como ele diz, aí a justiça se mostra mais claramente, sendo escrita em caracteres grandes, enquanto em cada homem é escrita em caracteres pequenos. Para Platão, o Estado é o homem em grande, isto é um organismo perfeito ou, antes, a mais perfeita unidade: um todo formado pelos vários indivíduos, e fmnemente constituído, como um corpo é formado de muitos órgãos, que, juntos, tomam possível a vida de les. Assim no indivíduo, como no Estado, deve reinar alguma harmonia, que se obtém pela virtude. A Justiça é a virtude por excelência, enquanto esta consiste em uma relação harmônica entre as várias partes de um todo. 1 9 .8 GIORGIO DEL VECCHIO A Justiça exige que cada um faça o que lhe cabe ('tá Éamoü 1tpá't'tEtV). Platão traça com cuidado o paralelo entre o Estado e o indivíduo e o faz também nos particulares, dando à sua concepção base psicológica. Três partes ou faculdades existem na alma do indivíduo: a razão que domina, a coragem que atua, o senso que obedece. Assim, no Estado distinguem-se três classes: a dos sábios, destinada a dominar; a dos guerreiros, que devem defender oorganismo social; a dos artífices e agricultores, que devem nutri-lo. Como o indivíduo é dominado pela razão, o Estado é pela classe que representa justamente a sabedoria, isto é, pelos filósofos. A causa da participação e da submissão do indivíduo ao Estado é a falta de autarquia, isto é, a imperfeição do indivíduo, a sua insuficiência em si mesmo. O ser perfeito que basta a si mesmo, que tudo absorve e tudo domina, é o Estado. O fim do Estado é universal, compreende nele, por isso, suas atribuições, tanto quanto a vida de cada um. O Estado tem por fim a felicidade de todos mediante a virtude de todos. Note-se que, pela Filosofia grega clássica, felicidade e virtude não são termos antitéticos, mas coincidentes, porque a felicidade é a atividade da alma segundo a virtude, isto é segundo a sua verdadeira natureza. O Estado, segundo Platão, domina ainda a atividade humana em todas as suas manifestações; a ele compete promover o bem e todas as suas formas. O poder do Estado é ilimitado, nada é reservado exclusivamente ao arbítrio dos cidadãos, mas tudo está sob a competência e ingerência do Estado. Esta concepção absolutista é oposta àquela que foi, depois, sustentada por outros filósofos, segundo os quais existem limites determinados para a ação do Estado (Estado de direito: Kant). A concepção platônica é, de resto, a dominante no mundo helênico. Desta maneira, o Estado tem, antes de tudo, segundo os gregos, a função de educador. E no diálogo da República encontramos cumpridas dissertações sobre este tema. 20 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO São meios de educação, para Platão, sobretudo a Música (que compreende a primeira instrução literária), e a Ginástica. A Música gera uma disposição do ânimo apta ao acolhimento do bom e do belo. Em seguida, a Matemática (compreendida a Astronomia); segue, depois, para os mais capazes, o ensino das outras ciências e da Filosofia. Platão ocupa-se especialmente da preparação dos cidadãos para a vida pública. Os indivíduos melhores deverão chegar ao governo da coisa pública mediante gradual seleção e aplicada educação, e só depois dos cinqüenta anos de idade, dedicando-se exclusivamente a essa função, que é a mais alta entre aquelas do cidadão. Nesta concepção, o elemento individual é de todo sacrificado ao social e ao político. Falta inteiramente a idéia de que todo indivíduo tenha certos direitos próprios, originários. O Estado domina de modo absoluto. Para tomar mais legítima e estreita a estrutura política, Platão suprime as entidades sociais intermediárias entre o indivíduo e o Estado. Desta maneira, ele chega a sustentar a abolição da propriedade e da faIllilia, ou seja, a comunhão dos bens e dos haveres de modo a formar uma só faIllilia, para que resulte inteira e perfeita a unidade orgânica e a harmonia do Estado. Isto, porém, vale apenas para as duas classes superiores (ou seja, aquelas que participam mais diretamente da vida pública). Estamos ainda bem distantes das modernas concepções comunistas. De certo modo, a personalidade do homem não é adequadamente reconhecida por Platão. Em vão, por exemplo, se buscaria em Platão uma condenação da escravidão. Os escravos não estão incluídos nem mesmo nas três classes postas por ele para exercitarem as funções do Estado, do que se vê quanto erram aqueles que costumam considerar a teoria platônica ligada à do socialismo hodierno. Platão foi movido a construir seu Estado ideal apenas com preocupações éticas e políticas, nunca econômicas. 2] GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Estes, em resumo, os conceitos principais formulados por Platão no diálogo da República. O diálogo das Leis, composto mais tarde, quando Platão era mais que setenário, tem caráter di verso do precedente, porque não traça ele um ideal puro, mas, ao contrário, considera a realidade histórica nos seus caracteres contingentes, e mostra-nos freqüentemente um admirável senso de experiência prática. No diálogo da República, Platão tinha expressado a regra de que os sábios governariam segundo a sua sabedoria. Na verdade, se supomos que a sabedoria domina o mundo, as leis são supérfluas (cf. sobre isto o Político, 294/299 e). Mas, se consideramos a prática e a natureza humana em concreto, vemos a necessidade delas. O diálogo das Leis põe exatamente a questão do que idealmente deveria e do que acontece na vida, e trata largamente do problema da legislação. Os princípios fundamentais da República mostram-se, não obstante, os mesmos também no diálogo das Leis. Platão dá ao Estado uma função educativa, quer as leis acompanhadas das exortações e dissertações que lhe mostram os fins. Nas leis penais, tem-se um escopo essencialmente curativo. Platão considera os delinqüentes como doentes (pois que, segundo o ensinamento socrático, nenhum homem é voluntariamente injusto); a lei é o meio para cuidar dele; a pena, a sua medicina. Mas, em razão do delito, também o Estado é, em certo modo, doente, donde, se a saúde do Estado o exige, isto é, quando se trata de um delinqüente incorrigível, o delinqüente deverá ser eliminado ou suprimido para o bem comum. (Convém notar, a este propósito, a diferença entre a concepção de Platão e a da moderna Escola de Antropologia criminal; esta considera a delinqüência como um produto da degeneração física, enquanto que, para Platão, o delinqüente é, intelectualmente, um débil; e sua enfermidade é aberração, ignorância do verdadeiro, isto é, da virtude, que é o conhecimento do vero.) N o diálogo das Leis, Platão demonstra um maior respeito para com a personalidade individual (sempre, porém, apenas dos homens livres, excluídos os escravos). A família e a propriedade nos aparecem mantidas, e não mais sacrificadas a uma sorte de estatismo, como na República. Mas a autoridade do Estado permanece enorme e absorvente, por exemplo, no que concerne àrepartição da propriedade (onde há divisão dos cidadãos em diversas classes segundo o censo), à formação dos matrimônios e àvida conjugal (sujeita sempre a uma rigorosa vigilância), à atividade musical e poética (também essa regulada com precisão, em razão de fins educativos), à religião e ao culto, etc. Quanto à forma política, Platão critica tanto a monarquia quanto a democracia, na qual uma parte dos cidadãos comanda e outra serve; e propõe uma espécie de síntese, vale dizer, um governo misto, com vista especialmente ao regime de Esparta, em que, ao lado das duas formas, havia o Senado e os Éforos. Temos afirmado que no diálogo das Leis existe uma notável base histórica (há, por exemplo, uma exposição maravilhosa sobre a gênese do direito), e aparece uma consciência da realidade empírica muito maior que no da República. Também este, porém, onde o Estado aparece como pura concepção ideal, não falta uma conexão histórica, que é dada exatamente pelapólis grega, representada nos seus traços essenciais e ao mesmo tempo idealizada. Platão visava reagir contra o ceticismo dos Sofistas e as tendências demagógicas do seu tempo, afmnando que só os melhores deveriam governar, e para impedir a dissolução da coisa pública. Deve-se reconhecer também que a sua teoria política teve, ainda, um intento prático e uma referência às condições históricas da sua idade. Aristóteles Aristóteles (384/322 a.c.), nascido em Estagira, foi discípulo de Platão por bem vinte anos e, mais tarde, preceptor de Ale 22 23 GIORGIO DEL VECCHIO xandre Magno. Quando este subiu ao trono, Aristóteles fundou sua escola em Atenas, no Ginásio Liceu (dedicado a ApoIoAÚKElOÇ). Tratou o estagirita de quase todos os ramos do saber, e muitas ciências pode-se dizer que começaram com ele. Todavia, tendo grande parte de seus escritos andado perdidos, não se pode determinar até que ponto valeu-se ele das perquirições de outrem. O caráter do seu gênio é diverso do de Platão. Platão, por sua natureza, mais especulativo; Aristóteles, mais inclinado à observação dos fatos. Porém, em questões cardeais da Filosofia, ele não se distancia muito de seu mestre, e é equivocado apresentá-Ios como adversários e antagonistas, como às vezes se faz. É verdade que Aristóteles refuta expressamente algumas teorias de Platão. Temse mesmo acenado também para discórdias pessoais que se sabe existiram entre mestre e discípulo. Mas, provavelmente, se exagerou sobre este ponto, e se formaram lendas. Deve-se reconhecer que também Aristóteles foi essencialmente metafísico e idealista. Também a respeito deste filósofo deveremos limitar-nos ao exame das doutrinas que concemem à Filosofia do direito. As obras mais importantes são, por isso, a Política e a Ética. Desta têm-se três redações: Ética a Nicômaco, Ética Eudemia e a também dita Grande moral ou magna moralia, que em muitas partes se equivalem. Apenas a primeira (Ética a Nicômaco) é certamente obra de Aristóteles, enquanto a Eudemia é provavelmente obra de Eudemo, seu aluno, e a Grande Moral é um extrato das duas precedentes. A Política (IToÀ.t'nKá), em oito livros, não chegou a completar-se. Outro escrito, sobre Constituições (IToÀ.t'"CElm), que continha a descrição de 158 constituições, perdeu-se em grande parte (recentemente encontrou-se importante fragmento da Constituição dos Atenienses). Como para Platão, também para Aristóteles o sumo bem é a felicidade produzida pela virtude. O Estado é uma necessidade; não é simples aliança (O'U~I.taxía), isto é, associação temporal feita para se alcançar qualquer fim particular, mas é uma união orgânica 24 -- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO perfeita, que tem por finalidade a virtude e a felicidade universal; é uma comunhão necessária., tendente ao escopo da perfeição da vida. O homem é um animal político (ç<úov nOÀ.t'nKóV), isto é, chamado pela sua própria natureza à vida política; e o Estado logicamente existe antes dos indivíduos, tal como o organismo existe antes de suas partes. Vale dizer: como não é possível conceber, por exemplo, uma mão viva separada do corpo, assim não pode o indivíduo, propriamente, pensar sem o Estado. O Estado regula a vida dos cidadãos por intermédio das leis. Estas dominam toda a vida, porque o indivíduo não pertence a si, mas ao Estado. O conteúdo das leis é a justiça, e desta Aristóteles elaborou profunda análise. O princípio da justiça é a igualdade, a qual vem aplicada de vários modos. Aristóteles distingue, a seguir, a justiça em várias espécies. A primeira entre elas é a justiça distributiva ('"Cà ôíKmov Év '"Catç ôwvoJlmç, '"Co ÔWVE~ll'nKÓV), que se aplica na repartição das honras e dos bens, e visa a que cada um dos consociados dela receba uma porção adequada ao seu mérito (Ka'"C' àçíav). Se, pois - aduz Aristóteles - as pessoas não são iguais, também não terão elas coisas iguais. Com isto, evidentemente, não se faz mais que reafirmar o princípio da igualdade, pois que ele seria violado em sua função específica, se se desse igual tratamento a méritos desiguais. A justiça distributiva consiste pois em uma relação proporcional, que Aristóteles, não sem algum artifício, define como uma proporção geométrica (YEW~E'"CptK~ àvaÀ.oyta). A segunda espécie de justiça é a corretiva ou igualadora, que também se pode dizer retificadora ou sinalagmática, isto é, re guladora das relações mútuas ('"Cà Êv '"Colç cr~vaÀ.À.áy~a<H ÔlOp8w'nKÓV). Também aqui se aplica o princípio da igualdade, mas em forma diversa daquela vista antes; pois aqui se trata só de medir impessoalmente o dano ou o proveito, isto é, as coisas e as ações no seu valor objetivo, considerando-se como iguais os termos pessoais. Uma tal medida tinha, segundo Aristóteles, o seu próprio tipo na proporção aritmética (dpt8~lltK~ ávaÀ.oyÍa). 25 GIORGIO DEL VECCHIO Esta espécie de justiça tende a fazer que cada uma das duas partes que se encontre em uma relação venha a encontrar- se, em relação à outra, em uma condição de paridade; de modo que nenhuma tenha dado nem recebido a mais nem a menos. Daí a definição desta forma de justiça como o ponto intermédio ou o meio entre o dano e a vantagem. Estes termos vão, porém, em sentido lato, aplicando-se não só às relações voluntárias ou contratuais, mas também àquelas que Aristóteles chama involuntárias (âKOÚcnCX), e que nascem do delito, mesmo que, porém, a seguir, se exija certa equiparação, vale dizer, exata corespondência entre o delito e a pena. A justiça corretiva (igualitária ou retificadora) vale, pois, para toda sorte de troca e de interferência, de natureza ci vil ou penal. A respeito, sempre segundo Aristóteles, que, todavia, não desenvolve aqui muito claramente o seu pensamento, faz-se logo ulterior subdistinção. Ajustiça corretiva ou igualitária pode mostrar-se sob dois aspectos: enquanto determina a formação das relações de troca segundo certa medida, e se apresenta, então, como justiça comutativa, ou enquanto tende a fazer prevalecer tal medida no caso de controvérsias, com a intervenção do juiz, e se apresenta, aí, como justiça judiciária. Em matéria de delitos, a justiça corretiva exercita-se de forma necessária, imediatamente, na forma judicial, porque, aí, se tratata, necessariamnente, de reparar, contra a vontade de uma das partes, um dano advindo injustamente. Ao invés, em matéria de permutas ou de contratos, aquela justiça oferece normas, antes de tudo, aos próprios contratantes, e a atuação corretiva do juiz pode também não ser necessária. Aristóteles preocupou-se com a dificuldade de aplicação das leis abstratas aos casos concretos e indicou um corretivo para a rigidez da justiça: a eqüidade, critério de aplicação da lei que permite adaptá-Ia a cada caso, temperando-lhe a dureza. 26 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Para tornar claro este conceito, ele equipara a equidade a uma certa medida (régua lésbia*), feita de uma substância flexível, que permitia seguir a sinuosidade dos objetos a medir. Assim, as leis são formais, abstratas, esquemáticas. Sua justa aplicação exige certa adaptação. Esta adaptação é constituída da equidade, que, segundo Aristóteles, pode chegar, nos casos não contemplados propriamente pelo legislador, até a sugerir novas normas. Quanto às relações entre o Estado e os indivíduos, enquanto Platão queria afastados os graus intermediários, absorvidos nele, Aristóteles os conserva, concebendo assim o Estado como a mais elevada síntese da convivência, mas síntese que não elimina os agregados menores, como a família, mesmo a tribo, ou os vilarejos (KéD~CXt). Do primeiro agregado, a fanulia, passa-se ao segundo, a tribo, ou vila. Em seguida, a reunião das KW~CXt dá lugar à 7tóÀtç, ou seja, ao Estado grego (Note-se que a pólis grega é uma unidade política mais reduzida do Estado moderno). A consideração daqueles graus intermédios de convivência demonstra uma melhor concepção histórica em Aristóteles do que em Platão. Aqueles agregados são como as diversas etapas para formar o Estado. A abolição da fanulia e da propriedade, concebida por Platão, encontra em seu discípulo uma oposição e uma confutação veemen * N. T. - Régua lesbiana - Define-a Larousse como regle de plomb qui pouvait se plier pour prendre le contourdês pierres à surface courbe ou brisée = "régua de chumbo que podia dobrar-se para tomar o contorno das pedras de superfície curva ou fragmentada" (GRAND diccionaire universal du XIXême siêcIe. Paris, 1865, tome treiziême, p. 856). A régua lesbinana é tomada, aqui, em sentido intelectual, no campo das idéias, mais pelas suas propriedades que pela figura em sua materialidade. Tal como a régua, que amolga ao ser aplicada a superfícies sinuosas, a eqüidade representa o amolgamento (adaptação) da conduta do juiz para atender a peculiaridades do caso que examina. Mas, por que lesbiana? Parece que a razão deve ser buscada na idéia de adaptação, presente na eqüidade e, também, na coisa, lesbianismo. Estarei certo ou obrando em fantasia? 27 GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO teso Desse contraste revela-se o temperamento diverso dos dois grandes filósofos: ao idealismo absoluto, puramente especulativo de um, opõe-se o espírito observador do outro, que busca nos próprios fatos sua relativa razão, e os graus de seu sucessivo desenvolvimento. A farrulia tem como elementos o homem, a mulher, os filhos e os servos, uma sociedade estabelecida perpetuamene pela natureza. Da união de várias farru1ias surge a vila, ou a comuna (KWfll1); da reunião de várias comunas, o Estado, que, ele só, possui a plena autonomia administrativa. Este é, portanto, o fim das outras comunidades dado pela natureza. Para não precisar da sociedade deve rá ser ou mais, ou menos que um homem, um animal, ou um deus. Aristóteles observa o fenômeno da escravidão, e também buscajustificá-Io demonstrando como os homens que são incapazes de se governarem deviam ser dominados. Alguns homens afirma ele - são nascidos para a liberdade; outros, para a escravidão. Tenta ainda provar com razões de índole prática a utilidade da escravidão. O Estado, na concepção aristotélica, tem necessidade de uma classe de homens dedicada às ocupações materiais, que sirva a outra classe, de condição privilegiada, permitindo a ela atender a formas superiores de atividade, especialmente à vida pública. Cumpre salientar que, então, a escravidão era geralmente considerada como necessidade para o Estado (Note-se que também o Estado romano tinha uma de suas bases nessa instituição. Pense-se, por exemplo, nas grandes obras públicas construídas pelos escravos. De mais a mais, a possibilidade de os cidadãos participarem livremente da vida pública, e de se dedicarem às letras e às ciências, dependia, em parte, da escravidão. Esta era um efeito, considerado legítimo, da conquista militar. Muitos dos escravos mais cultos, especialmente gregos, desempenhavam funções nobres, ajudando também aos seus donos naquilo que dizia respeito aos seus conhecimentos. Sabe-se que muitos escravos em Roma eram amanuenses e professores muito apreciados, e, ainda, adidos às numerosas bi bliotecas, especialmente ao tempo do Império. Talvez possamos, então, compreender, até certo ponto, como Aristóteles considerava necessária a escravidão a qual- dizia - se poderia abolir "se a lançadeira corresse por si sobre o tear"* Tais palavras demonstram como existia nele uma profunda compreensão da função econômica da escravidão no seu tempo. Na verdade, para a abolição da escravatura, nos tempos que se seguiram, contribuiu também o progresso da indústria, a invenção da máquina, etc. Todavia, podendo-se admitir, em certas fases históricas, a relativa razão da escravatura - e, neste ponto, são apreciáveis as razões de Aristóteles -, não é admissível a sua tese, quando pre tende dar para ela uma justificativa absoluta, uma vez que, por si mesma, a escravidão choca-se contra o direito à autonomia, que todo homem possui naturalmente; e não se pode sustentar que exista uma categoria de homens destinada pela natureza a servir. Enquanto Platão havia engendrado um ideal de Estado, Aristóteles, ao contrário, contempla, antes de tudo, a realidade dos Estados existentes, desenvolvendo uma série de análises. De sua coleção de Constituições políticas infelizmente a maior parte se perdeu, e apenas, como dissemos, foi encontrada a parte referente à Constituição dos Atenienses, traduzida em italilano por Ferrier, se bem que a Política contenha também considerações de caráter geral. Nela Aristóteles destaca o nexo das instituições políticas com as condições históricas e naturais; não, sem dúvida, o melhor absoluto, mas o relativo, e examina quais os governos mais adequados em relação aos vários elementos de fato. Acena ele, * N. T. - Aristóteles era o filósofo, mas não era profeta. O que lhe parecia impossível, e era, mesmo, no seu tempo (a lançadeira correr sozinha sobre o tear), o gênio inventivo de Ark Wrigst (Sir Richard - 1732/1792) fez realidade em 1769 quando, retomando experiências de James Hargreaves, patenteou o invento de uma máquina de tecer que substituiu o braço escravo, movida, inicialmente, pela força eqüestre, depois pela força hidráulica, abrindo a Revolução Industrial do século XVIII. 28 29 GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO por primeiro, para uma distinção entre os Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). A Constituição política é o ordenamento desses Poderes. Segundo o poder supremo diga respeito a um, a alguns, a todos, Aristóteles distingue três tipos de constituições: monárquica, aristocrática, policial, que considera igualmente bons, desde que quem tenha o poder o exercite para o bem de todos (KOWOV crtl.upÉpov). Mas, se o poder é exercitado por quem governa para utilidade própria (t8wv crtl.UpÉpov), aquelas formans normais de governo degeneram, dando lugar, respectiva mente, à tirania, à oligarquia, à democracia (que melhor se diria hoje demagogia, nesse sentido). A escola estóica A escola estóica liga-se à escola cínica, mas é uma sublimação da idéia fundamental dos cínicos. Teve ela por primeiro fundador Zenão de Cipro, que começou a ensinar em Atenas, em 308, a.c., e tomou o nome de stoá, ou pórtico de Atenas que era o lugar onde se ensinava. Além de Zenão, entre os antigos estóicos, são dignos de nota Cleante e Crisipo, que sucederam no ensino a Zenão. Entre os estóicos de uma era posterior, devem-se recordar, especialmente, Panésio, Posei dão, que foi mestre de Cícero em Rodes, em seguida, Sêneca, Epiteto (autor do famoso Enqueiridión, ou Manual, belamente traduzido por Lopardi, e Marco Aurélio). Os estóicos conceberam um ideal do saber humano, que possui aquele que venceu todas as paixões e vê-se liberado das influências externas. Somente desta maneira se obtém o acordo consigo mesmo, isto é, a verdadeira liberdade. Este ideal, que para os estóicos era personificado por Sócrates, deve ser tido em mira por todo homem, porque lhe é imposto pela reta razão. Existe uma lei natural que domina o mundo, e reflete-se também na consciência individual: o homem épartícipe, por sua natureza, de uma lei que vale unversalmente. O preceito supremo da Ética é, pois, para os estóicos, "viver segundo ( I - I a natureza" (o!-!oÀOYOU!-!EVú)S; 111 <pucra Sl1v). Esse conceito de uma lei universal faz que se quebrem as barreiras políticas, e o homem se considera (como ocorria com os cínicos, mas aqui em um sentido mais alto) um cosmopolita, cidadão do universo. Como Platão, em homenagem à pólis (= cidade), suprimia a faml1ia e a propriedade, assim a escola estóica suprime os Estados particulares em reverência ao Estado universal. Até então dominava um ideal estritamente político no qual o fim supremo era, em suma, a pertença do indivíduoao Estado. Mas com a Filosofia estóica anuncia-se e se prepara uma moral mais abrangente e mais humana. Vamos recordar, agora, duas escolas pós-aristotélicas de grande importância: a estóica e a epicuréia. A escola estóica deriva de uma precedente, dita escola dos cínicos, representada principalmente por Antístenes, que teve entre seus seguidores o famoso Diógenes. Antístenes foi primeiro discípulo de Górgias, e depois de Sócrates, mas colocou-se numa espécie de antagonismo com outros discípulos de Sócrates, especialmente com Platão. Para os cínicos, a virtude é o só bem e consiste na modéstia, na continência, no contentar-se com pouco. O sábio quase não tem necessidades e despreza aquilo que os homens comuns desejam: ele segue apenas a lei da virtude, e não cuida das demais leis positivas. Assim, ele não é estrangeiro em lugar algum; é cosmopolita, cidadão do mundo. De acordo com esta idéia, os cínicos desprezam todas as leis e os costumes dominantes, têm uma postura negativa perante o Estado e buscam desprender os cidadãos dos vínculos que os unem a ele, retomando à simplicidade primitiva do estado de natureza. 30 31 GIORGIO DEL VECCHIO o estoicismo afmna que existe uma liberdade que jamais qualquer opressão poderá destruir, aquela que deriva da supressão das paixões. O homem é livre se segue a sua verdadeira natureza, isto é, se aprende a vencer as paixões, postando-se independente delas. Nesse sentido, não há diferença entre livre e escravo. Temse uma sociedade do gênero humano, além dos limites assinalados pelos Estados políticos, fundada sob a identidade da natureza humana e da lei racional, que corresponde a ela. É por si mesmo significativo que encontremos entre os mais insignes escritores cultores e seguidores da Filosofia estóica um escravo, como Epiteto, e um Imperador, como Marco Aurélio. A Filosofia estóica prenuncia, de certo modo, o Cristianismo. A escola epicuréia A escola estóica opõe-se à escola epicuréia, que, por sua vez, foi precedida da escola cirenaica ou hedonística, fundada por Aristipo de Cirene. Segundo esta escola, o prazer é o único bem e não existem outros fundamentos de obrigação, além daqueles que derivam da finalidade do prazer. Epicuro, que fundou sua escola em Atenas em 306 a.c., e a continuou até o ano de sua morte (270), partiu do mesmo conceito fundamental dos cirenaicos, mas teve o mérito de dar um desenvolvimento mais amplo e mais razoável à doutrina hedonística. Para Epicuro a virtude não é o fim supremo, como para os estóicos, mas um meio para chegar à felicidade. Assim, enuncia-se o princípio utilitário, ou hedonístico, avesso à moral estóica; e podese afirmar que as escolas éticas posteriores dividiram-se segundo essas duas concepções, em contínuo contraste. Pessoalmente, Epicuro foi um homem sábio e pregava a temprança como a primeira virtude para assegurar o prazer. Segundo a sua doutrina, não é necessário procurar o prazer, nem evi tar toda dor, mas conduzir-se de maneira que o êxito final ou o 32 -- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO resultado constitua a maior quantidade possível de prazer e a menor possível, de dor. Isto implica certo cálculo ou medida de utilidade. No caso, a falta de moderação abrevia a vida, prejudica o organismo e diminui, assim, a faculdade de gozar. Neste ponto, Epicuro chegou a oferecer preceitos éticos. Além disso, a escola de Epicuro manifestajá uma teoria sobre a distinção qualitativa, ou graduação dos prazeres. Diferentemente da Escola Cirenaica, que considerava sobretudo as sensações físicas, Epicuro dá maior peso aos prazeres e às dores do espírito, que são mais duradouros do que aquelas. A amizade é consderada por Epicuro como o maior dos prazeres. Isto mostra como sua doutrina não é apenas materialista. Dessa graduação dos prazeres origina-se, porém, a crítica do utilitarismo, uma vez que, admitindo-se prazeres inferiores e superiores, há necessidade de um critério de escolha, de uma régua qualitativa e não quantitativa, pela qual o sumo bem pode ser a satisfação da consciência, a ser alcançada até mesmo a preço de uma dor física. Supera-se, assim, a singela doutrinna hedonística, que busca o prazer pelo prazer, sem distinções. Merece ainda consideração a parte da doutrina de Epicuro que conceme ao Estado. Também aqui domina a concepção utilitária. Epicuro nega que o homem seja social por natureza. Em sua origem estaria em luta permanente com os outros homens, mas esta luta, gerando dor, vem a ser abolida com a formação do Estado. Assim, para Epicuro, o direito é apenas um pacto utilitário, e o Estado é o efeito de um acordo que os homens poderiam romper toda vez que em tal união não encontrassem a utilidade pela qual a concluíram. Como se vê, o Estado de Epicuro está, pois, em condição de anarquia potencial. Tem-se, aqui, a primeira formulação (prescindindo-se de qualquer aceno dos Sofistas) da doutrina platônica e aristotélica, que, ao contrário, fundava o Estado sobre a natureza mesma dos homens. 33 GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Veremos depois, os sucessivos desenvolvimentos da teoria contratualista, na Idade Média e na moderna. Os juristas romanos conceitos fundamentais da melhor Filosofia grega, expressos em forma elegante e clara, para torná-los bem acessíveis ao povo romano. O próprio Cícero apela para o bom senso natural, para a persuação comum dos homens, dando ao seu discurso caráter popular. A sua tese principal é que o direito não é um produto do arbítrio, mas dado pela natureza. Natura juris ab homines repetenda est natura( = "A essência do direito deve ser procurada pelos homens na natureza"). Tem-se, aí, como ensinaram os estóicos, uma lei eterna, que é uma expressão da razão universal. Portanto, ele combate os céticos, os quais, afirmando a impossibilidade do conhecimento, e a mutação e relatividade de todas as coisas, deduziram daí a impossibilidade de uma justiça absoluta (em especial a Cameades que, com sua pregação cética, causara em Roma certa turbação, abalando as convicções comuns, e sustentando que o critério do justo não é fundado na natureza. Cícero opõe-se a esses argumentos, e observa que nem tudo que é posto como direito é justo, que, em tal caso, também as leis dos tiranos formariam o direito. O direito funda-se em opinião arbitrária, mas existe um justo natural, imutável e necessário, pelo testemunho inferido da própria consciência do homem. Este conceito é desenvolvido por Cícero com grande eloquência: Est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna... neque est quaerendus explanator, aut interpres eius alius. Nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex, et sempiterna, et immutabilis continebit... cui qui non parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis aspernatus hoc ipso luet, maximas poenas, etiamsi cetera suplicia, quae putantur, eftugerit (= "Na verdade, a reta razão é uma lei conforme à natureza, difusa em todos, constante, eterna... não exige quem a explique, ou um outro intérprete. Nem existe outra lei em Roma, outra em Atenas, outra agora, outra depois, mas uma só lei existirá para todas as pessoas e em todo tempo, Roma não teve uma filosofia original. Mas como no Oriente o supremo objeto da atividade espiritual foi a religião e na Grécia, a Filosofia, em Roma foi o direito. Nisto, a sabedoria romana excele. Houve em Roma, certamente, correntes filosóficas, mas elas derivaram daGrécia. Pode-se dizer que todas as Escolas gregas tiveram em Roma representantes próprios. O Epicurismo, por exemplo, teve Lucrécio Caro que, no poema De rerum natura, expôs com eloquência as teorias de Epicuro; o Estoicismo teve Sêneca e Marco Aurélio, etc. Cícero (106/43 a.C.) foi aquele a quem pertence o mérito de ter tomado popular a Filosofia em Roma, o intermediário típico entre o pensamento grego e o latino. Autor de obras às quais deu esplendor de forma e de eloquência, mas cujo conteúdo é quase todo grego. Ele mesmo afirmou que seus escritos "apografa sunt", e acrescenta: Verba tantum aftero, quibus abundo (= "apenas lhes dou as palavras, nas quais sou fértil"). Suas obras mais importantes para o direito são: De Republica, De Legibus, De OfficÜs, além de De finibus bonorum et malorum, Tusculararum desputationum libri quinque, etc. Do De Republica chegou-nos apenas cerca de uma terça parte, descoberta em maio de 1819 em um palimpsesto vaticano. O De legibus é também incompleto, mas talvez tenha sido deixado assim pelo próprio autor. Cícero não pertenceu propriamente a nenhuma Escola, mas sentiu a influência de muitas, a começar pela Estóica, à qual se filiava seu mestre Poseidon. Foi eclético. O título e a forma de algumas de suas obras (De Republica, De legibus) são platônicos; o conteúdo é aristotélico e estóico; encontram-se neles, em suma, revigorados, os 34 35 GIORGIO DEL VECCHIO eterna, imutável... quem não lhe obedecer foge de si mesmo, e tendo desprezado a natureza do homem, sofrerá por isso mesmo as maiores penas, embora fuja de outros sofrimentos, que imagine"). Além do jus naturale, e em imediata pertinência com ele, existe umjus gentium, observado por todos os povos, que serve de base a suas relações recíprocas porque se funda sobre suas comuns necessidades, não obstante as modificações que as diversas circunstâncias tomam necessárias. Por último, existe o jus civile, vigente para cada povo, em particular. Entre os termos dessa tricotomia (jus naturale, jus gentium e jus civile) não existe contradição, sendo eles antes determinações graduais de um mesmo princípio. Ainda, para Cícero é o Estado um produto da natureza. Um instinto natural leva o homem à sociabilidade, e precisamente à convivência política. Renova-se, assim, a doutrina aristotélica. Os juristas romanos tiveram, em geral, uma cultura filosófica. O estoicismo foi, entre todos os sistemas da filosofia grega, o que teve mais sorte em Roma, porque melhor correspondia à índole austera, ao caráter fortemente rígido do cidadão romano. Também o ideal cosmopolítico dos estóicos tinha certa repercussão positiva no crescente domínio de Roma. O conceito de uma lei natural, comum a todos os homens torna-se familiar aos juristas romanos, como uma crença implícita e subentendida na sua própria noção do direito positivo. É apontado como o fundamento deste a naturalis ratio, que não significa a mera razão subjetiva, individual, mas aquela racionalidade que está inscrita na ordem das coisas e é, por isso, superior ao arbítrio humano. Há, portanto, uma lei da natureza, imutável, não feita a propósito, mas já existente, nata; lei uniforme e não sujeita a mutações por obra huma na (Jus naturale est id quod semper bonum et aequum est = "Direito natural é aquilo que é bom e eqüitativo sempre"). 36 -- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO O conceito de jus naturale liga-se ao da eqüidade. A eqüidade significa propriamente uma equalitação, tratamento igual de coisas e assuntos iguais, um critério que obriga a reconhecer o que é idêntico no substrato das coisas, além do vário e do acidental. A idéia de eqüidade e a de lei natural tomam-se fatores de progresso no direito. O direito positivo é uma modificação do direito natural, com elementos de acidentalidade e de arbítrio. As condições de lugar e de tempo mudam, a utilidade sugere normas particulares, e isso os juristas romanos reconhecem amplamente. Mas, não obstante, está neles o cuidado permanente de reconduzir o direito às suas mais profundas raízes, de confrontar a norma com seu fundamento natural, tolhendo as desarmonias e desigualdades, igualando equiparando, com o objetivo de corrigir o que seja iníquo ou irracional. O simples reconhecimento de que o direito positivo é contrário ao direito natural não basta, por si, para aboli-Io, mas determina uma tendência à sua reforma ou.modificação, também no momento da aplicação judicial, por meio da equidade. Advirta-se que o magistrado romano tinha um poder mais vasto que o do magistrado moderno; tanto que, assumindo o cargo, o pretor publicava as regras que informariam sua jurisdição (edictum). O direito natural permanece o mais alto critério teórico. Dele deduzem-se as máximas mais gerais; por exemplo, aquela segundo a qual todos os homens são iguais e livres por natureza (segundo o ensinamento da Filosofia estóica). Desta maneira, os juristas romanos reconhecem, expressamente, que a servidão é contrária ao direito natural; porémjustificam-na em nome do jus gentium, sendo ela usada por todos os povos (em conseqüência das guerras). Outro princípio do direito natural é, por exemplo, a legitimidade da defesa (Adversus periculum naturalis ratio permitit se defendere = "Diante do perigo a razão natural permite a defesa"), ou seja, vim vi reppelere (repelir a violência pela violência). 37 GIORGIO DEL VECCHIO Ulpiano oferece do direito natural uma formulação que não se encontra em outros escritores: o direito natural -diz- é quod natura omnia animalia docuit ( = "aquilo que a natureza ensinou a todos os animais"). Com isso estende a validade do direito natural também aos animais em geral. Mas, em substância, nada mais faz que dar expressão restrita àquilo que também era para todos um fIrme princípio, ou seja, que o fundamento do direito está na natureza mesma das coisas, naqueles motivos que, desenvolvidos maiormente no homem, estão, também, em germe, nos animais inferiores. Uma questão importante em tomo das idéias jurídicas dos romanos é a que concerne ao jus gentium, denominação usada em diversos sentidos acuradamente distintos. Entende-se porjus gentium, em primeiro signifIcado, o complexo de normas que, no Estado romano, são aplicáveis aos estrangeiros (isto é, entre estrangeiros e estrangeiros, e entre estrangeiros e cidadãos romanos, uma vez que os estrangeiros eram excluídos do jus civile. De regra, para estas relações internacionais se estabeleceu um direito simples, despojado daquelas formalidades solenes, das quais era revestido o direito próprio do povo romano. O jus gentium é o modo simples e sufIciente para regular as relações às quais são admitidos também os estrangeiros. Quanto ao segundo sentido em que se entende o jus gentium, é provável que se tenha chegado a ele com o seguinte processo: a princípio, os romanos não conceberiam esse direito como superior ao civil, antes, como um direito primitivo e rudimentar; depois, o estudo da FilosofIa grega fez reconhecer naquela própria simplicidade a indicação da natureza, o reflexo da lei natural; em seguida, vislumbrou-se nele um elemento de superioridade, considerou-se o jus gentium como expressão das exigências primordiais e comuns a todos os povos, como revelação mais direta da razão universal. Entende-se, então, por direito das gentes o direito positivo comum 38 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO a todos os povos (quasi quo jure omnes utuntur = "o direito que todos usam"). Assim, um fato da experiência assume, pouco a pouco,um significado filosófico, chegando-se à triconomia: direito natural (universal, o mesmo sempre, perpétuo), direito das gentes (elementos comuns que se encontram nos vários direitos positivos), direito civil (com suas particularidades, que são determinações posteriores das espécies precedentes). Freqüentemente o jus gentium é confundido com o jus naturale. Mas aquele é conceito essencialmente romano, nascido da experiência histórica dos romanos; já este é conceito expresso pela Filosofia grega. Isto não exclui, porém, que os romanos possam ter tido alguma intuição nesse sentido, antes ainda da influência daquela FilosofIa. Os dois conceitos tendem a encontrar-se, e talvez pareçam coincidir; têm, todavia, um significado diverso, e certamente são também contrapostos, de tal modo que não se pode aceitar a tese segundo a qual constituiriam eles uma só coisa. Assim, por exemplo, os juristas romanos reconheceram a escravidão como contrária ao direito natural (pelo qual todos nascem livres); encontraram, todavia, para ela, justifIcativa na prática comum dos povos, no jus gentium. Bastaria isto para demonstrar a diversidade dos dois conceitos. De resto, os juristas romanos não foram notáveis nas abstrações teóricas, nas idéias puramente filosóficas, mas no traspasse delas para a prática do direito positivo, na sua aplicação, satisfazendo sempre, com genial agudeza, as exigências lógicas e as necessidades mutáveis da realidade. Consagrando o maior respeito pelas formas tradicionais e históricas dos institutos, e não rompendo nunca de maneira violenta a continuidade do seu desenvolvimento, os juristas romanos jamais perderam de vista a vida concreta e a natureza das coisas, e souberam fazer progredir continuamente o direito segundo o coteúdo das 39 GIORGIO DEL VECCHIO novas exigências, mas com uma técnica formal perfeita. Nisto está a sua glória máxima. A nossa disciplina tem por fontes clássicas a Filosofia grega e a Jurisprudência romana. 40 ~ o CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO / DIREITO NA IDADE MEDIA A sublime doutrina religiosa e moral que, nascida na Palestina, difundiu-se em poucos séculos em grande parte do mundo civil, produziu uma mutação profunda na concepção do direito e do Estado. Originariamente, porém, a doutrina cristã não teve significado jurídico ou político, mas tão só moral. O princípio da caridade não se desenvolveu para obter reformas políticas e sociais, mas para reformar as consciências. Seguiam, sim este princípio, a liberdade, a igualdade de todos os homens, e a unidade da grande farm1ia humana, porém, como corolário da pregação evangélica; mas essas idéias não se opuseram diretamente à ordem poÍítica estabelecida. A própria escravidão não foi combatida, mas respeitada como iQstituição humana, porém afmnando-se a fraternidade dos homens pela lei divina. Ao contrário, chegaram alguns Padres da Igreja a considerá-Ia como ocasião propícia para que os escravos se exercitassem na paciência, e na obediência aos patrões, e os patrões na brandura com os escravos. Não se sustenta, em suma, a necessidade de abolir, na prática, a escravidão, mas contentou-se com mitigá-Ia, através do princípio cristão da caridade e do amor. A doutrina do Evangelho foi essencialmente apolítica. Todos os seus ensinamentos tiveram, originariamente, um sentido espiritual: "Não vim para ser servido, mas para servir - O meu Reino não é deste mundo - Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus". Os tributos devem ser pagos ao Estado, não à Igreja. Todavia, a doutrina da Igreja teve efeitos e influência notáveis também -sobre a Política e sobre as ciências atinentes a ela. 41 GIORGIO DEL VECCHIO Um primeiro efeito, de natureza metodológica, é a aproximação do Direito à Teologia. Posto que um Deus pessoal governa o mundo, considera-se o direito como fundado sob um comando divino. O Estado como instituição divina. E a vontade divina é conhecida não tanto pelo raciocínio, quanto pela revelação; antes de ser demonstrada, deve ser crida, aceita pela fé. Somente no Renascimento, no qual se verificou, de certo modo, um ressurgimento da Filosofia e da cultura greco-latina, reafIr mou-se a doutrina clássica segundo a qual o direito deriva da natureza humana, independentemente da Teologia. Outro resultado do Cristianismo, ou melhor, da forma histórica do Cristianismo, é reconhecido na nova concepção do Estado em relação à Igreja. Na antiguidade clássica apenas existia o Estado, como unidade perfeita. O indivíduo tinha a suprema missão de ser bom cidadão, de dar ao Estado tudo de si mesmo. Com o Cristianismo, ao contrário, outro fim é proposto ao indivíduo: o fim religioso, do outro mundo. A meta última não é a vida civil, mas a conquista da felicidade eterna, da beatitude celeste, que se alcança mediante a subordinação à vontade divina representada pela Igreja. No Estado clássico, a religião era uma magistratura a ele submetida; na Idade Média, a Igreja tende a sobrepor-se ao Estado, dado que, enquanto o Estado cuida das coisas terrenas, a Igreja se ocupa das eternas; daí a pretensão de usar o Estado como instrumento do fim religioso. Portanto, a Igreja afirma-se como autoridade autônoma, superior ao Estado. Desta maneira, o relacionamento político complica-se. Dos dois termos cidadão e Estado, aproxima-se um terceiro, a Igreja. O princípio fundamental, o ideal do Cristianismo, a irmandade dos homens em Deus é mais vasto e elevado que o ideal grego da era clássica. Em geral, os gregos não tinham visto mais, além do Estado, da poUso O caráter cosmopolítico é assinalado apenas pela filosofia estóica que, em algum aspecto, prenuncia o Cristianismo. 42 ....... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Enquanto o ideal cristão se toma fator histórico e princípio de organização social, assume, todavia, alguns caracteres próprios de todo sistema político; como força social, não chega a uma verdadeira universalidade, mas toma-se um fim antitético de outras forças. Politicamente, a Igreja firmou-se, em certo modo, como partido guelfo, em oposição ao gibelino: como Estado, frente a outros Estados. A Filosofia Cristã (que, nascida na Idade Antiga, desenvolveu-se e predominou especialmente na Idade Média), divide-se em dois principais períodos: o da Patrística e o da Escolástica. No primeiro fixam-se os dogmas, os artigos de fé, por obra dos padres da Igreja (donde o nome). No segundo, surge uma elaboração dos dogmas, notadamente em razão dos elementos trazidos pela Filosofia grega. É também importante notar que os padres da Igreja deduziram dos juristas romanos a concepção do direito natural (dando-lhe, todavia, uma base teológica), dominante sobre toda a lei positiva. Esta concepção, transmitida aos canonistas e em geral aos estudiosos da Idade Média, foi desenvolvida pela Filosofia escolástica, como se depreende, sobretudo, do sistema de Santo Tomás, e teve uma certa função diretiva em toda a civilização futura. Pode-se, pois, dizer que os elementos essenciais do pensamento clássico não ficaram de todo perdidos, não obstante a revolução operada pelo Cristianismo; antes, passaram a dever a ele uma nova vida. A Patrística A Patrística, que vai das origens do Cristianismo até aos tempos de Carlos Magno (800), pode dividir-se também em dois períodos, separados pelo Concílio de Nicéia (325). Entre os padres da Igreja, depois dos Apóstolos, recordaremos: Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Lactâncio, Ambrósio, etc. O mais im 43 GIORGIODEL VECCHIO portante é Santo Agostinho (354/430), que escreveu numerosas obras. Nasceu em Tagaste, na Numídia (Algéria), e morreu como Bispo de Hipona (Bona). Especialmente na obra em vinte e dois livros, De Civitate Dei, desenvolveu suas teorias sobre a história do gênero humano, sobre o problema do mal e sobre o destino ultraterreno do homem, sobre a Justiça e sobre o Estado. Em nenhuma outra obra se pode observar melhor a diferença entre o conceito grego clássico e o cristão, a respeito do Estado. Enquanto os gregos haviam exaltado o Estado como supremo fim do homem, Santo Agostinho enaltece a Igreja e a comunhão das almas em Deus. A civitas terrena, que não significa propriamente um Estado determinado, mas, em geral, o reino da impiedade (societas impiorum), descende do pecado original, sem o qual não existiriam senhorias políticas, nem juízes, nem penas. O Estado teve, portanto, origem de delitos (Caim e Rômulo foram fratricidas); e o próprio Império Romano aparece a Santo Agostinho corrompido e viciado pelo paganismo. A Civitas terrena é, pois, caduca, e deve ser substituída pela Civitas Dei (ou Civitas Coelestis), que já existe, em parte, na terra, e reinará sozinha, por último. Por civitas Dei Santo Agostinho entende a comunhão dos fiéis, que se organizam como uma cidade divina, uma vez que são predestinados a participar da vida e da beatitude celestes. O Estado terreno tem, assim, escopo louvável e deriva, também, da vontade divina e da natureza, enquanto se propõe manter a paz temporal entre os homens. Mas está sempre subordinado à cidade celeste, isto é, à Igreja, que tende a procurar a paz eterna. Pode o Estado justificar-se apenas relativamente, enquanto deve servir sobretudo como instrumento a fim de que a Igreja atinja os seus próprios fins (portanto, deve ele repelir as heresias). Por último, o Estado terreno desaparecerá, para dar lugar ao restabelecimento do reino de Deus. 44 ....... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO Esta concepção enormemente catastrófica das coisas humanas explica-se, em parte, pelas experiências políticas do tempo de Santo Agostinho, que viu o Império sendo invadido pelos bárbaros. Em geral, Santo Agostinho elaborou a doutrina cristã em todas as suas partes mais severas (a predestinação, a condenação eterna da maior parte dos homens, etc.). A Filosofia política de Santo Agostinho representa o triunfo da ascese. Em tal condição, que tende a esvaziar o Estado, as aspirações ultramundanas levam vantagem sobre os valores da vida terrena. Notemos, ainda, que a obra De Civitate Dei pode ser considerada como o primeiro ensaio de Filosofia da História, sob o ponto de vista cristão. Santo Agostinho reconhece na História o cumprimento dos desígnios da Providência Divina. Desta forma, indic~, por exemplo, a tomada de Roma pelos bárbaros como um produto do juízo universal. A Escolástica Tem-se, com a Escolástica, um retomo parcial à Filosofia clássica. Na segunda metade da Idade Média aparecem obras, especialmente da Filosofia grega, que estiveram perdidas no obscuro período precedente; ou seja, tinham permanecido perdidas, foram reencontradas e postas em destaque. Todavia, foram estudadas com métodos dogmáticos, com o propósito de, a todo modo, harmonizá-Ias com os dogmas religiosos. Este o caráter fundamental da Filosofia escolástica. Aristóteles toma-se o doutor por excelência; mas, estudado e interpretado com aquelas premissas, nem sempre foi apresentado na sua verdadeira luz. Porisso, ocorreu que, depois, na reação contra a Escolástica, a Filosofia do Renascimento (por exemplo, Telésio, Bacon, etc.) declarou-se antiaristotélica. . Os Escolásticos arquitetaram engenhos rniraculsos na elaboração dos dogmas e no esforço de harmonizar com eles a Filosofia 45 GIORGIO DEL VECCHIO clássica. Tomaram-se insuperáveis na agudeza e na sua habilidade dialética, especialmente no distinguir. Mesmo conservando o caráter dogmático, a Filosofia escolástica tentou desenvolver os dogmas religiosos com uma análise racional, até onde permitiam os limites da fé. O influxo do pensamento clássico é, todavia, visível, e assaz fecundo. Isto se mostra sobretudo nas doutrinas de Santo Tomás de Aquino (1225/1274), o principal representante da escolástica. Sua obra maior é a Suma Teológica, compêndio sistemático do saber filosófico do seu tempo, obra pela qual conquista a qualidade de Cabeça Doutrinal do Catolicismo. Cumpre recordar, ainda, entre as outras obras suas, um Tratado, De regimine principum, do quaIlhe pertencem apenas o primeiro livro e parte do segundo, enquanto os outros dois livros são atribuídos ao seu discípulo Ptolomeu de Luca (Ptolomaeus Lucensis). Santo Tomás deu sistematização mais orgânica ao ensinamento cristão. Aludiremos apenas à parte que concerne à nossa disciplina. O fundamento da doutrina jurídica e política de Santo Tomás é a divisão da lei. Distingue ele três ordens de leis: a lei eterna, a lei natural e a lei humana. A lei eterna é a mesma razão divina que governa o mundo (ratio divinae sapientiae = "razão da divina sabedoria"), que ninguém pode conhecer inteiramente em si mesma (Legem aetemam nullus potest cognoscere, secundum quod in ipsa est, nisi solus Deus et beati, qui Deum per essentiam vident = "Ninguém pode conhecer a lei eterna, segundo o que ela é em si, a não ser Deus e os bemaventurados, os quais vêem a Deus em sua essência" Summa theol., 1 a, 2a, q. 93, art. 2), não obstante poder-se ter dele uma noção parcial através de suas manifestações. A lex naturalis é, ao contrário, cognoscível diretamente pela .. razão, sendo precisamente uma participação da lei eterna na criatu'" 46 ..,......... - HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO ra racional, segundo a sua própria capacidade (Lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aetemae in rationali creatura = "a lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna, na criatura racional", secundum proportionem capacitatis humana e naturae = "de conformidade com a proporção da capacidade da natureza humana" - Ib., q. 91, art. 2 e 4). A lex humana é uma invenção do homem pela qual, partindo dos princípios da lei natural, vai-se às aplicações particulares (ib., q.91, art. 3; q. 95, art. 2). Ela pode derivar da lex naturalis, per modum conclusionum (= "à maneira de conclusões") ou per modum determinationis (= "mediante uma determinação") segun- . do resulte de premissas da lex naturalis, como conclusão de um silogismo, quer dizer, uma especificação maior daquilo que é afirmado de modo geral na lex naturalis. O problema prático é: a lex humana deve ser obedecida também quando contrasta com a lex aetema e a lex naturalis? Ou seja, até onde o cidadão deve obedecer às leis do Estado? Segundo a doutrina tomística, a lex humana deve ser obedecida também quando vá contra o bem comum, isto é, mesmo quando constitua um dano, e isto para a manutenção da ordem (propter vitandum scandalum vel turbationem = "para evitar o escândalo ou a turbação"). Não deve, porém, ser obedecida quando implique uma violação da lex divina (contra Dei mandatum = "contra ordem de Deus"). Tal seria, por exemplo, uma lei que impusesse um falso culto. Na doutrina do Estado é ainda mais visível a influência de Aristóteles, e também evidente a diferença entre a teoria tomística e a de Santo Agostinho. Para Santo Tomás, o Estado é um produto natural e necessário à satisfação das necessidades humanas; deriva da natureza social do homem e subsistiria também independentemente do pecado.
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