Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR FACULDADE PROJEÇÃO WILLIAM RODRIGUES GONÇALVES ESTRÊLA DELAÇÃO PREMIADA: ANÁLISE DE SUA CONSTITUCIONALIDADE Taguatinga – DF 2010 WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 2 WILLIAM RODRIGUES GONÇALVES ESTRÊLA DELAÇÃO PREMIADA: ANÁLISE DE SUA CONSTITUCIONALIDADE Monografia apresentada à banca examinadora da Faculdade Projeção como exigência parcial para obtenção do grau de bacharelado em Direito sob a orientação da professora Patrícia Catarina Luzio. Taguatinga – DF 2010 WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR Estrêla, William Rodrigues Gonçalves. Delação premiada: análise de sua constitucionalidade / William Rodrigues Gonçalves Estrêla. Taguatinga – DF: [S.n.], 2010. 57f. Monografia – trabalho de conclusão do Curso de Bacharelado em Direito. FAPRO – Faculdade Projeção. 1. Delação Premiada. 2. Direito Constitucional. I. Título. CDU – 343 WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 2 WILLIAM RODRIGUES GONÇALVES ESTRÊLA DELAÇÃO PREMIADA: ANÁLISE DE SUA CONSTITUCIONALIDADE Monografia apresentada à banca examinadora da Faculdade Projeção como exigência parcial para obtenção do grau de bacharelado em Direito sob a orientação da professora Patrícia Catarina Luzio. Aprovado pelos membros da banca examinadora em ____/____/____, com menção _____ (__________________________________________). BANCA EXAMINADORA: _________________________________ Presidente Prof.ª Patrícia Catarina Luzio Faculdade Projeção ______________________________ ______________________________ Prof.ª Jaqueline Teresinha Davoglio Prof. Eraldo Alves Barboza Faculdade Projeção Faculdade Projeção WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 3 Dedico o presente trabalho à memória da minha querida irmã Maria Simony que em tão tenra idade nos ensinou valores como o amor ao próximo, a fraternidade e a compaixão. E hoje sei que essas qualidades só advêm de uma pessoa com coração puro e sincero. Sinto saudades. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 4 Agradeço ao Wesley Ferreira, hoje morando no Estado da Paraíba, pois, por sua ideia genial, estamos nos graduando em Direito. Agradeço também à Rosa Varella por sempre ter me apoiado nesse longo caminho. Meus agradecimentos são igualmente devidos ao Israel Farias. Não posso me esquecer dos professores João Pavanelli Neto e Patrícia Catarina Luzio que são, antes de tudo, verdadeiros educadores. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 5 Quando as provas de um fato se apóiam todas entre si, isto é, quando os indícios do delito não se sustentam senão uns pelos outros, quando a força de várias provas depende da verdade de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova que parece certa, derrubais todas as outras. Mas, quando as provas são independentes, isto é quando cada indício se prova à parte, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes. Cesare Beccaria WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 6 RESUMO ESTRÊLA, William Rodrigues Gonçalves. Delação premiada: análise de sua constitucionalidade. Taguatinga-DF: [S.n.], 2010. 57f. Monografia – trabalho de conclusão do Curso de Bacharelado em Direito. FAPRO – Faculdade Projeção. A delação premiada deve ser estudada pela sua importância, quer por ser historicamente aceita pela humanidade, quer por se encontrar positivada nos ordenamentos jurídicos de diversos países; e no caso do Brasil, por estar dispersa em diversos diplomas legais, necessitando de um exame se as leis que tratam da delação premiada podem ser aplicadas ao contexto brasileiro. Objetiva esta pesquisa apresentar de forma geral os aspectos constitucionais do instituto da delação premiada. E mais especificamente mostrar a legislação aplicada e analisar se esse instituto é aceito no ordenamento jurídico brasileiro. A presente monografia quanto à natureza trata-se de um trabalho científico de resumo, classificada quanto ao objetivo como sendo exploratória. A pesquisa utilizada é a explicativa onde os elementos são organizados segundo uma lógica objetiva por intermédio da pesquisa monográfica e bibliográfica. A abordagem usada foi a de método estrutural. O método de procedimento utilizado foi observacional, sem nenhum tipo de experimentação. Já a metodologia jurídica utilizada foi a sociológica, pois considera a história, tradição e usos da estrutura social. Serão abordados o conceito e o histórico do instituto da delação premiada. Serão listadas as leis que tratam da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro. E principalmente analisar a constitucionalidade desse instituto. Palavras-chave: Delação premiada. Análise da constitucionalidade. Generalidades. Conceito. Histórico. Legislação Brasileira. Crimes hediondos. Crime de extorsão mediante sequestro. Crimes de colarinho branco. Crimes contra a ordem tributária. Lei contra o crime organizado. Lei contra a lavagem de dinheiro. Lei de proteção às vítimas, às testemunhas e aos delatores de crimes. Lei de drogas. Moral. Moralidade Administrativa. Respeito à Dignidade da Pessoa Humana. Devido Processo Legal. Ampla defesa. Contraditório. Sigilo. Princípio da Publicidade. Direito ao silêncio. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 7 ABSTRACT ESTRÊLA, William Rodrigues Gonçalves. Delação Premiada: analysis of its constitutionality. Taguatinga-DF: [S.n.], 2010. 57p. Monograph - Course work completed Bachelor of Law. FAPRO - College Projeção. The rewarded treachery, known in Brazil a delação premiada, should be studied for its importance, either because it is historically accepted by mankind or because it is substantiated in legal systems of different countries, and in the case of Brazil, being scattered in several laws, requiring an examination if the laws that deal with tipoff awarded may be applied to the Brazilian context. This research aims to give general constitutional aspects of the Institute rewarded treachery. And more specifically show the legislation and consider whether this institution is accepted into the Brazilian legal system. This monograph on the nature it is a scientific summary, classified according to its purpose as being exploratory. The survey is used to explaining where the elements are organized according to an objective logic through research and monographic literature. The approach used was that of the structural method. The method of procedure used was observational, without any trial. Already the legal methodology used was sociological, considering history, tradition and practices of social structure. Will be discussed the concept and history of the institute rewarded treachery. Will list the laws that deal with tipoff winning the Brazilian legal system. And especially to analyze the constitutionality of the institute. Keywords: Rewarded treachery. Review of Constitutionality. General. Concept. History. Brazilian law. Heinous crimes. Crime of extortion through kidnapping. White collar crimes. Crimes against the tax. Law against organized crime. Law against money laundering. Law to protect victims, witnesses andinformers of crimes. Drug law. Moral. Administrative morality. Respect for Human Dignity. Due Process of Law. Legal defense. Contradictory. Confidentiality. Principle of Advertising. Right to silence. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 Capítulo 1 - Generalidades da Delação Premiada ................................................................. 11 1.1 Conceito de Delação Premiada .................................................................................................11 1.2 Histórico da Delação Premiada ................................................................................................13 1.3 No Direito Comparado Italiano ................................................................................................15 1.4 No Direito Comparado Americano ..........................................................................................16 1.5 No Direito Comparado Espanhol .............................................................................................17 1.6 No Direito Comparado Alemão ................................................................................................17 1.7 No Direito Comparado Colombiano ........................................................................................18 Capítulo 2 - Delação Premiada na Legislação Brasileira ...................................................... 19 2.1 Leis dos Crimes Hediondos e do Crime de Extorsão Mediante Sequestro ...........................20 2.2 Leis dos Crimes de Colarinho Branco e dos Crimes Contra a Ordem Tributária ..............22 2.3 Lei Contra o Crime Organizado ...............................................................................................24 2.4 Lei Contra a Lavagem de Dinheiro ..........................................................................................26 2.5 Lei de Proteção às Vítimas, às Testemunhas e aos Delatores de Crimes ..............................27 2.6 Lei de Drogas ..............................................................................................................................29 Capítulo 3 - Constitucionalidade da Delação Premiada ........................................................ 32 3.1 A Moral e a Moralidade Administrativa na Delação Premiada ............................................33 3.2 Respeito à Dignidade da Pessoa Humana na Delação Premiada ...........................................39 3.3 Devido Processo Legal na Delação Premiada ..........................................................................41 3.3.1 Ampla defesa e contraditório na delação premiada ............................................................................ 42 3.3.2 Sigilo na delação premiada versus o princípio da publicidade............................................................ 45 3.3.3 Direito ao silêncio na delação premiada ............................................................................................. 48 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 51 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 53 GLOSSÁRIO ............................................................................................................................ 58 WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 9 INTRODUÇÃO A crescente onda de criminalidade não é fato novo, pois, vem enraizada na própria essência do ser humano. E, modernamente, o Estado busca diversas formas de minimizar o impacto negativo que essa criminalidade causa em seus concidadãos de forma a conseguir chegar à verdadeira paz social. Ocorre que o Estado, quer por falência de suas instituições, quer pela efetividade evolutiva das organizações criminosas, não consegue descobrir e incriminar de forma satisfatória os delinquentes que se associam para subverter a ordem social. Mas, mesmo com todas as limitações, o Estado sempre está na busca de soluções para promover o bem de todos. E um dos meios que o Estado encontrou para tentar conter a expansão da criminalidade organizada é o instituto da delação premiada, que será estudado nesta pesquisa monográfica, onde se pretende analisar a sua adequação frente à integração ao ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica de sua constitucionalidade, especificamente, quanto aos princípios ligados ao devido processo legal. Justifica-se o estudo do instituto da delação premiada, ao menos, pela vertente da moralidade, porque, por um lado, o Estado se utiliza da traição para abreviar todo um caminho necessário para uma eficiente investigação criminal, economizando tempo e dinheiro; e, por outro lado, o criminoso é o principal interessado em receber os benefícios oferecidos pela delação. Isso porque, a partir do momento em que ele sabe que não há mais como se furtar da ação penal, agarra-se a qualquer forma de ajuda que possa minorar ou até excluir a eventual pena que irá ser aplicada, podendo com essa atitude, inclusive, prejudicar pessoas inocentes. Já a delação premiada deve ser estudada pela sua importância, quer por ser historicamente aceita pela humanidade, quer por se encontrar positivada nos ordenamentos jurídicos de diversos países; e no caso do Brasil, por estar dispersa em diversos diplomas legais, necessitando que se examine se as leis que tratam da delação premiada podem ser aplicadas ao contexto brasileiro. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 10 Objetiva esta pesquisa apresentar de forma geral os aspectos constitucionais do instituto da delação premiada. E mais especificamente mostrar a legislação aplicada e analisar se esse instituto é aceito no ordenamento jurídico brasileiro. A presente monografia quanto à natureza trata-se de um trabalho científico de resumo, classificada quanto ao objetivo como sendo exploratória. A pesquisa utilizada é a explicativa onde os elementos são organizados segundo uma lógica objetiva por intermédio da pesquisa monográfica e bibliográfica. A abordagem usada foi a de método estrutural. O método de procedimento utilizado foi observacional, sem nenhum tipo de experimentação. Já a metodologia jurídica utilizada foi a sociológica, pois leva “[...] em conta a época, os costumes e usos da sociedade.”1 São três os capítulos deste trabalho. No primeiro serão abordados o conceito, o histórico e uma descrição no direito comparado do instituto da delação premiada. Já no segundo serão listadas as leis que tratam da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro. E o último tratará do objeto principal do estudo que é análise da constitucionalidade desse instituto. Foi adotado o sistema de referência numérico-completo onde cada obra utilizada é citada no rodapé da respectiva página e ao final se encontra listada, em ordem alfabética, a bibliografia completa. _____________ 1 VIEIRA, Liliane dos Santos. Pesquisa e monografia jurídica na era da informática. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2007, p. 103-105. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 11 Capítulo 1 GENERALIDADES DA DELAÇÃO PREMIADA Neste capítulo serão apresentados os conceitos de delação e de delação premiada. Também será mostrada a evolução histórica que antecede este instituto na contemporaneidade. E a título de conhecimento, será abordada de forma bem sintética o instituto da delação premiada na atualidade, conforme é aplicado na Itália, nos Estados Unidos da América, na Espanha, na Alemanha e na Colômbia. Tal abordagem torna-se importante, pois as organizações criminosas atuam mundialmente,em virtude da globalização, onde encontram acessibilidade a todas as facilidades do mundo moderno, na economia, na universalização financeira, no comércio livre e nas telecomunicações.2 E os problemas que as nações mundiais precisam enfrentar em face do crime organizado são bastante similares. “Das assombrações contemporâneas, mostram-se particularmente evidentes o narcotráfico, em geral vinculado à atuação de organizações criminosas, e o terrorismo.”3 1.1 Conceito de Delação Premiada Conforme Damásio de Jesus, “delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato).”4 Segundo De Plácido e Silva, delação significa: Originado de delatio, de deferre (na sua acepção de denunciar, delatar, acusar, deferir), é aplicado na linguagem forense mais propriamente para designar a denúncia de um delito, praticado por uma pessoa, sem que o denunciante (delator) se mostre parte interessada diretamente na sua repressão, feita perante autoridade _____________ 2 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 36. 3 CARVALHO, Natália Oliveira de. A delação premiada no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 69. 4 JESUS, Damásio Evangelista de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro. Disponível em: <http//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 1º jun. 2010. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 12 judiciária ou policial, a quem compete a iniciativa de promover a verificação da denúncia e a punição do criminoso. [...] Desse modo, mais propriamente, emprega-se o vocábulo delação para indicar a denúncia ou acusação que é feita por uma das próprias pessoas que participam da conspiração, revelando uma traição aos próprios companheiros.5 Mas a delação pura e simples é a situação em que uma pessoa chega perante a autoridade judiciária ou policial e narra um fato criminoso nos exatos termos em que o delito ocorreu sem ter interesse algum processual, ou melhor, sem esperar um benefício imediato por sua conduta. A delação nada tem a ver com a desistência voluntária, onde o agente desiste de prosseguir na execução do crime, nem com o arrependimento eficaz, onde ele impede que o resultado se produza, e, muito menos com o arrependimento posterior, onde, sem violência ou grave ameaça, após a execução, o agente repara o dano ou restitui a coisa; pois, em todas essas hipóteses o agente não tem o auxílio de terceiros na empreitada criminosa.6 Também não deve ser confundida a delação premiada com o instituto da confissão espontânea,7 pois nessa o agente confessa a sua participação no ato delituoso, sem a incriminação de outra pessoa.8 Invocando novamente Damásio de Jesus, que define delação premiada como “[...] aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.).”9 A delação premiada consiste no fato de o criminoso voluntariamente assumir a sua culpa, entregando os demais comparsas da conduta delituosa à autoridade judiciária ou _____________ 5 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 18. ed., 2. tiragem. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2001, p. 247. 6 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 542. 7 Ibidem, p. 548. 8 BANDEIRA, Adriana Alves Lima. Delação premiada no direito positivo brasileiro. Trabalho de conclusão do curso de direito, Faculdade Farias Brito. Fortaleza-CE: 2007, p. 24. Apud COSTA, Marcos Dangelo da. Delação Premiada. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=1055.22109>. Acesso em 30 abr. 2010. 9 JESUS, Damásio Evangelista de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro. Disponível em: <http//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 1º jun. 2010. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 13 policial, obtendo assim o delator os benefícios previstos pelo instituto. E nesse sentido se posiciona Nucci: Quando se realiza o interrogatório de um co-réu [sic] e este, além de admitir a prática do fato criminoso de qual está sendo acusado, vai além e envolve outra pessoa, atribuindo-lhe algum tipo de conduta criminosa, referente à mesma imputação, ocorre a delação.10 A exigência para que o delator também tenha participado da mesma conduta delituosa atribuída aos seus comparsas delatados é necessária na delação premiada, pois, caso aquele não tenha participado não passará de mera testemunha ou informante que presenciou fatos criminosos,11 onde, em tese, por não tomar parte, o delator já não teria imputação penal por atos praticados por terceiros. A colaboração do delator deve ser efetiva, onde as informações prestadas sejam eficientes para o desmantelamento e elucidação da trama criminosa. Como colaboração efetiva deve ser incluída a declaração de culpa do delator para a obtenção dos benefícios da delação, já que ele, ao negar os fatos que o são imputados, não estará auxiliando efetivamente com a investigação e o esclarecimento da infração penal. O delator ser coautor ou coparticipador permite que a delação premiada seja utilizada como exceção, sendo aplicada somente nos crimes em que ele tenha interesse processual direto. E esse entendimento é bom, pois ampliar demasiadamente a abrangência desse instituto para outros crimes, em que o delator agiria somente como informante, traria uma situação muito cômoda ao Estado, pois tiraria deste todo o interesse de investigar, bastando para isso somente prender um delator e exigir dele a denúncia dos comparsas de todos os atos por ele presenciados. 1.2 Histórico da Delação Premiada A delação atrelada a um prêmio não é assunto novo, pois, há mais de dois mil anos, o guerreiro filosófico Sun-tzu trouxe para a humanidade a ideia de que é moral a utilização de _____________ 10 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 213. 11 CARVALHO, Natália Oliveira de. A delação premiada no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 98. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 14 espiões para se conhecer o inimigo através da delação, inclusive com o pagamento de recompensas. Ele também trata como inteligentes e humanos os que se empregam desse artifício para abreviar uma operação militar chamando esta postura de talento organizacional valioso para a liderança.12 Também se tem historicamente retratada a delação com paga quando o discípulo Judas Iscariotes, em troca de trinta moedas de prata, traiu Jesus Cristo para os príncipes dos sacerdotes, entregando-o assim ao poder dominante da época.13 Na Idade Média, ainda no sistema inquisitório, utilizavam-se da delação do corréu, mas separavam a delação obtida sob tortura da obtida de forma espontânea. Quem delatasse espontaneamente estava predisposto a mentir somente para prejudicar outra pessoa, por isso, nesse período, a delação era valorada como um indício, pois, havia a presunção de “[...] que era mais fácil vir da boca do co-réu [sic] a mentira do que a verdade.”14 No século XVIII, Cesare Beccaria tratou da delação premial, in verbis: [...] De uma parte, as leis castigam a traição; de outro, autorizam-na. O legislador, com uma das mãos, aperta os laços de sangue e de amizade e, com a outra, dá o prêmio àquele que os rompe. Sempre em contradição com ele mesmo, ora tenta disseminar a confiança e encorajar os que duvidam, oraespalha a desconfiança em todos os corações. Para prevenir um crime, faz com que nasçam cem.15 Tempos atrás, afixavam-se cartazes em locais públicos com o objetivo de se obter informações que levassem à prisão de indivíduos procurados, quem delatasse era recompensado em dinheiro. Atualmente, essa forma de delação, com paga em dinheiro, ainda é utilizada, tendo como diferença daquela, o fato de que os cartazes são virtuais e que estão disponíveis em páginas eletrônicas publicadas na rede internacional de computadores. Os _____________ 12 SUN-TZU. A arte da guerra. 9. reimpr. da 1. ed. de 1994. São Paulo: Pensamento, 2007, p. 191 e 193. Traduzido do chinês por Thomas Cleary. Tradução Euclides Luiz Calloni, Cleusa M. Wosgrau. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=u_JBHNI85WUC&printsec=frontcover>. Acesso em: 18 maio 2010. 13 BÍBLIA. N. T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, i1997, cap. 26, vers. 14-16. 14 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 101. 15 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 5. reimpr. da 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 67-68. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 15 Estados Unidos da América, através de seu Serviço Federal de Investigação (FBI, sigla original em inglês), utilizam-se desse método para localização de criminosos importantes.16 No Brasil, Tiradentes, o mártir da inconfidência mineira, foi traído por Joaquim Silvério dos Reis que recebeu em troca da delação o perdão da sua dívida existente perante a Fazenda Real.17 1.3 No Direito Comparado Italiano Na Itália, a colaboração processual é conhecida como “pattegiamento [...] em prol do desmantelamento da máfia”18 ou pentitismo, sendo que esse último surgiu com os pentiti (arrependidos, tradução do italiano) que são pessoas que deixam de participar da organização criminosa ao qual pertenciam e passam a colaborar com a justiça. O pentitismo é utilizado para desarticular a máfia, para libertação de pessoas vítimas de sequestro com finalidades terroristas ou de desestruturação da ordem democrática estatal. Os benefícios obtidos com a delação vão desde a redução da pena condenatória, como a substituição da pena de prisão perpétua por uma pena mais branda. O auxílio dado pelo pentiti deve ocorrer nos crimes em que ele atuou em concurso com a organização, e a delação tem como objetivos: a diminuição dos efeitos do crime, a confissão de sua participação nas condutas delituosas ou o impedimento de que sejam cometidos crimes conexos ao que foi delatado.19 _____________ 16 COSTA, Marcos Dangelo da. Delação Premiada. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/? artigos&ver=1055.22109>. Acesso em 30 abr. 2010. 17 FREITAS, Newton. Delação Premiada. Disponível em: <http://www.newton.freitas.nom.br/artigos.asp? cod=240>. Acesso em: 30 abr. 2010. 18 BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou Ocultação de Bens : Lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio (Coord.); CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, v. 6, p. 562. 19 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 101-105. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 16 1.4 No Direito Comparado Americano Nos Estados Unidos da América, como forma de colaboração processual existe a figura do plea bargaining, onde a acusação negocia a pena com o acusado colaborador. Lá o Ministério Público é titular para a propositura da ação e o poder de atuação desse órgão é bem amplo, podendo conduzir investigações policiais, não propor ação penal (independente de manifestação do magistrado), realizando acordos com a defesa ou levando o processo para solução do Poder Judiciário.20 O plea bargaining pode ser utilizado em todos os processos, mesmo nas hipóteses onde o indivíduo cometeu o crime sozinho, sem coparticipação ou coautoria. Mas não existe impedimento para que esse instituto seja empregado na delação de outros membros de uma organização criminosa. “Assim, é comum nos Estados Unidos existir prêmio àqueles que colaboram para a elucidação de delitos, principalmente em se tratando de crimes complexos cometidos por evoluídas organizações.”21 Dessa forma, o indivíduo confessa a sua participação no crime e presta informações que levem à prisão e a condenação dos demais membros participantes da organização criminosa. E com essa atitude, é encontrada para o delator “[...] uma saída amena para [a] situação, em que está excluída a absolvição, trata-se da construção de um sistema de culpados.”22 Mas obterá benefícios como uma pena mais abrandada, a possibilidade de que não seja proposto outro processo contra ele ou a exclusão de eventuais processos existentes.23 _____________ 20 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 105. 21 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Teresina: Jus Navigandi, ano 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ imprimir.asp?id=8105>. Acesso em: 20 maio 2010. 22 GOMES, Milton Jordão de Freitas Pinheiro. Plea bargaining no Processo Penal: perda das garantias. Disponível em <www.jus.com.br>. Acesso em 19 jul. 2007. Apud GUIDI, op. cit., p. 105-106. 23 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 136. Apud BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou Ocultação de Bens : Lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio (Coord.); CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, v. 6, p. 562. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 17 1.5 No Direito Comparado Espanhol Na Espanha, a colaboração processual, é tratada pelas normas penais e processuais penais para combater as associações ou organizações dedicadas aos crimes de terrorismo, de tráfico ilícito de entorpecentes e contra a saúde pública; sendo chamada no cotidiano como delincuente arrepentido (delinquente arrependido, tradução do espanhol).24 Nesse sistema é exigido do arrependido que abandone voluntariamente as atividades ilícitas, confesse seus atos, identifique ou leve diretamente até a justiça os demais membros da organização criminosa ou evite que o resultado criminoso se consuma.25 “Na verdade, o legislador espanhol consagra a colaboração tanto preventiva quanto repressiva, exigindo que a colaboração seja eficaz para a concessão da benesse.”26 E, agindo dessa forma, o arrependido poderá ter como benesse a pena excluída, atenuada ou remida. 1.6 No Direito Comparado Alemão Na Alemanha, o instituto de colaboração processual é chamado de “Kronzeugenregelung ou a regulação dos testemunhos [...]”27 e ocorre quando o indivíduo voluntariamente impede que a associação criminosa tenha continuidade ou denuncia a associação à autoridade, impedindo assim o cometimento de um crime de que se tenha ciência. “O agente não será punido mesmo que o resultado não seja obtido por circunstâncias alheias à sua vontade.”28 Como benefício pela colaboração processual é previsto para o agente que a pena seja diminuída ou não aplicada, que a ação penal seja dispensada ou que seja arquivado o _____________ 24 GUIDI, op. cit, p. 107-108. 25 VILLAREJO, Julio Diaz-Maroto. Algunos aspectos jurídicos-penales y procesales de la figura del “arrepentido”. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, ano 1, n. 0, maio/ago. 2000. Apud GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 107. 26 KOBREN, Juliana ConterPereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Teresina: Jus Navigandi, ano 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ imprimir.asp?id=8105>. Acesso em: 20 maio 2010. 27 GUIDI, op. cit., p. 108-109. 28 Ibidem, loc. cit. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 18 procedimento já iniciado. Tudo isso para se evitar que novos crimes sejam praticados, permitindo a apuração ou a captura dos demais envolvidos.29 1.7 No Direito Comparado Colombiano Na Colômbia, o direito premial foi criado como forma processual para combater especialmente o narcotráfico. Para se utilizar desse direito o agente deve voluntariamente delatar os copartícipes da conduta delituosa, com provas eficazes de suas imputações e que essas provas estejam de acordo com os termos da delação. O agente recebe os benefícios da delação independentemente da confissão de seus crimes.30 Aquele que auxiliar a justiça delatando os demais membros pode receber como benefícios a diminuição da pena, liberdade provisória, substituição da pena privativa de liberdade e inclusão no programa de proteção a vítimas e testemunhas. E caso o agente confesse sua participação nos crimes é admitida uma redução da pena em um terço.31 _____________ 29 VILLAREJO, op. cit. Apud GUIDI, op. cit., p. 109. 30 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 109-110. 31 Ibidem, loc. cit. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 19 Capítulo 2 DELAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA No Brasil a delação premiada, apesar de possuir previsão legislativa desde o século XVII nas Ordenações Filipinas, deixou de existir em 1830, revogada pelo Código Criminal do Império, só retornando ao ordenamento jurídico pátrio 160 anos depois, a partir do ano de 1990, com a instituição da lei nº 8.072/90 (Lei de crimes hediondos) que prevê a concessão de prêmio ao réu-delator.32 Além da citada lei, o ordenamento comporta o instituto da delação premiada em normas dispersas, notadamente as seguintes: Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal Brasileiro), Lei nº 7.492/86 (Lei de crimes do colarinho branco), Lei nº 8.137/90 (Lei de crimes contra ordem tributária), Lei nº 9.034/95 (Lei de prevenção ao crime organizado), Lei nº 9.613/98 (Lei contra a lavagem de dinheiro), Lei nº 9.807/99 (Lei de proteção à testemunha e à vítima de crime) e Lei nº 11.343/06 (Lei antitóxico), que revogou a Lei nº 10.409/02 (que será igualmente analisada por advir do mesmo instituto jurídico da norma que a revogou e pelo cuidado de se verificar como versava antes e como ficou o texto revogador). Consta afirmar que as referidas normas comportam mecanismos distintos para que o delator se beneficie do prêmio, portanto não há um padrão no tratamento do instituto da delação premiada. De sorte que a intenção do legislador pátrio de reprimir a criminalidade surgiu eivada de imperfeições nas regras que asseguram a delação premiada, em princípio pela falta de harmonia entre os regramentos acima citados. Não contrário a isso, do ponto de vista teleológico, observa-se que tal mecanismo é de grande importância no combate à criminalidade e guarda consenso com a finalidade perseguida pelo legislador. Assim, passa-se a demonstrar as diferentes formas do instituto da delação premiada previstas na legislação brasileira. Antes, porém, é importante informar que alguns mecanismos não serão trazidos ao estudo de forma cronológica, mas de forma conjugada para facilitar o enfrentamento do tema. _____________ 32 GAZZOLA, Gustavo dos Reis. Delação Premiada. In: CUNHA, Rogério Sanches (Coord.); TAQUES, Pedro (Coord.); GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Limites constitucionais da investigação. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 150-152. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 20 2.1 Leis dos Crimes Hediondos e do Crime de Extorsão Mediante Sequestro A Constituição Federal de 1988 trouxe a previsão dos crimes hediondos no inciso XLIII, do artigo 5º, deixando a cargo de lei infraconstitucional a definição dos tipos penais que se enquadrariam nesse instituto e os parâmetros para sua configuração.33 Diante disso, o legislador pátrio editou a Lei nº 8.072/90.34 Como se sabe, a tramitação desta norma ocorreu em momento de grande instabilidade da segurança pública nacional, tendo em vista a onda de crimes que ocorriam em determinados setores da sociedade. Sobre esse aspecto, Antônio Lopes Monteiro afirma o que se segue: Para tentar explicar essa pressa, o que não justifica de forma alguma as imprecisões contidas e os conflitos gerados, devemos entender o momento de pânico que atingia alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo por causa da onda de seqüestros [sic] no Rio de Janeiro, culminando com o do empresário Roberto Medina, irmão do Deputado Federal pelo Estado do Rio de Janeiro, Rubens Medina, considerado a gota d’água para a edição da lei. [...] A sociedade exigia uma providência drástica para por fim ao ambiente de insegurança vivido no País. O governo precisava dar ao povo a sensação de segurança.35 Pois bem, o artigo 1º da Lei nº 8.072/90,36 relaciona de forma taxativa os crimes, tanto consumados quanto tentados, considerados hediondos: homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente; homicídio qualificado; latrocínio; extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante sequestro e na forma qualificada; estupro; estupro de vulnerável; epidemia com resultado morte; falsificação, corrupção e adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; e genocídio. Observa-se que o rol citado comporta forma mais severa, com penas mais rigorosas, sendo insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, com início da pena, necessariamente, em regime fechado, conforme previsto em seu artigo 2º e incisos. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 80.886, corroborou a constitucionalidade desse artigo afirmando o seguinte: _____________ 33 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 9. 34 Idem. Lei n. 8.072 de 25 de julho de 1990. Ibidem, p. 1430 et seq. 35 MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: textos, comentários e aspectos polêmicos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 4. 36 BRASIL. Lei n. 8.072 de 25 de julho de 1990. PINTO, op. cit., loc. cit. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 21 A Lei 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, atendeu ao comando constitucional. Considerou o tráfico ilícito de entorpecentes como insuscetível dos benefícios da anistia, graça e indulto (art. 2º, II). E, ainda, não possibilitou a concessão de fiança ou liberdade provisória (art. 2º, II). A jurisprudência do Tribunal reconhece a constitucionalidade desse artigo.37 O teor da decisão elencada acima demonstra a gravidade que o legislador pátrio atribuiu àqueles crimes. Atentando-se a isso, o parágrafo único do artigo 8º, da Lei de Crimes Hediondos, “[...] introduziu instituto que vinha sendo adotado no exterior para o combate aberto ao terrorismo: a delação premiada [...]”38 que prevê a redução da pena de um a dois terços para o participante ou associado que possibilite o desmantelamento do bando ou da quadrilha,39 por intermédio de denúncia às autoridades. Por isso o instituto da delação premiada constitui-se um grande atrativo para o transgressor delatar seus comparsas, contribuindo para a solução do crime e auxiliando com a justiça. Damásio de Jesus comenta que o conceito do desmantelamentoé um problema que deve ser abalizado pela jurisprudência avaliando-se o caso concreto para determinar se ocorreu ou não o desfazimento da quadrilha ou bando.40 Entende-se, porém, que o enfrentamento do citado conceito nem sempre carece de pronunciamento jurisdicional, em se tratando de quadrilha ou de bando com componentes diversos, se a delação alcançar efetivamente a separação do grupo, afetando-o de modo que seus objetivos criminosos sejam frustrados, onde haverá o desmantelamento. Por outro caminho, a redação primitiva do artigo 7º da Lei nº 8.072/90 sobrepôs um parágrafo ao artigo 159 do Código Penal, posteriormente modificado pela Lei nº 9.269/96, aduzindo que o delito deveria ser cometido por um bando ou quadrilha para ensejar o direito ao prêmio da delação. Não obstante, a modificação feita inovou e substituiu os termos bando ou quadrilha por em concurso e coautor por concorrente, bastando que o réu-delator tenha se reunido com, no mínimo, outra pessoa para a prática do delito. _____________ 37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Penal. Processual Penal. Habeas Corpus n. HC 80.886, Relator: Ministro Nelson Jobim, Brasília, DF, 22 de maio de 2001. DJ de 14-6-02. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000100041&base=baseAcordaos>. Acesso em 30 maio 2010. 38 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 335. 39 BRASIL. Lei n. 8.072 de 25 de julho de 1990. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1430 et seq. 40 JESUS, Damásio Evangelista de. Anotações à Lei 8.072/90: Fascículos de Ciências Penais. n. 4, Porto Alegre: Forense, 1990, p. 4. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 22 No que concerne o Decreto-Lei nº 2.848/40, Código Penal, mais especificamente o § 4º do artigo 159 (extorsão mediante sequestro), contempla: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”41. Depreende-se desse dispositivo que a delação premiada é uma causa de diminuição de pena ao delator que tenha atuado em quaisquer das posições subjetivas do crime extorsão mediante sequestro consumado e que proceda a delação voluntariamente. Quanto à eficácia da delação, deve-se entender que o prêmio está adstrito a libertação eficaz do sequestrado, bem como que a integridade física dele esteja preservada. Assim observa-se que o instituto da delação prevista no Código Penal, visa favorecer a libertação do sequestrado e imputar a devida punição aos demais concorrentes que continuaram na transgressão penal. Por uma análise conjugada entre os dispositivos elencados acima, no que concerne ao prêmio da delação, entende-se que ambos podem figurar num mesmo caso concreto, ou seja, o § 4º do artigo 159 do Código Penal pode ser cumulado com o parágrafo único do artigo 8º da Lei 8.072/90, porquanto as citadas previsões comportam objetivos diversos; a libertação do sequestrado e o desmantelamento da quadrilha ou bando. De sorte que, se as informações prestadas pelo delator às autoridades possibilitarem a libertação do sequestrado, bem como o desfazimento da quadrilha ou bando, sua pena privativa de liberdade final, sendo reconhecido o concurso material entre os dois delitos, deverá ser mensurada considerando ambos os prêmios. 2.2 Leis dos Crimes de Colarinho Branco e dos Crimes Contra a Ordem Tributária Inicialmente, cumpre sobressaltar que, embora se tratem de crimes diversos, a lei que versa sobre os crimes contra o sistema financeiro nacional, mais conhecida como lei do colarinho branco, e a lei de crimes de ordem tributária, serão expostas nesse tópico do trabalho monográfico em conjunto, tendo em vista que ambas tiveram o instituto da delação _____________ 41 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 559. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 23 premiada alterados pela Lei nº 9.080/95 e por conterem em seu bojo, basicamente, o mesmo texto normativo. Superada essa explicação, passa-se a discorrer sobre as referidas leis. Percebe-se que a Lei nº 7.492/86, que versa sobre os crimes contra o sistema financeiro nacional, busca alcançar um tipo de criminoso distinto, ou seja, aquele que detém poderes diretivos e econômicos. Por esse motivo, foi intitulada pela doutrina de crimes do colarinho branco. Como se sabe, alcançar criminosos dessa monta não é tarefa das mais fáceis. Com essa consciência, a Lei nº 9.080/95 introduziu na norma o instituto da delação premiada, com vistas a facilitar a elucidação de crimes envolvendo controladores e administradores de instituições financeiras e assimiladas, na forma disposta abaixo: Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes (vetado). [...] § 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co- autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. (Incluído pela Lei nº 9.080, de 19.7.1995)42 No que concerne à lei de crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo o legislador pátrio editou a Lei nº 8.137/90, visando em síntese: controlar a supressão ou redução de tributos, informações falsas ou omissas no que concerne ao fato gerador desses encargos; manter incólume a saúde econômica nacional; e, evitar os abusos inerentes às relações de consumo. Desse modo, os artigos 1º ao 7º, e seus incisos correspondentes, enumeram o rol de condutas tipificadas como crimes na citada norma. O parágrafo único dessa lei, a exemplo de outras normas aqui estudadas, faz referência ao instituto da delação premiada, visando livrar a ordem tributária das condutas tipificadas e punir exemplarmente os envolvidos. Nesse sentido, dispõe o artigo 16 e seu parágrafo único: Art. 16. Qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co- autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à _____________ 42 BRASIL. Lei n. 7.492 de 16 de junho de 1986. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1407. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 24 autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.080, de 19.7.1995)43 Em ponderação ao disposto na norma, José Carlos Gobbis Pagliuca faz o seguinte comentário acerca da delação premiada na Lei nº 8.137/90: Como narra o art. 16, parágrafo único, da Lei nº 8.137/1990, o agente ativo que prestar informações relevantes à polícia ou à Justiça, a respeito da delinqüência, terá redução de pena de 1/3 a 2/3, não se exigindo que sua colaboração impeça ou evite o prejuízo fiscal. Basta a vontade em prestar informações idôneas a desbaratar os crimes.44 Como elucidado no início do tópico, tanto a Lei 7.492/86 (art. 25, § 2º) que versa sobre os crimes do colarinho branco, comoda Lei 8.137/90 (art. 16, parágrafo único) que dispõe sobre os crimes contra ordem tributária, em ambas o instituto da delação premiada é tratado de forma idêntica. Depreende-se ainda que na alteração dos respectivos parágrafos, imprimidas pela Lei nº 9.080/95, o legislador se valeu do termo “confissão espontânea”. Dito isso, deduz-se dos dispositivos legais e da elucidação trazida pelo autor supramencionado, que os crimes cometidos em quadrilha ou com mais de dois agentes, sendo um deles coautor ou partícipe que traga elucidação de toda a rede de delitos, ainda que não obstaculize a consecução dos crimes, enseja o prêmio da delação premiada. Depreende-se ainda que a norma exija a confissão espontânea do agente para que o prêmio seja efetivado, nesse ponto específico, as leis que versam sobre o instituto da delação premiada não guardam sintonia, ora se exige espontaneidade, ora voluntariedade. No caso das leis em comento, a exigência é ainda mais ímpar, pois além da espontaneidade há a figura da confissão, enquanto que em outras a simples cooperação garante o prêmio. 2.3 Lei Contra o Crime Organizado Constitui-se de senso comum o fato de que as organizações criminosas possuem uma estrutura cada dia mais complexa. Nesse ínterim, o legislador brasileiro editou a Lei nº 9.034/95 com o intento de criar mecanismos de repressão ao crime organizado. Outra vez, _____________ 43 Idem. Lei n. 8.137 de 27 de dezembro de 1990. Ibidem, p. 1457-1458. 44 PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. Direito penal: legislação especial e execução penal. São Paulo: Rideel, 2008, p. 61. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 25 incluiu no texto da mencionada norma o instituto da delação premiada, visando se valer desse mecanismo para facilitar a aplicação da lei penal contra os envolvidos. Não há que se esquecer que as instituições criminosas são dotadas de grande força e que a delação é bastante eficaz para combatê-las. Nesse caminho, dispõe o artigo 6º: “Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a 2/3 (dois terços), quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.”45 Pela leitura atenta deste dispositivo legal, depreende-se que a delação premiada só alcança o agente que tiver tomado parte da organização criminosa e que de forma espontânea delate seus comparsas. Deve ser atentado que a espontaneidade distingue-se de colaboração voluntária, como afirma Damásio de Jesus procedendo à diferenciação dos institutos: Voluntário é o ato produzido por vontade livre e consciente do sujeito, ainda que sugerido por terceiros, mas sem qualquer espécie de coação física ou psicológica. Ato espontâneo, por sua vez, constitui aquele resultante da mesma vontade livre e consciente, cuja iniciativa foi pessoal, isto é, sem qualquer tipo de sugestão por parte de outras pessoas.46 Tornou-se necessária essa diferenciação, pois outros dispositivos legais que dispõem sobre a delação premiada não exigem a espontaneidade. De sorte que, especificamente nessa lei, para a concessão do prêmio delatório não importa a causa que levou o agente a denunciar seus comparsas, mas é imprescindível que o ato tenha sido espontâneo. Ademais, o prêmio delatório não se restringe a delação dos crimes praticados pela organização, mas também pela revelação da própria instituição criminosa, obviamente porque constitui delito organizar-se com o fito de cometer crimes. Assim, na elucidação da própria organização criminosa, uma transgressão penal já está presente. Observa-se, portanto, que, diversamente do que ocorre com parágrafo único do artigo 8º da Lei 8.072/90, a lei contra o crime organizado, não exige o desmantelamento da organização, bastando que o delator aponte ou exponha a existência de violações penais no tempo e no espaço, bem como que indique os comparsas que tomaram parte dela. _____________ 45 BRASIL. Lei nº 9.034 de 3 de maio de 1995. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.566. 46 JESUS, Damásio Evangelista de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal brasileiro. Disponível em: <http//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 1º jun. 2010. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 26 Entende-se ainda que a lei não pontuou limite temporal para a cooperação do agente, por isso a delação poderá ocorrer em qualquer fase, desde o inquérito até após o trânsito em julgado da condenação, hipótese última em que o prêmio será perquirido incidentalmente na Vara das Execuções. 2.4 Lei Contra a Lavagem de Dinheiro Como se viu no tópico anterior, as organizações criminosas são dotadas de complexidade e visam, evidentemente, auferir lucros gigantescos com suas atividades ilegais. Não há dúvidas que a Lei contra lavagem de dinheiro está intimamente ligada ao combate do crime organizado. Atento a esse fato, André Luís Callegari aduz o seguinte: O crime organizado, mercê de suas atividades ilícitas (tráfico de drogas, contrabando de armas, extorsão, prostituição, etc.), dispõe de fundos colossais, mas, inutilizáveis enquanto possam deixar pistas de sua origem. Da necessidade de ocultar e reinvestir as ingentes fortunas obtidas, ora para financiar novas atividades criminosas, ora para a aquisição de bens diversos, surge a lavagem de dinheiro com o fim último de evitar o descobrimento da cadeia criminal e a identificação de seus autores.47 Segundo Marcelo Batlouni Mendroni, a “lavagem de dinheiro poderia ser definida como método pelo qual um indivíduo ou uma Organização Criminosa processa os ganhos financeiros obtidos com atividades ilegais, buscando trazer a sua aparência de obtidos licitamente”.48 Diante do externado, deduz-se que a lavagem de dinheiro é um mecanismo usado pelos criminosos, organizados ou não, para transformar os recursos advindos da criminalidade em posses supostamente legítimas. Percebe-se, porém, que a eficácia da lavagem de dinheiro depreende da colaboração de outros indivíduos, por exemplo, os ligados ao governo ou às instituições financeiras, bem como pode ocorrer por meio de negócios de fachadas. Como se observa, o problema da lavagem de dinheiro envolve pessoas que dificilmente seriam descobertas através de investigações criminais. Desse modo, o legislador _____________ 47 CALLEGARI, André Luís. Imputações objetivas: lavagem de dinheiro e outros temas de direito penal. 2. ed. rev. Ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004, p. 55. 48 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Tópicos essenciais da lavagem de dinheiro. Revista dos Tribunais, ano 90. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 787, maio 2001, p. 481. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 27 pátrio, com a finalidade de identificar os principais agenciadores dessa conduta criminosa, estabeleceu no § 5º, artigo 1º, da Lei nº 9.613/98, a delação premiada nos seguintes termos: § 5º. A pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos se o autor, co-autor [sic] ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.49 Oportuno falar que a norma supramencionada trouxe inovação, tendo em vista que não restringiu o prêmio à redução da pena, mas sugere prêmios bem mais atrativos: a aplicação da pena em regime aberto, a conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos e a não aplicação de pena. Para a concessão do prêmio delatório na formaestabelecida será necessário, além da prática do crime, que o delator tenha participação ativa no crime como autor, coautor ou partícipe e que haja uma relação de causa-efeito entre a colaboração do agente e o esclarecimento da infração e de sua autoria ou o resgate dos objetos do crime. Nota-se que o legislador estabeleceu novamente a espontaneidade da cooperação, ou seja, que o agente delate de forma eficaz seus comparsas por vontade livre, consciente e por iniciativa própria, sem a ingerência de outras pessoas. Em decorrência da espontaneidade, o prêmio não pode ser concedido de ofício pelo juiz, por isso é necessário a provocação do Poder Judiciário para a eficácia da delação. 2.5 Lei de Proteção às Vítimas, às Testemunhas e aos Delatores de Crimes Como se observa no bojo desse capítulo, a delação premiada foi introduzida no ordenamento jurídico com a finalidade de elucidar crimes de difícil solução, praticados em concurso de agentes, com a colaboração do delator que é agraciado com um prêmio, que pode ser a redução da pena, e até mesmo a não aplicação da pena, dentre outros. _____________ 49 BRASIL. Lei nº 9.613 de 3 de março de 1998. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.653. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 28 Não obstante, a delação premiada compromete a segurança do delator quem sabe de sua família, diante das ameaças e ações vingativas havidas pelos comparsas delatados. Além disso, prevalece no senso comum a máxima da lei do silêncio, também ligada à insegurança, em que são submetidas às vítimas e testemunhas de crimes temendo represália de criminosos. Nessa conjuntura foi editada a Lei nº 9.807/99, denominada Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, com a intenção de resguardar vítimas, testemunhas e réus delatores; sujeitos submetidos a riscos por colaborarem na elucidação de fatos criminosos. Antes de versar sobre o núcleo desse tópico, vale informar que não há possibilidade de a delação ocorrer de forma anônima, como ocorre com as vítimas e testemunhas, deixando os réus colaboradores mais expostos aos riscos de represália pelos seus comparsas. Diante disso, a referida norma além de disciplinar o instituto da delação, estabeleceu no artigo 15 em seus parágrafos 1º e 3º, importantes medidas de segurança e de proteção à integridade física dos réus colaboradores, assim dispostas: Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva. § 1º Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos. § 3º No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados.50 A delação premiada vem estampada no artigo 14 da lei referenciada na seguinte hipótese: O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores [sic] ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.51 Do artigo supracitado, colhem-se pontos relevantes para o presente estudo. Inicialmente, o legislador determinou que a colaboração derivasse da voluntariedade, já distinguida da espontaneidade nesta monografia, vez que o ato praticado deve surgir da _____________ 50 BRASIL. Lei nº 9.807 de 13 de julho de 1999. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.674. 51 Ibidem, loc. cit. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 29 vontade consciente e livre do delator, ainda que por sugestão de terceiros, mas sem coação psicológica ou física, desde que efetiva. Outro ponto importante é que o legislador pontuou os marcos para a colaboração do réu, na fase de investigação policial e/ou na fase processual, por isso, o trânsito em julgado de sentença condenatória obsta o prêmio da delação, diferentemente de outras previsões. Ainda, o artigo estudado deixa perceber que a delação é genérica, ou seja, diferentemente de outras leis verificadas, não restringe os crimes em que o instituto possa ser utilizado, de forma que o delator pode contribuir para o esclarecimento de qualquer um deles. Importante salientar que tal dispositivo não exige que o colaborador seja primário, logo, subentende-se que o indiciado ou o acusado possa ser reincidente. Faz-se necessário esclarecer esse ponto, tendo em vista que o artigo 13 da mesma lei prevê o perdão judicial como prêmio delatório para o réu primário que preencha os demais requisitos listados, quais sejam: identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, localização da vítima com vida e recuperação total ou parcial do produto do crime Por último, cumpre ressaltar que a aplicação da Lei nº 9.807/99, apesar de constituir- se de um grande avanço no sistema jurídico penal, não alcança a efetividade proposta, seja pela falta de verbas e programas garantidores da proteção, seja pelo descaso político pelo instituto. Por isso, prevalece o temor das vítimas, testemunhas e delatores do delito que se vêem recalcados no sentido de contribuírem com a elucidação de crimes, prevalecendo a lei do silêncio em virtude do medo de represália dos criminosos. 2.6 Lei de Drogas O legislador brasileiro, com o objetivo de combater o tráfico ilícito de entorpecentes, introduziu no ordenamento jurídico, em princípio, a Lei nº 10.409/02, expressamente revogada pela Lei nº 11.343/06. Embora tenha sido revogada, para efeitos didáticos dessa monografia, necessário se faz analisar o instituto da delação premiada tal como previa a citada lei. A antiga Lei de Tóxicos dispunha sobre a prevenção, o tratamento dos dependentes, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 30 substâncias ou drogas ilícitas causadoras de dependência física ou psíquica, conforme lista editada pelo Ministério da Saúde. A citada norma previa a figura da delação premiada em dois parágrafos do artigo 32. Ocorre que, o caput desse artigo sofreu veto presidencial, deixando seus parágrafos comprometidos. Diante do veto, ocorreu verdadeira imperfeição legislativa, acerca disso, Rômulo Andrade Moreira fez a seguinte observação: Há quem entenda inaplicáveis estes dois parágrafos, exatamente pela falta do caput do art. 32, tornando-os “dispositivos legais juridicamente inócuos ou ineficazes”, devendo aplicar-se a respeito os arts. 13 e 14 da Lei 9.807/1999 (Lei de Proteção às Testemunhas). Preferimos a corrente que sustenta a aplicabilidade dos dois parágrafos, apesar da evidente balbúrdia legislativa ocasionada pelo veto parcial do art. 32, mesmo porque as disposições da Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas são menos amplas do que estes dois parágrafos. O perdão judicial, por exemplo, só é cabível para o colaborador primário e não há previsão de sobrestamento do inquérito policial.52 De fato, não era admissível que não se aplicasse os dois parágrafos em virtude do veto do caput, tendo em vista o valor teleológico atribuído a eles. De todo modo, faz-se necessário reproduzir os parágrafos 2º e 3º da citada lei: § 2º O sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entreo Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça. § 3º Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.53 Colhe-se do parágrafo 2º que o Ministério Público possuía a prerrogativa de abster-se de continuar com o processo, bem como imputar redução de pena, por meio de acordo firmado com o próprio indiciado que, espontaneamente, contribuísse com os interesses da justiça, resguardadas as hipóteses elencadas no bojo do citado parágrafo. Ademais, deduz-se que se o oferecimento da denúncia antecedesse à revelação eficaz dos demais integrantes da _____________ 52 MOREIRA, Rômulo de Andrade. A nova Lei de Tóxicos: aspectos processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 93, v. 825, jul. 2004, p. 458-459. 53 BRASIL. Lei n. 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. L10409. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10409.htm >. Acesso em: 30 maio 2010. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 31 quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, aplicava-se o parágrafo 3º. Nessa hipótese, o juiz, em decorrência de proposta formulada pelo Ministério Público, na ocasião da sentença, poderia conceder o perdão judicial ou a reduzir a pena de um sexto a dois terços. Depreende-se ainda, que tais prêmios deveriam ser contemplados na sentença de forma justificada. Já Lei nº 11.343/06 que igualmente trouxe em seu texto a possibilidade da delação premiada em dois artigos, 41 e 49, mas de forma distinta da verificada na lei anterior. Assim dispõem os dispositivos legais: Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços. [...] Art. 49. Tratando-se de condutas tipificadas nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei, o juiz, sempre que as circunstâncias o recomendem, empregará os instrumentos protetivos de colaboradores e testemunhas previstos na Lei no 9.807, de 13 de julho de 1999.54 É patente a distinção entre a antiga norma e texto revogador no que diz respeito à forma de colaboração, que outrora deveria ser espontânea e atualmente exige-se apenas que a colaboração seja voluntária. Depreende-se ainda, que o objetivo da delação é a identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O benefício delatório previsto se restringe a redução de um a dois terços da pena, não há mais previsão de sobrestamento da pena como antevisto antes, tampouco a possibilidade de acordo entre o representante do Ministério Público e o indiciado. No que tange o artigo 49, a lei revogadora remete as hipóteses previstas nos artigos 33, caput e § 1º e 34 a 37 da lei, passíveis do prêmio da delação, à proteção prevista na lei de proteção às testemunhas. _____________ 54 BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. PINTO, Antonio Luiz de Toledo (Colab.); WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos (Colab.); CÉSPEDES, Livia (Colab.). Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.738-1739. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 32 Capítulo 3 CONSTITUCIONALIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA O objeto principal deste estudo é a análise do instituto da delação premiada quanto a sua constitucionalidade. Essa verificação é indispensável para que se saiba se esse instituto encontra guarita no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no âmbito do direito processual constitucional na vertente da tutela constitucional do processo que “[...] é matéria atinente à teoria geral do processo [...] em sua dúplice configuração: a) direito de acesso à justiça (ou direito de ação e de defesa); b) direito ao processo (ou garantias do devido processo legal).”55 Mas a delação premiada está baseada na ideia de que o estado foi ineficiente e a investigação pode ser abreviada, bastando, para isso, o Estado obter auxílio, com a oferta de um prêmio ao delator, que é diretamente interessado no desfecho do processo, por um sistema de trocas.56 E a discussão sobre a constitucionalidade processual criminal da delação premiada ganha principal interesse, porque: [...] se de um lado há a idéia [sic] de trazer um indivíduo acusado de um crime a atuar como auxiliar da justiça na punição de seus co-autores [sic], por outro lado há um ataque aos princípios fundamentais sobre os quais se estrutura o Estado Democrático de Direito.57 Portanto, são esses os motivos para que a delação premiada tenha sua constitucionalidade verificada. _____________ 55 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 86. 56 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do estado. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal. [S.l.]: Editora Coimbra, ano. 17, n. 1, p. 95-106, jan./mar. 2007, p. 97. 57 TASSE, Adel El. Delação Premiada: Novo passo para um procedimento medieval. In: Ciências Penais - Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano. 3, p. 269-283, jul./dez. 2006, p. 270. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 33 3.1 A Moral e a Moralidade Administrativa na Delação Premiada A moral pode ser conceituada como “um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos de uma comunidade social dada”58, ou “[...] que a moral baseia-se no comportamento da sociedade e que a ética, com a reflexão desse comportamento, criará normas universais com a finalidade de estabelecer as melhores ações”59, trazendo a noção de que o comportamento humano deve se basear em atitudes moralmente aceitas para que o indivíduo tenha a sensação de aceitação por seus demais pares. Sendo que essa aceitação já foi descrita por Ernest Hemingway: “Eu sei o que é moral apenas quando você se sente bem após fazê-lo e o que é imoral quando se sente mal após fazê-lo”60. Já Beccaria, reportando-se à traição como algo imoral onde inclusive deveria ser afastada da sociedade, assim se manifestou: As nações somente serão felizes quando a moral sã estiver intimamente ligada à política. Contudo, leis que dão prêmio à traição, que ateiam entre os cidadãos uma guerra clandestina, que fazem nascer suspeitas recíprocas, sempre se oporão a essa união tão necessária da política e da moral; união que propiciaria aos homens segurança e paz, que lhes diminuiria a miséria e que traria aos países mais prolongados intervalos de tranqüilidade [sic] e concórdia do que aqueles que até o presente desfrutaram.61 A delação, que possui um cunho de traição, por quebrar o vínculo de confiança entre o denunciantee o denunciado, é vista na sociedade como algo imoral. “Toma-se, assim, a delação num sentido pejorativo, visto que, em regra, a consideram o produto de vingança ou ódio ou qualquer outra paixão, quando, além do desejo de fazer mal.”62 _____________ 58 VASQUÉS, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 25. 59 ALMEIDA, Guilherme Assis; CHRISTMANN, Martha Ochsenhofer. Ética e Direito: uma perspectiva integrada. São Paulo: Atlas, 2002, p. 15. 60 HEMINGWAY, Ernest. Death in the afternoon. New York: Charles Scribner's Sons, 1932, p. 22. Apud CARVALHO, Luciano Limírio de. A moral, o direito, a ética e a moralidade administrativa. Disponível em: <http:// www.fucamp.com.br/nova/revista/revista0309.pdf>. Acesso em: 18 maio 2010. 61 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 5. reimpr. da 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 67-68. 62 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 18. ed., 2. tiragem. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2001, p. 247. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 34 Sobre a traição pela delação premiada Damásio de Jesus assim já se pronunciou: “não nos parece correto premiar traidor com novos empregos, nova identidade e mudança para o exterior.”63 Novamente sobre a delação premiada, onde o cúmplice de um crime, com a certeza da obtenção de algum benefício para si, trai a confiança de seus comparsas, Beccaria assim se manifestou: Certos tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande delito que trair os seus colegas. Esse modo de proceder apresenta algumas vantagens; porém não está livre de perigos, pois a sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna os próprios celerados. Introduz os delitos de covardia, muito mais funestos do que os delitos de energia e coragem, pois a coragem é pouco comum e aguarda somente uma força benéfica que a encaminhe para o bem público, enquanto que a covardia, muito mais geral, é um contágio que infecta muito depressa todas as almas. O tribunal que utiliza a impunidade para desvendar um crime demonstra que é possível ocultar tal crime, pois que ele o desconhece; e as leis atestam sua fraqueza, implorando a ajuda do próprio criminoso que as violou.64 Mas o direito é valorativo podendo comportar diversos entendimentos e a racionalidade, apesar de balizar vários valores humanos, não é por si só um elemento que justifica uma imposição limitativa ao direito, nesse sentido: [...] o direito continua axiológico como inevitavelmente o é, mas seu valor não está prefixado por qualquer instância a ele anterior ou superior. Ele não é imposto pela infalibilidade do Papa ou da Santa Madre Igreja, pela natureza ou por qualquer escatologia, nem é fixado a partir desta ou daquela concepção que alguém tenha de “justiça” ou de “razão”. A “racionalidade”, tenha dimensão ética ou meramente instrumental e tecnológica, não se impõe por si mesma ao direito, e há profundas e inconciliáveis divergências quanto ao seu significado.65 E nesse mesmo sentido há o entendimento de que existe um mínimo ético necessário à vida em sociedade onde é exigido que as relações humanas sejam adaptadas às normas jurídicas e às normas morais: Sendo o direito o mínimo ético indispensável à convivência humana, a obediência ao princípio da moralidade, em relação a determinados atos, significa que eles só serão _____________ 63 JESUS, Damásio Evangelista de. O fracasso da delação premiada. In: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: JUS, XXVI, v. 18, 1995, p. 71. 64 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 5. reimpr. da 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 47-48. 65 BREUER, Ingeborg; LEUSCH, Peter; e MERSCH, Dieter. Welten im Kopf – Profile der Gegenwartsphilosophie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1996, p. 9-31 e 121. Apud ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica : para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 180. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 35 considerados válidos se forem duplamente conformes à eticidade, ou seja, se forem adequados não apenas às exigências jurídicas, mas também às de natureza moral.66 Continuando nessa linha de raciocínio, o moralismo jurídico de Vicktor Cathrein, na obra de Miguel Reale, permite certa flexibilização na aplicação da moral ao fato concreto, admitindo inclusive o julgamento baseado na dúvida surgida na justiça da lei, senão vejamos: [...] Se a justiça da lei é apenas duvidosa, o juiz pode, em regra, decidir segundo a lei; se, ao contrário, a injustiça da lei é manifesta, não pode cooperar em sua execução. A ordem jurídica natural constitui o limite intransponível da ordem positiva. Pode acontecer que, para se oprimirem minorias inconformadas, se promulguem determinadas leis evidentemente injustas, em cuja execução ninguém pode cooperar sem se tornar cúmplice. Em tais casos, o juiz contencioso tem o dever de renunciar à função de magistério.67 Conforme citado, pela visão de Cathrein, se uma lei não é manifestadamente injusta, o magistrado pode sim utilizar-se dela, devendo-se afastar completamente de leis evidentemente injustas. Onde inclusive Reale se manifestou nesse mesmo sentido: Entre o mínimo da imoralidade apenas duvidosa e o máximo que converteria a regra jurídica em regra moral propriamente dita, abre-se um campo vastíssimo deixado às determinações do Poder, o que dá à concepção tomista do Direito uma reconhecida plasticidade: a virtude de corresponder, até certo ponto, ao mundo dos fatos concretos e contingentes.68 E a delação premiada, que apresenta um conteúdo moral suspeito, pode ser aceita em um determinado ordenamento jurídico, bastando para isso, entender que a moral, aplicada ao mundo real, deve ser adequada às necessidades humanas, dessa forma: Não se confunda o moralismo jurídico com a velha Escola de Direito Natural, racionalista e abstrata, que idealizava uma ordem jurídica plena e perfeita, à luz de cujos dispositivos deveriam os legisladores e os juízes plasmar suas criações ou decisões jurídicas.69 _____________ 66 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 968. 67 CATHREIN, Viktor. Filosofia Morale. 2. ed. Florença, 1913, p. 615. Trad. de Eurico Tommasi. Apud REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 484-485. 68 Ibidem, p. 485-486. 69 Ibidem, p. 282. WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR 36 A delação premiada está baseada “[...] na mais pura ética e moral e ainda, é de essência puramente pedagógica, pois ensina que não há nada de mal em se arrepender de erros passados, bem como em tentar reparar ofensas feitas à sociedade [...]”70. Em virtude do instituto da delação premiada beneficiar diretamente à estrutura estatal brasileira, deve-se obrigatoriamente ser abordado o princípio da moralidade administrativa, previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, caput, que assim é enunciado: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”,71 pois a administração pública deve se pautar na moralidade administrativa para a tomada de suas decisões. E além da previsão constitucional, a Lei n. 9.784/9972 em seu artigo 2º, prevê a moralidade como um princípio a ser seguido pela Administração Pública; e, no parágrafo único, inciso IV, exige “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”73. Como ponto de partida, o princípio da moralidade administrativa deve ser observado “[...] também pelo particular que se relaciona com a Administração
Compartilhar