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Ciência do Direito Filosofia e Metodologia Jurídicas ■ ■ EDGAR BODENHEIMER Professor de Direito da Universidade de Utah, „ i - c r 1 - ' é (J.F..M.G. - BIBLIOTECA UNÍVERSiTÂRIA 234160089 *|AÇ DANIFIQUE ESTA ETIQUETA ) FORENSE Primeira edição brasileira: outubro de 1966 Traduzido de: JURISPRUDENCE The Philosophy and Method of the Law Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1962 Copyright (c) 1962, by the President and Fellows of Harvard College Enéas Marzano Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro i t a r i a 2 3 4 I 6 0 0 - 0 9 Tradução de: P .71 I Reservados os direitos de propriedad< ; i desta tradução pel » COMPANHIA EDITORA FORENSI Av. Erasmo Braga, 299, ! ' e 2 ' - Rio de Janeiri Largo São Francisco, 20 — loja — São Paul( Impresso nos Estados Unidos do Bras Printed in the United States of Braz; VIII SO CIO LO G IA JU RÍD IC A E REA LISM O JU RÍD IC O 27. As Teorias Jurídicas, Sociológicas e Psicológicas na Eu~ ropa. Observamos j ã 1 que o positivismo pode manifestar-se na doutrina jurídica não só de forma analítica, e sim também com um caráter sociológico. Bom exemplo de uma interpretação posi tivista-sociológica do direito é o que nos fornecem as teorias do sociólogo Ludwig Gumplowicz (1838-1909). G umplowicz eri giu uma base sociológica para a teoria positivista de que o direito é essencialmente um exercício do poder estatal. Achava êle que a principal fôrça motriz da história era a luta entre as diferentes raças pela supremacia e pelo poder. 2 Nessa luta a raça mais forte subjuga a mais fraca, e implanta uma organização através da qual estabiliza e perpetua o seu domínio. Essa organização é o estado, e a lei é um dos mais eficazes instrumentos para a consecução dos objetivos do governo. O direito, escreveu Gumplowicz, exprime uma forma de vida social resultante da luta de grupos sociais heterogêneos, de poder desigual.3 Seu fim é estabelecer e manter o domínio do grupo mais forte sôbre o mais fraco, mediante o uso do podér estatal. A diretriz do direito, para Gumplowicz, é a manutenção e perpetuação da desigualdade social, política e eco nômica. Não existe lei que não seja uma expressão de desigual dade. A êsse respeito, a lei é um verdadeiro reflexo do poder esta tal, que também só tem em mira regular a coexistência de grupos raciais e sociais desiguais, mediante a soberania do grupo mais forte sôbre o mais fraco. 4 A lei não pode surgir fora do estado, porque é essencialmente o exercício do poder estatal. As noções de “direi to natural” e de “direitos inalienáveis” são produtos absurdos de pura imaginação, declarou Gumplowicz, e tão desprovidos de sen- 1 V. nl> 24, supra. 2 L udwig G um plo w ic z , Dev Rassetikampf, 2* ed., Innsbruck, 1909, pags. 218-219. 3 G u m plo w icz , The Outlines of Sociology, trad, de F. W . M oore, Fi- lidelfia, 1899, pag. 178. 4 Id., pag. 179. 126 CIÊNCIA DO DIREITO tido quanto os conceitos de “livre arbítrio” ou “razão”. 5 A pre- sunção de que a lei se preocupa com a criação da liberdade e da igualdade entre os homens é uma manifestação de ilusão espiritual. Verdadeiro é exatamente o contrário. A lei é “em geral o contrá rio mesmo da liberdade e da igualdade, como de fato naturalmente deve ser”. 6 Porém Gumplowicz não chegou a afirmar que a relação entre o grupo dominante e os grupos subjugados dentro do estado per maneça estática durante tôda a existência de uma sociedade. T ra va-se na história da humanidade, salientou êle, uma luta emanci- pacionista dos grupos e classes excluídas da participação do poder político, social e econômico. Nessa luta, por uma ampliação da li berdade e da igualdade, as classes espoliadas se valem de con cepções ideais da lei e do direito como armas eficazes. Armas que foram forjadas pela classe dominante, mas que são utilizadas pelas classes inferiores para atacar e destruir o domínio da classe domi nante. Por exemplo: a burguesia, na sua luta contra o feudalismo, apelou para os direitos humanos universais, para a liberdade e a igualdade.7 Mais recentemente, a classe trabalhadora usou da mesma ideologia na sua luta pela ampliação dos seus direitos e do seu poder econômico. Gumplowicz sustentou que, na sua cam panha pela emancipação, as classes inferiores são capazes de obter certos êxitos, sem contudo jamais atingirem o seu objetivo final, da completa liberdade e da igualdade absoluta. Pioneiro da sociologia jurídica na Alemanha foi M a x W e - ber (1864-1920), cuja obra monumental sôbre o assunto, abran gendo uma grande variedade de problemas, não pode ser fácil mente resumida. 8 Uma das suas mais valiosas contribuições para a teoria do direito está na distinção por êle estabelecida entre os métodos racional e irracional de feitura da lei, e a minuciosa aná lise que fêz dêsses dois métodos, do ponto de vista histórico, e sociológico. Uma teoria do direito que revela componentes de caráter so ciológico, mas que também pode ser explicada como uma tentativa 3 Id„ pág. 180. 6 Id., pág. 182. V. também G u m plo w icz , Rechtsstaat und Sozialismus, Innsbruck, 1881, pág. 135. 7 Id., pág. 149. 8 A ' sua '‘Rechtssoziologie”, incluída no Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1925. II, 387-513, foi publicada na Inglaterra sob o título de Max Weber on Law In Economy and Society, trad, de E, S h ils e M . R h ein stein , com uma excelente introdução de M . R h e in stein , Cambridge, 1954. Sôbre W e b e r , v . também W olfgang F riedm ann , ob. cit, págs. 196-199, e N or man S. M a r sh , "Principle and Discretion in the Judicial Process”, L. Q. Rev., n9 68, pág. 226, 1952. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 127 para reviver certas idéias de Hegel foi a sustentada pelo jurista alemão Joseph Kohler (1849-1919). Kohler ensinava que a ati vidade humana é uma atividade cultural, e que a missão do homem é “criar e desenvolver a cultura, obter valores culturais perma nentes, e destarte produzir uma nova abundância de formas, que serão como uma segunda criação, justaposta à criação divina”. 9 O direito, observou êle, representa importante papel na evolução da vida cultural da humanidade, cuidando de que os valores exis tentes sejam protegidos e outros novos sejam estimulados. Cada forma de civilização, disse Kohler, deve encontrar o direito que mais se adapte aos seus fins e objetos. Não existe um direito eter no; o que é adequado a um período não se adapta a outro. O direi to deve adaptar-se às condições da civilização, em constante muta ção, e incumbe â sociedade modelar periodicamente a lei em con formidade com as novas condições.10 Kohler pretendia uma síntese do individualismo com o cole- tivismo, e a sua reconciliação através do controle legal. O egoísmo, afirmou, “estimula a atividade humana, leva o homem a esforçar- se constantemente, aguça-lhe o espírito, e faz com que êle seja infatigável na sua busca de novos recursos”. 11 V ã seria, portanto, uma tentativa de extirpação do egoísmo ou de combate a êle por meio de uma ordem jurídica. Mas por outro lado, salientou, a coesão social é também necessária, a fim de que a humanidade não se desintegre, transformando-se em mero ajuntamento de indiví duos, perdendo a coletividade o controle sôbre os seus membros. Nada de grandioso se pode fazer, segundo êle, a não ser mediante um dedicado esforço de cooperação. “O indivíduo deve desenvol- ver-se com independência, mas nem por isso se deve abrir mão da extraordinária vantagem do coletivismo”. 12 Enquanto a filosofia jurídica dè Kohler se desenvolveu na linha divisória que passa entre a jurisprudência sociológica e o idealismo jurídico, um tipo de teoria do direito inteiramente socio lógica foi proposto pelo pensador austríaco Eugen E hrlich (1862- 1922). A verdadeira teoria sociológicado direito ensina, nas pa lavras de Northrop, que “o direito positivo não pode ser enten- 9 Philosophy of Law, trad. de A . A lb r ec h t , Nova Iorque, 1921, pág. 4. Cultura significava para K o h l er “de um lado a cultura de conhecimento, de outro a da produção e da atividade inovadoras; e divide-se em cultura es tética e cultura que controla a natureza”. Id., pág. 22. 10 Id., págs. 4-5, 58. 11 Id., págs. 60-61. 12 Id., pág. 51. Cf. também págs. 60-61. Sôbre a filosofia de K oh ler , v. R oscoe P ound, Jurispmdence, St. Paul, Minnesota, 1959, I, 158-169. 128 CIÊNCIA DO DIREITO dido isolado das normas sociais do direito existente”. 13 O “direito existente”, segundo a concepção de E h r l i c h , é “a ordem interna de associações”, isto é, o direito praticado pela sociedade* em oposição do direito impôsto pelo estado.14 O “direito existente” êle o identificava com o direito que domina a vida societária, embora não afirmado em proposições legais. “No presente, como em qualquer outra época, o centro de gravidade do desenvolvi mento jurídico não está na legislação, nem na ciência do direito, nem nas decisões judiciais, mas sim na própria sociedade”. 15 Na opinião de E h r l i c h , um julgamento judicial é um acon tecimento raro, comparado com os inúmeros contratos e as múlti plas transações que diàriamente se consumam na vida da comuni dade. Só pequenos pedaços da vida real chegam ao conhecimento dos funcionários incumbidos de dirimir contendas. Para estudar o corpo vivo do direito deve o estudioso voltar-se para o contrato matrimonial, para as convenções, para os arrendamentos, para os contratos de compra e venda, para os testamentos, para a ordem atual da sucessão hereditária, para as cláusulas de sociedade e para os estatutos das sociedades anônimas.16 E h r l i c h contrastava as “normas de decisão", assentadas para solução dos litígios, com as “normas de organização”, que se ori ginam na sociedade e determinam o comportamento real do homem comum. Um indivíduo, disse E h r l i c h , vê-se emaranhado num sem- -número de relações jurídicas e, com poucas exceções, muito espon tânea e voluntàriamente cumpre com os deveres que lhes são im postos por essas relações. Cumprimos os nossos deveres de pai e filho ou marido e mulher, pagamos as nossas dívidas, entregamos o que vendemos e realizamos para o nosso empregador aquilo a que nos obrigamos para com êle. Não é , segundo E h r l i c h , a ameaça de coação pelo estado o que normalmente induz o homem a cumprir êsses deveres. A sua conduta, via de regra, é determi nada por motivos inteiramente diversos: se não o fizesse, êle vive ria em desavença com os parentes, perderia os seus fregueses, seria despedido do emprêgo, ou granjearia a fama de desonesto ou irres ponsável. 17 O cumprimento por êle dos seus deveres legais é me nos uma questão de reflexão consciente do que de estar incons cientemente habituado às emoções e às idéias predominantes no seu 13 F. S. C. N orth ro p , “Ethical Relativism in the Light of Recent Legal Science", Journal of Philosophy, n? 52, pág. 649 e 651, 1955. 14 E u g e n E h r l i c h , Fundamental Principles of the Sociology of Law, trad, de W . L. M oll, Cambridge, M assachusetts, 1936, pág. 37. 15 Id., Prefácio. 16 Id., p ág. 495. meio. “As mais importantes normas funcionam apenas pela suges tão. Elas chegam ao homem sob a forma de ordens ou proibições; dirigem-se a êle sem uma declaração da razão em que se baseiam; e êle obedece a elas sem um momento de reflexão”. 18 Assim há um componen te psicológico na teoria do direito de E hrlich : êle atribui um grande pêso ao poder do hábito na vida do direito. O elemento psicológico do direito foi mais completamente ela borado por L eon P etrazycki (1867-1931), jurista filósofo russo. Êle achava que os fenômenos jurídicos consistem num processo psíquico singular, que só se pode observar mediante o emprego do método introspectivo.19 “Na vida cotidiana atribuímos a cada pas so, a nós mesmos e aos outros, diversos direitos de acôrdo com os quais agimos -— não, em absoluto, porque assim seja determi nado no Código ou coisa semelhante, mas simplesmente porque é da nossa convicção independente que assim deve ser”. 20 P etra- zycki desenvolveu uma teoria do “direito intuitivo", na qual a consciência jurídica individual e as experiências íntimas dos sêres humanos desempenham um papel preponderante na explicação dos íenômenos jurídicos e sociais. P etrazycki procedeu também a uma interessante análise das relações entre o direito e a moral, que adiante apreciaremos. 21 28. A Teoria Jurídica dos Interesses e o M ovimento d o Di~ reito-livre. A teoria jurídica dos interêsses, movimento da teoria d o direito que surgiu no continente europeu, foi produto da teoria sociológica do direito, e teve larga aceitação, notadamente na Ale manha e na França. Na Alemanha o movimento foi iniciado por P hilipp H eck, e prosseguiu com H einrich Stoll, R udolf M ü l- ler- E rzbach, e outros.22 Essa teoria surgiu como um protesto contra o conceptualismo e o formalismo que dominaram o pensa mento jurídico alemão ao findar-se o século passado e começar o presente. A teoria jurídica conceptualista partia da presunção de que a ordem legal positiva era “perfeita”, e que, mediante opera ções lógicas apropriadas, erà sempre possível obter-se uma decisão correta do direito positivo em vigor. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 129 is Id., pág.. 78. 19 P etra zyc ki, Law and Morality, trad, de H. W . B a bb , Cambridge, Massachusetts, 1955, págs. 8, 12. Sõbre P etra zyc ki, v . F. S. C. N orth ro p, T he Complexity of Legal and Ethical Experience, Boston, 1959, págs. 78-92. 20 Id., pág. 57. 21 V. n' 57, adiante. 22 Uma compilação de importantes trabalhos de representantes desta escola se encontra em The Jurisprudence of Interests, trad, e ed. de M. M. S choch , Cambridge, Massachusetts, 1948. — E. B. — 9 130 CIÊNCIA DO DIREITO H e c k e seus seguidores desafiaram essa afirmação dos juris tas conceptualistâs, para êles infundada e contrária à realidade. Mostraram que tôda ordem jurídica positiva era necessàriamente fragmentária e cheia de lacunas, e que nem sempre se obtinham decisões satisfatórias à base das normas legais existentes, por um processo de dedução lógica. O método de atuação judicial proposto pela teoria jurídica dos interêsses repousa na premissa de que as normas legais cons tituem princípios e máximas moldados pelo legislador para a solu ção de conflitos de interêsses. Sendo assim, devem ser considera dos juízos de valor, pronunciamentos no sentido de que os interês ses de um dos grupos sociais conflitantes prevaleça sôbre os do outro, ou talvez que os interêsses de ambos cedam aos de um terceiro grupo ou aos da comunidade no seu todo. 83 Para chegar a uma decisão justa, deve o julgador verificar que interêsses o legis lador teve em mira proteger mediante uma determinada norma positiva. Entre os interêsses antagônicos, deve prevalecer o que seja preferido e favorecido pela própria lei. Assim, H eck e seus prosélitos pregavam a subordinação do juiz à lei escrita e pro mulgada. Recusavam-se a prover o juiz de uma balança de valo res não contida na lei positiva, deixando-o sem muita orientação em casos nos quais o sistema legal, mesmo tomado como um todo integral, não oferece quaisquer indícios para a solução do conflito de interêsses. 24 Na Françá, F rançois G é n y (1861-1944) propôs um sistema de metodologia jurídica que oferecia numerosos pontos de contacto com a doutrina jurídica dos interêsses. Num famoso tratado,25 êle mostrou que as fontes formais do direito eram incapazes de cobrir todo o campo da ação judicial. Mostrou que há sempre uma certa esfera de liberdade de ação deixada ao juiz, dentro da qualêle deve exercer uma atividade mental criadora. Essa discrição, disse G é n y , não deve ser exercida consoante os descontrolados e arbitrários sentimentos pessoais do juiz, mas sim ser baseada em princípios objetivos. O juiz deve procurar dar a maior satisfação possível às pretensões dos litigantes, até onde se harmonizem com os fins ge rais da sociedade. O método para a realização dessa tarefa deve ser o do “reconhecimento de todos os interêsses conflitantes era jôgo, avaliando-lhes a respectiva fôrça, pesando-os, por assim dizer. 33 M ax R h ein stein , “Sociology of Law", Ethics, n5 48, pág. 233, 1938. 24 Sôbre o equilíbrio dos interêsses, v. também nç 61, adiante. 25 Méthode d'interprétation et sources en droit privé positif, 2’ ed. re vista, Paris, 1954. Partes desta obra foram traduzidas por E. B ru n ck en sob o titulo "Judicial Freedom of Decision" em The Science of Legal Method, Nova Iorque, 1921, págs. 1-46. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 131 na balança da justiça, a fim de fazer preponderar o mais importante déles, segundo um padrão social, e afinal estabelecer o equilibrio entre êles tão ardentemente desejável”. 26 Para obter um justo equilibrio de interesses, o juiz, segundo Gény, deve examinar cuidadosamente os sentimentos morais predo minantes e sondar as condições sociais e econômicas do momento e do lugar. Tanto quando possível, deve respeitar a vontade autô noma das partes, como manifestada nos contratos, testamentos e outros atos particulares, mas de maneira que essa vontade autô noma das partes não entre em choque com os princípios fundamen tais da ordem pública. 2T Método substancialmente mais radical do que o dos interesses e o de Gény foi defendido pelos partidários do movimento da livre criação do direito, originado na Alemanha em princípios do século X X . Pioneiros do movimento foram È rnst F uchs (1859-1929) e H ermán Kantorowicz (1877-1940).28 Êsse movimento subli nhou o elemento intuitivo e emocional do processo judiciário, exi gindo que o juiz descubra o direito de acôrdo com a justiça e a eqüidade. Os adeptos da livre criação do direito não querem ir ao extremo de libertar o julgador de um dever generalizado de fidelidade à letra da lei. Quando, porém, o direito positivo fôr obscuro ou ambíguo, ou quando parecer que o legislador contem porâneo não decidiria o caso como disposto na lei escrita, então o juiz deverá decidir a questão consoante as concepções de justiça predominantes no momento, ou, não as havendo, para o caso, de acôrdo com a sua própria consciência jurídica. 29 Com essa extrema dilatação da independência do juiz no ato de julgar preconizada pelos partidários da livre criação do direito, não concordaram, de maneira alguma, os representantes da doutrina dos interêsses. 26 G én y , "Freedom of Judicial Decisión”, The Science of Legal Meíhod, págs. 35-36. 27 Id., págs. 42-43. G én y é conhecido não só pelos seus estudos metodo lógicos, como também pela sua obra de filosofia jurídica intitulada Science et tecknique en droit privé positif, Paris, 1913, obra pertencente à escola fi losófica neo-escolástica. V. nç 35 adiante. Sôbre G én y , v . P ound , Jurispru- dence, I, 181-184; T hom as J. O ’T oole “The Jurisprudence of Geny”, Villa- nova Law Review, ng 3, pág. 455, 1958; B. A. W ortley , “François Geny”, Modem Theories of Law, Londres, 1933, págs. 139-159. 28 G n a e u s F la v iu s (K a n to r o w ic z ) , Der Kampf um die Rechtswissens chaft, Heidelberg, 1906; H erm an n K a n to ro w ic z , Aus der Vorgeschichte der Freirechtslehre, Mannheim, 1925; E r n s t F u c h s , Die Gemeinschädlichkeit der Konstruktiven Jurisprudenz„ Karlsruhe, 1909; F u c h s , Juristischer Kultur kampf, Karlsruhe, 1912. 2® V. particularmente Der Kantpf um die Rechtswissenschaft, pág. 41. Posteriormente, K antorowicz formulou a doutrina de livre criação do direi to de maneira mais construtiva. V . K antorowicz, “Some Rationalism about Realísm", Yale Law Journal, n9 43, págs. 1.240 a 1241, 1934. 132 CIÊNCIA DO DIREITO 29. A Sociologia Jurídica de Pound. Em seu ensaio O Filó so fo M oralista e a Vida M oral, o filósofo norte-americano W illia m J a m e s , tentando definir a essência do “bem” ético, chegou à se guinte conclusão: “Buscando um principio universal, somos inevi- tàvelmente levados ao mais universal de todos os princípios — o de que a essência do bem está simplesmente na satisfação de uma necessidade”. 80 Segundo êle, tôdas as necessidades são, prima fade, respeitáveis, e o melhor mundo que se poderia imaginar seria aque le em que tôdas elas fôssem satisfeitas assim que se manifestassem. Como, porém, há sempre na realidade uma distância entre o ideal e o real, êle indagava: "Não estará o princípio orientador da filo sofia ética (visto que em nosso pobre mundo é impossível satisfa zer a tôdas as necessidades conjuntamente) em satisfazer sempre a tantas necessidades quanto seja possível?”. 31 R o sc o e P o u n d (nascido em 1870), o fundador da escola sociológica de direito nos Estados Unidos da América, sofreu acen tuada influência da filosofia pragmática de W illia m J a m e s , em bora mais tarde se tenha tornado perceptível em seus escritos uma certa simpatia pelo idealismo da filosofia do direito natural.32 Uma exposição concisa da quintessência de sua atitude fundamental em face do direito pode ser encontrada na sua Introdução à Filo sofia do D ireito: Para compreender o direito hodierno, contento-me com um quadro em que se satisfazem, de todo o conjunto de necessidades humanas, tantas quanto se pode, com o mínimo de sacrifício. Basta-me imaginar o direito como uma instituição social destinada a satisfazer necessidades sociais .— os reclamos, as exigências e esperanças que a existência da sociedade civilizada envolve. — atendendo a tantas quanto possível com o mínimo de sacrifício, até onde tais necessidades podem ser satisfeitas ou tais reclamos atendidos mediante um ordenamento da conduta humana numa sociedade politicamente organizada. Para os fins a que viso no momento, apraz-me ver que a história do direito registra cada vez maior reconhecimento e satisfação, mediante o controle so cial, de necessidades, reivindicações e desejos humanos; um mais amplo e mais eficaz atendimento dos interesses sociais; a eliminação, cada vez mais com pleta e efetiva, do desperdício e do atrito no gôzo humano dos bens da vida — em suma, uma engenharia social cada vez mais perfeita. 83 Ao contrário de K a n t e S p e n c e r , P o un d pensa no fim da lei não precipuamente em têrmos de um máximo de auto-afirmação. 30 Essays on Faith and Morais, Nova Iorque, 1943, p á g . 201. Sôbre J am es, v . E dwin W . P atterso n , Jurisprudence, Brooklyn, 1953, p á g s . 477- 486. si Id., pág. 205. 82 V., por ex„ o seu Social Control through Law, New Haven. 1942, págs. 28-29, 38-39, 66, 97-101, 108-109, e Justice According to Law, New Haven, 1951, págs. 6, 19, 22-23. 33 Ed. revista, New Haven, 1954, pág. 47. SOCIOLOGIA E REALISMO JURIDICO 133 mas principalmente em térmos de rnn máximo de satisfação de ne c e s s id a d e s . 84 Durante o século X IX , observa éle, a historia do direito foi escrita sobretudo como o registro do crescente reconhe c im e n to dos direitos individuais, muitas vêzes tidos como “natu rais" e absolutos. No século X X , propõe êle, então, essa história deve ser reescrita e m têrmos de um cada vez maior reconhecimento d e n e c e s s id a d e s humanas, de exigências humanas e de interêsses Òs interêsses a serem assegurados e protegidos pela ordem jurídica foram catalogados e classificados por PouND num projeto de grandes proporções.35 Distinguiu êle os interêsses individuais ( “reclamos, exigências ou desejos envolvidos imediatamente na existência individual e manifestadosem razão da própria vida” ) dos interêsses públicos ( “reclamos, exigências ou desejos que en volvem a existência numa sociedade politicamente organizada, e que se afirmam com base nessa mesma organização” ) e dos inte rêsses sociais ( “reclamos, exigências ou desejos que envolvem a existência social numa sociedade civilizada* e que se afirmam em razão mesmo da convivência social” ) . 36 Nesta última categoria êle inclui, entre outros, os interêsses na segurança geral, na existência individual, na proteção da moral, na conservação dos recursos natu rais (físicos e humanos), e o interêsse no progresso econômico, político e cultural. P ound evita comprometer-se com um cânone rígido de ava liação dêsses interêsses. Reconhece que certos interêsses podem ter prioridade num dado momento, e que outros devem ser tratados preferencialmente em outros períodos. “Creio que ao jurista cabe apenas reconhecer o problema, e perceber que êste lhe é submetido como sendo o de assegurar todos os interêsses sociais até onde lhe; seja possível, conservando entre êles um equilíbrio, ou uma h a r monia, compatível com a satisfação de todos êles”. 3T Isso deixa 34 Id., pág. 42. Isto não ‘quer dizer, contudo, que P ound desejasse negar proteção jurídica aos impulsos de natureza pessoal. “Tanto a livre afirmação individual, a atividade livre e espontânea, de um lado", disse êle, "quanto a cooperação ordenada, até mesmo arregimentada, do outro, são ambas agentes de-civilização”. P ound, The Task of the Law, Lancaster, Pennsylvania, 1944, pág. 36. 35 V. o seu trabalho “A Theory of Social Interests", nos Papers and Proceedings of the American Sociological Society, n’ 15, pág. 16, 1921; e também “A Survey of Social Interests”, Harvard Law Review, n' 57, pág. 1, 1943; cf. ainda P a tterson , Jurisprudence, págs. 518-527. Sôbre P ound, v. também G eorge W . Paton , “Pound and Contemporary Juristic Theory”, Canadian Bar Review, n5 22, pág. 479, 1944; F riedm ann , ob. cit, págs. 293-299; S ton e , Province and Function of Law, págs. 355-360. 36 “A Survey of Social Interests", págs. 1-2. V. também n9 61, adiante. ST Ob. cit., na nota 33 supra, pág. 46. 134 CIÊNCIA DO DIREITO t> jurista com uma missão de certo modo indefinida, mas na opi nião de P ound a ciência do direito não lhe pode oferecer padrões mais absolutos e autênticos. A justiça, escreveu P ound, pode ser feita com ou sem lei. Justiça, segundo a lei, é a ministrada “de acôrdo com preceitos ou normas (regras), ou padrões coercitivos, desenvolvidos e aplicados por uma autoridade técnica, a qual se pode conhecer antes do liti gio, e graças à qual todos razoàvelmente confiam em que recebe rão igual tratamento. Significa uma distribuição de justiça impes soal, igualitária, infalível, até onde seja possível obtê-la por meio. de preceitos de aplicação geral". 38 Justiça sem lei, por outro lado, é a ministrada de acôrdo com a vontade ou a intuição de um indi víduo que, ditando a sua decisão, goza de uma grande liberdade de discernimento, não estando obrigado a observar quaisquer regras ge rais e fixas.89 A primeira forma de justiça é a judicial, a segunda tem um caráter administrativo. Segundo Pound, elementos de am bas essas formas de justiça podem ser encontrados em todos os orde namentos jurídicos. A história do direito, observa êle, revela um constante oscilar entre uma grande independência do julgador e a sua sujeição a regras inalteráveis e pormenorizadas. Por exemplo: ao século X IX repugnava a liberdade judicial, procurando-se en tão excluir o elemento administrativo do domínio do direito, e pre ferindo-se uma sistemática administração da justiça consoante con ceitos fixos, uniformes e técnicos. Já o século X X testemunhou uma revivescência da justiça executiva, como o demonstrou o desen volvimento dos órgãos e das comissões administrativas. Manifes tou-se uma exigência de individualização da justiça que deve ser interpretada como uma reação contra a aplicação exageradamente rígida da lei na época precedente, da estabilidade legal. O proble ma do futuro, diz P ound, é o da consecução de um equilíbrio viá vel entre os elementos judiciário e administrativo da justiça. “Um sistema legal satisfaz quando consegue estabelecer e manter um equilíbrio entre o extremo da autoridade arbitrária e o extremo da autoridade limitada e embaraçada. Êsse equilíbrio não pode ser constante. O progresso da civilização desequilibra continuamente o sistema. O equilíbrio se restabelece aplicando-se a razão à expe riência, e só assim as sociedades politicamente organizadas têm podido conservar-se duradouramente”. 40 38 P ound, Jurisprudence, II, 374-375. s9 Pound , "Justice According to Law", Columbia Law Review, n’ 13, pág. 696, 1913; v. também Jurisprudence, II, págs. 352 e segs. 40 "Individualization of Justice”, Fordham Law Review, n' 7, págs 153 a 166, 1938. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 135 30. Cardozo e H olm es. A doutrina jurídica norte-ameri cana sociológica surgiu não apenas como um protesto contra as concepções tradicionais de direito natural, como também como uma reação contra a atitude formalística da jurisprudência analítica. Os juristas sociólogos norte-americanos negam que a lei possa ser en tendida sem ser relacionada com as realidades da vida social hu mana. Aos anseios analíticos de auto-suficiência da ciência do direito respondem êles com a exigência de um trabalho de equipe, com a participação das outras ciências sociais. 41 Os juristas so ciólogos recomendam que o juiz que deseje realizar as suas fun ções de maneira satisfatória tenha um profundo conhecimento dos fatores sociais e econômicos que modelam e informam a lei. Um dos maiores juizes norte-americanos, Benjam in N. C ar dozo (1870-1938), sublinhava a necessidade de estar o julgador atento às realidades sociais. Ao influxo dos teoremas da jurispru dência sociológica, êle realizou uma ampla e profunda análise da atividade judicial. 42 Sem menosprezar o papel da dedução lógica na interpretação e na aplicação da lei, Cardozo chegou à conclu são de que considerações de conveniência social têm sempre papel preponderante na arte de julgar. O juiz procura interpretar a cons ciência social e dar eficácia à lei, mas, assim procedendo, às vêzes êle amolda e modifica a mesma consciência que é chamado a inter pretar. 43 Há, pois, um elemento criador, ao lado do elemento descobridor, na atividade judicial. O juiz tem com freqüência de pesar interêsses em conflito e escolher entre duas ou mais alterna tivas de decisão logicamente admissíveis. Ao efetuar essa escolha, êle sofre necessàriamente a influência de instintos hereditários, de. crenças tradicionais, de convicções adquiridas e de concepções de necessidade social. “Cabe-lhe pesar todos êsses ingredientes, a sua filosofia, a sua lógica, as suas analogias, a sua história, os seus costumes, o seu senso de direito, e tudo o mais, e, acrescentando um pouquinho aqui, tirando um pouquinho ali, determinar, o mais sensatamente possível, o pêso que fará pender um dos pratos da balança”. 44 ■ 41 R oscoe P ound , "Fifty Years of Jurisprudence”, Harv. L. Rev., n’ 51, págs. 777 a 812, 1938; P ound , "How Far Are W e Attaining a New Measure ■of Values in Twentieth-Century Juristic Thought?", West? Virginia Law Re view, n9 42, págs. 81 a 94, 1936. 42 The Nature of the Judicial Process, New Haven, 1921; The Growth of the Law, New Haven, 1924; The Paradoxes of Legal Science, Nova Iorque, 1928. Estas obras, juntamente com outros ensaios, foram reproduzidas nos Selected Writings of Benjamin Nathan Cardozo, ed. de M. E . Hall Nova Iorque, 1947. 43 Selected Writings, pág. 228. 44 Id., pág. 176. 136 CIÊNCIA DO DIREITO C ardozo acreditava que a adesão ao precedente devia ser a regra, e não a exceção, na administraçãoda justiça, Mas admitia que se abrandasse a regra em casos em que a fidelidade ao pre cedente destoasse evidentemente do sentimento de justiça ou con trariasse o bem-estar social. A necessidade de certeza, argumen tava êle, deve de certo modo ser conciliada com a necessidade de progresso, e assim a doutrina do precedente não pode ser tratada como uma verdade eterna e absoluta. “Algures, entre a veneração do passado e a exaltação do presente, se encontrará o caminho da segurança”. 45 Cardozo conceituou a lei como “a expressão de um princípio de ordem a que os homens se devem conformar na sua conduta e em suas relações recíprocas, como membros da sociedade, para que se evitem o atrito e a desagregação dos componentes do todo, que são os átomos da massa”. 46 Êle estava convencido de que muitos fatores sociais funcionam como instrumentos modelado res do conjunto de normas denominado direito: a lógica, a história, o costume, a utilidade, padrões convencionais de bem e mal. 47 E repelia com veemência a idéia de ser o direito uma instituição a que faltassem generalidade e coerência, sendo apenas uma seqüên cia, mais ou menos fortuita e acidental, de “sentenças isoladas”. 4S Êle estava certo de que a existência de padrões comunitários con vencionais e de conceitos objetivos de valor emprestam certa me dida de unidade e consistência ao direito, embora não possam evi tar em todos os casos a decisão pessoal e subjetiva do juiz. 49 Ou, como disse o próprio C ardozo: “A s tradições da nossa jurispru dência recomenda-nos o padrão objetivo. Não quero dizer, é claro, que êsse ideal da visão objetiva seja sempre perfeitamente atingido. Não podemos transcender as limitações do eg o e ver seja o que fôr como realmente é. Não obstante, vale a pena' lutar por êsse ideal, mesmo nos limites da nossa capacidade. Esta verdade, clara mente percebida, tende a unificar a função do juiz”. 60 Comparando as teorias de C ardozo com as de um outro gran de magistrado norte-americano, O liver W endell H olmes (1841- 1935), veremos que êsses dois juristas concordavam substancial mente no tocante a alguns dos principais aspectos do mecanismo 45 Id., pág. 175. V. também págs. 170-172, 246, e o n5 80, adiante. 4<i Id„ pág. 248. Esta concepção do direito foí evidentemente influen ciada pelas idéias de R o sco e P o u n d . V. n' 29, supra. 4? Id., pág. 153. 48 ld„ pág. 159. 49 Id., págs. 151-153. 60 Id. pág. 151. Sôbre C ardozo, v . ainda P atterson , Jurisprudence, págs. 528-537, e “Cardozo’s Philosophy of Law", Univ. of Penns. L. Rev., n’ 88, págs. 71-91, 156-176, 1939. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 137 das decisões judiciais. Contudo, notaremos também que a filosofia judiciária de Holmes era menos imbuida de idealismo ético que a do seu colega Cardozo. Holmes, como Cardozo, sublinhava os limites impostos ao uso da lógica dedutiva na solução dos problemas jurídicos. Porém ia mais longe que Cardozo, nessa limitação do papel do raciocinio lógico no julgamento: A vida do direito não tem sido lógica: tem-se caracterizado pela expe riência. As necessidades sentidas do momento, as teorias morais e políticas predominantes, a intuição do que é de interesse público, declaradas ou in conscientes, até mesmo os preconceitos de que os juizes participam como todos os outros sêres humanos, tudo isso tem representado papel muito mais importante do que o silogismo na determinação das regras pelas quais devem os homens ser governados. O direito consubstancia a historia do desenvolvi mento de uma nação através de muitos séculos, e não pode ser tratado como se apenas contivesse os axiomas e corolários de um compendio de mate mática. 51 Só um juiz ou advogado identificado com os aspectos histó ricos, sociais e econômicos do direito estará em condições de rea lizar satisfatoriamente as suas funções. 52 Se à historia e às fôrças sociais conferia Holmes um grande papel na vida do direito, o elemento ideal ou ético era por éle reduzido a um plano secundário. Céptico em matéria de moral, êle considerava o direito sobretudo um conjunto de decretos que repre sentam os interesses dominantes na sociedade e são impostos pela íôrça. “Em se tratando da evolução de um corpus juris, o que mais importa é saber o que pretendem as fôrças predominantes da co munidade e se o pretendem com suficiente interêsse para despre zar quaisquer inibições que se lhes oponham”. 53 Embora Holmes admitisse que os princípios morais influem na formulação inicial das regras jurídicas, êle tendia a identificar a moralidade com as predileções e os valores preferidos pelos variáveis grupos deten tores do poder na sociedade. Além disso, êle achava que a inter pretação do direito positivo vigente lucraria talvez, “se tôdas as 51 The Common Law, Boston, 1923, pág. 1. 52 V. H olm es , "The Path of the Law”, nos Collected Legal Papers, Nova Iorque, 1920, págs. 180, 184, 187, 202. 63 C arta a John W u , incluída em Holmes’ Book Notices and Uncollec ted Letters and Papers, ed. de H . C . Shriver, N ova Iorque, 1936, pág. 187. Sôbre o ceticismo ético de H olmes, v . F rancis E . L ucey , “Holmes’ Liberal Hum anitarian-Believer in D em ocracy?”, Georgetown Law Journal, n’ 39, pág. 523, 1951. Cf. também T homas B roden, Jr., “T he Straw M an of Legal Posi tivism”, Notre Dame Lawyer, n' 34, págs. 530 e 539 a 543, 1959; F riedmann, ob. cit, págs. 307-309. 138 CIÊNCIA DO DIREITO palavras de significação moral pudessem ser completamente elimi nadas da le i" .84 A sua filosofia fundamental era de que a vida representa principalmente a luta darwinista pela existência, tendo como recompensa a sobrevivência dos mais aptos, e sendo objetivo do esforço social muito mais “constituir uma raça” do que pugnar pela consecução de fins éticos humanitários.63 O agnosticismo ético de Holmes se refletiu também na sua atitude em geral com relação à instituição do direito. Uma visão pragmática do direito, declarou, deve apreciá-lo do ponto de vista daquele a quem êle qualificou de “pessoa imperfeita’’. Se você quer apenas conhecer o direito, e nada mais, deve examinã-lo como o faria uma pessoa imperfeita, a quem só interessam as conseqüências materiais que êsse conhecimento lhe permite antecipar, e não como uma pes soa de bem, que encontra razões para a sua conduta, de acôrdo com a lei ou contra ela, nas sanções ainda mais vagas da sua própria consciência (omis- -sis). Se tomarmos a impressão da nossa pessoa imperfeita, veremos que para ela os axiomas e as deduções não valem um caracol, e que só lhe interessa saber como agirão, de fato, os tribunais da Inglaterra ou do Massachusetts. Eu sou muito assim também. Na lei eu vejo apenas antecipação do que, de fato, farão os tribunais, e nada mais do que isso. 56 Essa conceituação epigramática do direito passou a ser um dogma fundamental no credo de certos juristas norte-americanos realistas, cujas idéias apreciaremos em seguida. 31. O realismo jurídico norte-americano. O movimento rea lista no estudo norte-americano da ciência do direito pode ser ca racterizado como uma ala radical da escola sociológica. Êsse movi mento não chega propriamente a constituir uma escola de direito, ■ porque lhe falta um grupo de estudiosos que comungue do mesmo credo e se oriente por um programa unificado. É antes um método peculiar de estudo dessa ciência, uma maneira especifica de refle tir sôbre os problemas jurídicos, típica dos escritores que a si mes mos se qualificam de juristas realistas. A principal característica do movimento realista na ciência do direito talvez se encontre n0 fato de os seus representantes ten derem a menosprezar o elemento normativo ou dispositivo da lei. O direito se afigura ao realista muito mais um conjunto de fatos B4 “The Path of the Law”, pág. 179. Sôbre a relação entre o direitoe a moral na teoria de H o lm es , v. M ark D e W o l f e H owe, “The Positivism of M r. Justice Holmes”, Harv L, Rev„ n5 64, pág. 529, 1951; réplica de M. H art J r ., “Holmes’ Positivism — An Addendum”, id,, pág. 929; tréplica de H ow e, id., pág. 937. 65 H olm es, "Ideals and Doubts”, nos Collected Legal Papers, pág. 306. V . a sua refutação da recomendação kantista de que jamais se tratassem os sêres humanos como instrumentos ou meios. Id„ pág. 304. m “The Path of the Law”, págs. 171', 173. Sôbre H o lm es , v. também P a tterson , págs. 500-508. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 139 do que um sistema de regras, uma instituição com vida própria muito mais que um conjunto de normas estabelecidas. O que real mente fazem juizes, advogados, autoridades policiais e carcerárias com relação aos casos judiciais ocorrentes, eis, acima de tudo, o que os juristas realistas consideram ser o próprio direito.57 Karl Llew ellyn (1893-1962), nos seus primeiros trabalhos, foi um porta-voz do realismo ortodoxo. Êle argumentava que as xegras de direito substantivo são muito menos importantes na prá tica do direito do que até então se admitira. “A teoria de que as normas decidem os casos parece ter sido mantida em êrro pelo espaço de um século não só em relação aos reclusos das bibliote cas, como em relação aos juizes”. 68 E propunha que o ponto focal das investigações jurídicas se deslocasse do estudo das nor mas para a observação do verdadeiro comportamento dos funcio nários da justiça, notadamente os juizes. “O que fazem êsses fun cionários relativamente aos litígios vem a ser, para mim, o próprio direito”. 59 Esta última afirmação, porém, L le w e lly n retificou-a em 1950.eo £ m seus escritos mais recentes, êle deu um pouco mais de importância à generalidade normativa da lei, observando que a parte dispositiva da lei é “uma parte assustadoramente desenvolvida” dêsse instituto, conquanto não o represente integralmente.61 Além 57 F riedrich K essler , “Theoretic Bases of Law", University of Chicago Law Review, n' 9, págs. 98 a 109, 1941. Diz êste autor: “O realismo estabe leceu uma nítida distinção entre o que dizem os julgadores e o que êles real mente fazem. Só o que êles fazem é que importa... O direito fica sendo o padrão de comportamento dos juizes e ^ outros funcionários públicos da mesma espécie. Felizmente, o realismo juridico não se deteve neste empirismo. Desen volveu-se e aperfeiçoou a sua atitude funcional diante do problema do direito”. A apreciação do realismo jurídico neste livro não inclui atitudes funcio nais diante do problema do direito, que o vêem sobretudo como uma institui ção destinada a promover a justiça ou buscar um ideal identificável ao bem social. Para apreciações críticas do realismo jurícico norte-americano, v. Lon L. F u l l e r , “American Legal Realism”, Univ. o{ Penns. L. Rev., n9 82, pág. 429, 1934; H erm an n K an tor,o w icz , “Some Rationalísm about Realism”, Yale Law Journal, nç 43, pág. 1240, 1934. 58 “The Constitution as an Institution”, Columbia Law Rev., nç 34, págs. 1 a 7, 1934. 59 The Bramble Bush, Nova Iorque, 1930, pág. 3. Cf. também "A Rea- listic Jurisprudence — The Next Step”, Columbia L. Rev. n5 30, pág. 431, 442-443, 464, 1930, e "Some Rationálism about Realism”, rev. cit. n’ 44, pág. 1222, 1931. The Bramble Bush, ed. rev., Nova Iorque, 1951, Prefácio, págs. 8-9. L lew elly n reconheceu ali que- a sua anterior definição do direito continha “palavras deploráveis, se não ’mais satisfatoriamente explicadas, valendo sim plesmente, quando muito, por uma exposição muito parcial, de tôda a verdade”. ld„ pág. 9. 61 “Law and Social Sciences, especially Sociology", Hat v. L. Rev., n' 62, págs. 1286 a 1291, 1949; V. também o seu “The Normative, the Legal 140 CIÊNCIA DO DIREITO disso, harmonizando-se com os postulados da escola sociológica, êle procurou explorar as relações e os pontos de contacto entre o direito e as outras ciências sociais, chegando à conclusão de que os juristas e sociólogos, até agora, não conseguiram fazer um “es forço efetivo de boa vizinhança”. 162 Jerome F rank (1889-1957) expôs uma opinião realista do direito que, pelo menos nas suas primeiras manifestações, se ca racterizou por um acentuado radicalismo. Num livro de larga re percussão, O D ireito e a Inteligência M od ern a ,63 descreveu o sis tema norte-americano de administração da justiça como sendo, pouco mais ou menos, um sistema disfarçado de justiça oriental do cádi. * As normas legais, sustentou, não constituem a base da decisão judicial. As decisões judiciais são condicionadas por emo ções, por pressentimentos intuitivos, por preconceitos, por estados temperamentais e outros fatores irracionais. 64 Portanto, o conhe cimento das regras legais pouco ajudará a prever a decisão de um determinado julgador. "Ninguém sabe qual é a lei num caso qual quer ou numa dada situação, transação ou acontecimento, enquanto não proferida a decisão específica (sentença, mandado ou decreto) no próprio caso”. 65 Para quem pensa assim, uma decisão judicial é evidentemente algo muito incerto e quase imprevisível. Mas essa incerteza do direito, disse F rank, não deve ser deplorada, pois tem um imenso valor social.66 A idéia de que o direito pode tornar-se estável, fixo e assentado, êle a desprezava como “um mito jurídico", infan til sobrevivência de um “complexo paternal”. Por que buscam os homens uma irrealizável certeza no direito? ■—■ indagou. "É por que, respondo eu mesmo, ainda não se libertaram da necessidade infantil da autoridade paterna, e inconscientemente procuram en contrar no direito algo que substitua aquelas qualidades de firmeza, segurança, certeza e infalibilidade que na infância os filhos atri buem ao pai”. ®7 No dia em que os homens renunciassem a êsse desejo de um substituto do pai, êles seriam capazes de assumir 62 "Law and Social Sciences, Especially Sociology”, pág. 1287. «s Nova Iorque, 1930. Sôbre F ran k , v . J u l iu s P a u l , The Legal Rea- lism of Jerome N . Frank, Haia, 1959, contendo completa bibliografia. * Magistrado muçulmano. 64 Law and the Modem Mind, págs. 100-117. V . ainda F rank, “A re Judges Human?”, Univ. of Penns. Law Rev., n? 80, págs. 17, 233, 1931. 65 “Are Judges Human?”, pág. 41. 68 Law and the Modem Mind, pág. 7. 67 Id„ pág. 2 1. and the L aw Jobs”, Yale Law Journal, n' 49, págs. 1355 a 1359, 1364, 1940. A análise feita por L lew elly n do processo judicial nos tribunais de apelação en contra-se no seu The Common Law Tradition: Deciding Appeals, Boston, 1960. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO i 141 uma atitude muito mais racional em face do direito. Veriam então que, enquanto um tribunal não se pronuncia sôbre uma determi nada questão, ainda não existe a lei que a regula. Antes do jul gado, o único direito disponível é a suposição dos advogados do que fará o julgador. "Sendo assim, o direito, com respeito a uma dada situação, a) ou é a verdadeira lei, isto é, a decisão específica do caso, passado em julgado, fc) ou a lei provável, isto é, uma con jetura sôbre o que possa ser futuramente a decisão específica”. 68 Roscoe Pound definiu essa maneira de pensar como traduzindo "o culto da decisão isolada”. 89 Tendo ascendido a uma côrte federal de apelação, F rank desviou a sua atenção do aspecto normativo da lei para o exame do meio de descoberta do fato nos juízos de instrução. Para em pregar as suas próprias palavras, o antigo “céptico da norma” pas sou a ser um “céptico do fato”. 70 A^ procura do fato nos juízos de instrução, declarou, constitui o ponto fraco, o calcanhar de Aqui les na administração da justiça. Com zêlo infatigável, êle sondou as inúmeras fontes de êrro que podem atuar na determinação dos fatos por um juizado instrutor. Pode haver “testemunhas fementidas, testemunhas coagidas, testemunhas influenciadas, testemu nhas enganadas pela sua própria observação dos fatos sôbre que depõem, ou pela memória do que observaram, testemunhas que fal tam ou faleceram, documentos desaparecidos ou perdidos, advoga dos velhacos, advogados estúpidos, jurados ignaros, jurados cheios de preconceitos, jurados desatentos, juizes instrutores ignorantes, ou fanáticos e influenciados, ou "obstinados” e indiferentes às pro vas”. 71 Muitos dêsses fatores, disse êle, e sobretudo a persona lidade singular e impenetrável do juiz, fazem de um litígio em que a prova testemunhal se apresente contraditória uma questão alta mente subjetiva. Segundo F rank, o juiz (ou jurado) é dotado de uma “soberania”, daquele “poder virtualmente incontrolável e in controlado de discernir o fato”, ou seja, o poder de declarar qual versão testemunhal se admitirá como verdadeira. 72 Embora F rank tenha feito numerosas sugestões positivas para a racionalização e 68 Id., pãg. 46. R oscoe P ound , "H ow F a r Are W e Attaining a New Measure of Values in Twentieth-Century Juristic Thought”, West Virginia Law Review, 42, págs. 81 a 89, 1936. É de notar-se a identidade entre, a opinião de F rank e a "profética” definição do direito que nos deixou H o l m e s . V. n9 30. supra. 70 F ra n k , Courts on Trial, Princeton, 1949, págs. 73-74. 71 F rank , "Modern and Ancient Legal Pragmatism”, Notre Dame Lawyer, n' 25, págs. 207 a 254, 1950. 72 F rank , “Short of Sickness and Death”: A Study of Moral Respon sibility in Legal Criticism”, New York University Law Review, n’ 26, págs. 545 a 584. 1951. 142 CIÊNCIA DO DIREITO o aperfeiçoamento dos métodos empregados para a apuração dos fatos em juízo, 73 êle estava convencido de que, apesar dessas re formas, subsistiria sempre, no exame judicial dos fatos, uma larga dose de irracionalidade, de sorte, de adivinhação, a tornar quase impossível a previsão do resultado dos litígios. 74 Tendo as instâncias inferiores de instrução como centro do seu universo jurídico, F rank expôs um pensamento original no tocante às normas legais e aos precedentes judiciários. Êle admitia que muitas normas legais são firmes e certas e que o sistema dos precedentes judiciais tem um grande valor.75 E reconhecia a ne cessidade das normas legais como verdadeiros marcos indicadores para os juizes, nos seus julgamentos,^ declarando que elas corpo- rificam preciosos ideais de política e moralidade.76 Mas sustentava que as normas legais objetivas são em muitos casos frustradas pelas "normas intimas, inconscientes, particulares e idiossincráti cas”. aplicadas pelos juizes ou jurados na apuração dos fatos. 77 E concluiu, observando que os juizes tantas vêzes metem os pés pelas mãos, aplicando o sistema dos precedentes, que a uniformidade e estabilidade que as regras positivas podem parecer oferecer, a principio, com freqüência se tornam ilusórias e quiméricas, na prática. Em que pese êsse cepticismo, no que tange à segurança dos processos de instrução para a descoberta da verdade, o juiz F rank se interessava profundamente pelo problema da realização da jus tiça no reajustamento das relações das partes entre si perante os tribunais. A fim de tornar alcançável êsse objetivo, F rank pre gava um "desanuviamento da justiça”. 78 Queria que os casos fos sem o mais individualizados possível, e pretendia injetar uma boa dose de discrição judicial na aplicação de tôdas as normas legais, ou pelo menos na sua grande maioria, para que se tornassem tão flexíveis quanto de desejar. Cada litígio é único e singular, afir mava êle, e por isso mesmo não deve o juiz estar agrilhoado de mais por universalidades rígidas e generalizações abstratas. 79 Se o juiz F rank focalizou a sua atenção principalmente naque les aspectos do direito que giram em tôrno dos juízos de instru ção e de outros procedimentos adjudicatórios, 80 T hurman A rnold 73 Ob. cit., nota 70 supra, págs. 98, 100, 141-145, 183-185, 224, 248-251. 74 Id„ cap. III; cf. também ob. cit., nota 72 supra, pág. 630. 75 Ob. cit. na nota 70 supra, cap. X IX . 78 ld„ pág. 396, e ob. cit. na nota 71 supra, pág. 256. 77 Ob. cit. na nota 72 supra, pág. 582. 78 Ob. cit. na nota 70 supra, págs. 378 e segs. 70 ld„ págs. 395 e segs. 80 Veja-se o seu estudo sõbre a justiça administrativa em I{ ~Me.n Were Angéls, Nova Iorque, 1942. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 143 (nascido em 1891) preocupa-se com a análise sócio-psicológica do instituto.81 Essa análise é impregnada de profundo ceticismo e desconfiança no poder da razão humana. As teorias e os princí pios jurídicos significam para A rnold “métodos de pregação, mais que de orientação prática”. 82 A ciência do direito é vista por êle como “o sonho resplandecente mas irrealizado de um mundo gover nado pela razão”. 83 Na prática, afirmou, o direito consiste num grande número de símbolos e ideais coloridos emotivamente e con traditórios. Os esforços feitos pelos estudiosos do direito para construir um firmamento lógico, onde, aos olhos dos julgadores, os ideais contraditórios pareçam coerentes, são por êle considera dos não apenas vãos, mas até destituídos de proveitos práticos. O império do direito é melhor preservado, na sua opinião, pela coe xistência das múltiplas e conflitantes ideologias e simbolismos. “O ordenamento jurídico perde prestígio e influência tôda vez que grande ideais unilaterais empolgam um povo“ 84 Só o ceticismo dos valores e a pluralidade de valores pode impedir o nascimento de regimes políticos intolerantes e totalitários, pensava A rnold. 8& 32. O Realismo Jurídico Escandinavo. O realismo jurídico escandinavo difere do realismo jurídico norte-americano, principal- 81 V . The Symbols of Government, New Haven, 1935; The Folklore *; of Capitalism, New Haven, 1937. 82 Symbols of Government, pág. 21. V. ainda Folklore of Capitalism, j! pág. 148: “As teorias jurídicas e econômicas na realidade nada mais são que medonhos aglomerados de palavras de intensa coloração emocional”. ! 83 Symbols of Government, pág. 58. 84 Id., pág. 247. V. também id„ pág. 243; "Quando um grande povo. marcha coeso para um mesmo ideal, seguem-se a intolerância e a crueldade”. 85 Outros escritos da safra realista incluem: J oseph W . B ingham , "W hat Is the Law”, Michigan I&w Review, i f 11, 1.109, 1912; U n d erh ill M oore, “Rational Basis of Legal Institutions”, Columbia Law Rev., n. 23, pág. 609, 1923; U nd erh ill M oore e T heodore S. H ope , “An Institutional Approach to the Law of Commercial Banking”, Yale Law Journal, n’ 38, pág. 703, 1929; H erm an O liph a n t , "Facts, Opinions and Value-Judgements", Texas Law- Review", n’ 10, pág. 127, 1932; W a lter W . C o o k , "Scientific Method and the Law", American Bar Association Journal, n9 13, pág. 303, 1927; E dwin- N. G arlan , Legal Realism and Justice, Nova Iorque, 1941; M ax R adin, Law as Logic and Experience, New Haven, 1940; F rederick K. B e u t e l , Some Po tentialities of Experimental Jurisprudence as a New Branch of Social Science, Lincoln, Nebraska, 1957. Na Argentina, C arlos Cossio desenvolveu uma teoria de direito que apresenta certos pontos de contacto com o realismo jurídico norte-americano. ][■ Para a sua "teoria egológica”, o objeto da ciência do direito não são as nor mas jurídicas, mas sim a conduta humana na sua interação intersubjetiva. Tam bém êle atribui uma grande importância à faculdade criadora do juiz. V . C ar lo s Cossio, "Phenomenology of the Decision”, trad, de G. Ireland , em La- tin-American Legal Philosophy, Cambridge, Massachusetts, 1948, págs. 345- 400. 144 CIÊNCIA DO DIREITO mente em dois aspectos: primeiro, é o mais especulativo na apre ciação dos problemas jurisprudenciais, 88 e, segundo, dedica menos atenção à psicologia peculiarmentejudiciária do que o fizeram al guns dos mais destacados juristas realistas norte-americanos. Mas ■compartilha como o realismo jurídico norte-americano uma atitude radicalmente empírica em face da vida e do direito, bem como uma certa aversão à discussão e à determinação dos valores supremos a que deve servir a ordem jurídica. A xel H âgerstrõm (1868-1939), um professor de filosofia sueco, é considerado o fundador da “Escola de Upsala”, do movi mento jurídico realista na Escandinávia. 87 Suas doutrinas foram vasadas em molde mais extremista pelo seu discípulo A. V ilhelm L undstedt (1882-1955). Outros representantes do movimento são K arl O livecrona, um sueco, e A l f Ross, um dinamarquês. As idéias dêsses homens girám em tôrno de três problemas básicos: 1, o da natureza e validade do direito; 2, o da significação ou da falta de sentido das concepções fundamentais da doutrina analítica do direito (como as noções de direitos e deveres); e 3, o do nenhum sentido da idéia de justiça. No que se refere à natureza do direito, os realistas escandina vos (mais radicais até do que os seus irmãos norte-americanos) tendem a considerar o direito antes um conjunto de fatos do que um conjunto de normas ou mandamentos. “O direito nada mais é que um conjunto de fatos sociais”, diz O livecrona. 88 Na sua ■essência, o direito é um medonho mecanismo instalado para segu rança da sociedade. 89 O emprego atual ou potencial da fôrça é considerado por todos os realistas escandinavos parte integrante do conceito de direito. “Estamos justificados”, afirma O livecrona, "‘quando definimos as leis como regras relacionadas com a fôrça, visto que tudo gira em tôrno do emprêgo regular da fôrça”. 90 Nas palavras de Ross: “A lei é um instrumento do poder, e a relação •entre os que decidem o que será a lei e os que ficam sujeitos a ela 86 Esta diferença é apontada por B arna H orvath , "Between Legal Realism and Idealism”, Northwestern University Law Review, n9 48, págs. 693 a 704, 1954. V. também a exposição do realismo jurídico escandinavo feita por F riedm ann , ob. cit., págs. 258-265. 87 No Prefácio a Inquiries into the Nature of Law and Morals, Esto colmo, 1953, de A x e l H âgerstrõm , se encontra em breve ensaio sôbre a vida •e os ensinamentos dêste jurista feito por K arl O livecrona . *8 Law as Fact, Copenhague, 1939, pág. 127. 89 V ., por exemplo, H âgerstrõm , pág. 3 5 4 : "A ordem jurídica tôda ela ■nada mais é do que um mecanismo social, do qual os homens são as engre nagens". V . também A. V il h e l m L un d stedt , Legal Thinking Revised, Esto colmo, 1956, pág. 301. 90 Law as Fact, pág. 135. SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 145 é uma relação de poder”. 91 Os realistas escandinavos admitem que a maioria das pessoas obedecem à lei por hábito, e sem que seja realmente aplicada a fôrça física. Mas consideram a ameaça final de coação importante fator psicológico no cumprimento das leis. 92 Uma questão que avulta nas obras dos realistas nórdicos é a da legitimidade da ordem jurídica. Um empirismo coerente que nega a realidade dos conceitos formados só na mente humana deve pôr em dúvida a legitimidade da ordem jurídica estabelecida como um sistema de imposições normativas. A essa conseqüência che gam os realistas escandinavos. Êles negam que a lei obrigue por qualquer outra razão que não seja a de exercer realmente uma poderosa influência psicológica sôbre o povo em geral e os agen tes do poder público encarregados do seu cumprimento. Segundo O livecron a, “a ‘fôrça obrigatória’ da lei é na realidade apenas uma idéia da mente humana. Não há nada no mundo exterior que corresponda a tal idéia”. 98 O que dá à lei a fôrça que ela tem é “o fato de ser provável o acontecimento de conseqüências desagra dáveis em caso de procedimento ilegal”. 94 É evidente que, dêsse ponto de vista, será impossível estabelecer uma clara distinção entre uma ordem jurídica e uma ordem baseada na violência — eis a con clusão a que candidamente chegou Ross. 95 Foi Ross quem deu maior atenção ao problema da validade do direito. 96 Tomando para ponto de partida a presunção de que o direito fornece normas, não para o comportamento dos indivíduos em particular, mas sim para a atuação dos tribunais,97 Ross chega à conclusão de que a norma contida na lei é “válida” quando se pode predizer que, num caso futuro, o julgador a aplicará. 98 Ao fazer essa previsão, declara Ross, devemos considerar não apenas o comportamento passado do juiz, como também o conjunto de 91 A l f R oss, Ort Law and Justice, Berkeley, 1959, pág. 58. Ross decla ra que "o direito consiste em regras relativas ao exercício da fôrça”. V. tam bém id., pág. 34. . V., e. g„ O livecrona,, ob. cit, pág. 125: “Existe ã mão uma fôrça organizada, de esmagador poder comparada com a de qualquer possível opo sitor... Donde se concluir que a resistência é inútil”. V. ainda id., págs. 141, 156. 83 Id., pág. 17. »4 Id., pág. 12. V. L un d stedt , págs. 322, 333. 95 Ross, pág. 56: “É... impossível estabelecer uma diferença entre uma “ordem jurídica” e um “regime de violência” porque a qualidade de legitimidade que deveria distinguir o direito não é uma qualidade objetiva da ordem jurí dica em si mesma, e sim apenas' uma expressão do modo como a suporta o indivíduo”. V. também id., pág. 31. »8 V. id., págs. 11-18, 29-74. Id., pág. 35. 98 Id., págs. 49-50. — E. B . — 10 146 CIÊNCIA DO DIREITO idéias normativas pelas quais êle é governado, e que lhe'motivam os atos.99 H àgerstrõm foi quem iniciou o ataque aos conceitos tradi cionais da jurisprudência analítica, particularmente aos conceitos de direito e dever. Argumentava êle que não se pode dizer que os direitos representem uma proteção conferida pelo estado aos nossos bens e às nossas pretensões pessoais, porque o estado só age de pois que o nosso patrimônio foi lesado ou as nossas pretensões foram contrariadas. Depois, a menos que consigamos aduzir provas em favor das nossas pretensões, os nossos direitos se tornam ainda mais sem sentido, É, portanto, inútil, ao que pensava H âgerstrõm, falar em direitos, dissociando-os das medidas e dos remédios uti lizados para fazê-los valerem. Nesse mesmo diapasão, tachava de metafísico o conceito de dever, não vendo nêle a menor parcela de realidade.100 A luta contra os conceitos jurídicos tradicionais foi aprofun dada por Lundstedt e estendida a outras noções jurídicas funda mentais, como as de dolo, culpa, responsabilidade, e quejandas. Tais conceitos, sustentou L undstedt, só produzem efeito na “consciên cia subjetiva”, e não podem ter qualquer significação objetiva. Di zer por exemplo que o réu agiu culposamente é apenas empregar um circunloquio semântico para que êle possa ser condenado a in denizar danos.101 Alegar que o réu violou um dever traduz um juízo de valor, sendo, portanto, apenas a manifestação de um senti mento. 102 O único sentido objetivo que se poderia emprestar a tais expressões estaria em relação com o mecanismo legal coerci tivo do estado pôsto em movimento para obrigar ao cumprimento de um contrato ou punir um causador de danos.103 Idênticos sen timentos ecoaram nas teorias de Ross. A palavra “direito”, declarou êle, não tem, absolutamente, “qualquer referência semântica”. 104 É mero instrumento na técnica da apresentação e não algo que possa ser "hipostatizado” numa substância.108 99 Id., págs. 18, 73-74. 100 Inquiries, págs. 3-9, 316-324. 101 L undstedt, págs. 34-35, 38. 102 Id., pág. 48. "O dever é apenas o sentimento, ou,modo de sentir, dc uma pessoa, de que deve conduzir-se de uma certa maneira, o que vale dizer que é algo inteiramente subjetivo. Êsse elemento subjetivo do direito os ju ristas têm sido obrigados a transformar exatamente no seu contrário, no que é uma contradição monstruosa:um dever objetivo!" Id., pág. 62. 103 Id., págs. 118, 120. V. também O livecrona , Law as Fact, págs. 75-76. 104 Ross, pág. 172. Id., págs. 178-179. Conta Ross a seguinte experiência -que fêz com seus filhos, ao que tudo indica com o fito de obter a tal hipóstase: “Até os meus filhos atingirem a idade de dez anos eu podia, para nosso mútuo con- SOCIOLOGIA E REALISMO JURÍDICO 147 O esforço para eliminar completamente os julgamentos de va lor do campo da ciência do direito levou os realistas escandinavos a moverem guerra sem quartel ao que êles chamavam “o método da justiça”. Os juízos de valor, ensinava H âgerstrõm, são julga mentos apenas pela sua forma verbal.106 É impossível conceber-se uma ciência do “dever”, declarou êle. Ilusórias, por conseguinte, são tôdas as indagações sôbre os verdadeiros princípios de justi ça. 107 Segundo os realistas escandinavos, o direito não se baseia na justiça, sendo antes o resultado da pressão exercida por grupos sociais ou de necessidades sociais irrecusáveis.108 A justiça é ape nas o sentimento daqueles aos quais se dirige a lei, sentimento engendrado pelo hábito e pela ideologia dominante, de que a ordem jurídica é satisfatória.109 Se o conceito tem algum significado, há de ser talvez para o juiz, no sentido restrito de que êle deve apli car corretamente o direito positivo, sem discriminação arbitrária.110 Ao método da justiça, descrito por Lundstedt como “com pletamente inútil”, opôs êsse mesmo jurista o “método do bem- estar social”. 111 Insistia êle em que o seu método era isento de qualquer avaliação ética e em que a noção do bem-estar social se refere apenas a convenções consideradas úteis pelos homens numa certa sociedade, em dado momento. “Socialmente útil é aquilo que é realmente considerado de interesse social”. 112 O ceticismo dos valores é levado ao extremo por A lf R o ss . Para êle os postulados fundamentais concernentes à natureza e à existência do homem, que informam a filosofia do direito natural, são inteiramente arbitrários, o mesmo se podendo dizer das con cepções morais e jurídicas desenvolvidas sôbre essa base.113 A filosofia dos valores não passa para êle de uma idéologia excogi tada para justificar certos interêsses políticos ou de classe.114 Ne- H âgerstrõm , pág. X I . 107 Note-se a afinidade ‘desta concepção com as lições dos positivistas lógicos no n’ 24, supra. 108 O livecrona , ob. cit., pág. 152: "Quase nem é preciso refutar espe cificamente a tese de que o direito se baseia na justiça em abstrato. Esta é uma concepção evidentissimamente supersticiosa”. .100 L undstedt , págs. 169-170. V. ainda id., pág. 203: “Os sentimentos de justiça não orientam o direito. Ao contrário, são por êle orientados”. 110 Ross, págs. 274, 280. m L undstedt, págs. 6, 291. n a ld.x pág. 137. 118 Ross, pág. 258. li* Id., pág. 259. tentamento, chegar a um acôrdo com êles, no sentido de que êles deveriam "ter" certas flôres no jardim, reservando ao mesmo tempo para mim o abso luto controle sôbre o que deveria ser feito com elas”. Id., pág. 179. 148 CIÊNCIA DO DIREITO nhtim argumento racional será capaz de demonstrar-nos se devemos ser como irmãos ou se o forte oprimirá o fraco.115 Todos os jul gamentos de bem e mal se fundam em sentimentos emotivos e irra cionais, e a justiça pode ser invocada em qualquer causa.118 “In vocar a justiça é o mesmo que dar murros na mesa: é uma expres são emocional, que transforma uma pretensão num postulado abso luto”. 117 As doutrinas da escola de Upsala não ficaram sem opositores na própria Escandinávia. O filósofo dinamarquês F . V inding Kruse combateu vigorosamente o niilismo de valores implícito numa for ma de realismo radicalmente naturalista, e exigiu a elaboração de uma ciência do direito normativa e ética, assentada em métodos experimentais.118 Adotou êle a posição de que é possível desen volver axiomas fundamentais de moralidade e justiça em bases científicas. Na Noruega, F rede C astberg insistiu também em que a ciência do direito não pode jamais renunciar à busca de uma resposta às indagações do bem e do mal, pois “a exigência de justiça na comunidade se enraíza em nossa natureza espiritual tão fortemente quanto a necessidade de conexão lógica em nosso pen samento”. 119 115 Ibid. 116 Id., pág. 269. V. Também id., pág. 280: “Declarar uma lei injusta não contém qualquer característica de realidade, qualquer referência a qual quer critério, não envolve qualquer argumentação". 117 Id., pág. 274. Para uma critica do ceticismo dos valores, v. 6 n? 38, adiante. 11® V. notadamente os seus trabalhos The Foundation of Human Thoughf, Londres, 1949: The Community of the Future, Nova Iorque, 1952; “Zur Ueber- ■windung des Wertnihilismus in Rechtsphilosophie und Ethik”, Archiv für jRechts- und Sozial-philosophie, n' 41, pág. 145, 1954. li® Problems of Legal Phitosophy, Oslo, 1957, págs. 3, 111. V. também id., pág. 110 : “O pensamento filosófico não deve afastar-se dos problemas criados pela procura do direito objetivamente certo”.
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