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ANALISANDO O DISCURSO: ANÁLISE TEXTUAL PARA PESQUISA SOCIAL NORMAN FAIRCLOUGH (2003) TRADUÇÃO: JOSÉ RAYMUNDO FIGUEIREDO LINS JÚNIOR FORTALEZA/CEARÁ 2010 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 3 2 TEXTOS, EVENTOS SOCIAIS E PRÁTICAS SOCIAIS 13 3 INTERTEXTUALIDADE E SUPOSIÇÃO 29 4 GÊNEROS E ESTRUTURAS GENÉRICAS 50 5 RELAÇÕES DE SIGNIFICADO ENTRE FRASES E ORAÇÕES 71 6 SENTENÇAS SIMPLES 85 7 DISCURSOS 98 8 AS REPRESENTAÇÕES DOS EVENTOS SOCIAIS 108 9 ESTILOS 126 10 MODALIDADE E AVALIAÇÃO 130 CONCLUSÃO 152 GLOSSÁRIOS 171 2 1 INTRODUÇÃO Este livro foi escrito com dois tipos de leitores em mente. O primeiro, dos estudantes e pesquisadores de ciências sociais e humanas, que têm pouco conhecimento em estudos da linguagem (como a sociologia, a ciência política, a educação, a geografia, a história, a administração social, os estudos da mídia, os estudos culturais e os estudos de gênero).O segundo, dos estudantes e pesquisadores que estejam se especializando em língua/linguagem. As pessoas que trabalham em diversas áreas das ciências sociais são, com freqüência, confrontadas com questões sobre língua, e, freqüentemente, trabalham com materiais de linguagem, como textos escritos, conversas, entrevistas e pesquisas. No entanto, conforme indica minha experiência em ensino de análise do discurso (como a que tive com o programa de pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Lancaster), há uma grande incerteza sobre como analisar material de linguagem. Eu acredito que, com freqüência, os estudantes que fazem pesquisa na área de ciências sociais sentem a necessidade de obter informações mais detalhadas sobre o instrumental de análise de linguagem. Geralmente, para esses estudantes, a leitura de livros de lingüística é algo desencorajador, o que se deve ao fato de que a maior parte da lingüística contemporânea é bastante imprópria para os propósitos desses estudantes (especialmente a ‘lingüística formal’, que aborda aspectos abstratos de linguagem humana e tem pouco a oferecer em análises sobre o que uma pessoa diz ou escreve). Este livro propõe fornecer um instrumental de análise da linguagem falada ou escrita. Pretende-se que este livro seja útil às pessoas envolvidas com as ciências sociais e humanas, com pouca ou nenhuma formação em estudo de língua, de modo a apresentar um caminho com sugestões sobre como desenvolver análises de língua, e, possivelmente, buscar melhorar as pesquisas que tenham alguma relação com as ciências sociais. Este livro também pode ser visto como uma introdução às análises sociais de fala e escrita para pessoas que já possuem alguma formação em análises de linguagem. Importantes movimentos em direção à análise social da linguagem têm surgido nas diversas disciplinas da Lingüística contemporânea - a sociolingüística e a análise de discurso são áreas que têm sido transformadoras e reveladoras nesse campo. No entanto, há ainda duas limitações que, neste livro, eu desejo começar a corrigir. A primeira se refere aos temas e tópicos que interessam a pesquisadores sociais têm sido tomados superficialmente. A segunda consiste em que a exploração desses temas pela literatura existente na área de análise lingüística vem apresentando um alcance limitado. Meu objetivo, neste livro, é mostrar de que forma um conjunto de análises lingüísticas pode ser usado para investigar diversos temas de interesse dos estudos sociais. Eu imagino que este livro pode ser usado de vários modos. É satisfatório o grau de utilidade deste como um material para estudantes universitários e estudantes de pós- graduação em departamentos de ciências sociais. Outra utilização para esta obra é como um instrumento que possa ser usado por profissionais fora do contexto acadêmico, ou por 3 estudantes de pesquisa e acadêmicos em ciências sociais e ciências humanas que estão procurando uma introdução socialmente-orientada à análise da fala e escrita de uma língua. Visto que é provável que os leitores variem consideravelmente quanto ao grau de familiaridade dos conceitos e categorias que eu apresento como pesquisa social e discurso e análise de texto, eu incluí glossários de termos-chave e pessoas-chave (pag xxx), além de referências às fontes às quais eu me referi no texto principal do livro. Os termos que estão inclusos nos glossários aparecem em negrito, quando da primeira vez que aparecem no texto. Análise Social, Análise de Discurso, Análise de Texto Eu considero este livro uma extensão de um trabalho de análise de discurso que eu publiquei previamente e que apontava uma análise lingüística mais detalhada de textos (Chouliaraki e Fairclough 1999, Fairclough 2001b, 1992, 1995a, 2000a). Minha abordagem sobre a análise de discurso (uma versão da ‘análise de discurso crítica') é baseada na suposição de que a língua é uma parte irredutível da vida social dialeticamente conectada a outros elementos de vida social, de forma que não se pode considerar a língua sem levar em consideração a vida social. Portanto, a análise e a pesquisa sociais sempre devem levar em conta a língua. (Relações dialéticas serão explicadas no capítulo 2.) Isso significa que um modo produtivo de fazer pesquisa social é feito por meio da linguagem, usando alguma forma de análise de discurso. Com essa afirmação, não pretendo reduzir a vida social à língua, tampouco afirmar que tudo é discurso. No entanto, baseio-me na idéia de que o estudo de discurso é uma estratégia analítica entre muitas e, no fato de que, freqüentemente, faz sentido usar análise de discurso junto com outras formas de análise, como por exemplo, a etnografia ou as formas de análise institucional. Há muitas versões de análise de discurso (o Van Dijk, 1997). Uma divisão principal é feita entre as abordagens que incluem análise detalhada de texto (veja abaixo o sentido no qual eu estou usando este termo), e as que não o fazem. Eu usei o termo “análise do discurso orientada textualmente” para distinguir a divisão anterior da posterior (Fairclough, 1992). A análise de discurso em ciências sociais tem sido, em geral, fortemente influenciada pelo trabalho de Foucault (Foucault 1972, Fairclough 1992). Cientistas sociais que trabalham nessa tradição geralmente dão pouca atenção às características lingüísticas de textos. Minha própria abordagem da análise do discurso se baseia emtentar transcender a divisão entre os trabalhos inspirados por teorias sociais que não cuidam de análise de textos e os trabalhos que buscam focar os textos e que não tendem a ficar presos em assuntos teóricos sociais. Essa divisão não é, ou não deveria ser, um sim ou um não. Por um lado, qualquer análise de textos se mostra relevante em situações nas quais as ciências sociais têm de se conectar com perguntas teóricas sobre discurso (por exemplo, os efeitos de discurso socialmente ”construtivos”). Por outro lado, nenhum real entendimento dos efeitos sociais de discurso é possível, se não olharmos de perto como são esses efeitos quando as pessoas falam ou escrevem. 4 Assim, análise de texto é uma parte essencial de análise de discurso, mas a análise de discurso não é só a análise lingüística de textos. Eu vejo a análise de discurso como algo ”que oscila” entre um foco em textos específicos e um foco naquilo que eu chamo de “ordem de discurso”, que é a estruturação social de uma língua/linguagem e sua parceria com determinadas práticas sociais. A análise de discurso crítica está relacionada à continuidade e à transformação em um aspecto mais abstrato, em um nível mais estrutural, como acontece em textos em particular. A ligação entre essas duas preocupações está no modo em que textos são analisados em um discurso crítico. A Análise de texto não é vista como análise lingüística, pois inclui o que eu chamei de “análise interdiscursiva”, quer dizer, ver os textos como discursos, gêneros e estilos que se articulam. Eu explicarei isso mais completamente no capítulo 2 (veja Fairclough 2000a). Meu foco neste livro está na análise lingüística de textos. No entanto, eu gostaria de deixar claro que este não é apenas mais um livro sobre análise lingüística de textos, mas parte de um projeto mais amplo que propõe desenvolver a análise de discurso crítica como um recurso para análise social e para pesquisa. O livro pode ser usado sem referência àquele projeto mais largo, mas eu gostaria que, pelo menos, os leitores estivessem atentos a isso, mesmo se não quiserem contribuir com isso. Eu incluo um manifesto breve para o projeto mais amplo no término da Conclusão. Alguns leitores podem desejar ler esse manifesto, que apresenta uma abordagem mais ampla do tema tratado neste livro, a partir deste ponto (pág xxx). Terminologia: Texto, Discurso, Língua Eu usarei o termo “texto” em um sentido bastante amplo. Textos impressos e escritos, como listas de compras e artigos de jornal, são “textos”, mas cópias de conversas e entrevistas (faladas) também o são, assim como programas de televisão e páginas na Internet. Nós poderíamos dizer que qualquer exemplo de linguagem em uso é um “texto”. Entretanto, até mesmo essa definição é muito limitada, visto que textos como programas de televisão não envolvem apenas a língua, mas também imagens visuais e efeitos de som. O termo “língua” será usado em seu senso mais habitual, isto é, para significar linguagem verbal - palavras, orações, etc. Nós podemos falar de “língua” de um modo geral ou de idiomas e línguas particulares, como inglês ou swahili. O termo discurso (ao qual a análise de discurso se refere amplamente) sinaliza a visão particular de idioma em uso ao qual eu me referi acima, isto é: como um elemento da vida social que é fortemente conectada a outros elementos. Mas, novamente, o termo pode ser usado em um sentido particular, como pode ter um sentido geral, abstrato. Assim, eu irei me referir a um “discurso particular”, como o discurso político de “Terceira Via” chamado de “New Labour” (talvez neste ponto precisemos de uma nota do tradutor explicando que New labour é o partido político de Tony Blair e que foi chamado de New labour depois de uma reforma do partido, antes chamado labour. Agora, depois da cisão, herbenia Realce 5 os radicais são chamados de old labour e os de Blair de new labour. Além disso é preciso dizer que ‘labour’ é o partido dos trabalhadores inglês) (Fairclough, 200b). A Linguagem no Novo Capitalismo Os exemplos que eu uso ao longo do livro estão particularmente focados na mudança social contemporânea e, especialmente, nas mudanças no capitalismo contemporâneo e o seu impacto em muitas áreas da vida social. O conjunto de mudanças ao qual eu estou me referindo é, variavelmente, identificado como “globalização”, ”pós-modernidade”, “modernidade tardia” “sociedade de informação”, “economia de conhecimento”, “novo capitalismo”, “cultura de consumo”, e assim por diante (Segurou et al, 1999). Eu usarei o termo novo capitalismo para me referir à mais recente de uma série histórica de re- estruturações radicais pelas quais o capitalismo manteve sua continuidade fundamental (Jessop, 2000). O motivo por que decidi focalizar esse tópico se baseia no fato de que muitas pesquisas sociais contemporâneas estão relacionadas à natureza e às conseqüências dessas mudanças. E, muito simplesmente, porque nenhuma pesquisa social contemporânea pode ignorar estas mudanças, elas têm tido um efeito penetrante em nossas vidas. Um motivo mais específico para focalizar o novo capitalismo é o fato de que esse tema vem se tornando uma área de pesquisa importante para a análise de discurso crítica. Há um website dedicado ao assunto (http://www.cddc.vt.edu/host/lnc) e, recentemente, o periódico Discurso e Sociedade dedicou uma edição especial sobre o tema (13 (2), 2002). Eu deveria acrescentar, no entanto, que o termo ”novo capitalismo” não insinua um foco exclusivo em assuntos econômicos. As transformações do capitalismo têm ramificações ao longo de toda a vida social, e, como tema de pesquisa, o “capitalismo novo” deveria ser interpretado, em sentido amplo, como o que concerne ao modo como essas transformações repercutem na política, na educação, na produção artística e em muitas outras áreas da vida social. O capitalismo tem a capacidade de superar crises por meio de autotransformações periódicas radicais, de forma que a expansão econômica possa continuar. Uma transformação desse tipo está ocorrendo agora. O novo capitalismo vem se instaurando, em resposta a uma crise no modelo pós-segunda guerra mundial, também chamado de “Fordismo”. Essa transformação envolve tanto a reestruturação de relações entre o domínio econômico, o político e o social (um exemplo é a mercantilização de campos como a educação, que ficou sujeita à lógica econômica de mercado), quanto a reescala de relações entre os diferentes níveis de vida social: o global, o regional (por exemplo, a União Européia), o nacional e o local. Os governos, em diferentes escalas, sociais democráticos e conservadores, agora aceitam essas mudanças como um mero fato da vida (apesar de ter sido um “fato” produzido, em parte, por acordos governamentais) e que tudo tem de se curvar à lógica emergente de uma economia globalizadora dirigida pelo conhecimento. Esses governos abraçaram ou, pelo menos, ajustaram-se ao “neoliberalismo”. Neoliberalismo é um projeto político elaborado para facilitar a reestruturação e a reescala das relações sociais conforme as demandas de um 6 capitalismo global desenfreado (Bourdieu 1998). Esse projeto político tem sido imposto às economias pós-socialistas, como (alegadamente) o melhor meio de transformação do sistema, renovação econômica e reintegração à economia global. Isso levou a ataques radicais à previdência social universal e à redução das proteções contra os efeitos de mercados com os quais os estados de bem-estar proviam as pessoas. Também conduziu a uma divisão crescente entre ricos e pobres, aumentando a insegurança econômica e a tensão, até mesmo para a “nova classe média”, bem comoa uma intensificação da exploração do trabalho. A ênfase desenfreada em crescimento também apresenta grandes ameaças ao ambiente. Essa nova ordem também produziu um imperialismo novo, no qual agências financeiras internacionais, sob a tutela dos EUA e seus aliados ricos, impõem, indiscriminadamente, a reestruturação dos sistemas nacionais a países menos afortunados, o que, às vezes, tem conseqüências desastrosas (como o que ocorreu com a Rússia). O problema não é a intenção de aumentar a integração econômica mundial, mas a forma particular com que isso tem sido imposto e as conseqüências particulares (por exemplo, a má distribuição de renda) que inevitavelmente a acompanham. Tudo isso resultou na desorientação e no desarmamento de forças econômicas, políticas e sociais comprometidas com alternativas radicais e contribuiu para um fechamento do debate público e um enfraquecimento da democracia (Boyer e Hollingsworth, 1997, Brenner, 1998, Down e Streek 1997, Jessop 2000). Os leitores acharão no Apêndice um conjunto de textos que eu usei para fins ilustrativos ao longo do livro. Em geral, eu selecionei esses textos com base na relevância dos mesmos em várias questões de pesquisa que vêm sendo levantadas em uma gama de disciplinas desde o início da transformação do novo capitalismo. Em alguns casos, eu tomei exemplos de pesquisas anteriores para tentar mostrar como a abordagem adotada neste livro poderia aprimorar os métodos atuais de análise. A Abordagem em Análise de Texto Meu ponto de referência principal dentro da atual literatura sobre análise de texto é a Lingüística Funcional Sistêmica (SFL), uma teoria lingüística e um conjunto de métodos analíticos particularmente associados a Michael Halliday (Halliday, 1978, 1994). Em contraste com a tradição de Chomsky, mais influente dentro da Lingüística, a SFL está profundamente preocupada com a relação entre a língua e outros elementos e aspectos de vida social, e seu ponto de vista a respeito da análise lingüística de textos sempre é orientada ao caráter social dos textos (fontes particularmente valiosas incluem: Halliday 1994, Halliday e Hasan, 1976, 1989, Hasan 1996, Martin 1992, o Van Leeuwen 1993, 1995, 1996). Essa postura faz da SFL um valioso recurso para análise de discurso crítica, e, de fato, grandes contribuições para análise de discurso crítica se desenvolveram a partir da SFL (Fowler et al. 1979; Hodge e Kress, 1988, 1993; Kress, 1985; Kress e van Leeuwen, 2001; Lemke, 1995; Thimbaut, 1991). No entanto, as perspectivas de análise de discurso crítica e SFL não coincidem integralmente, devido à diferença entre as perspectivas dessas escolas (para um diálogo crítico 7 entre os dois, veja Chouliaraki e Fairclough 1999). Há a necessidade de desenvolver abordagens de análise de texto por meio de um diálogo transdisciplinar com perspectivas sobre linguagem e discurso imersos na teoria e pesquisa social para desenvolvermos nossa capacidade de analisar textos como elementos do processo social. Uma abordagem transdisciplinar à teoria ou ao método analítico é uma questão de trabalhar com categorias e lógica ou, por exemplo, com teorias sociológicas para desenvolver uma teoria do discurso e métodos para analisar textos. Inevitavelmente, esse é um projeto de longo prazo, iniciado de um modo modesto nas discussões deste livro, como na que trata de “cadeias de gênero” (capítulo 2), ”dialogicidade” (capítulo 3), “equivalência e diferença” (capítulo 5), e a representação de tempo e espaço (capítulo 8). O trabalho de Van Leeuwen sobre representação (ao qual me referi acima) também pode ser visto como uma análise de texto que desenvolve esse modo de transdisciplinaridade. Outra preocupação que eu tive é tentar fazer as categorias analíticas tão transparentes quanto possíveis para análise social de discurso, afastando-me da terminologia técnica de lingüística, que freqüentemente é proibitiva. Eu também deveria mencionar brevemente a análise do corpus, mas eu não lidarei com isso neste livro (De Beaugrande, 1997; McEnery e Wilson, 2001; Stubbs, 1996). O tipo de análise de texto detalhada que eu introduzo é uma forma de análise social “qualitativa”. Esse é um ‘trabalho intensivo’ e pode ser produtivamente aplicado a amostras de material de pesquisa em lugar de grandes corpos de texto, embora a quantidade de material que pode ser analisada dependa do nível de detalhe: análise textual pode focalizar apenas alguns elementos dos textos ou muitas características simultaneamente. No entanto, como argumentam De Beaugrande (1997) e Stubbs (1996), essa forma de analise qualitativa pode ser suplementada por “análises quantitativas” oferecidas pelo corpus lingüístico. Os materiais disponíveis (como Wordsmith, do qual eu faço algum uso em Fairclough, 2000b) permitem, por exemplo, identificar as ‘palavras-chave’ de em um corpo de textos e investigar padrões distintos de co- ocorrência ou colocação entre palavras-chave e outras palavras. Esse método tem algum valor, embora limitado, motivo por que é necessário complementá-lo com uma análise textual qualitativa mais intensiva e detalhada. De fato, a análise de discurso crítica pode lançar mão de uma vasta gama de abordagens de análise de texto. Eu decidi dar ênfase, neste livro, à análise gramatical e semântica porque acredito que esta é uma forma muito produtiva de análise de textos e porque é difícil que os pesquisadores que não têm um arcabouço em lingüística tenham acesso a esse conhecimento. Há outras abordagens mais familiares e mais acessíveis à análise de texto (análise de conversação é um exemplo bom) a respeito das quais eu não tratei neste livro (para uma avaliação, veja Titscher et al. 2000). Isso não significa que essas abordagens não podem ser citadas em análise de discurso crítica. Pelo contrário, eu fiz algum uso delas em publicações anteriores (Fairclough 1992, por exemplo). 8 Temas de Pesquisas Sociais Cada capítulo do livro tratará de um ou mais temas de pesquisa social, conforme eu mostrarei no início de cada um deles. O propósito será mostrar quais aspectos específicos da análise de textos podem ser usados para pesquisar o tema ao qual o capítulo se refere Os temas incluem: o governo, ou a governança, de sociedades do novo capitalismo, o hibridismo ou o obscurecimento de limites sociais como uma característica daquilo que alguns teóricos sociais chamam de “pós-modernidade”, mudanças no “espaço-tempo” associadas à “globalização”, conflitos pela hegemonia de determinados discursos, aos quais se pretende conferir o status de universal, apesar do fato de os mesmos serem discursos e representações específicas, ideologias, cidadania e espaço público, mudança social e mudança em tecnologias de comunicação, a legitimação de ações e ordens sociais, os tipos de papéis (a palavra em inglês aparece como character. È preciso ver como foi traduzido no apêndice para que fique coerente.) dominantes na sociedade contemporânea (inclusive o gerente e o terapeuta), ‘informalização’ social e a abolição de hierarquias públicas (Todos os termos em negrito aparecem no glossário). Da perspectiva de um cientista social, o conjunto de temas abordados e os teóricos e pesquisadores aos quais eu recorri parecerão discrepantes. Embora eu tenha selecionado temas e fontes que, na minha opinião, seriam úteis para tratar o tema da linguagem no novo capitalismo esses elementos deveriam ser vistos mais como ilustrativos do meu objetivo geral: refletir sobre como a teoria social pode informar a análise de texto e como a análise de texto poderia aprimorar a pesquisa social. De certo modo, a diversidade de fontes e temas é vantajosa, poispode ajudar a demonstrar que a relação entre análise de texto e pesquisa social, que tenho defendido, não é limitada a teorias particulares, disciplinas ou tradições de pesquisa em ciências sociais. Apesar de eu haver escolhido focalizar o tema de pesquisa da linguagem no capitalismo novo, minha escolha não deveria levar a insinuar que análise textual só é pertinente à pesquisa social orientada a esse tema. E claro que um único livro não pode mostrar todas as áreas de pesquisa social que poderiam ser aprimoradas por análise de texto. Eu utilizei o trabalho de vários teóricos sociais. Novamente, devo alertar que essa seleção de fontes não deveria, de forma alguma, ser considerada exaustiva ou exclusiva. Os teóricos que escolhi são aqueles com os quais achei que seria frutífero conduzir um diálogo ao trabalhar com a análise crítica de discurso. De uma forma ou de outra, todos esses teóricos levantam questões sobre linguagem e discurso, apesar de nenhum deles utilizar os recursos para uma análise detalhada que, como eu sugiro, podem enriquecer esses projetos teóricos e pesquisas associadas. Veja o glossário dos principais teóricos sociais aos quais eu me refiro. Uma discussão sistemática da relação entre análise de discurso crítica e teoria social que pode ser vista como um complemento a este livro se encontra em Chouliaraki e Fairclough (1999). Esse trabalho inclui uma grande discussão a respeito da relação entre a análise de discurso crítica e as principais teorias sociais às quais eu recorro aqui, bem como um relato detalhado da análise de discurso crítica. Em Fairclough (2000b), os leitores encontrarão uma 9 grande aplicação da análise de discurso crítica em um caso particular: a linguagem do governo do “trabalho novo” (uma melhor tradução seria ‘o novo partido dos trabalhadores inglês’), no Reino Unido. Efeitos Sociais dos Textos Textos como elementos de eventos sociais (ver capítulo 2) têm efeitos causais, isto é, produzem mudanças. Em um primeiro contato, os textos podem provocar mudanças em nosso conhecimento (nós podemos aprender coisas novas a partir deles), nossas crenças, nossas atitudes, valores e etc. Os textos também têm efeitos em longo prazo. Pode-se dizer, por exemplo, que a experiência prolongada com propagandas contribui para moldar as identidades das pessoas como “consumidoras”. Os textos também podem iniciar guerras, contribuir com mudanças na educação, mudar relações industriais e muito mais. Seus efeitos podem incluir mudanças no mundo material, como mudanças em modelos urbanos, ou arquitetura e design de tipos específicos de prédios. Em síntese, textos podem ter efeitos causais e mudar as pessoas (crenças, atitudes e etc), ações, relações sociais e o mundo material. Faz pouco sentido estudar a linguagem no novo capitalismo se nós não pensássemos que os textos têm efeitos desse tipo, e efeitos em mudanças sociais. No entanto, conforme argumentarei adiante, posso dizer que esses efeitos são mediados por produção de sentido. Nós precisamos, contudo, esclarecer de que tipo de causalidade estamos falando. Não é uma simples causalidade mecânica. Nós não podemos, por exemplo, afirmar que características específicas dos textos provocam, de modo automático, mudanças no conhecimento ou no comportamento das pessoas, ou ainda efeitos na área política e social. Tampouco é a causalidade o mesmo que regularidade: pode não haver um padrão regular de causa e efeito, mas isso não significa que não haja efeitos causais. Textos podem ter efeitos causais sem serem necessariamente regulares, pois muitos outros fatores no contexto determinam quais textos particulares têm tais efeitos e que variedade de efeitos o texto pode ter - por exemplo, o ponto de vista de diferentes intérpretes. (Fairclough et al. 2002) As ciências sociais contemporâneas têm sido fortemente influenciadas pelo ‘sócio- construtivismo’, que define o mundo como socialmente construído. Muitas teorias sobre o construtivismo social enfatizam o papel dos textos (língua e discurso) na construção do mundo social. Essas teorias tendem a ser mais idealistas do que realistas. Um realista diria que, embora aspectos do mundo social sejam, definitivamente, socialmente construídos, depois de construídos, esses aspectos se tornam realidade que afetam e limitam a construção textual (ou discursiva) do social. Nós precisamos distinguir construção de “construal” (essa palavra aparece assim, eu não tenho idéia de como pode ser traduzida), o que os construtivistas sociais não fazem: nós podemos construir textualmente (representar, imaginar e etc) o mundo social, porém, os efeitos de nossas representações, ou ”construals”, depende de vários fatores contextuais, incluindo a realidade social já existente, quem a está construindo, etc. Assim, nós 10 podemos aceitar uma versão moderada que afirma que o mundo social é textualmente construído, mas não uma versão extremista (Sayer 2000). Ideologias Um dos efeitos causais dos textos, que tem se constituído em preocupação central para a Análise Crítica de Discurso, são os efeitos ideológicos –os efeitos dos textos em inculcar e sustentar ou mesmo mudar ideologias (Eagleton, 1991; Larrain, 1979; Thompson, 1984; van Dijk, 1998). Ideologias são representações de aspectos do mundo que podem ser mostradas para contribuir para o estabelecimento, manutenção e mudança das relações sociais de poder, dominação e exploração. Essa visão ‘crítica’ de ideologia, vendo-a como uma modalidade de poder, contrasta com várias visões ‘descritivas’ de ideologia como posições, atitudes, crenças, perspectivas, entre outros, de grupos sociais sem referência a relações de poder e dominação entre tais grupos. Representações ideológicas podem ser identificadas em textos (Thompson 1984 glosa ideologia como ‘significações ao serviço do poder’), mas ao dizer que as ideologias são representações que podem ser mostradas para contribuir para as relações sociais de poder e dominação, eu estou sugerindo que a análise textual precisa ser tratada, nesse respeito, em análise social que considera os corpos dos textos nos termos de seus efeitos nas relações de poder. E mais, se as ideologias são representações, em princípio, elas também podem ser ‘postas em ação’ nas encenações sociais, e ‘inculcadas’ nas identidades dos agentes sociais. As ideologias também podem ter uma durabilidade e estabilidade que transcenda textos individuais ou corpos de textos –em termos das distinções que eu explicarei no capítulo 2, elas podem ser associadas com discursos (como representações), com gêneros (como encenações) e com estilos (como inculcações). Tomemos um exemplo: a forte alegação de que na nova economia ‘global’, os países precisam ser altamente competitivos para sobreviver. Essa idéia pode ser encontrada, explicitada ou subentendida em vários textos contemporâneos. Ela também pode ser vista (e percebida sua associação com o discurso neo-liberal) em uma encenação. Por exemplo, ‘novo’, mais ‘business like’ (tenho dificuldade de traduzir essa expressão, ela diz respeito ao modo como os discursos fazem analogia com o empreendedorismos das negociações mercadológicas. Parece que mesmo em português a expressão inglesa já está consagrada.) são formas de administrar organizações como universidades e inculcar os estilos de gerenciamento, evidentes em vários textos. Nós somente podemos chegar a um julgamento sobre o propósito ideológico de tal alegação, olhando para os efeitos causais em que ela se manifesta, em particular nas áreas de vida social (exemplo, se as pessoas acreditam que os países precisam ser altamente competitivos para sobreviver), e perguntar se eles esuas encenações e inculcações contribuem para a manutenção ou mudança das relações de poder (por exemplo, tornando os empregados mais dóceis às demandas dos gerentes). Perceba que mesmo se nós chegássemos à conclusão de que tal alegação é ideológica, isto não a tornaria, necessariamente ou simplesmente, uma inverdade: nós podemos, por exemplo, argumentar 11 que as relações econômicas contemporâneas realmente impõem grande competição, embora se deva ressaltar que isto não é a inevitável ‘lei da natureza’. Embora isso seja geralmente representado como sendo, ele é, na verdade, o produto de uma ordem econômica particular que poderia ser mudada. Eu retornarei à discussão das ideologias no capítulo 3, com respeito às suposições ideológicas, em particular, e no capítulo 4, com respeito à argumentação. Texto, Significado e Interpretação Uma parte daquilo que se convenciona na abordagem dos textos como elementos de eventos sociais é o fato de que nós não estamos apenas interessados nos textos, mas também em um processo interativo de produção de significado. No caso conversação face a face, o texto é uma transcrição do que se diz, e alguém pode perceber, com certo grau de variação, a produção de significado ao observar como os participantes respondem um ao outro em cada turno da conversação. Vejamos um exemplo (Cameron 2001): 1. Cliente: Uma dose de Guiness (cerveja preta), por favor. 2. Garçom: Quantos anos você tem? 3. Cliente: vinte e dois 4. Garçom: Certo, já estou indo buscar. Nos turnos 2 e 3, o atendente do bar e o cliente estão, de modo interativo, demonstrando que há critérios subentendidos, quando se faz uma ordem de bebida alcoólica em um bar, isto é, que o cliente é (nesse caso na Grã Bretanha) uma pessoa com mais de 18 anos. O cliente na fala 3 mostra sua intenção em estabelecer essa idéia com o seu texto e o atendente tem como proposta resolver e esclarecer uma certa dúvida. O cliente é capaz de compreender a intenção do balconista com a pergunta, que se mostra relevante para aspectos que se referem a direitos legais, mas também a uma relação entre a pergunta e reposta. Esse exemplo sugere que há três elementos analiticamente distinguíveis: a produção do texto, o texto propriamente dito e a recepção do texto. A produção do texto coloca em foco os produtores, autores, falantes e escritores. A recepção do texto coloca em foco a interpretação, os intérpretes, os leitores e os ouvintes. Na história recente das teorias do significado, foi dada a primazia a diferentes pontos de cada um desses três elementos: primeiro, a intenção, a identidade etc do autor, em seguida, o texto em si e, por último, o aspecto interpretativo do leitor e do ouvinte. No entanto, parece claro que os sentidos são produzidos ao longo da interação: devemos levar em conta a posição institucional, interesses, valores, intenções, desejos, etc. dos produtores, a relação entre os elementos em diferentes níveis de texto, a posição institucional, conhecimento, propostas e valores, etc. dos receptores. É muito difícil ser preciso quanto aos processos envolvidos na produção de sentido pelo motivo óbvio de que essa produção ocorre nas mentes das pessoas, e não há caminho direto para acessá-la. Quando passamos do diálogo falado para, por exemplo, os textos publicados, os problemas se tornam compostos porque nós perdemos o momento da negociação do sentido no diálogo, o qual, pelo menos, nos forneceria alguma evidência de como as coisas são intencionadas e 12 interpretadas. Além do mais, o texto publicado pode ser recontextualizado em vários processos diferentes de produção de significado e, também, contribui para a distorção do significado, porque está aberto à interpretações diversas. Está claro no exemplo que a produção de significado depende de não só o que é explícito em um texto, mas também o que está implícito –aquilo que é suposto. Assim, nós poderíamos dizer que a pergunta do Garçom de bar no turno 2 supõe que só podem ser servidas bebidas alcoólicas se os clientes forem maior de idade. O que é ‘dito’ sempre em um texto ‘supõe’ algo que não está dito claramente, mas há uma inferência, assim parte da análise de textos tenta expor uma idéia implícita. (veja capítulo 3). Interpretação pode ser vista como um processo complexo com vários aspectos diferentes. Em parte, a interpretação é uma questão de entendimento -entendimento do que expressam as palavras, orações ou extensões mais longas de texto, do que os falantes ou escritores querem dizer (o que envolve atribuições problemáticas de intenções). Porém, em parte, a interpretação também é uma questão de julgamento e avaliação, por exemplo: julgar se o que alguém diz é sincero ou não, sério ou não, julgar se as alegações das pessoas, quanto ao que está implícito ou explícito, são verdades; julgar se o que as pessoas dizem ou escrevem estão de acordo com os dados sociais, institucionais etc, relacionando com o contexto onde a fala ocorre ou como essas relações se mistificam. Além disso, há um elemento explicativo para a interpretação –geralmente, nós tentamos entender por que as pessoas falam ou escrevem de determinada maneira, ou mesmo, tentamos identificar causas menos imediatas. Tendo dito isso, é claro que alguns textos passam por uma gama muito maior de trabalho interpretativo do que outros: alguns textos são muito transparentes, outros mais ou menos opacos para os mesmos intérpretes; interpretação é, às vezes, fácil e efetivamente automática, enquanto outras vezes é altamente reflexiva, envolvendo muita trabalho de pensamento elaborado sobre o seu significado. O foco deste livro é bastante específico: analisar textos com uma visão de seus efeitos sociais (discutidos abaixo). Os efeitos sociais dos textos dependem da produção de sentido. Poderíamos dizer que os efeitos sociais de textos são gerados pela produção de sentido, ou melhor, que os sentidos têm mais efeito do que os textos em si. Porém, um recurso necessário para qualquer conhecimento de produção de sentido é a capacidade de analisar textos de modo a jogar luz sobre o processo de produção de sentido, e a minha prioridade neste livro é fornecer tal recurso. Assim, eu não desenvolverei aqui um curso completo sobre o processo de produção de sentido, embora minha abordagem pressuponha uma necessidade de tal conhecimento. Entretanto, os textos são analisados dinamicamente, ou seja, procuraremos analisar como agentes fazem ou ‘texturizam’ textos, estabelecendo relações entre seus elementos. Isso significa que minha abordagem nesta obra, de análise textual, moverá em direção à produção de textos, mais que em direção à recepção e interpretação de textos. Espero, entretanto, que o que foi dito anteriormente tenha deixado claro que eu não subentendo nenhum tipo de reducionismo de recepção ou interpretação. 13 2 TEXTOS, EVENTOS SOCIAIS E PRÁTICAS SOCIAIS Temas de análise de texto Principais tipos de significado: ação, representação, identificação Gêneros, discursos e estilos Cadeia de gêneros e cadeia de textos Mistura de gêneros Análise interdiscursiva Temas de pesquisa social Estrutura e agência Estrutura social, prática social, evento social Dialética do discurso Globalização e novo capitalismo Mediação Recontextualização Governância Hibridismo e ‘pós-modernismo’ Textos são vistos neste livro como partes de eventos sociais. Uma das maneiras pelas quais as pessoas podem agir e interagir no curso de eventos sociais é pela fala ou pela escrita. Não são os únicos meios. Alguns eventos sociais têm caráter altamente textual, outros não. Por exemplo, embora a fala certamentefaça parte de uma partida de futebol (ex: um jogador pedindo a bola), é um elemento menos importante, a ação preponderante é não-lingüística. De modo oposto, a maior parte da ação em uma palestra é lingüística - o que o palestrante diz, o que está escrito em resumos e folhetos, as anotações feitas pelos ouvintes. Mas, nem mesmo uma palestra é totalmente lingüística – nela está incluída também performance corporal assim como lingüística, e pode envolver ação física como a utilização de projetores etc. No capítulo 1, discuti os efeitos causais dos elementos textuais e dos eventos na vida social. Mas eventos e textos também têm causas – fatores que causam com que um texto em particular ou um tipo de texto tenha suas características intrínsecas. Podemos, grosso modo, distinguir dois ‘poderes’ causais que moldam textos: de um lado, a estrutura e a prática social; de outro, agentes sociais, ou seja, as pessoas envolvidas nos eventos sociais (Archer 1995, Sayer 2000). A observação para que tenhamos cautela acerca da causalidade se aplica também aqui: não estamos falando de simples causalidade mecânica ou presumindo regularidades previsíveis. Neste capítulo, focalizarei a relação entre textos, eventos, práticas e estruturas sociais, depois de alguns comentários preliminares sobre agência de participantes em eventos, um tema ao qual retornaremos, especialmente no capítulo final. Grande número de temas de pesquisa social é relevante neste contexto, e me referirei particularmente a: economia política do novo capitalismo (Jessop 2000), teorização do discurso dentro de uma filosofia de ciência ‘realista crítica’ (Fairclough, Jessop and Sayer 2002), teorias de globalização (Giddens 1991, Harvey 1990) e mídia/midiatização (Silverstone 1999); pesquisas na mudança entre governo e ‘governança’ no novo capitalismo (Bjerke 2000, Jessop 1998, forthcoming a); o conceito de ‘recontextualização’ desenvolvido por Bernstein na sua sociologia educacional (Bernstein 1990), e o trabalho sobre o ‘hibridismo’ ou obscurecimento de fronteiras que alguns teóricos 14 sociais associam com ‘pós-modernidade’ (Harvey 1990, Jameson 1991). Também discutirei os conceitos de ‘gênero’ e ‘discurso’, os quais têm recebido grande atenção na pesquisa e na teoria social (‘gênero’, nos estudos sobre mídia, ‘discurso’ especialmente nos trabalhos de Foucault). Textos e agentes sociais Agentes sociais não são ‘livres’, são socialmente restritos, mas suas ações não são na totalidade socialmente determinadas. Os agentes têm seus próprios ‘poderes causais’ que não são reduzíveis aos poderes causais das estruturas e práticas sociais (para uma visão do relacionamento entre estrutura e agência, veja Archer 1995, 2000). Agentes sociais tecem textos, configuram relações entre elementos de textos. Há limitações estruturais nesse processo – por exemplo, a gramática (natural) de uma língua permite certas combinações e ordenamentos de formas gramaticais e não outras (ex.: ‘but book the’ não é uma sentença do inglês - ‘o mas livro’ não é uma sentença do português); e se o evento social é uma entrevista, há convenções de gênero que a organizam. Mesmo assim, os agentes sociais têm grande amplitude de liberdade na composição (texture: tecitura) dos textos. Tomemos o seguinte extrato do Exemplo 1 (veja Apêndice, pág. XXX) como paradigma. O gerente está falando acerca de ‘cultura’ de pessoas na sua cidade natal de Liverpool: “Eles são totalmente desconfiados de qualquer mudança. Totalmente desconfiados de qualquer pessoa que queira ajudá-los. Imediatamente pensam na exploração. Também foram educados para acreditar que é inteligente “levar vantagem sobre os outros”. Então todos fazem isso. E as linhas de demarcação que os sindicatos têm permitido impor nessas áreas, por causa disso, as tornam totalmente inflexíveis ao ponto de serem destrutivas. Sei disso. Posso ver”. “E como isso se relaciona ao que está acontecendo aqui?” “Bem, eu ia dizer, como se muda esse tipo de cultura negativa?” Note, em particular, a relação semântica estabelecida entre ‘cultura negativa’ e ser ‘totalmente desconfiados’ de mudança, ‘pensam na exploração’, tentando ‘levar vantagem sobre os outros’, ‘linhas de demarcação’, ‘inflexíveis’ e ‘destrutivas’. Podemos ver isso como a tessitura de uma relação semântica de ‘metonímia’, i.e. a relação entre o todo (‘cultura negativa’) e suas partes. Nenhum dicionário identificaria tal relação semântica entre essas expressões – a relação é construída (tecida) pelo gerente. Podemos atribuir essa construção de significado ao gerente como agente social. E note o que a tessitura de significado envolve aqui: colocação de expressões existentes em uma nova relação de equivalência como co- instâncias de ‘cultura negativa’. O significado não tem uma presença preexistente nessas palavras e expressões, é um efeito das relações que são organizadas entre elas (Merleau- Ponty, 1964). Eventos sociais, práticas sociais, estruturas sociais Voltaremos à agência mais tarde, mas quero focalizar, no momento, a relação entre eventos sociais, práticas sociais e estruturas sociais. A abordagem reflete o trabalho recente 15 feito em colaboração com teóricos sociais do discurso numa filosofia de ciência ‘realista crítica’ (Fairclough, Jessop e Sayer, 2002). Estruturas sociais são entidades muito abstratas. Pode-se pensar em estrutura social (tal como uma estrutura econômica, uma classe social, uma sistema de castas, ou uma língua) como algo potencial, como um grupo de possibilidades. No entanto, a relação entre o que é estruturalmente possível e o que realmente acontece, entre estruturas e eventos, é bastante complexa. Essa relação é mediada – há entidades organizacionais intermediárias entre estruturas e eventos. Vamos chamá-las de ‘práticas sociais’. Exemplos disso seriam práticas de ensino e práticas de administração escolar. Práticas sociais podem ser tidas como meios de controlar a seleção de certas possibilidades estruturais e a exclusão de outras, e a retenção dessas seleções no decurso do tempo, em áreas particulares da vida social. Práticas sociais são estabelecidas em rede de maneira particular e cambiante – por exemplo, recentemente houve mudança na maneira como práticas de ensino e pesquisa são conectadas em rede com práticas de administração em instituições de educação superior, uma ‘administralização’ (ou mais genericamente ‘marquetização’, Fairclough, 1993) da Educação Superior. A linguagem (e mais amplamente ‘semiosis’ - ‘semiótica’, incluindo, por exemplo, significação e comunicação por meio de imagens visuais) é um elemento do social em todos os níveis. Esquematicamente: Estrutura social: línguas Práticas sociais: ordens de discurso Eventos sociais: textos As línguas podem ser consideradas dentro da estrutura social abstrata a que estava me referindo. Uma língua define um certo potencial, certas possibilidades e exclui outras – algumas maneiras de combinar elementos lingüísticos são possíveis, outras não (ex.: ‘the book’ é possível em inglês, ‘book the’ não é). Mas textos como elementos de eventos sociais não são simplesmente os efeitos dos potenciais definidos pelas línguas. Precisamos reconhecer entidades organizacionais intermediárias de um tipo lingüístico específico, os elementos lingüísticos de redes de práticas sociais. Vou chamá-los de ordens de discurso (veja Chouliaraki e Fairclough, 1999; Fairclough, 1992). Uma ordem de discurso é uma rede de práticas sociais no aspecto lingüístico (da língua). Os elementos de ordens de discurso não são coisas como nomes e sentenças (elementos de estruturas lingüísticas), mas discursos, gêneros e estilos (vou diferenciá-losem breve). Esses elementos selecionam certas possibilidades definidas pelas línguas e excluem outros – eles controlam a variabilidade lingüística para certas áreas da vida social. Então ordens de discurso podem ser vistas como organização e controle social da variação lingüística. Há mais um ponto: conforme nos movemos de estruturas abstratas para eventos concretos, torna-se cada vez mais difícil separar linguagem de outros elementos sociais. Na terminologia de Althusser, linguagem se torna cada vez mais ‘superdeterminada’ (‘overdetermined’) por outros elementos sociais (Althusser e Balibar, 1970). Então no nível de estruturas abstratas, podemos falar mais ou menos exclusivamente acerca de linguagem – 16 mais ou menos, porque teorias ‘funcionais’ da linguagem vêem até mesmo gramáticas de línguas como socialmente moldadas (Halliday, 1978). O jeito que defini ordens de discurso torna claro que, nesse nível intermediário, estamos tratando com uma ‘superdeterminação’ muito maior da linguagem por outros elementos sociais – ordens de discurso são a organização e o controle social da variação lingüística, e os seus elementos (discursos, gêneros, estilos) são, correspondentemente, categorias não puramente lingüísticas, mas que fazem o corte através da divisão entre linguagem e ‘não-linguagem’, entre o discursivo e o não-discursivo. Quando chegamos aos textos como elementos de eventos sociais, a ‘superdeterminação’ da linguagem por outros elementos sociais torna-se massiva: textos não são apenas efeitos de estruturas lingüísticas e de ordens de discurso, são também efeitos de outras estruturas sociais, e de práticas sociais em todos os seus aspectos, de maneira que se torna difícil separar os fatores que modelam textos. Práticas sociais Práticas podem ser vistas como articulações de diferentes tipos de elementos sociais associados com áreas particulares da vida social – a prática social de ensino em sala de aula na educação britânica contemporânea, por exemplo. O ponto importante acerca das práticas sociais da perspectiva deste livro é que elas articulam o discurso (enquanto linguagem) juntamente com outros elementos sociais não-discursivos. Podemos ver qualquer prática social como uma articulação destes elementos: Ação e interação Relações sociais Pessoas (com crenças, atitudes, histórias etc.) O mundo material Discurso Então, por exemplo, ensino de sala de aula articula conjuntamente meios particulares de uso da linguagem (tanto por parte dos professores como dos alunos) com as relações sociais de sala de aula, a estrutura e o uso da sala de aula como espaço físico e assim por diante. As relações entre esses diferentes elementos da prática social são dialéticas, conforme argumenta Harvey (Fairclough, 2000a; Harvey, 1996a): Essa é uma maneira de apresentar o fato aparentemente paradoxal de que, embora o elemento discursivo de uma prática social não seja o mesmo que a sua relação social, por exemplo; cada um, em um sentido, contém ou internaliza o outro – a relação social é em parte de natureza discursiva, o discurso é em parte relação social. Eventos sociais são causativamente moldados por redes de práticas sociais – práticas sociais definem maneiras particulares de ação, e embora os eventos reais possam, mais ou menos, diferir dessas definições e expectativas (porque eles perpassam diferentes práticas sociais e também por causa dos poderes causativos dos agentes sociais), eles ainda são, em parte, moldados por práticas sociais. Discurso como elemento de práticas sociais: gêneros, discursos e estilos Podemos dizer que discurso figura de três principais maneiras na prática social. Figura como: 17 Gênero (modos de agir) Discursos (modos de representar) Estilos (modos de ser) Uma das maneiras de agir e interagir é por meio da fala ou da escrita, assim discurso figura primeiramente 'como parte da ação'. Podemos distinguir diferentes gêneros como diferentes maneiras de (inter) agir discursivamente – entrevista é um gênero, por exemplo. Em segundo lugar, o discurso figura nas representações que sempre são partes de práticas sociais – representações do mundo material, de outras práticas sociais, representações próprias reflexivas da prática em questão. A representação é claramente substância discursiva e, podemos distinguir diferentes discursos, que podem representar a mesma área do mundo de diferentes perspectivas ou posições. Note que 'discurso' está sendo usado aqui em dois sentidos: abstratamente, como um substantivo abstrato, com o significado de linguagem ou outros tipos de semiose como elemento da vida social; mais concretamente, como substantivo contável, com o significado de maneiras particulares de representar parte do mundo. Um exemplo de discurso no último sentido seria o discurso político do 'Novo Trabalhismo1', como oposto ao discurso político do “velho” 'Trabalhismo', ou o discurso político do 'Thatcherismo' (Fairclough, 2000b). Em terceiro lugar e finalmente, discurso figura conjuntamente com expressões corporais ao constituir modos particulares de ser, identidades sociais ou pessoais particulares. Chamarei o aspecto discursivo desse item estilo. Um exemplo seria o estilo de um tipo específico de gerente – seu modo de utilização da linguagem como recurso para identificação pessoal. Os conceitos de 'discurso' e 'gênero' em particular são usados em uma variedade de disciplinas e teorias. A popularidade do 'discurso' na pesquisa social é devida em grande parte a Foucault (1972). 'Gênero' é utilizado em estudos culturais, estudos da mídia, filmografia, entre outros (veja Fiske 1987, Silverstone 1999). Esses conceitos estão presentes em várias disciplinas e teorias, e podem operar como 'pontes' de uma para as outras – como foco para um diálogo entre elas, mediante o qual perpectivas de uma podem abrir o desenvolvimento de outras. Textos como ação, representação, identificação As abordagens 'funcionais' da linguagem enfatizam a 'multifuncionalidade' dos textos. A Lingüística Sistêmico-Funcional, por exemplo, afirma que os textos têm simultaneamente as funções 'ideacional', 'interpessoal' e 'textual'. Isto é, os textos simultaneamente representam aspectos do mundo (o mundo físico, o social e o mental); interpretam as relações sociais entre participantes de eventos sociais e as atitudes, desejos e valores dos participantes; de modo coerente e coesivo conectam partes de textos, e conectam textos com seus contextos situacionais (Halliday, 1978, 1994). Ou melhor, as pessoas fazem tudo isso no processo de construção de significados nos eventos sociais, que inclui produção (tessitura) de textos. 1 Há necessidade de criar uma nota do tradutor par explicar o conceito. 18 Também verei os textos como 'multifuncionais' nesse sentido, embora de maneira bastante diferente, de acordo com a distinção entre gêneros, discursos e estilos como as três principais maneiras em que o discurso figura como parte da prática social – modos de agir, modos de representar, modos de ser. Ou, usando outras palavras: a relação do texto com o evento; com o que há de mais amplo no mundo físico e social, e com as pessoas envolvidas no evento. No entanto, prefiro falar sobre três principais tipos de significações e não de funções: Principais tipos de significação textual Ação Representação Identificação A representação corresponde à função 'ideacional' de Halliday; Ação se aproxima de sua função 'interpessoal', embora a ênfase maior seja no texto como modo de (inter)agir em eventos sociais, e possa ser visto como que incorporando Relação(representando relações sociais); Halliday não diferencia uma função separada para identificação – a maior parte do que eu incluo como Identificação está na função 'interpessoal' de Halliday. Não faço distinção de uma função 'textual' separadamente, antes a incorporo com a Ação. Podemos ver Ação, Representação e Identificação simultaneamente em textos inteiros e em pequenas partes de textos. Tome como parâmetro a primeira sentença do Exemplo 1: 'A cultura em negócios de sucesso é diferente daquela existente em negócios malsucedidos'. Aqui temos a representação do relacionamento entre duas entidades – 'x é diferente de y'. A sentença também é (Ação) uma ação, que implica uma relação social: o gerente está dando ao entrevistador informação, dizendo algo a ele, e isso implica, de maneira ampla, uma relação social entre alguém que sabe e alguém que não sabe – as relações sociais desse tipo de entrevista são uma variante específica disto, relações de alguém que detém conhecimento e opiniões e alguém que as está inquirindo. Informar, avisar, prometer, advertir, entre outros, são modos de agir. A sentença também é (Identificação) uma promessa, um comprometimento, um julgamento: ao dizer 'é diferente' em vez de 'talvez é diferente' ou 'pode ser diferente', o gerente está se comprometendo intensamente. Focalizar a análise de textos na interação de Ação, Representação e Identificação traz uma perspectiva social para o âmago do texto, para o seu mais afinado detalhe. Há, como tenho indicado, uma correspondência entre Ação e gêneros, Representação e discursos, Identificação e estilos. Gêneros, discursos e estilos são, na ordem, meios relativamente estáveis e duráveis de agir, representar e identificar. São tidos como elementos de ordens de discurso no nível da prática social. Quando analisamos textos específicos como parte de eventos específicos, estamos realizando duas tarefas interconexas: (a) olhando-as em termos dos três aspectos do significado: Ação, Representação e Identificação e como são realizados nos diferentes traços de textos (vocabulário, gramática, etc); (b) estabelecendo a ligação entre o evento social concreto e a prática social mais abstrata ao perguntar que gêneros, discursos e estilos estão ali delineados, e como os diferentes gêneros, discursos e estilos se articulam no texto? 19 Relações dialéticas Até o momento tenho escrito como se os três aspectos do significado ( gêneros, discursos e estilos) fossem bastante separados, mas a relação entre eles é mais sutil e complexa – é uma relação dialética. Foucault (1994: 318) faz distinções muito semelhantes aos três aspectos do significado, e ele também sugere o caráter dialético da relação entre eles (embora não use a categoria de dialética): “Esses sistemas, na prática, originam-se de três grandes áreas: relações de controle sobre as coisas, relações de ação sobre outros, relações consigo mesmo. Isso não significa que cada uma dessas três áreas é completamente estranha às outras. É sabido que controle sobre as coisas é mediado por relações com outros; e relações com outros, por sua vez, requerem relação da pessoa com a própria pessoa, e vice-versa. Mas temos três eixos cuja especificidade e cujas interconexões precisam ser analisadas: o eixo do conhecimento, o eixo do poder, o eixo da ética... Como somos constituídos como sujeitos do nosso próprio conhecimento? Como somos constituídos como sujeitos que exercem ou se submetem a relações de poder? Como somos constituídos como sujeitos morais de nossas próprias ações?” Há muitos pontos aqui. Primeiro, as várias formulações de Foucault apontam para a complexidade dentro dos três aspectos de significado (que correspondem aos três 'eixos' de Foucault): A Representação tem a ver com conhecimento e por meio dele 'controle sobre coisas'; a Ação está relacionada, de modo genérico, com a relação com os outros, mas também' com a ação sobre os outros' e com o poder. Identificação se liga com as relações com a própria pessoa, ética e 'assuntos morais'. Essas várias formulações apontam para a possibilidade de enriquecer o nosso entendimento de textos mediante a conexão dos três aspectos do significado com uma variedade de categorias nas teorias sociais. Outro exemplo pode ser contemplar Identificação como algo que traz o que Bourdieu (Bourdieu and Wacquant 1992) chamou de 'habitus' das pessoas envolvidas no evento para consideração na análise de texto, ou seja, suas disposições personificadas de ver e agir de certos modos baseados na socialização e experiência, que é, em parte, disposição de falar e de escrever de certo modo. Em segundo lugar, embora os três aspectos do significado precisem ser distinguidos para propósito analítico e, nesse sentido, são diferentes uns dos outros, não são distintos, não são totalmente separados. Devo dizer, de maneira diferente da de Foucault, que eles são dialeticamente relacionados, i. e. há um sentido em que cada um 'internaliza' os outros (Harvey, 1996a). Isso é sugerido nas três questões no final da citação: todos os três podem ser vistos em termos de relação envolvendo as pessoas no evento ('sujeitos') – suas relações com o conhecimento, com os outros (relações de poder), e consigo mesmo (como 'sujeitos morais'). Ou podemos dizer, por exemplo, que Representações particulares (discursos) podem desempenhar de modo particular Ações e Relações (gêneros), e apontar modos de Identificação (estilos). Fica assim esquematicamente: Dialética do discurso Discursos (significado representacional) interpretados em gêneros (significados acionais) Discursos (significado representacional) apontados em estilos (significados identificacionais) Ações e identidades (incluindo gêneros e estilos) representados em discursos (significado representacional) 20 Ilustrativamente (Exemplo 14) uma sessão de 'avaliação de treinamento', pode ser vista como incluindo um discurso de avaliação (ex: um modo particular de representação de um aspecto das atividades do corpo docente universitário), mas também especifica como o discurso deve ser interpretado em um procedimento de avaliação que é formado por gêneros como a entrevista de avaliação, e sugere modos associados de pessoas se identificarem dentro de estilos ligados à avaliação. Então podemos dizer que discursos de avaliação podem ser dialeticamente 'internalizados' em gêneros e estilos (Fairclough, 2001a). Ou, de outra maneira, podemos dizer que tais gêneros e estilos pressupõem representações particulares, extraídas de discursos específicos. Essas discussões são complexas, mas o ponto principal é que a distinção entre os três aspectos do significado e entre gêneros, discursos e estilos é uma distinção analítica necessária que não as impede de 'fluirem' umas nas outras de várias maneiras. Mediação A relação entre textos e eventos sociais é freqüentemente mais complexa do que eu indiquei até agora. Muitos textos são 'mediados' pela 'comunicação de massa', ou seja, instituições que 'fazem uso da tecnologia de produção de cópias para disseminar a comunicação' (Luhmann, 2000). Elas envolvem mídias como impressoras, telefone, rádio, televisão, Internet. Em alguns casos – mais obviamente o telefone – as pessoas são co- presentes no tempo mas distantes no espaço, e a interação é de um a um. É o mais próximo da conversação normal. Outros são bem diferentes da conversação normal – um livro impresso é escrito por uma pessoa ou por um pequeno número de autores, mas lido por um número indefinido de pessoas dispersas no tempo e no espaço. Nesse caso, o texto conecta eventos sociais diferentes – o ato de escrever o livro por um lado, e os muitos e vários eventos sociaisque incluem ler (olhar, contemplar, referir a etc.) o livro – uma viagem de metrô, uma aula na escola, uma visita a uma livraria, e assim por diante. Mediação, de acordo com Silverstone (1999), envolve o 'movimento do significado' – de uma prática social a outra, de um evento a outro, de um texto a outro. Conforme está implícito, mediação não envolve apenas um texto individual ou tipos de texto, é em muitos casos um processo complexo que abarca o que chamarei de 'cadeia' ou 'redes' de textos. Pense, por exemplo, em uma história no jornal. Os jornalistas escrevem os artigos dos periódicos com base em uma grande variedade de fontes – documentos escritos, falas, entrevistas, etc –, os artigos são lidos por aqueles que compram o jornal e podem evocar uma variedade de outros textos – conversações sobre as notícias, se a história for importante pode ser que apareça em outros noticiários e até mesmo na televisão, e assim por diante. A 'cadeia' ou 'rede' de textos nesse caso, então, inclui variado número de diferentes tipos de texto. Há uma relação bastante regular e sistemática entre alguns deles – por exemplo, jornalistas produzem artigos com base em fontes de maneira um tanto regular e previsível, transformando os materiais da fonte de acordo com convenções bem estabelecidas (como no caso de transformar uma entrevista em uma reportagem). 21 As sociedades modernas complexas envolvem a formação em rede de diferentes práticas sociais através de diferentes domínios ou campos da vida social (ex: a economia, educação, vida familiar) e perpassam diferentes escalas da vida social (global, regional, nacional e local). Os textos são uma parte crucial dessas relações em rede – as ordens do discurso associadas com redes de práticas sociais especificam relações particulares em cadeias e tessituras entre tipos de textos. As transformações do novo capitalismo podem ser vistas como transformações no encadeamento de práticas sociais, que incluem transformações em ordens de discurso, e transformações em cadeias e tessituras de textos, e em 'cadeias de gêneros' (veja abaixo). Por exemplo, o processo de 'globalização' inclui a capacidade reforçada para que certas pessoas possam agir e moldar as ações de outros em distâncias espaço- temporais consideráveis (Giddens, 1991; Harvey, 1990). Isso depende parcialmente de processos mais complexos de mediação textual de eventos sociais, e relações mais complexas de encadeamento e tessitura entre diferentes tipos de texto (facilitados por novas tecnologias de comunicação, principalmente a Internet). E a capacidade de influenciar ou controlar processos de mediação é um importante aspecto do poder nas sociedades contemporâneas. 'Cadeias de gêneros' têm significação específica: são diferentes gêneros que se ligam com regularidade, envolvendo transformações sistemáticas de gênero em gênero. Cadeias de gêneros contribuem para a possibilidade de ações que transcendem diferenças no espaço e no tempo, unindo eventos sociais a práticas sociais diferentes, países diferentes, tempos diferentes, facilitando a capacidade reforçada para 'ação à distância' que tem sido considerada um traço definidor da 'globalização' contemporânea, e, dessa maneira, tem facilitado o exercício do poder. Cadeias de gêneros Os extratos do exemplo 3 (tirados de Iedema, 1999) dão uma noção de uma cadeia de gêneros. O exemplo se relaciona a um projeto planejando a renovação de um hospício. Os extratos são de uma entrevista com o 'arquiteto planejador' responsável por fazer um relatório escrito com base em consultas entre 'acionistas' do projeto, a partir de uma reunião com os 'acionistas' e de um relatório. O que acontece é que os acionistas estão escolhendo entre as possíveis maneiras de tocar o projeto, e procurando argumentos fortalecedores de sua escolha para colocar no relatório. A reunião de acionistas e o relatório escrito são elementos da cadeia de gêneros nesse caso. A análise de Iedema mostra duas coisas: em primeiro lugar, que a linguagem da reunião de acionistas é 'traduzida' para a linguagem do relatório de modo bastante sistemático – uma tradução que reflete a diferença de gênero. Em segundo lugar, que, no entanto, essa tradução é - antecipada na própria reunião – diferentes contribuições em diferentes estágios (representadas nos extratos) começam o processo de tradução, levando-nos à linguagem do relatório. Participantes da reunião ajudam na construção de uma lógica bem argumentada e formal do relatório – uma característica do gênero relatório oficial. 22 No extrato 1 da reunião, vemos a característica de informalidade de tomada de decisão de tais encontros conforme o gerente de projeto enumera argumentos em favor da opção preferida. No extrato 2, o 'arquiteto planejador' começa a construir a lógica do relatório, embora ainda de maneira conversacional e pessoal que interpreta as razões dos acionistas para dar suporte a opção preferida (ex.: 'Acho que estávamos felizes, essa é a razão porque a solução encontrada foi surpreendente'). O extrato 3 dá um importante impulso rumo ao relatório ao transformar os argumentos para a opção em discurso indireto (ex.: 'o que você está dizendo é que a opção D é preferida porque é a mais compacta...') Veja o capítulo 3 acerca do discurso indireto. Finalmente, o extrato do próprio relatório mostra uma lógica impessoal na qual os conectores lógicos (ex.: 'This means' (isto significa), 'a solução', 'desta maneira') estão prioritariamente localizados no início das sentenças e cláusulas ('tematizados' em uma terminologia que introduzirei mais tarde). Esses comentários na lógica do argumento ilustram como ao se movimentar ao longo de uma cadeia de gêneros, uma transformação específica na linguagem se impõe. Podemos também ver o Exemplo 1 como parte de uma cadeia de gêneros. É um extrato de uma entrevista etnográfica entre um pesquisador acadêmico e um gerente de negócios. O exemplo é tirado de um livro cujo gênero principal é análise acadêmica. Além do mais, há um apêndice ao livro contendo 'Um Esquema de Competências de Gerenciamento' produzido, para a companhia pelo autor, com base em sua pesquisa, um gênero de educação gerencial. Podemos assim ver a entrevista etnográfica como parte de uma cadeia de gêneros. Mais especificamente, pode ser vista como um artifício de gênero para ter acesso à linguagem de gerenciamento prático, parte de uma cadeia de gêneros que a transforma na linguagem da análise acadêmica, e, por sua vez, transforma-a na linguagem do gerencialmente educacional – uma linguagem que entra para a governânça de organizações empresariais. Essa maneira de descrever salienta a significação das cadeias de gêneros na rede de práticas sociais (nesse caso, pesquisa acadêmica e empresarial) e em ação através de diferentes redes de práticas sociais. Gêneros e governância2 Gêneros são importantes para a sustentação da estrutura institucional da sociedade contemporânea – relações estruturais entre governo (local), comércio, universidades, mídia etc. Podemos pensar em tais instituições como elementos da engrenagem da sociedade de governância (Bjerke, 2000), e em tais gêneros como gêneros de governância. Estou utilizando o termo 'governância' aqui em um sentido bastante amplo para qualquer atividade dentro de uma instituição ou organização direcionada para regular ou gerenciar alguma outra (rede de) prática(s) social(ais). A crescente popularidade do termo 'governância' está associada com uma busca por maneiras de gerenciar a vida social (freqüentemente chamada de 'rede', 'sociedade' etc.) que evitam tanto os efeitos caóticos do mercado como da hierarquia dos2 Ver se este é o termo mais adequado, por se tratar de um neologismo. 23 estados. Embora, como Jessop aponta, governância contemporânea pode ser vista como uma combinação de todas essas formas – mercados, hierarquias, redes (Jessop 1998). Podemos contrastar gêneros de governância com 'gêneros aplicados (experienciais) (practical genres) – grosseiramente, gêneros que se apresentam fazendo mais do que gerenciando o jeito que as coisas são feitas. Pode parecer a primeira vista surpreendente ver a entrevista etnográfica do exemplo 1 como gênero de governância, mas o fato de classificá-la assim torna-se mais claro quando colocamos a entrevista etnográfica, como a do exemplo, em uma cadeia de gêneros. Isso mostra de maneira relativamente concreta o que é discutido mais abstratamente – a extensiva incorporação da pesquisa acadêmica em redes e processos de governância. Os gêneros de governância são caracterizados por propriedades específicas de recontextualização – a apropriação de elementos de uma prática social dentro de outra, colocando a primeira no contexto da última, e transformando-a de maneira específica no processo (Bernstein, 1990; Chouliaraki e Fairclough, 1999). A 'Recontextualização' é um conceito desenvolvido na sociologia da educação (Bernstein, 1990) que pode ser frutiferamente operacionalizado, trabalhado, dentro de discurso e análise textual. No caso do Exemplo 1, as práticas (e linguagem) de gerenciamento são recontextualizadas (e assim transformadas) dentro de práticas acadêmicas (e de linguagem), que, por sua vez, são recontextualizadas dentro de empresas na forma de educação gerencial. Por exemplo, a conclusão para o argumento do gerente na entrevista ('qualquer negócio tem de manter confiança em todos aqueles com que se relaciona se pretende sobreviver') é recontextualizado na análise acadêmica como evidência de que gerentes apreciam a necessidade de 'confiança e reciprocidade', que conforme sugerido pode ser interpretado como 'uma forma de prática na qual há reconhecimento de ambos os lados como sujeitos interdependentes'. Uma diretriz no “Esquema de Gerenciamento de Competências” formula tal interpretação como: 'Bons gerentes são sensíveis às atitudes e sentimentos de todos aqueles com quem trabalham; tratam os outros e suas idéias com respeito; ouvem cuidadosamente as idéias e pontos de vista dos outros, trabalhando ativamente para extrair contribuições positivas de todos.' É claro que a diretriz está presumivelmente baseada no que muitos gerentes disseram, e não apenas na assertiva desse trecho. Mas podemos representar esse fato como um movimento de apropriação, transformação e colonização – uma terminologia que focaliza as relações sociais de poder na governância das quais essas recontextualizações fazem parte. Os gêneros de governância incluem os gêneros promocionais, gêneros que têm o propósito de 'vender' produtos, marcas, organizações ou indivíduos. Um dos aspectos do novo capitalismo é a imensa proliferação de gêneros promocionais (veja Wernick, 1991) os quais constituem uma parte da colonização de novas áreas da vida social em mercados. O Exemplo 2 ilustra isso: dentro do novo capitalismo, cidades e estados precisam se promover para atrair investimentos (veja a seguir 'mistura de gêneros' para discussão deste exemplo). Outro ponto a ser notado em relação ao Exemplo 1 é que o movimento da fala gerencial na entrevista etnográfica para 'Um Esquema de Competências Gerenciais' é um deslocamento 24 do nível local para o global. Podemos ver a tão chamada 'globalização' na realidade como uma questão de mudança nas relações entre diferentes escalas da vida e da organização social (Jessop, 2000). Então esse é um movimento em 'escala', no sentido de que a pesquisa em uma organização de negócio específica leva a preceitos (ex: 'Bons gerentes procuram e criam oportunidades, iniciam ações e querem assumir “a primeira posição no jogo”) que podem ser aplicados a qualquer organização comercial em qualquer lugar do mundo. E, na verdade, os recursos para educação gerencial produzidos por acadêmicos entram no circuito internacional. Os gêneros de governância têm, mais amplamente, essa propriedade de ligar diferentes escalas – conectando o local e o particular ao nacional / regional / global e geral. Isso indica que gêneros são importantes para sustentar não apenas as relações estruturais entre, por exemplo, o mundo acadêmico e o mundo dos negócios, mas também escalonar relações entre o local, o nacional, o regional (ex.: União Européia) e o 'global'. Então mudanças de gênero são pertinentes para reestruturação e reescalonamento da vida social no novo capitalismo. O Exemplo 3 é ainda outra ilustração: a reunião de acionistas é um evento local, no entanto, um dos efeitos da sua recontextualização em um relatório é a mudança para uma escala global – tais relatórios filtram o que é específico de eventos e situações locais em um movimento para uma lógica impessoal que pode acomodar um sem fim de eventos e casos locais específicos. Os relatórios podem assim circular nacionalmente, regionalmente (ex: dentro da UE) e globalmente, e dessa maneira fazer a ligação entre o local e o global. Parte do efeito da 'filtragem' conforme nos movimentamos ao longo da cadeia de gêneros recai sobre o discurso: discursos que se concentram em um gênero (ex: reuniões) podem ser 'filtrados' no deslocamento para outro (ex: relatório), de maneira que a cadeia de gêneros opera como agente regulador para selecionar e privilegiar alguns discursos em detrimento de outros. Muitas ações e interações nas sociedades modernas são 'mediadas' dessa maneira. A (inter)ação mediada é a 'ação à distância', ação que envolve participantes que estão distantes um do outro no tempo e/ou no espaço, que dependem de alguma tecnologia de comunicação (impressora, televisão, Internet etc.). Os gêneros de governância são essencialmente gêneros mediados especializados em 'ação à distância' – os dois exemplos anteriores envolvem mediação por impressão, um livro acadêmico e um relatório escrito. Aquilo a que nos referimos usualmente como 'mass midia' é, pode-se arguir, uma parte do aparelho de governância – um gênero de mídia como noticiário de televisão recontextualiza e transforma outras práticas sociais, tal como política e governo, e, por sua vez, é recontextualizada em textos e interações de diferentes práticas, incluindo, crucialmente, a vida cotidiana, para a qual contribui moldando a maneira como vivemos, e os significado que damos às nossas vidas (Silverstone, 1999). Mistura de gêneros A relação entre textos e gêneros é potencialmente complexa: um texto pode não 'estar' em um único gênero, talvez seja uma 'mistura' de gêneros. O Exemplo 2, o caráter 25 promocional do Budapest Sun em língua inglesa para a cidade húngara de Békéscsaba, é um exemplo de mistura de gêneros (gênero híbrido). Como eu disse antes, um aspecto das transformações associadas com o novo capitalismo é que cidades e estados individuais (mais propriamente do que apenas governos nacionais) agora precisam ativamente se promover e 'vender' sua imagem, como neste caso. Essa mudança na relação entre cidades e corporações empresariais envolve uma cadeia de gêneros – uma cadeia que liga os gêneros do governo local com gêneros empresariais, nos quais textos como o do exemplo 2 são um elo mediador crucial. A mudança se manifesta parcialmente na emergência de um novo gênero dentro da cadeia de gêneros, através da mistura daqueles existentes. Podemos ver que o gênero nesse caso é uma mistura do traço do artigo jornalístico, propaganda corporativa (estendida para o governo local),
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