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Cidadania da mulher- uma questão de justiça

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Maria Avelina Imbíriba Hesketh
(Organizadora)
CIDADANIA DA MULHER, 
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
M aria Avelina Im biriba Hesketh
(Organizadora)
CIDADANIA DA MULHER, 
UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
8^ %
EDITORA
R ubens A pprobate M achado
Presidente da OAB e Presidente Honorário da OAB EDITORA
Jefferson Luis Kravchychyn
Presidente Executivo da OAB EDITORA
Projeto Gráfico 
F. J. Pereira
Capa e Diagramação 
Rodrigo Pereira
Revisão 
Dacio Luiz Osti
Conselho Editorial 
Jefferson Luis Kravchychyn (Presidente)
Cesar Luiz Pasold 
H erm ann A ss is Baeta 
Paulo B onavides 
Raim undo César Britto Aragão 
Sergio Ferraz
Ficha Catalográfíca 
Elaborada pela Bibliotecária Beatriz Costa Ribeiro - CRB-14/647
H584C Cidadania da mulher, uma questão de justiça / Maria 
Aveiina Imbiriba Hesketh (Org.). Brasília : OAB Editora, 
2003.
184p.
1. Direito, 2. Direito da mulher. I. Hesketh, Maria 
Aveiina Imbiriba.
CDD 340
ISBN - 85-87260-25-1
EDITORA
SAS Q uadra 05 Lote 01 Bloco M - Edifício OAB 
Brasília. DF - CEP 70070-050 
Tel. (61) 316-9600 
www.oab.org.br 
e-mail: gabpre®oab.org.br 
jcfTerson@kravchychyn.com.br
SUMÁRIO
A PR ESE N TA Ç Ã O ..........................................................................7
R ubens A pproba te Machado
IN T R O D U Ç Ã O .............................................................................11
M aria Avelina Im biriba H esketh
CID A D A N IA DA MULHER,
U M A QUESTÃO DE JU S T IÇ A ............................................... 17
M aria José de Figueiredo Cavalcanti
MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS 
SOCIAIS - O PAPEL DOS DIREITOS E OS
DIREITOS DE P A P E L .................................................................75
O dila de M élo M achado
MULHERES: UMA VIDA
DE LUTAS E C O N Q U IST A S................................................. 135
M ariana Oliveira Pinto
REGIME DE BENS N O CASAM ENTO
À LUZ DO N O V O CÓ DIGO C IV IL .................................... 163
M aria Bernadeth Gonçalves da Cunha
M ULHER DE H O J E .................................................................. 171
M aria Regina Purri Arraes
ÉTICA E PR O FISSÃ O ...............................................................177
Rosangela M aria Carvalho Viana 
K arinne M atos de Lima e Melo
7
APRESENTAÇÃO
Em m eados da década de 1990, q u a n d o P residen te d o Ins­
t itu to dos A dvogados de São Paulo, escrevi u m artigo sob o 
títu lo " A s m u lh e re s n o m u n d o d o D ire ito" , n o qual, a lém de 
considerações conceituais sobre a a tuação d as m u lh e res no 
cam po das a tiv idades jurídicas, m ostrei m inha firm e in d ig n a ­
ção d e que, a té aquele m om ento , n e n h u m a m u lh e r c o m p u ­
n h a os q u a d ro s d e ju lgadores do S uprem o T ribunal Federal e 
d o S uperio r T ribunal d e Justiça. Passados quase dez anos d a ­
quele trabalho, a lguns avanços se fizeram, no sen tido de ser 
reconhecido o profícuo trabalho que as m ulheres das d iversas 
carre iras ju ríd icas vêm realizando. Ao ap resen ta r , agora , a 
edição p ro d u z id a pela Com issão N acional da M ulher A d v o ­
gada , c riada na a tual gestão, perm ito -m e hom en ag ea r todas 
as a d v o g a d a s b rasile iras na figura ím p ar d a C onselheira e 
p r im eira P re s iden te da C om issão N acional da M u lh e r A d ­
v ogada , c riada nesta gestão, M A R IA A V ELIN A IM BIRIBA 
H ESK ETH , e todas as dem ais profissionais d as carreiras ju rí ­
dicas nas pessoas d as p rim eiras m ulheres a com por as m ais 
A ltas Cortes de Justiça brasileira. M inistras ELLEN G R A C IE 
do STF; FÁ TIM A N A N C Y A L D R IG H I, ELIA N A C A L M O N 
ALVES e LA URITA H IL Á R IO VAZ, d o STJ, q u e queb ra ram 
barre iras e abriram , po r m éritos próprios, cam inhos, trazer à 
recordação aquele artigo que p ro d u z i há q u a se u m decên io , 
tra n sc re v e n d o -o , com a d e v id a vên ia , na ín teg ra , a saber:
8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
M s mulheres no mundo do Direito. É inconcebível que, n u m 
país com m ais de 150 m ilhões de habitantes, não haja, ainda, 
u m a única m u lher no Suprem o Tribunal Federal e nem no 
Superior Tribunal de Justiça. Ao g rande n ú m ero de m inistros, 
em am bas as Cortes, que já têm se m anifestado , em público 
o u em particu lar, n o sen tido de profligar a lacuna existente, 
desejam os som ar a nossa voz. Às m ulheres, po r esforço p ró ­
prio, foi aberto , nestes ú ltim os cinqüenta anos, am plo espaço, 
an te r io rm en te reservado aos hom ens, tanto na v ida econôm i­
ca, p ro d u tiv a , quan to na v ida pública. N as letras, nas artes, 
nas ciências, as m ulheres vêm recebendo láureas e justo real­
ce. Esse espaço foi aberto não po r concessão, m as p o r con ­
quista , n u m a constante, d en odada e sofrida luta contra o p re ­
conceito que, infelizm ente, até hoje se faz p resen te , m esm o 
nos m ais dem ocráticos m eios de com unicação, referindo-se 
às m ulheres com o sendo o "sexo frágil". A força das m ulheres 
não está nos m úsculos, m as no cérebro; na extrem a ded ica ­
ção; na v o n tade de vencer. Essas são as a rm as u til izadas na 
ve rdade ira guerra que vêm travando, pela justa conquista de 
espaço e pe lo reconhecim ento de seus m éritos po r parte de 
toda a sociedade. Prim eiro na advocacia e nas letras, depois 
na m ag is tra tu ra e no M inistério Público, em segu ida nos m ei­
os políticos e econômicos, as m ulheres im puseram -se à p re ­
conceituosa estuitice dos que queriam fazer crer serem elas 
física e m en ta lm en te inferiores ao sexo m asculino. A sua m e ­
n o r ap tidão à força física tem, com o con trapartida , o estoicis- 
m o, a ag udez de espírito, a inteligência e a indôm ita pers is ­
tência na consecução de seus objetivos. A lu ta - sem os "femi- 
n ism os" - foi e é á rdua e extenuante. M uito especialm ente do 
p on to de vista psicológico: é que no inconsciente coletivo de 
u m a sociedade m ultissecularm ente com andada po r hom ens.
APRESENTAÇÃO 9
à m u lh e r teria sido reservado u m lugar secundário , de m era 
coad juvan te d o com panheiro nos seus êxitos, o u fracassos. 
N esse q u a d ro preconceituoso , as m u lh e res - com especial 
m enção às advogadas - souberam im por a sua presença. São 
hoje in fo rm adas e inform atizadas; cultas; firmes; corajosas e 
b em p rep a ra d as p a ra seus misteres. Estão forjadas, com o se 
forja 0 aço, já que na sociedade m achista não se exige dos h o ­
m ens ficarem "p rovando" de que são capazes. E o repúd io 
que a inda a lguns setores insistem em lhes devo tar, p ro cu ra n ­
do ocultar o seu brilho, faz com que sejam elas obrigadas a 
um a constan te necessidade de resplandecer. E com o resp lan ­
decem! A toga ou a beca, vestida po r um a m ulher , parece con ­
trariar as leis d a física: a vestim enta escura d a toga ou d a beca 
em ite LUZ. N ão é a toga ou beca, m as o cérebro da m u lher 
que a veste, d a n d o form a e força aos argum en tos que expende. 
Dá ela v ida e b rilho p róprio a essas vestim entas param entais. 
Às m ulheres foi reservado o d ivino dom de gerar a v ida. Mas 
não o fazem só no sen tido biológico. Elas dão vida aos a rg u ­
m entos e às expressões de seus pensam entos. A sua p rópria 
p e rsona lidade é o e loqüente sím bolo da v ida. As m ulheres, 
na advocacia e nas carreiras jurídicas, têm transm itido esse 
seu p o d e r de da r vida a todos os seus trabalhos. Às inúm eras 
m ulheres que, ao longo do tem po, se ded icaram à justa con ­
quista desses espaços -a inda in justam ente p equenos - as nos ­
sas hom enagens. À quelas que ainda virão, a nossa fraterna 
acolhida. N enhum a , porém , isoladam ente, deve m erecer h o ­
m enagem especial, p o rque o m aior fulgor de u m a estrela não 
p o d e e nem deve apagar o das dem ais, sob pena de se perder 
a visão de conjunto da constelação. A constelação - enorm e - 
é a in da vista e considerada, po r a lguns setores, de form a pe ­
quena. Porque, se m uitos as adm iram , outros o têm feito como
1 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
se a constelação p rocurassem não ver. Têm elas, con tudo , luz 
p róp ria e i rrad iam vida, graça, constância, força, firm eza e 
equilíbrio. Vida, graça e constância ag radam e a traem os olhos 
m asculinos. Força, firmeza e equilíbrio parecem , porém , fazer 
com que a lguns olhares se desviem , p rocu ran d o ignorá-las. E, 
se o p rim eiro o lhar é de adm iração, o segundo está, a inda, 
e ivado d o m ultissecular preconceito. N a lu ta p a ra a definitiva 
superação de tão descabidos atos discrim inatórios, neste m o ­
m en to em que estam os à beira d o terceiro m ilênio da era cris­
tã, é que conclam am os os m eios jurídicos e em especial a O r ­
d em dos A dvogados d o Brasil, o Poder Judiciário, o M inisté ­
rio Público, a reconhecerem o fato óbvio de que as m ulheres 
represen tam , quan tita tiva e qualitativam ente , m etade da p o ­
pulação; a adm itirem a justiça de sua luta; a considerarem que 
o am plo espaço conqu is tado é d im in u to frente à relevante 
participação fem inina na v ida jurídica. Por isso é que re itera ­
m os o b rad o de todas as forças a serem som adas, i rm anadas 
na lu ta d a igualdade , para verm os, po r justiça, nas m ais Altas 
Cortes, a figura segura, soberana, dedicada , in teligente, pe r ­
sistente, da m ulher, a fim de que os nossos pretórios, em to­
dos os seus g raus de jurisdição, possam contar com o brilho, a 
cu ltura , o equilíbrio, a firmeza e a força das m ulheres q u e tan ­
to h o n ram e dignificam as nobres carreiras juríd icas que ab ra ­
çaram: pelo Direito e pela Justiça!"
Rubens Approbate Machado
Presidente Nacional da OAB
11
INTRODUÇÃO
N ão m uito d istan te , q u a n d o se falava na m ulher , de im ed i­
ato se associava a idéia de fitas, rosas, sedas, rendas , laços, 
saias rodadas, curvas sensuais, d en tro de longu inhos pretos 
ou fora deles. Associava-se, a inda, lágrim as, frag ilidade, p ro ­
teção e cuidados.
D iante dessa m agia feminina descendente de Eva, longe de 
se im aginar a existência das m ãos calejadas da M aria, auxiliar 
doméstica; da pele da Benedita, en rugada e tostada, pelo traba­
lho na roça; da Tereza que, às cinco da m anhã, enfrenta duas 
conduções para chegar ao trabalho, após o prim eiro tu rno d o ­
méstico; d o stress d a Márcia, para ver cum prida a agenda de 
executiva; d o corre-corre da Sonia nos corredores do Fórum, 
vencendo prazos e enfrentando juizes e oficiais de justiça, e de 
tantas outras situações que m arcam a presença da m ulher, como 
força p rodu tiva e inovadora, na construção da sociedade.
Isso porque, o tem po em que as m ulheres saíam de den tro 
da casa de seus pais, passavam para d en tro da casa d o m arido 
e cu idavam dos filhos... até m orrer, já passou . N aquele tem ­
po, elas e ram tranqüilas, devotas, anôn im as, eficientes, m as 
subm issas.
V oltando na história, na Rom a A ntiga’ , q u a n d o a pátria 
corria perigo, em apoio aos seus hom ens e m aridos, as m ulhe-
’ Em Grandes Discursos da História, de Hernâni Donato, Ed. Cultrix, São Paulo, 
pág. 17.
1 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
res contribu íam para o sucesso da guerra , com u m a parcela 
de sacrifício pessoal; quan d o havia necessidade de acalm ar a 
fúria dos deuses, p o r qua lquer razão, a parcela de sacrifício 
delas era m aior; du ran te as guerras havia necessidade de re ­
forçar o ân im o dos soldados, dando-lhes segurança e m os­
trando aos céus q ue as m ulheres con tinuavam castas, m o d es ­
tas e pudicas; enquan to o inim igo rondasse a m u ra lh a e os 
deuses n ão m u d asse m o destino da guerra , com o sacrifício, as 
m ulheres , n om eadas p rocuradoras d e seus hom ens d ian te do 
juízo e da ira celeste, deveriam privar-se de qualquer m eio 
de condução, transitavam unicamente a pé, não usavam ador­
nos, nem tecidos de cores, pois só podiam se vestir com rou­
pas escuras. Era a Lei Oppia.
Irresignadas, as m ulheres foram às ruas, levan taram -se em 
m ovim en to de pressão sobre o Senado e consegu iram revo ­
gar a Lei O ppia , no ano 195 a.C.
Então Marco Pórcio Catão^, censor de Roma, h o m em duro , 
eruditOy visionário e p reocupado com aquele m ov im en to das 
m ulheres, p roferiu o seguin te discurso:
"Senhores:
Se cada um de nós tivesse sabido conservar a autoridade e 
os d ireitos do m arido, no interior do lar, não teríam os chega­
do a este ponto .
Eis exa tam en te onde estam os neste m om ento: após haver 
an iqu ilado nossa liberdade de ação em fa m ília , a tirania das 
mulheres está pron ta a destruí-la tam bém no Senado.
Lembrem-se do grande trabalho que tem os t ido para m a n ­
ter nossas mulheres tranqüilas e para refrear-lhe a licenciosi- 
dade, o que sucederá, daqui por diante, se ta is leis fo re m revo-
 ^ Idem, págs. 15/16.
INTRODUÇÃO
gadas e se as mulheres se puserem, legalm ente considerando, 
em p é de igualdade com os homens!
O s senhores sabem como são as mulheres: fa ça m -n a s suas 
iguais e im ed ia tam ente elas quererão subir às suas costas para 
governá-los. Acabarem os por a ss is t ir a isto: os hom ens do 
m undo inteiro, que são hom ens que governam as suas m u lhe ­
res, serem governados pelos línicos hom ens que se deixam g o ­
vernar pelas suas mulheres - os rom anos."
Catão tinha razão. N ão quanto à subm issão da m ulher, mas, 
p o rque v islum brava que no fu turo a m ulher conquistaria , pela 
sua capacidade, o poder, sob qua lquer de suas formas.
Reagindo a essas postu ras, de form a isolada ou em m ovi­
m entos organ izados, a luta pelos Direitos da m u lh e r pau la ti ­
n am en te recrudesceu, e, o m ovim ento fem inista d o século XX, 
com o resu ltado desse em bate m ilenar, rep ag in o u a história 
da m ulher.
Assim , a O rd e m Jurídica Internacional e, particu la rm ente , 
a d o s p a íse s oc id en ta is , rec o n h eceu a C ID A D A N IA D A 
M U LH ER e, s ina lizando a segurança juríd ica d a regra d e que 
h om ens e m ulheres são iguais em d ireitos e obrigações, levou 
a crer que n ada m ais precisaria ser feito, p o rq u e a conquista 
d o Direito no rm atizado teria o pod e r de m odificar o coração, 
a consciência e a v ida do seres hum anos.
Quiçá fosse possível! A d u ra rea lidade m ostra as rom anas 
e os C atões de ontem , com u m a ro u p ag em con tem porânea . E 
a despeito da repaginação da m ulher, a im prensa de la ta as 
dores e os receios que m u d aram apenas de tem po e lugar.
A ssim , su rp re e n d en te m e n te , no ano de 1998 d.C., p o r ta n ­
to, 2.193 anos após C atão, a m esm a p reocupação . A revista 
V eja , na ed ição de 25 de fevereiro, adverte : O s H om ens que 
se Cuidem.
1 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E os registros policiais, os dados históricos e estatísticos 
contam situações m ais do loridas do q ue aquela da Rom a A n ­
tiga. Em todos os países da Am érica Latina e Caribe, m ais de 
setenta po r cento da violência contra a m u lher é dom éstica e 
p e rp e trad a po r m aridos, com panheiros, pais e irmãos; os n í­
veis salariais d as m ulheres é m ais baixo d o que o dos hom ens, 
a té em países d o p rim eiro m u n d o , como Estados U nidos, Ja­
pão e A lem anha; em algum as c om unidades africanas, as m u ­
lheres são desclitorizadas; o acesso ao poder, sob q ua lque r de 
suas form as, é v isivelm ente boicoitado etc.
Pois bem. Essa igualdade jurídica que tem assegu rado ta n ­
tos avanços na c idadania da m ulher, não consegu iu vencer, 
a inda, a d es igua ldade da vida, que é sentida na a tua lidade , 
independen tem en te de países, econom ias e índices de d esen ­
vo lv im ento hum ano . A des igua ldade é real em todas as ca­
m ad as sociais, esferas de trabalho, categorias profissionais e 
representação política, pondo-se a exigir, p o r responsab ilida ­
de histórica, m ed id as afirm ativas v isando refrear e m in im izar 
os efeitos perversos desse descom passo.
Portanto , sensível a essa realidade, e ac red itando na tran s ­
form ação evo lu tiva da sociedade, o Dr. R ubens A pprobato 
M achado, corajoso Presidente d o C onselho Federal da O rdem 
d os A dvogados d o Brasil, em sintonia com a h istória , criou a 
C N M A - Com issão Nacional da M ulher A dvogada, a qual vem 
d esenvo lvendo u m trabalho voltado p a ra form ar u m a g rande 
rede de consciência da m u lher advogada, sobre a potenciali- 
zação de seus direitos, como retorno social.
Assim , o resu ltado d o I Concurso de M onografia Jurídica, 
in titu lado C idadan ia da M ulher - U m a Q uestão de Justiça, 
realizado pela CN M A , é u m dos fru tos dessa conquista da 
m u lh e r advogada. Dos quinze trabalhos apresen tados, tem os
INTRODUÇÃO
a alegria de publicar, jun tam ente com as reflexões das com pa ­
nhe iras M aria Bernadete C unha e M aria Regina Purri Arraes, 
os três vencedores: "M ulheres, u m a Vida de Lutas e C onqu is ­
tas Profissionais", da es tudan te M ariana O liveira Pinto; "C i­
d a d an ia da M ulher, u m a Q uestão de Justiça", de M aria José 
de F igueiredo Cavalcanti, e "M ulher: Códigos Legais e C ód i­
gos Sociais - O Papel dos Direitos e os Direitos de Papel" , de 
O dila de M êlo M achado, am bos na categoria profissional.
Tais trabalhos d iscu tem a c idadania da m ulher , não, a p e ­
nas, com o u m direito fundam en ta l d isposto na O rd em C ons­
titucional, m as como o d ire ito da m ulher ser u m ser q u e tem 
von tade . V ontade não apenas de chorar, am ar, ser conqu is ta ­
da, parir , receber rosas, cobrir-se, sedu to ram en te , com ren ­
das, sedas e saias, longas, curtas ou rodadas, de ser feminina 
m as v o n tade de ser c idadã e ver reconhecido seu d ire ito de 
ser m u lher , na d im ensão do biológico, do social e d o político; 
de ver respe itado seu direito de gritar, de d izer não , de d izer 
sim, de pro testar, escolher e lutar; de partic ipar do processo 
de construção da h u m an id a d e e constru ir sua p róp ria h istó ­
ria e iden tidade , de form a real, sem traum as e e spon tanea ­
m ente. De ser m ulher, d e ser parceira, com panheira e cúm p li ­
ce do p ró p rio hom em , partilhando com ele, po r inteiro, com 
respeito e in tegridade , um a vida de sonho e realidade.
C om estas palavras, a C om issão N acional da M u lh e r A d ­
vogada en trega à com un idade jurídica o livro C ID A D A N IA 
D A M U LH ER, U M A Q U E ST Ã O DE JUSTIÇA.
Maria Avelina Imbiriba Hesketh
Presidente da Comissão Nacional da M ulher Advogada
1 7
C ID A D A N IA D A MULHER, 
UM A QUESTÃO DE JUSTIÇA
M aria José de F igue iredo C avalcanti
INTRODUÇÃO
O escorço em tem a dessa vastidão e p ro fu n d id a d e especu ­
lativas levou-m e a percorrer u m cam inho que se b ifu rca em 
dois. O p rim eiro , se reveste d a análise filosófica d o con teúdo 
p lacentário d o Direito Positivo, form alista e dogm ático , que 
vige p o r u m de te rm inado espaço de tem po e em u m a d im e n ­
são espacial. Ou, em ou tras palavras, ver-se-á o tem a incurso 
no Direito do d ev e r-se ra o qual se con trapõe o Direito d o ser e 
q ue p o r essa razão m esm a é suscetível de ser red iscu tido em 
nível de instância filosófica.
D estarte, faz-se aqui u m exam e crítico desse preceituário 
positivo a oferecer n o rm as de condu ta aos p ro b lem as de con ­
vivência e respostas à problem ática da m ulher , em várias e ta ­
pas da H istória da H um anidade .
Portanto, coteja-se o ideal de justiça, no pertinente, em épocas 
diferenciadas. E o procedimento aqui adotado é trazer à colação 
vários exemplos de m ulheres que rom peram com o status quo e 
decidiram viver o outro lado dessa rup tura , a despeito da contra­
partida que se lhes ofereceu em term os de punição ou até de 
transm utação de sua condição de integrante d o sexo feminino.
1 8 CIDAOAN/A OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Especular a essência da Justiça no que tange aos d ireitos 
d as m ulheres, n as m ais d iversas fases da H u m an id ad e , foi o 
núc leo d e nosso in tento ao realizar esta m onografia .
As m u d an ças nessa seara são palpáveis, e isso vem se de ­
sencadeando desde os clássicos pensadores até aos nossos dias.
M etodologicam ente, a visão dogm ática d o Direito será con ­
trastada pelo estofo filosófico da no rm a jurídica, este, cambi- 
an te e de e terna discussão, e aquela, fixada em critérios de 
perm anência .
A "experiência" d o Direito conduz a cam inhos to rtuosos 
em face d e um a antítese constante en tre a dogm ática jurídica 
e a h isto ric idade d o ser hum ano.
Q u a n to à se g u n d a tr i lha p e rc o rr id a - na v e rd a d e en tre - 
c ru z a n d o -se com a p r im e ira - d iz re sp e ito à p o lit ização do 
D ireito , em es tág io pos te r io r , p rocesso esse em q u e as m u ­
lheres fazem H is tó r ia e assim c o n tr ib u em com conteú dos 
concretos p a ra a in serção de les n o n o v o con tex to d o D ire i ­
to. O ferece-se , assim , u m a n ova a rg am assa p a ra q u e se efe ­
tu e o D ireito d e n tro d as rea lid ad es sociais n a q u e le m o m e n ­
to, g e ra n d o n ova ideação de D ireito-Justo, em m o m e n to s 
c ruc ia is da m a io r significação. E, e v id e n te m e n te , g i ra n d o o 
eixo da H istó ria .
Caso assim não fosse, teríam os tão-som ente u m ideal u tó ­
p ico , i r re a l izá v e l , u m a in ó cu a voeis, e n g e ss a n d o a
valoração com o ideação, em choque com as cam biantes cir­
cunstâncias da vida.
É só ana lisa r a cam inhada de conquista dos d ire itos da 
m u lher p a ra que se afira a consistência da afirm ação de que a 
V ida Humana objetivada desborda na p rem ência d a m u d a n ­
ça dos valo res da v ida e, conseqüentem ente, daqueles referi­
dos à Axiologia Jurídica.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
É nessa d ispu ta en tre idealidade e rea lidade que o Direito 
recolhe os con teúdos concretos que revestem a aven tu ra h u ­
m a n a n o c r i a r n o v o s v a lo r e s , n o v o s m o d e lo s , n o v o s 
parad igm as.
CAPÍTULO 1 
DIREITOS COMO JUSTIÇA - QUAL JUSTIÇA?
A considerar toda a h istória de conquista dos d ire itos das 
m u lh e r e s e a te r c o m o p a n o d e fu n d o essa q u e s tã o na 
lobregu idão em que a m esm a se desenvo lveu len tam en te ao 
longo dos séculos, há que se considerar aqui u m corte episte- 
m ológico a fim de que se d istinga o conceito de justiça com o 
algo m ateria l e que vem se substancia lizando ao correr dos 
tem pos. Essa linha m etodológica certam ente é considerada em 
cotejo com o conceito de justiçaform al, que se desenvolveu 
igualm en te em pretérito m ais acum ulado no âm bito d o es tu ­
do d o Direito e da Moral, com o estudos ideais, prospectivos, 
m as d istanciados de u m a realidade v ivenciada e experienciada 
no Ser (na realidade), em relação ao Dever-Ser do Direito e da 
filosofia da Moral.
A ssim é que no processo histórico, n o q u e d iz respeito à 
posição da m u lher a ssum indo espaço público, existem m u i­
tas contradições, pois o p ensam en to h u m an o nessa seara p e r ­
corre u m cam inho linear, po rém de lu tas en tre a cognoscibili- 
d a d e do dogm atism o, a pa r de um a estim ativa jurídica que 
p re s su p u n h a a m u lher com o sexus imhecilitater, e tão-som ente 
procriadora , sexo fraco e a priori sexo d e p e n d en te em face de 
u m a leitura patriarcal da sociedade, que in fu n d iu aos séculos 
subseqüen tes u m a invariável in terpre tação de códigos s im ­
bólicos de tr im en tosos ao sexo feminino.
2 0 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
N a v erdade , na lógica do Direito, apenas p a ra falarm os do 
sen tido juríd ico da justiça, como conceito filosófico traba lha ­
do e h a u r id o pela Civilização H um ana , perm ito -m e d izer que 
a e iucubração do significado de justiça de term inou a priori um a 
idéia de u m direito den tro de u m a ótica dogm atista , ou seja, 
de u m d ogm atism o juríd ico vivenciado p o r séculos, e alicerce 
constru ído p a ra a recepção d o Direito Positivo.
E não há q ue se desprezar, aqui, esse p rim eiro sen tir do ser 
hu m an o , na busca e apreensão desse valor, q ue é a igualdade , 
linha-m estra da especulação dos p rim eiros filósofos, p e n sa ­
dores d a m atéria . E aqu i se recolhe a idéia do un iversa l q u a n ­
do se investiga o conjunto d o m u n d o que nos cerca. É em to r­
no desse núcleo - un iverso e a sua variegada com plex idade - 
que o D ireito com o Ciência especulativa vai b uscar na Filoso­
fia os artefatos ideais para a construção de seus conceitos de 
ig u a ld a d e e de justiça , ou m elhor, da justiça , cuja essência se 
revela na ig ua ldade .
1.1 - A que região da filosofia do direito pertence 
a igualdade
A história da idéia form al de justiça, com o valor juríd ico e 
de n a tu reza especulativa, veio, no am anhecer da filosofia, dos 
pitagóricos, com o, aliás, nos ensina RECASENS STCHES.'
Segundo aqueles, o conceito de justiça está atrelado a um a 
relação de igualdade. E que aquela se traduz em m edida e em 
forma matemática, ou seja, "a justiça é um núm ero quadrado '\^
’ o conce ito p itagórico de jus iiça está explanado em Luis Recasens Siches, in: 
Tratado G enera l de F ilosofia dei Derecho, 7. ed. M éxico/DF; Editoria l Porrua, 
1981, p. 482.
2 Aqui Recasens S iches c ita Aristóte les, a tribu indo a frase a P itágoras. Ibidem, 
p. 482.
CIDADANIA PA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Portanto , estabelece-se, com a justiça, u m a relação de igual­
d a d e en tre as pessoas, sendo estas ú ltim as os term os da rela ­
ção. E n tã o , d e n t r o d e u m a p e rs p e c t iv a p o r a s s im d iz e r 
cabalística, Pitágoras con tinua afirm ando que o n ú m ero q u a ­
tro é u m esp lênd ido exem plo de ha rm on ia e que, portan to , 
este valor é regu lador de relações, que limita o ilim itado e igua­
la o desigual. D estarte, consideram os p itagóricos o q u a d ra d o 
geom étrico com o a im agem da justiça, p o rq u e tem ele quatro 
lados iguais.
N a v e rdade , estabelecia-se, aí, um princíp io filosófico que 
seria re to m ad o em in terpre tação m ais ab rangen te e a p ro fu n ­
d a d a p o r filósofos que v iriam em linha diacrônica d o s tem ­
pos, quais sejam, sobre tudo , P latão e Aristóteles.
Q ua is as contribuições adv indas desses p ensado res no to ­
cante ao incansável desvelam ento d o conceito d e igualdade? 
E a que serve ele à m ulher?
Sabe-se que Platão erigiu o conceito d e justiça com o sendo 
u m a v ir tu d e universal, da qual todas as dem ais v irtudes p ro ­
vêm. Todavia, a diké é um valor, o qua l d iz respeito originari- 
am ente a u m a transgressão que m erecia com pensação . À m e ­
d id a que o regim e político m u d a os seus característicos que 
envo lvem u m a sociedade aristocrática, d esb o rd a n d o na d e ­
m ocracia, a justiça passa a ser inco rporada à sociedade, com o 
valo r un iversa l e trad u z id a na lei escrita, na nómos, a a ting ir a 
todos que e ram discip linados p o r essa lei.
Por ou tro lado, tal va lo r não se inco rpora à to ta lidade d a ­
quela sociedade, sab ido que a c idadan ia era restrita a alguns 
atenienses, excluídos vários segm entos, com o o das m u lh e ­
res, o dos estrangeiros e o dos servos. O reg im e dem ocrático 
grego, assen tado n a dem ocracia dire ta , t inha as su as peculia ­
r idades, pois a dem ocracia era p lena ou lim itada , o u com o no
2 2 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
caso das m ulheres, não existia. H avia u m d iv iso r de águas e 
essa incapacidade relacionada à m u lher tinha a sua base ideo ­
lógica, até m esm o em ARISTÓTELES, ele que tam b ém não era 
considerado c idadão ateniense po r ser meteco (estrangeiro).-^ 
A filosofia aristoteliana que v inda à pos te r id ad e calçou o 
s e n t id o d e ju s tiça n o D ire ito de n o sso s d ia s , co m o q u e 
d o g m atizo u os conceitos de justiça d is tr ibu tiva e justiça cor­
retiva, esta ú ltim a subd iv id ida em justiça com utativa e justiça 
judicial, o u judiciária.
V ê-se, a s s im , q u e o co n c e i to d e ju s t iça , d e s d e o seu 
nascedouro , vem se m etam orfoseando em face d e avanços ci­
entíficos d e ou tras disciplinas, inclusive d o cam inhar da p ró ­
p ria Teologia, esta, que em u m m o m en to d a h u m a n id a d e 
consubstanciava-se no p ró p rio Direito o u este se encontrava 
com aquela de form a inconfundível, pois o ram o d o pod e r 
civil achava-se um belicaim ente un id o ao p o d e r de d ize r as 
"verdades absolu tas" fora d o contexto da noção de DEUS. N a 
v e rdade , a l inguagem que e m pedern iu as m en ta lidades dizia 
respeito a calar a m ulher, pois se fazia coro d o verso d o poeta 
que, " u m m odesto silêncio é a honra da mulher".**
Contextualizava-se a questão tem poral - social, econôm i­
ca, política - com as grandes indagações teológicas, a d espe i ­
to de q ue a idéia central de justiça não im plicava em m u d a r a
3 Aristóteles era macedónio; em havendo fundado o seu Liceu, lucubrou as suas 
idéias filosóficas e políticas, máxime as contidas em A Política, na qual categoriza 
a condição de ser humano em an im a l c ív ico , o que mostra a aptidão natural do 
humano de viver no seio da Cidade. Sabe-se que o seu sucessor no Liceu foi 
Teofrasto, também não-cidadão ateniense. A posse do terreno onde se situava a 
Escola Peripatética só foi possível graças à influência de Demétrio, este, cidadão 
ateniense. Sobre essa sucessão e o fato aludido, ver Luciano Canfora, in: A B ib li­
oteca D esaparec ida- Histórias da Biblioteca de Alexandria, trad, de Federico Carotti, 
São Paulo; Companhia das Letras, 1989, pp. 29/32.
A frase refere-se à citação feita por ARISTÓTELES e atribuída a Górgias. Ver 
Aristóteles, in: A Política, trad, de Roberto Leal Ferreira, 2, ed. São Paulo: Martins 
Fontes, 1998, p. 36.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA
cultura da m isogenia ou do antifem inism o (para u sa r de um a 
expressão m oderna), ou, em ou tras pa lavras, ten tava-se a p a ­
gar qua lque r vestíg io de u m a era que p o rv e n tu ra possater 
existido em que a m ulher situava-se em u m p lano de poder 
po r a lguns considerado de era matriarcal; ou, em tem pos mais 
recentes, a adoração de deusas com o era o caso da veneração 
d o s egípcios antigos à Isis , deusa poderosa p o r h a v e r liberta ­
do o seu filho H orus de toda a m aldade que lhe havia infligi­
do o irm ão Seth após haver m atado o seu pai, Osíris.
O Direito rom ano ap ropriou-se da filosofia grega a fim de 
sis tem atizar e d a r epnstéme aos seus institutos. U m deles, o da 
justiça, referia-se ao ius simm cíiique tribuere, conceito formal 
q ue tra d u z u m a idéia de m edida , ou seja, d a r "a. cada u m o 
q ue lhe é de direito". O que significa seguir de volta o cam i­
n h o p a ra Aristóteles.
A partir da í especula-se igualmente se esse direito é resultan ­
te d e norm as jurídicas positivas ou de princípios jusnaturalistas, 
isto é, se esse conhecim ento está relacionado a u m a regra de 
d ire ito natu ra l, o u a u m a n o rm a de direito escrito.
O brocardo jurídico antes enunciado, atribu ído a ULPI ANO, 
dá nova d ire triz ao cham ado direito na tu ra l que p assa a ser 
en ten d id o com o u m conjunto de leis d a na tu reza , q u e im pele 
os h om ens a de te rm inadas ações. E aqui estam os apenas d i ­
an te de ações m ecânicas com o a procriação, p ropagação da 
espécie etc. Trata-se, antes, de um a d e tu rpação d o sen tido ou 
a inda da p rim itiv idade do conceito que veio a ser reform ulado 
po r Justin iano, ao ser im prim ido naquele u m cará ter clara­
m en te teológico, ou seja, tal espécie de d ire ito p rom ana de 
DEUS, po rtan to , con tem porâneo d o hom em desd e sem pre.
N essa linha de raciocínio vê-se que a ig u a ld a d e de todos 
os h o m en s p e rm anece v incu lada à condição de direito. N o
2 4 CIOADANiA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
entre tan to , no tocante à m ulher, o d ire ito na tu ra l pe rm aneceu 
restrito à n a tu reza p rop riam en te dita , ou seja, a m u lh e r na 
sua m issão de rep rodução do gênero hum ano .
CAPÍTULO 2 
“CIDADANIA” PARA CERTAS FUNÇÕES; A MULHER VIRIL
A cidadan ia sem pre esteve ligada à questão d o poder. Foi 
assim no Egito Antigo, na Grécia Clássica e em Rom a, sem 
falarm os n o p o d e r da Igreja Católica d u ra n te toda a Idade 
M édia.
O domus e ra espaço quase sagrado na Rom a Antiga. Era 
den tro dele que se exercia o am plíssim o pod e r d o paterfamilias. 
O patria potestas era de um a grandeza absoluta. A brangia o 
pa trim ônio , os filhos, a m u lher casada ciim manu, pois o casa ­
m en to sine manu deixava a esposa sob o p o d e r d o pater da 
família de que p rovinha . Portanto , a incapacidade civil e po lí­
tica da m u lher era absoluta.
O fato curioso é que a m u lher para a d q u ir ir u m a certa li­
b e rd a d e - e aí nós consta tam os u m a "c idadan ia" incipiente - 
deveria ela dirigir-se às organizações religiosas para u m a vida 
conventual. Foi assim em Roma, foi assim d u ra n te toda a Ida ­
d e M édia e inclusive em tem pos m ais recentes.
A v ida consagrada à religião trouxe u m espaço público à 
m ulher , este que lhe era in te iram ente defeso. A m u lh e r ao 
abraçar o Sacerdócio passava a gozar de d e te rm inados p r iv i ­
lég ios d a esfera m asculina, como o a p ren d e r a ler e a escrever 
e a d a r vazão à sua in te lectualidade etc. As Vestais em Roma, 
p o r exem plo, pod iam tes tem unhar em tribunais , fazer testa ­
m ento , d isp o n d o livrem ente de seus bens, d ire itos esses ne ­
g ados às m atronas. E mais: an d av am nas ruas p reced idas de
CIDADftN'AOA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
lictor (oficial rom ano que acom panhava os magistrados).-" N o 
en tre tan to , para que assim fossem reconhecidas, o seu status 
sexual era com parado ao do hom em , po r tan to referida ao a r ­
qué tipo viril.^ Afora as restrições que lhes e ram exigidas, to ­
das d e n a tu reza fisiológica: não terem defeitos físicos, p e rm a ­
necerem virgens etc.
A m u lh e r qualificada para partic ipar do espaço público, 
u sa n d o o seu intelecto, deveria ser equ iparada ao hom em , o 
que se constitu ía u m "encôm io", p o r ser-lhe reconhecida essa 
capacidade.
Foi assim que por interm édio de um am igo Cristina de Pisan 
(1364) foi reconhecida pela sua p reparação intelectual em co­
p ia r m anuscritos e em realizar escritos, inclusive po rtadores 
de reclam ações de m ulheres. O elogio pa rt iu de seu am igo 
Joào G erson ao afirm ar que Cristina era insígnis femína virilis 
femina (m ulher insigne, m u lher viril). Era necessário atingir 
essa condição e ser reconhecida com o tal a fim de que fosse 
possível 0 exercício de certas capacidades.^
Foram necessários alguns séculos p a ra que "o d ire ito da 
m u lh e r a ser va lo rizada e educada livre de p a d rõ es estereo ti­
p ad o s de com portam en to e costum es sociais e cu ltu rais base ­
ados em conceitos de inferioridade ou subordinação"® fosse 
p roc lam ado e respe itado pelo Estado e pela Sociedade.
 ^ Do que se deduz que o seu status era comparado ao dos magistrados, A sua 
impodância era tamanha que a elas eram confiados os segredos dos particulares, 
e às vezes até mesmo os do Estado.
® Sobre as vestais, ver Santiago Montero. in: Deusas e Advinhas - Mulher e Adivi­
nhação na Roma Antiga, trad, de Nelson Canabarro, São Paulo: Musa Editora. 
1998, pp. 86-88.
' Ver José Rivair Macedo, in: A mulher na Idade Média. 5, ed. (rev. e amp.). São 
Paulo: Editora Contexto, 2002, pp. 93-97.
® Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a 
Mulher - Art. 6®, "b". promulgada pelo Decreto n° 1.973. de 01/08/1996, publicado 
no DOU de 02/08/1996, pp. 14470-14473.
2 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
E obviam ente pelo conceito da igua ldade e da eqü idade, 
não se haverá de educar as m ulheres apenas para serem v ir ­
tuosas, com o queria ARISTÓTELES; e, sim, tam bém p a ra se­
rem partic ipa tivas d o processo político, até p o rq u e a noção de 
justiça, hoje, é lida sob ou tro ângu lo a fim de ver a m u lher 
com o o O u tro da parcela da H u m an id ad e , ou seja, o tem a da 
im agem de DEUS, no ser hum ano , assum e h od iernam en te um 
ca rá te r antropológico , a se ve r aí a id en tid ad e h u m a n a da 
m u lh e r em sua relação de a lteridade com o hom em .
D epreende-se que o caráter dogm ático de justiça se im p u ­
n h a na Sociedade a ser v iv ido como ideal jurídico-político nas 
sociedades que nos antecederam .
A p a r , e contrad itoriam ente , de u m elucubração b rilhante 
do con teúdo da justiça d istributiva,^ ARISTÓTELES exorta ­
va que: "... a tem perança e a justiça diferem até en tre pessoas 
livres, das quais u m a é superio r e a ou tra inferior, po r exem ­
plo, en tre h om em e m ulher. A coragem de u m h om em se ap ro ­
xim aria da pus ilan im idade se fosse apenas igual à de u m a 
m ulher , e a m u lher passaria p o r a trev ida se não fosse m ais 
rese rvada d o que u m hom em em suas palavras
C om isso se vê q u e o p ró p r io conceito de justiça sofre 
gradação e tonalidades, haja vista que, m esm o entre as pesso ­
as livres, há desigualdades. A pus ilan im idade d iz respeito à 
m ulher; o a trev im ento , ao hom em . Ao hom em , a virtude; à 
m ulher, é conferida a honra.
Esses dois vocábulos sofreram m udanças em sua sem ânti-
® Em Aristóteles, a idéia de justiça distributiva, a qual integrou o Direito e hoje é um 
ideal igualmente de natureza estruluralmente poUlica,aplica-se à divisão das hon­
ras e dos bens públicos e se direciona ao objetivo de que cada cidadão receba 
dessas honras e bens a porção adequada a seu mérito com o qual se afirma o 
princip io da igualdade.
Ver Aristóteles, op. c i l , p. 51. O destaque na citação é meu.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
ca, pois na linguagem dos estereótipos existentes en tre os se­
xos, aqueles vocábulos de significados p assa ram a significan- 
tes, isto é, a v irtude é um a pa lavra que den o ta coragem , v a ­
lentia, força, v igor m asculino, enquan to a h on ra passou a tra ­
d u z ir o pape l que a m u lher deveria exercer com relação ao 
seu com portam en to p rivado e público. A hon ra é a tr ibu to da 
n a tu reza fem inina. A justiça form al descurou-se , pois o d ire i­
to escrito estabelecia a igualdade jurídica, m as n ã o hav ia um a 
p restação positiva no p receituário juríd ico-positivo no sen ti­
d o de d a r cum prim en to ao estabelecido dogm aticam ente . Isso 
q u e r d izer q ue a rea lidade que circundava a lei era outra.
M esm o as m ulheres que escreviam sobre as pessoas d e seu 
sexo - mulher viril - eram em sua m aioria consideradas rigoro­
sas em suas prédicas e enunciados, ao se referirem à m ulher.
A p rópria Cristina de Pisán, c itada linhas atrás, é vista por 
LEILA M EZA N ALGRANTI com o au to ra rigorosa em seus 
preceitos sobre a m ulher. Diz essa Autora: "O livro d e Christine 
de P izan, escrito no início d o século XV e d irig ido às m u lh e ­
res de todas as origens e classes, reúne u m conjunto d e a d ver ­
tências sobre a condu ta e a m oral fem ininas, e n a d a deixa a 
desejar frente à severidade dos conselhos m asculinos
A hon ra é explicitam ente um substan tivo d u p lam e n te fe­
m inino: pela sua etim ologia e pela l inguagem constru ída so ­
b re o im aginário social da época. E mais: v incu lado à sexuali­
d a d e da m ulher. Daí, o que não é de a d m ira r q ue na práxis da 
legislação pena l brasileira, "na legítim a defesa da h o n ra" , foi 
estabelecido um costum e em que esse conceito d iz respeito 
não a u m a v irtude pessoal, m as ao c o m portam en to sexual fe-
" Sobre o conceito de honra da mulher colonial brasileira ver Leila Mezan Algranti, 
in: Honradas e Devolas: Mulheres da Colônia - Condição feminina nos conventos 
e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 - 1822. Rio de Janeiro: José Olympic, 
Brasília: Edunb, 1993, Capítulo 3, pp. 109-156.
2 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
m inino , que desborda pa ra o espaço público m asculino, sen ­
d o rejeitado pelo que se considera u m desvio de co m porta ­
m en to social, p o r es ta r l igado ao adu lté rio fem inino . Pelo 
m enos, esse conceito vigeu po r m uito tem po.
Fala-se igualm ente d o rigor com que tra tou as m ulheres 
H ildegard Von Bingen, apontada como um a m ulher que foge 
aos padrões culturais da época em que viveu. Foi abadessa de 
u m mosteiro beneditino, no século XII, na Alemanha, e que exer­
ceu um a forte influência sobre as lideranças de seu tempo.
Q u a n d o se levantou a questão de que H ildegard escrevia 
a len tados livros, livros q ue m arav ilhavam e q ue e ram p ro d u ­
to de revelação divina, foi tal fato levado ao Papa, o qual d e ­
s ignou u m a com issão que exam inaria o fato in locum. Consta 
que em pa lavra d irig ida ao Papa A nastácio IV, H ildegard te ­
ria im precado que o Sum o Pontífice estava neg ligenciando a 
régia virtude da justiça.’^
'2 0 costume vem de muito longe em projeção de tempo passado. As Ordenações 
Filipinas concediam ao marido da adúltera o direito de a matar, havendo de ser a 
morte civil ou natural, a depender das circunstâncias. (Livro 5, Título XXV). Igual­
mente 0 marido podia matar o adúltero, desde que esteja certo que ambos cometem 
adultério. Na hipótese de flagrante delito ou em decorrência de decisão judicial que 
aplicasse a pena de morte à mulher adúltera, todos os bens dela revertiam a favor 
do marido. (Livro 5, Título XXV).
Hildegard escreveu muito. Dizem que o Convento por ela fundado no monte Rupert, 
em Bingen, Alemanha, tornou-se a sa la de espera da E uropa e que pessoas pro­
eminentes da época vinham aconselhar-se com ela: papas, bispos e príncipes, Cfr 
Kurt Allgeier, In: Receitas Milagrosas de Médicos e Místicos - Remédios Naturais 
de Dois Milênios. Trad, de Célia Maria Würth Teixeira, [s. local]: Editora Tecnoprint, 
1986, p, 61. Ainda sobre Hildegard Von Btngen, ver José Rivair Macedo. In: A M u­
lher na Idade Média, 5. ed. (rev. e amp,). São Paulo: Contexto, 2002, p. 87. Igual­
mente, com a informação de que Hildegard foi estigmatizada por criar problemas 
em função de sua inteligência e de suas idéias e em face disso haver sido-lhe nega­
dos os sacramentos por seis meses, retirando-lhe, também, o direito de ser musicista, 
ve r Peter Stanford, In: A Papisa ~ A Busca pela Verdade Atrás do Mistério da Papisa 
Joana. Trad, de Márcia Frazão, Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 131. E com a 
conotação de que Hildegard von Bingen adotou a doutrina de Agostinho quanto ao 
pecado original, e também fazendo alusão ao livro sobre medicina natural escrito 
por aquela Abadessa, no que tange à questão da contracepção, ver u ta Ranke- 
Heinemann, In: Eunucos Pelo Reino de Deus ■ Mulheres, Sexualidade e a Igreja 
Católica, 3. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Ventos, 1996. pp. 199 e 216.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA
O discurso da justiça im prim ia a d es ig u a ld ad e en tre os 
sexos, ao m esm o tem po que se deb la te rava sobre u m conceito 
p u ram e n te dogm ático e de justiça terrena. H ildegard v iveu 
en tre 1098 a 1179, m ais d e um século an te s d e T om ás de 
A quino , p o rém a Teologia, p ro d u to ra d o Direito d e então, v i­
via a florescência da Patrística, que exaltava o pecado origi­
nal, a q u e d a d o ho m em e com fortes acentos d o conceito 
m aniqueísta , do bem e d o mal.
O ra , a c u ltu ra re lig iosa ag o s tin ian a im p re g n o u o D ireito 
e aí se seg u e u m esforço de t ra n sc e n d e n ta liz a r a d o u tr in a 
ju ríd ica , ao lado d e u m a concepção pessim is ta e d em eritó ria 
d a n a tu re z a h u m a n a , o q u e lev o u a es tabe lece r d e s ig u a ld a ­
des e n tre os sexos, em v ir tu d e d o p e c a d o o rig ina l. A m u ­
lher, re sp o n sá v e l pe la f raqueza no É den , lev o u o seu com ­
p a n h e iro a pecar, e d a í a d eca ída d o ser h u m a n o em toda a 
su a descendênc ia .
A filosofia da justiça passa a in tegrar a recolha da iusfilosofia 
do Bispo de H ipona. A questão da justiça d o s d ire itos da 
m ulher achava-se no continente do m aniqueísm o cu ltuado por 
Santo A gostinho d u ran te anos d e sua ju v en tu d e e presen te 
em suas obras, inclusive na autobiografia que e s c r e v e u .E r a 
a lu ta d o bem contra o mal. A n a tu reza contra o intelecto. A 
Biologia contra a C ultura . Restou à m ulher, a n a tu reza com a 
sua capac idade procriadora , p o rém frágil p e lo seu p ecado de 
ten ta r o hom em A dão no Paraíso.
A idéia de igua ldade constru ída pelos filósofos gregos so ­
fria injunção d e u m a exegese que partia d o m al e do bem - 
do u tr in a m anique ís ta resva lando pa ra a questão da subor-
Os seus livros mais conhecidos são: De Civitate Dei (A Cidade de Deus), inicia­
do em 424 d.C., e Confissões, iniciado em 396 e completado em 399, com um 
Capitu lo sobre a sua v ida após a conversão. Trata-se, aqui, de sua autobiografia.
C ID A D A N IA D A MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
dinação, da polarização d a existência de um ser superio r (sexom asculino), e de u m ser inferior (sexo fem inino).’^
A ques tão da m ate rn id ad e foi elevada à condição d e ser a 
fu n ç ã o e x c lu s iv a d a m u lh e r , p o is a r e p r o d u ç ã o n ã o se 
com patib ilizava com a p rodução , ou seja, era u m a p rodução 
p a ra trás - re-p rodução u m a função m eram en te biológica e 
socialm ente genealógica. Esse era o p red icam en to aceito pela 
C u ltu ra d a época e sed im entou-se com o tal.
CAPÍTULO 3 
A CIDADANIA: SUBSTANTIVO DUPLAMENTE FEMININO 
EM MEIO AOS MOVIMENTOS DE MASSA
Os d ire itos da m ulher e em particu lar os seus d ire itos de 
c idadan ia p rovêm não d e valores sed im en tados na C u ltu ra 
da H u m a n id a d e , e, sim, de contravalores defen d idos em m o ­
v im entos de m assa da Contracultura.
N os anos sessenta do século XX, irrom pem m ovim en tos 
de g ru p o s que levan tam bandeiras com o as que tra d u z ia m a 
em ergência d o pacifismo, d o m ovim ento ecológico, e d o m o ­
v im ento de igua ldade de d ireitos entre hom ens e m ulheres, 
d en tre outros. São os cham ados g rupos de pressão, o u seja, 
pessoas ag ru p a d a s em face de um a p a u ta de reivindicações
0 maniqueísmo é apontado como o último grande movimento reiigioso no O rien­
te. surgido após o Cristianismo e anterior ao Islamismo. Foi fundado por Mani, de 
origem persa, o qual se dizia ser o Espírito Santo prometido por Jesus Cristo. A 
sua doutrina considerava a procriaçào um ato diabólico, de vez que o homem era 
um ser gerado por uma partícula de luz presa em um corpo gestado por demônios. 
Por aí se deduz a forte influência dessa doutrina nos conceitos teológicos e filosó­
ficos desenvolvidos por Agostinho, o que levou a Cultura Religiosa a perpassar 
séculos com conceitos antinómicos sobre o que é bom e o que é mal. Essa con­
cepção, no que tange à exegese religiosa cristã, tem se modificado em função de 
enfoque antropológico, trabalhado por teólogas, que utilizam a noção de anthrópos. 
isto é, do masculino e do feminino como conceito universal de humanidade. Sobre 
Mani e a sua doutrina, ver Uta Ranke-Heinemann, in: op. cit., p. 93.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA.
q ue têm u m a linguagem de substancialidade, q u an to ao d i ­
reito à v ida e à d ignidade.
N o bojo do expressar da C ontracultura, a m u lher reivindica 
direitos d e cidadania, vistos estes com o u m a gam a de direitos 
que incluem direitos civis - o de livre expressão, de reunião e de 
ser tratada com igualdade perante a lei; direitos políticos que 
abrangem um a ação positiva que, além de votar e ser votada, 
seja mais participante do processo político, com lideranças em 
comunidades, paróquias etc.; e direitos de natureza socioeconômi- 
ca, a ter em conta aqui o direito a produzir economicam ente, a 
ser m em bro ativo da sociedade p rodu tiva e de consum o etc., 
afora o direito a l idar com o seu corpo e a sua sexualidade.
H á aqui um rom pim en to com a H istória C ontínua, com o 
d iz FOUCAULT, ou seja, há um a ru p tu ra com os conceitos de 
con tinu idade histórica. N asce aqui ou tra versão de po d e r, não 
m ais 0 que inculca estigm as ao corpo e à alm a, m as u m a supe ­
ração d o patria protestas, po r m eio de u m a transform ação cu l­
tural, que v em a pag an d o a noção tradicional rom anística.
Essa transform ação , na v e rdade , é pa rte do m ov im en to 
racionalista do Ilum inism o que detecta no sag rado - e aqui o 
vocábulo é extensivo a a tender várias form as d e m anifestação 
religiosa - a razão m aior de postu ras identificadas com n o ­
ções alegóricas d e separação en tre hom ens e m ulheres , sobre ­
tu d o q u a n d o essas ú ltim as utilizam form as racionais ou não 
de detenção d e poder. D oravante o p od e r é racionalizado , diz 
WEBER, a través d e condu tas racionais - legais.
O direito político a ser estendido à m ulher é m edida m aior a 
ser conquistada, algo mais que o poder de votar e de ser votada.
N as peg ad as d a H istória, com relação ao d ire ito de voto, 
há que se d izer que no Brasil, d esde an tes de sua in d ep e n d ê n ­
cia form al, um d e p u ta d o baiano , rep re sen ta n te nas C ortes
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA
G erais p o r tuguesas (1822), contribu iu com u m ad itam en to ao 
artigo 33 d o projeto da C onstituição que en tão se e laborava, 
no qua l p ro p u n h a que a m ulher que fosse m ãe d e seis filhos 
legítim os tivesse d ireito a votar nas eleições.
A proposição foi d e rro tad a p o r um d e p u ta d o po rtuguês , 
ao afirm ar este em seu parecer que se tra tava d o exercício de 
u m d ire ito político e que as m ulheres n ã o o têm p o r serem 
incapazes.’ ^ E acrescenta em latim: "Mulier in ecclesia taceat" 
(a m u lher deve se calar nas reuniões).’^
Infere-se assim o estigm a social im p u tad o à m ulher, pois 
m esm o o critério biológico de ser m ãe de seis filhos n ão a u to ­
rizou a concessão d o d ire ito de sufrágio,
N ão consta o nom e desse d e p u ta d o ba iano nos anais da 
C onstitu in te brasile ira d e 1823, e o projeto desenvo lv ido p e ­
los dez m em bros nom eados pelo Im perador, após a dissolvição 
d a A sse m b lé ia C o n s t i tu in te , a p a r d e a d o ta r o s u frá g io 
censitário, não a dm itiu o voto d a m ulher, d e form a a perm itir 
o d ireito d e participação no processo eleitoral. (Arts. 91 a 97 
d a C onstitu ição brasileira de 1824).
O I lum in ism o não h av ia d isp e rsad o a inda o es te reó tipo 
d a m u lh e r b iológica e a sua incapac idade p a ra o tra to d o es ­
paço público. Este ú ltim o era an tôn im o d o espaço d o m és ti ­
co e este um significante unívoco ap licado a p e n as às tarefas 
fem in inas m anuais .
Tratava-se do Deputado Domingos Borges de Barres, representante da Provín­
cia da Bahia às Cortes Gerais portuguesas incumbidas de elaborar a primeira Cons­
tituição de Portugal. A informação colhida de João Batista Cascudo Rodrigues acres­
centa ser aquele deputado pai da futura Condessa de Barrai, a quem ajunto a 
informação de ter sido aquela por seu turno uma mulher do tipo “viril", pela sua 
participação intensa na vida social do Segundo Império, havendo trocado corres­
pondência com o Imperador Pedro II. A informação de Cascudo Rodrigues está 
contida em A M ulher Brasileira - Direitos Políticos e Civis, 3, ed. Brasília; Centro 
Gráfico do Senado Federal. 1993, pp. 43-44.
A tradução é minha.
CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
CAPÍTULO 4
A MULHER E A POLÍTICA DO PODER; A CAÇA ÀS BRUXAS
O poder, pa lavra polissêmica e que foi t ra d u z id a em lin ­
guagens variadas, subjaz às políticas de m ando , de obed iên ­
cia ou, com o d iz MAX WEBER, às relações d e dominação.^®
Incursionando na H istória da Inquisição h á d e se verificar 
q ue literalm ente a caça às bruxas foi u m a form a de m arg inali­
zar as m ulheres que agiam na in form alidade do po d e r, no tra ­
to das forças da natu reza, e po rtan to u m a espécie d e cercea­
m en to da voz fem inina d o não-d ito , com batido pelo Poder 
Oficial com o apostasia. A bruxa trabalhava às ca ladas e esse 
silêncio tinha voz a ltam ente incôm oda.
U m a fo rm a d e não -dec lara r d ire ito s era a d e p e rseg u ir 
m ed ian te a abjuração, que tanto se revestiu d e estigm as soci­
ais q u an to d e condenação religiosa. E aqui o im aginário dos 
acusadores vai longe ao pon to de revelar que os dem ônios 
p o d em partic ipar da geração de hum anos, a través das b ruxas 
que em conluio carnal com íncubos e súcubos,'^ geram seres 
hum anos. São, assim , m ulheres d enominad as de b ruxas ou 
feiticeiras p o r causa d a " m agn itude de seus a tos m aléficos". E 
"enfeitiçam a m ente dos hom ens, levando-os à loucura, ao ódio 
insano e à lascívia desregrada".
Para o esludo da Sociologia da Dominação, ver MAX W EBER, in: Economia y 
Sociedad- E.sbozo de ‘Sociologia Compreensiva’. Trad, de José Medina Echavaría 
et allii. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992, pp. 695 a 889.
íncubos e Súcubos são demônios masculinos e femininos que em conluio carnal 
com as bruxas faziam-nas procriadoras de seres monstruosos. Sobre a matéria, 
ver verbetes ín cu bo s e sú cu b o s in: Manfred Lurker, Dicionário de Dioses y Diosas, 
Diablos y Demônios. Barcelona/Buenos Aires/México; Ediciones Paidos Ibérica 
(s.d,],
" Ver sobre o tema O Martelo das Feiticeiras - Malleus Maleficarum trad, de 
Paulo Fróes, 12, ed. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997.
Ver Introdução Histórica, de Rose Marie Muraro. Ibidem, pp. 5 a 17,
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
É m ister deixar claro que aqui é feita um a referência científi­
ca no sentido da História das M entalidades. Trata-se de ação 
situada no tem po histórico, que se apóia em saber teórico, como 
tam bém em regras imaginárias, os quais levaram à prática for­
m as d e agir que vistas a distância do tem po em que aquelas 
foram produzidas pode parecer - e parece, efetivam ente - em 
evento declaradam ente esdrúxulo e sem cabida nos dias de hoje.
O poder, en tre tan to , secularizou-se e se agasalha no d o m í­
nio da Sociologia, da Ciência Política e do Direito. A seculari- 
zação é de a lgum a form a u m m odo de dessacralizar. E passa a 
ser u m valor no com plexo de valores da Era M oderna.
O u d ito em ou tras palavras: com a secularização há um 
en tend im en to en tre religião e cultura, den tro de um processo 
de historicização e d e m undificação do sen tim ento religioso. 
Este é expu rgado d os elem entos q ue lhe in q u inavam p o r p e r ­
pe tra r a titudes ortodoxas, ou fundam en ta lis tas e com apoio 
do p o d e r civil, es tando este a tre lado àquele, com o acontecia 
na Id ad e M édia, e, a inda, no início da Era M oderna.
A questão do p o d e r em conexão com o tem a d as b ruxas há 
de ser vista p o r u m prism a "político" d o conceito u n o d o Es­
tado, ao m esm o tem po tem poral e espiritual, ancorado na Igre ­
ja Católica que en tão se institucionalizava. É obra resu ltan te 
de vários fatores, inclusive na o rdem sincrônica e diacrônica 
dos fatos. H á um delineam ento p ro longado através dos tem ­
pos, na configuração d o Estado.
D esde a Bula d e Inocêncio VIII (1484), a qua l reforçou o 
apare lham en to d o Tribunal Inquisitório, ou d e antes, de vez 
qu e o T r ib u n a l d o S an to O fício foi in s t i tu íd o p e lo P a p a 
G regório IX (1170-1241)^^ com o instituição perm anen te , wrfe;
Foi esse Papa quem instituiu a Inquisição sob a direção dos dominicanos. C on ­
tudo, sabe-se que o Papa que aprovou o uso de tortura na Inquisição, a fim de
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
et orbi, e com vistas ao com bate das heresias. Esse T ribunal 
sed iado em T oulouse torna-se am pliado jurisd ic ionalm ente 
p a ra a ting ir a França, Espanha, A lem anha e, em m en o r esca­
la, Portugal. H avia, ev identem ente, o apoio d o b raço secular, 
pois sabe-se que os juizes eclesiásticos não p ro n unciavam pe ­
nas capitais, d evendo os réus ser en tregues ao ju lgam en to do 
p o d e r civil. P raticam ente, este funcionava com o o aparelha- 
m en to ideológico daquele Tribunal, haja v ista q ue o substra to 
filosófico dos processos foi em basado em textos religiosos.
M ais um a vez, a simbologia está fortem ente presente, pois 
aqui 0 religioso mescla-se com o m ágico, ou seja, a perseguição 
às b ruxas tem supedâneo no m u n d o do imaginário, em que se 
creu que o "poder" delas em certa m edida é objeto da im agina­
ção de quem tudo podia fazer, ou seja, ter o pod e r aliado ao 
Dem ônio, para tudo realizar, inclusive operações inacreditáveis, 
como, po r exemplo, criar seres por metamorfose. E, ainda, apoi­
ados os autores do Malleus Melleficaram em filósofos m uçu lm a­
nos, sugerem aqueles que o poder da imaginação é capaz de, na 
rea lidade ou na aparência, modificar os corpos de outras pes­
soas, desde que esse poder de imaginação não seja reprimido.^^
colher confissões de heresia, foi Inocèncio IV {1200-1254), Assim, o Papa Gregório 
IX é v is to com o um P ontífice v irtuoso , havendo sido um fo rte de fensor dos 
franciscanos. Foi ele quem canonizou Francisco de Assis, seu amigo pessoal, em 
1228, Antonio de Pádua (ou de Lisboa), em 1232, e Domingos, em 1234. Ao criar 
a Inquisição, deliberou passar às mãos das autoridades civis a questão da pena de 
morte. Foi o mesmo Papa quem determinou a reabertura da Universidade de Pa­
ris, em 1231, modificando o interdito contra obras filosóficas de Aristóteles. Ver 
verbetes Gregório IX e Inocéncio IV, in: Richard P. McBrien, Os Papas - Os Pontí­
fices de São Pedro a João Paulo II, trad, de Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: 
Edições Loyola, 2000, pp. 218-220 e 221-222, respectivamente aos dois verbetes.
22 Os filósofos muçulmanos citados são AL-GAZALI e AVICENA, o primeiro com 
uma form ação eclética, havendo sofrido várias influências do pensamento de sua 
época (1059/1111), tais como, da filosofia, teologia e do esoterism o e o segundo, 
na verdade, anterior a este. conhecido pelo nome de AVICENA, nascido em 980 da 
era cristã e famoso como o maior nome da filosofia neoplatônica islâmica, bem 
como da medicina medieval.
3 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
C o n tu d o , a ques tão da persegu ição no tocante às b ru x as é 
significativo de u m a época em que se com eçava a descobrir 
que o saber gera poder. Essa id en tid ad e com eça a se esboçar 
a p a r t i r d o m a rc o g a l i l e a n o , m a rc o q u e fo i c a p a z d e 
d e sco n s tru ir d o g m as fo rm ados e aceitos ao longo d o s sécu ­
los. É com o d ito p o r H ILTO N JAPIASSU, q u e "... o sen tido 
d o conhecer se converte em ação, em ato d e apodera r-se , em 
d o m in ação o u apropriação".^^
N a v e rdade , a Ciência de tonou o saber com o fonte de p o ­
der, conhecim ento universal, capaz d e m u d a r o conhecim en ­
to estabelecido, na interferência da N a tu reza e no p o d e r da 
detenção desse conhecim ento. É o desafio d o ho m em do sa ­
ber que altera a com posição das es tru tu ras d o poder.
Torna-se " insuportáve l" ver a b ruxa m an ip u lan d o as for­
ças d a N atu reza , com o aquelas desenvolv idas po r benzede i­
ras, cu rande iras e p rinc ipalm ente po r parteiras. A inda que de 
um a form a não-científica.
E era tão forte essa questão da crença nesses elem entos que 
todo 0 arcabouço da Justiça Civil se prestava a colaborar na ulti­
mação desses processos. O próprio Malleus Maleficariirn é um a 
peça jurídico-ideológica, d ifundida por toda a Europa, em sua 
prim eira versão latina e, após, em traduções, e um a peça essenci­
al para o estudo da m entalidade da época, na qual dois teólogos 
dominicanos - H enry Kramer e James Sprenger - eram professo­
res e delegatários para os fins de realização da "justiça", com 
plenos e irrestritos poderes para o exercício de seus misteres.
C uriosam ente , em época m ais recente, ISAAC N EW TO N 
serve-se de conhecim entos esotéricos, a lquim istas, ocultistas, 
a po n to de Keynes, em 1946, haver declarado que N EW TON,
Cfr. Hilton Japiassu, in: / is Paixões da Ciência - Estudos de História das C iênci­
as. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1991, p, 300,
CIDADANIA DAMULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
sendo o m aior filho d e C am bridge , foi n ã o o p r im eiro p e n sa ­
d o r da era d a razão, po rém o ú ltim o dos mágicos/'^
A inda segundo JAPIASSU, foi relevante o trato da trad i­
ção m ágica ou herm ética no pensam en to de N EW TO N , inclu ­
sive h a v e n d o este p recu rso r cientista d o M u n d o M oderno 
haver rea lizado um estudo transdisciplinar, em que são es tu ­
dad o s P itágoras - o que com parou a Justiça à perfeição de um 
n ú m ero q u a d ra d o - , Virgílio, São Paulo, M oisés, Salom ão e 
ou tras f iguras de expressão no m u n d o do pensam en to filosó­
fico e religioso, inclusive afirm ado que P itágoras conhecera 
no seu tem po a lei da gravitação.
São postu lações de novas épocas, nas quais falar de "p o d e ­
res ocultos" já não d en o d av am processos de ex term inação de 
apostasias. E, por via d e conseqüência, já se via Galileu em 
ou tra ótica, e a justiça transfigura-se em n om e de um outro 
e lem ento cham ado razão, e que às vezes n ão confirm ava essa 
confluência em torno da perfeição d a igualdade da justiça do 
quadrado.
H á um a segunda conciliação en tre a razão e a fé. E o Direi­
to abre cam inho pa ra que o ser h u m an o com plete a sua obra 
social e política. D issem os acima que se tra tava de u m a ru p tu ­
ra, m ais ao sabor foucaultiano. C om efeito, há u m a m udança 
de ru m o den tro d o conceito de sexo, pois a d iscrim inação aí 
constru ída parece fazer parte de um a tessitura política e lin­
güística. E com o o Direito é tam bém política e l inguagem , é de 
se inferir que a m udança do rum o perm eie as regras do Direi­
to Positivo, com u m ingredien te novo: a justiça va lo rada pelo 
e lem ento m aterial. H á um a interação en tre a m u d an ç a social
** A frase atribuída a John Keynes acha-se citada em Hilton Japiassu, op. cit., pp. 
123 0 segs-, dentro do Capítulo 4. O Contexto Mágico - Religioso - Político de 
Newton,
3 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
e o apare lho receptor do Direito q ue se im pressiona e percute 
an te os fenôm enos da v ida social.
E a justiça m ateria l se inflete n a igua ldade ex ortada em to ­
dos os prism as: n a construção de u m m u n d o m ais igual, nas 
relações p ro d u tiv as m ais equ ilibradas e eqüita tivas, n o en cu r­
t a m e n to d a s d e s ig u a l d a d e s so c ia is e r e g io n a i s {vide 
p ro g ra m á t ic a d a C o n s titu ição b ras ile ira de 1988, em seu 
exórdio , art. 3° e incisos) e na efetivação da ig u a ld ad e entre 
h o m em e m ulher, den tro do espírito da filosofia dos Direitos 
H um anos. Aí se inicia o processo de c idadan ia d a o u tra m eta ­
de d a H um an idade .
A c idadan ia é vista no contexto de um a justiça m aterial, 
esta, na concepção de ser a realizadora d a ig u a ld ad e jurídico- 
form al. É o constructo m aterial, isto é, a rea lidade c ircundan te 
d o Direito, q u e vem a ser tom ada em conta pa ra q u e haja um 
encontro efetivo do juspositiv ism o com a rea lidade histórica 
e social, já que n a p rópria tessitura d o Direito form al de há 
m uito se in seriu o elem ento subjacente d o ius e d a aequitas, 
v in d o a faltar, apenas, a concreção das rea lidades sociais na 
construção formalística da lei.
H á, po r ou tro lado, u m crescim ento ou transição n a cons­
trução simbólica da cidadania, até, quem sabe, por u m acúm ulo 
d a m en te social coletiva ou pa ra usar da insuperável expres ­
são d e JUNG, m ed ian te a rq u é tip o s ancestrais.
Jung nos dá a idéia de arquétipos no seguinte exemplo: “Permitam-me a seguin­
te comparação: suponhamos que nos incumbiram de descrever e explicar um edi­
fício cujo andar mais alto foi construído no século XIX e cujo andar térreo data do 
século XVI. Investigações mais acuradas das paredes nos revelam ainda que esse 
edifício foi reconstruído a partir de uma torre do século XI, No porão descobrimos 
alicerces romanos e abaixo do porão encontra-se uma caverna soterrada. No fun­
do dela se encontram instrumentos de pedra na camada superior e restos da fauna 
da época na camada inferior. Essa construção se assemelha de certa form a à 
imagem de nossa estrutura psíquica: vivemos no andar mais alto e só vagamente 
sabem os que o andar térreo é relativam ente antigo. E sobre o que se encontra
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
A considerar essa revivescência há que se ver que os concei­
tos de cidadania e de justiça atribuídos à m ulher vêm de ser 
retom ados em pleno século XX, a inda que a princípio sob um a 
ótica de Direito N atura l a ser positivado - Declaração U niver­
sal dos Direitos H um anos da ONU, de 1948 e posteriores Acor­
dos e Convenções assinados com vistas à igualdade na política, 
no trabalho, na vida social, enfim, no espaço público.
O u na ótica dos arquétipos, quiçá há u m a re tom ada d a p a r ­
ticipação política da m ulher, igual ao ou tro gênero , cultura 
essa que seg u n d o estudiosos p ro sperou em civilizações e épo ­
cas arcaicas, ou m ais antigas, não obstan te tal verten te não 
haver s ido versada pelo preclaro JUNG, a té p o rq u e d u ran te a 
sua época, o arqué tipo da m ulher se circunscrevia à m ãe, que 
é identificada ao yin chinês, enquan to o a rqué tipo d o pai, re ­
lacionado ao yang, de te rm inava a relação com a lei e com o 
Estado, po rtan to , acrescento eu, com o poder.
O ra, há es tudos arqueológicos que nos levam a asseverar 
que não é d e todo im proceden te tal possib ilidade. N ão se quer 
com isso criar nova tese, con tudo há que se ressaltar que os 
es tudos e pesqu isas sobre a v ida arcaica da H u m a n id a d e dão 
conta de que há u m im pulso inicial pa ra considerar u m a e ta ­
pa da hum anidade que se assentava em um a igualdade entre 
hom ens e mulheres, ou até de desequilíbrio nessas relações em 
detrim ento do hom em . Tal assertiva nos vem de BACHOFEN,^^
abaixo da superfície não temos conhecimento algum” . Esse exemplo com a infor­
mação da complexidade da questão acha-se em CARL G. JUNG, in: Civilização 
em Transição. Trad, de Lúcia Mathilde Endiich Orth, 2. ed. Petrópolis: Editora Vo­
zes, 2000, pp. 35 e segs.
" Bachofen é citado por Joseph Campbell et allii, in: Todos os nomes da Deusa. 
trad, de Beatriz Pena, Rio de Janeiro; Record - Rosa dos Tempos, 1997, p. 63. 
Ver, igualmente, Friedrich Engels, in: A Origem da Família da Propriedade Privada 
e do Estado, trad, de João Pedro Gomes, Lisboa-Moscou: Editorial “Avante!", 1985, 
O autor citado é Johann Jakob Bachofen (1815-1887), historiador e jurista suíço, 
autor de “0 Direito Materno” .
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
q ue considerava o m atriarcado com o a form a m ais prim itiva 
d a sociedade hum ana. Aliás, esse ú ltim o pesqu isado r é um 
dos au tores es tudados por ENGELS quan d o do desenvolv i­
m en to d e suas pesquisas que vieram em basar a sua obra so ­
b re a Família e a P ropriedade.
Por ou tro lado, há evidências de u m equilíbrio de direitos 
en tre hom em e m ulher no Egito Antigo. Prim eiro, pela rele ­
vância de sua d eusa ISIS, que encarnava a p ró p ria im agem do 
Egito, seg u n d o a palavra au to rizada da eg iptóloga CHRISTI- 
AN E DESROCHES NOBLECOURT.
Era o u to rgada liberdade à m u lher egípcia que não conhe­
cia a tutela, com o ocorreu com a m ulher rom ana; em m atéria 
d e d ire itos de sucessão, os quinhões eram iguais pa ra os h o ­
m ens e pa ra as m ulheres e pod iam elas escolher o seu m ari­
do, o que não acontecia com as rom anas, e p o r a tav ism o cul­
tu ra l não existia tam bém tal l iberdade às m ulheres do m u n d o 
ocidental, particu la rm en te d a Península Ibérica. Por via de 
conseqüência, as m ulheres brasileiras d a época colonial não 
gozavam dessa liberdade, havendo tal fato se es tend ido até 
a lgum as décadas atrás.
Dá-nos conta NOBLECOURT que a m ulher egípcia gozava 
de am pla capacidade jurídica - referindo-se à m ulher não-es- 
crava - e o que é m ais curioso é que a m ulher casada, no início 
da XIII dinastia - cerca de 1785 a.C. - era detentora d e um a 
am pliada capacidade legal, p odendo até convocar o seu pai em 
Juízo, a fim de proteger os seus próprios interesses p r iv a d o s / '
Ao revés, até 1962, em nosso país, à m u lher casada era im ­
p u ta d a um a incapacidade relativa, em face d o C ódigo Civil 
q ue assim o de te rm inava em seu artigo 6° . Era a m arca pro-
2’’ Sobre a mulher no Egito Antigo, ver Christiane Desroches Noblecourt, in: A 
Mulher no Tempo dos Faraós, trad, de Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 
1994, Sobre as informações acima, ver pp. 207 a 216, passim.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 4 1
funda d o Direito Rom ano, trazida até nós via Código Civil 
N apoleònico, este, desprestig iador do direito das m ulheres por 
força d a velha tese da incapacidade do sexo fem inino. Foi essa 
verten te que se d ifund iu no Direito O cidental, fo rm ulado ao 
longo dos séculos e d e forte laivo religioso em face das d o u tr i ­
nas desenvo lv idas d u ran te a Idade M édia, e que no fenôm e­
no da aculturação p e rm eou os vários o rdenam en tos jurídicos 
dos países eu ropeus ocidentais.
Em resum o do C apítulo, im pende d izer que há u m a lin ­
guagem reducionista constru ída em face d e excluir a m ulher 
da usufru ição de d e te rm inados estados, sob re tudo q u an d o se 
trata d e estados d e "graça intelectual", forjadora do poder, 
a p o n ta n d o -s e aq u i u m a p ró p r ia r u p tu r a com o d isc u rso 
heurístico sobre o qual a Justiça em sua origem está assen ta ­
da. N a v e rd ad e , h á u m a lu ta im plícita e silenciosa d e n tro da 
qual se o peram interesses com o os desenvolv idos pelo T ribu ­
nal Inquisitório , o qual operava com a apriorização de certos 
conceitos com o os expendidos em Bulas e no fam oso Malleus 
Malleficarum, qu an d o "dogm as" eram estabelecidos p o r vári­
os p rocessos intelectivos e, p o r via de conseqüência, pelos 
processos judiciais de na tu reza nâo-dialética.
Ao sabor dos séculos, ver-se-á um a ru p tu ra epistem ológi- 
ca no d iscurso jurídico e p articu larm ente no tem a d o poder.
CAPÍTULO 5 
O CONVENTO: LOCUS DE CIDADANIA DAS MULHERES?
Tem os v isto ao longo deste trabalho que a c idadan ia é h is­
to ricam ente expressão de um gênero - m ascu lino - e de um a 
elite econôm ica e cultural d u ran te o processo de conquista 
daqueles direitos.
CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
Foi assim em A tenas e em Roma. Foi assim d u ran te a Idade 
M édia, cujos estam entos senhoriais, ao lado do Clero, de ti­
n h a m a pa lavra e o pod e r decisório. Foi igualm ente assim por 
ocasião do Ilum inism o, pois afora a m arginalização da m u ­
lher no processo político, com o vim os, po r exem plo, na C ons­
titu ição francesa d e 1793, esta e a p rópria Revolução Francesa 
priv ileg ia ram o princípio censitário, afora o h aver excluído o 
d ire ito de voto às mulheres.
O que se verifica em verdade é a prevalência da lei d o p ro ­
cesso legal form al, vale dizer, que os d ire itos e facu ldades le­
gais estão garantidos, sem que haja qua lq u e r ten ta tiva de se 
assistir o ind iv íduo , no uso desses poderes. Sobretudo , q u a n ­
do esse in d iv íduo tem papéis sociais femininos.
Por ou tra parte , os critérios pohticos desenvo lv idos d u ra n ­
te e após a crescente vaga d o Ilum inism o esbarravam -se na 
face d a justiça form al, po is o sufrágio era exercido o u pelo 
reg im e censitário o u pelo princípio capacitário.
Pelo p rim eiro , os negócios d a com un idade nacional devem 
esta r afetos àqueles que detêm interesses reais ou p o r p o ssu í­
rem bens ou po r terem rendas que justifiquem o d ire ito ao 
voto e à participação no negócio público.
M ediante o segundo princípio, esse d ireito seria conferido 
n ã o a p en as àque les que cap itu lavam na s ituação an terio r, 
p o rém era baseado tam bém na capacidade, no d iscern im en ­
to, no ter títulos acadêm icos e no ter independência suficien­
te, p ressupostos , seg undo a teoria, de que só esses c idadãos 
têm tirocínio pa ra a decisão das políticas a serem ado tad as 
pelos governos.^®
Houve um critério de voto plural existente no sistema belga de votação, em 
1893, O sufrágio masculino universal foi aí adotado, porém com características no 
m ínimo curiosas. Tratava-se dos votos extras concedidos a pères de famille. que 
houvessem atingido a idade de 35 anos. Essa informação está contida em Reinhard
CIDADANIA DA MULHER, LIMA QUESTÃO DE JUSTIÇA,
C om o incluir aí as m ulheres, que não sab iam ler ou escre­
ver na m aior pa rte delas? Ora, o saber nas m ulheres sem pre 
foi es tigm atizado em função de a rgum en tos que jam ais sub ­
sistiriam no m u n d o atual. A saída pa ra o acesso à instrução e 
à cu ltura era a v ida religiosa, sem, en tre tan to , h aver com o ex­
p a n d ir d e te rm inadas vocações literárias ou ap tidões intelec­
tuais m ais conspícuas. Ao contrário, ten tava-se obstaculizar 
ou a té p u n ir essas m anifestações ou "desvarios" d a m ente fe­
m in ina m erg u lh ad a na escuridão das letras.
A Inquisição e spanhola levantou suspeitas sobre Santa Te­
resa D 'Á vila , que, segundo ARTHUR STANLEY TURBEVIL- 
LE, é a m aior e m ais am ável de todos os m ísticos espanhóis. 
M e sm o a s u a a u to b io g ra f ia e s p ir i tu a l foi d e n u n c ia d a à 
Inquisição, a qual levou dez anos pa ra decid ir se a leitura era 
o u não conveniente pa ra os cristãos.
U m destino assem elhado ocorreu com Juana Ines de la Cruz. 
Im pelida pela v o n tad e de desenvolver a le itu ra e h avendo 
descoberto que não era perm itido às m ulheres dedicar-se a 
estudos, tom ou a decisão de en trar em u m convento , o n d e leu 
um a im ensidão de livros de Ciências, de H istória e de poesi­
as, afora ser levada a um m isticism o p ró p rio d a época. Fez 
p ro fu n d a s m editações e escreveu bastante.
E considerada a p rim eira voz fem inina d as A m éricas que 
teve a coragem de d izer que todas as pessoas tinham o m es­
m o d ireito à educação.
N ão foi, en tre tan to , com preend ida pela sua com unidade ,
Bendix, in: Construção Nacional e Cidadania, trad, de Mary Amazonas Leite de 
Barros. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília, 1996, p. 133. A expressão 
em francês é do original.
^ Ver Arthur Stanley Turbeville, La Inquísicion EspaHola. México/DF: Fondo de 
Cultura Econômica, 1985, p. 96.
4 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA
h av en d o sido p ro ib ida de continuar a escrever sob p ena de 
ser expulsa do convento.
M uitos são os casos ocorridos em q ue m ulheres d 'a n ta n h o 
v iram na v ida religiosa e conventual a form a m ais viável de 
exercer u m a cidadania, a inda que lim itada.
NATALIE ZEM ON DA VIS pesquisou a história de M arie de 
rincam ation , que emigrou para a América, im pulsionada pela 
v ida religiosa, indo ao Canadá onde se dedicou à instrução dos 
autóctones. A princípio, escreveu em língua francesa e, após, nas 
línguas am eríndias locais. Corria o início do século XVII.^’
Só o C onven to p ropiciava o direito básico d e c idadan ia , ou 
seja, o saber ler e o escrever. E

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