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O Supremo Tribunal Federal e a hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico nacional

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O Supremo Tribunal Federal e a hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico nacional
1 INTRODUÇÃO
Apesar dos entendimentos contrários, a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos regularmente incorporados pelo Brasil é a de constitucionalidade material, visto que seu objeto se inclui dentre as matérias cujo conteúdo é indispensável à manutenção das estruturas basilares do Estado e da sociedade. Essa força constitucional, inclusive, independe da adoção do procedimento diferenciado do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, cuja utilidade se restringe a distinguir os direitos materialmente constitucionais dos formal e materialmente constitucionais – distinção essa de pouca utilidade prática no tema em questão. Dessarte, merece revisão o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que, levando em decisiva consideração o § 3º do artigo 5º da Carta Magna, confere aos tratados em questão status de mera supra legalidade (que sequer possui previsão normativa), exigindo a adoção do procedimento especial em referência para o reconhecimento de sua constitucionalidade.
Inserida no contexto de redemocratização, como explica Flávia Piovesan (2013, p. 87, Epub-Adobe Digital Editions), e objetivando a consolidação das instituições democráticas, a Carta de 1988 veio institucionalizar um regime político democrático, introduzindo, para sua efetivação, “um indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira”. Para tanto, abriu-se à força normativa dos princípios, abandonando definitivamente o que Canotilho (apud PIOVESAN, 2013, pp. 90 e 91, Epub-Adobe Digital Editions) chamava de “direito das regras dos códigos” para se deixar ser regida, em última instância, pelos valores e princípios.
É aí que se destaca o princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente apresentado pela Constituição Federal como um de seus fundamentos (artigo 1º, III). Baseado na visão kantiana de que a humanidade, na pessoa de cada ser, deve ser tratada como um fim em si mesmo, jamais como um meio, o princípio da dignidade da pessoa humana foi erigido à qualidade de norma central de nosso ordenamento jurídico, a orientar, de acordo com Gilmar Mendes e Paulo Branco (2014, p. 172, Epub-Adobe Digital Editions), “os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança”. Constituiu-se, assim, num verdadeiro “superprincípio”, a pairar sobre e reger nossa ordem jurídica.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos, a seu turno, relaciona-se intimamente com o direito constitucional interno, à medida que, objetivando proteger uma mesma categoria de bens jurídicos, vem a estabelecer todo um rol de direitos e garantias fundamentais que, além de complementares aos da ordem interna, constituem, nas palavras de Piovesan (2013, p. 90, Epub-Adobe Digital Editions), “parâmetro e referência ética a inspirar o constitucionalismo ocidental”. Sob essa influência, o próprio Brasil os incluiu definitivamente em sua agenda internacional após o processo de redemocratização.
Assim, tais sistemas, interno e internacional, não podem ser estudados ou compreendidos de maneira isolada, mas de maneira conjunta e coordenada. É questão fundamental, pois, o estudo dessa inter-relação, especialmente no que tange à integração dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro, à luz dos §§ 2º e 3º do artigo 5º da Constituição Federal.
Debater a eficácia de tais tratados em face da Carta Maior, bem como sua exigibilidade em âmbito doméstico serão as temáticas a serem aprofundadas no presente trabalho, o que será feito com fulcro no posicionamento de doutrinadores e juristas, assim como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais internacionais.
Assim, procurar-se-á demonstrar que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 2º, ao autorizar a expansão do rol de direitos fundamentais constitucionais para abranger normas contidas em outros instrumentos normativos, como é o caso dos tratados internacionais de direitos humanos, incorpora-as ao nosso ordenamento jurídico com força e status constitucional.
Ademais, será demonstrada a quase inutilidade do atual § 3º do artigo 5º da Constituição, vez que, mesmo sem a adoção do procedimento nele previsto, as normas sobre direitos humanos serão materialmente constitucionais. Por fim, discorrer-se-á sobre a necessidade de revisão da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, ao considerar aquele dispositivo de maneira firme, criou uma estranha categoria normativa, a da supra legalidade – sem qualquer previsão constitucional autorizativa.
2 HIERARQUIA NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 
2.1 Evolução histórica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Influência da edição da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004
No Brasil, como nota Henrique Simon (2013, p. 99), apesar da existência de entendimento doutrinário que defende a atribuição de hierarquia de constitucionalidade material aos tratados de direitos humanos, o direito das gentes ainda sofre com a indefinição do seu status na pirâmide jurídica do ordenamento. Aqui ainda se discutem temas como “monismo x dualismo” e a relação das normas de direito internacional com as do direito interno. A soberania ainda é abordada da mesma forma que era por ocasião de seu surgimento, no século XIX, quando, vinculada à própria existência do Estado, era o poder que, internamente, não reconhecia nenhum outro como superior e, internacionalmente, nivelava todos como iguais. Dessa forma, ficamos presos a conceitos igualmente arcaicos do Direito Constitucional.
O recurso a esses conceitos tradicionais, todavia, não é suficiente para resolver todas as diversas questões complexas que se apresentam no dia-a-dia jurídico. É o caso da natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos, bem como sua inter-relação com os demais diplomas normativos constitucionais e infraconstitucionais. Acerca desses temas, o texto constitucional não é claro e dá margem à formação de diversas correntes doutrinárias e jurisprudenciais, que se digladiam sobre o tema.
Pois bem. A primeira orientação equipara os tratados internacionais incorporados ao direito interno, inclusive os de direitos humanos, à legislação ordinária federal. Para essa corrente, não há prevalência entre uns e outros, sendo que, por estarem no mesmo patamar hierárquico, eventuais conflitos entre eles devem ser resolvidos por meio dos tradicionais critérios de resolução de antinomias, quais sejam, o cronológico e o da especialidade.
Tal corrente sustenta, em síntese, que acordos internacionais, aprovados por maioria simples pelo Congresso Nacional conforme o artigo 49, V, da Constituição Federal não poderia modificar nossa Carta Maior, que é rígida e, portanto, necessitaria de quórum diferenciado para ser reformada. Além disso, argumentam a Constituição Federal, em seu artigo 102, III, “b”, confere competência ao STF para apreciar recurso extraordinário em face de decisão que declara a inconstitucionalidade de tratado internacional, o que demonstra a sujeição desses à Constituição Federal.
Esse posicionamento foi consagrado no Supremo Tribunal Federal ainda em 1977, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 80.004/SE, e era aplicado indistintamente pela Corte até meados da década passada. Como lembra Carvalho Ramos (2012a, p. 140, Epub-Adobe Digital Editions), exemplo clássico da utilização desse estatuto normativo ocorria com os casos de prisão civil de depositário infiel, que, apesar de proibida pelo artigo 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, é permitido pelo artigo 5º, LXVII, daConstituição Federal e, por isso, até meados da década passada, o STF possuía jurisprudência consolidada no sentido que tais tratados se subordinariam ao texto constitucional, o qual, ao permitir a prisão civil do depositário infiel, legitimava sua utilização pela jurisprudência (v. Habeas Corpus nº 72.131/RJ, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.1996).
Com a devida vênia, esse entendimento nunca mereceu aplicação. O valor de uma norma jurídica não se mede apenas pelo procedimento legislativo previsto para seu ingresso no sistema jurídico. Dessarte, se para a incorporação dos instrumentos internacionais de direitos humanos ele é mais simplificado do que para a edição das emendas constitucionais, isso decorre única e exclusivamente da vontade soberanamente manifestada pelo Poder Constituinte originária, que assim entendeu necessário e adequado às peculiaridades da espécie normativa.
Ademais, como bem observa Mazzuoli (2013, pp. 62 e 63), se a legitimidade da reforma constitucional é encontrada “na maioria qualificada necessária para a aprovação de uma emenda constitucional”, os instrumentos internacionais também têm sua fonte legitimadora, que é “o complexo procedimento de negociação e aprovação dos tratados no plano internacional”, a demonstrar que ambos são diferenciados e têm âmbitos de validade que não se confundem.
Mais: diferentemente da Constituição de 1988, cujo artigo 5º, § 2º expressamente confere tratamento especial às normas convencionais sobre direitos humanos, à época do RE 80.004/SE, editado sob a égide das Constituições de 1967 e de 1969, não havia qualquer referência constitucional diferenciada aos tratados de direitos humanos; o acórdão tratava, inclusive, da Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas promissórias, advinda da Convenção de Genebra, de 07 de junho de 1930 e estranha à proteção dos direitos humanos. Para que essa interpretação fosse válida, então, dever-se-ia partir da premissa irracional de que o trecho que se refere aos tratados no § 2º do artigo 5º da Constituição simplesmente não tem razão alguma de ser.
Essa posição, todavia, além de jamais ter sido pacífica (no próprio HC 72.131/RJ, votaram pela prevalência da Convenção Americana os Ministros Marco Aurélio, Francisco Rezek, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence), sempre foi alvo de críticas das mais diversas, pois tira toda e qualquer aplicabilidade do citado § 2º do artigo 5º. Ademais, facilita por demais a responsabilização internacional do Brasil, visto que a decisão sobre o cumprimento ou não das normas convencionais fica ao talante do legislador ordinário, que a qualquer momento pode editar norma incompatível com as obrigações assumidas pelo Brasil, acarretando seu descumprimento, sem que haja qualquer tipo de controle ou limite a essa atividade legi
ferante.
Não sem razão, o internacionalista Celso de Albuquerque Mello fez duras críticas à decisão em tela:
A grande maioria dos votos está fundamentada em autores antigos e dualistas, como é o caso de Triepel. [...] o STF não viu a consequência do seu acórdão, que poderá influenciar os juízes nos mais diferentes locais do Brasil. Por outro lado, faltou a ele sensibilidade para o momento atual em que o Brasil intensifica as relações internacionais. Qual o valor de um tratado se um dos contratantes por meio de lei interna pode deixar de aplicá-lo? (2000, p. 119)
Assim, parcela da doutrina, capitaneada por Mello (2000, p. 123), defende o status supraconstitucional das normas contidas nos tratados de direitos humanos, levando em consideração a principiologia internacional caracterizada pela força expansiva dos direitos humanos e sua caracterização como normas de jus cogens. Essa visão, todavia, apesar de ser a adotada pelos órgãos internacionais e diplomas convencionais (como a Convenção de Viena de 1969 – art. 27), jamais obteve atenção significativa no Brasil.
 Lado outro, desde a promulgação da Carta Magna, em face de seu § 2º do artigo 5º, diversas vozes sempre defenderam o estatuto constitucional dos tratados de direitos humanos, pois “sua redação (‘Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes […] dos tratados internacionais’) em cláusula de abertura forneceria aos direitos previstos nos tratados de direitos humanos a almejada estatura constitucional” (CARVALHO RAMOS (2012a, p. 141, Epub-Adobe Digital Editions). Esse é o posicionamento adotado neste trabalho, na esteira da doutrina internacionalista majoritária.
Visando a conciliar a visão então majoritária do STF, de equivalência dos tratados à legislação ordinária, com a visão majoritária na doutrina, de constitucionalidade desses mesmos tratados, o Ministro Sepúlveda Pertence, na relatoria do RHC nº 79.785/RJ (STF, Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 29.03.2000, DJ de 23.05.2003), sustentou que se deveria “aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes”.
O então Ministro sustentou, assim, a existência de uma hierarquia legislativa intermediária, pela qual os tratados de direitos humanos estariam acima de toda e qualquer lei, mas abaixo da Constituição. Essa posição conciliatória, externada já em 2000, entretanto, não logrou apoio imediato no STF, que, à época, reafirmou sua jurisprudência majoritária.
Em virtude das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, sob a pressão dos movimentos de direitos humanos e objetivando dar fim às discussões referentes à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, o legislador constituinte derivado reformador, por meio da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou um § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, assim redigido:
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
A redação do dispositivo, como se vê, é semelhante à do artigo 60, § 2º, que dispõe que qualquer proposta de emenda à Constituição “será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. A semelhança entre os textos dos artigos, explica Mazzuoli (2013, p. 40), deve-se ao fato de que, antes da entrada em vigor da emenda em referência, todos os tratados internacionais de direitos humanos eram aprovados por decreto legislativo, por maioria simples do Congresso Nacional, o que dava ensejo às controvérsias acima referidas quanto à sua aparente hierarquia infraconstitucional.
Ocorre que, inobstante os aparentes bons propósitos desse § 3º, quais sejam, afastar a jurisprudência do STF da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação ordinária federal e acabar com a controvérsia sobre o tema, na expressão precisa de Mazzuoli (2013, p. 41), trata-se de dispositivo incongruente e insuficiente e que, como não poderia ser diferente, foi recebido com pouco entusiasmo pela doutrina mais abalizada.
Isso, entre outros, pelos seguintes motivos:
1) condicionou a hierarquia constitucional ao rito idêntico ao das emendas constitucionais, aumentando o quórum da aprovação congressual futura e estabelecendo dois turnos, tornando-a mais dificultosa; 2) sugeriu, ao usar a expressão “que forem”, a existência de dois tipos de tratados de direitos humanos no pós-emenda: os aprovados pelo rito equivalente ao da emenda constitucional e os aprovados pelo rito comum (maioria simples); 3) nada mencionou quanto aos tratados anteriores à Emenda. (CARVALHO RAMOS, 2012a, p. 142, Epub-Adobe Digital Editions)
Em verdade, com a edição da EC nº 45, pode-se dizer que o sistema de incorporação dos tratados de direitos humanos, que já era confuso, foi transformadoem algo que Henrique Simon (2013, p. 110) muito bem adjetivou de “esquizofrênico”.
Explica-se. Em razão do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, um tratado internacional de direitos fundamentais já possui a qualidade de cláusula pétrea, passando a compor o sistema constitucional. Não há, aí, qualquer incongruência. Contudo, se necessária fosse a adoção do procedimento do § 3º, ficaria completamente despido de sentido o § 2º quando diz que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifou-se), pois se para isso fosse preciso o procedimento de emenda, não haveria necessidade de constar no § 2º referência expressa aos tratados de direitos humanos, uma vez que, sem maiores peculiaridades, qualquer emenda poderia incluir no texto constitucional o conteúdo de uma norma internacional de direitos humanos.
O texto do novo dispositivo induz à conclusão de que apenas alguns diplomas internacionais – aqueles aprovados pela maioria qualificada nele referida – teriam valor constitucional. Não foi previsto, porém, qualquer critério de escolha dos diplomas que deveriam ser aprovados por esse modo. Assim, abriu-se a possibilidade para que tratados relativos à mesma matéria e portadores da mesma fundamentalidade material pudessem ser aprovados com ou sem a observância do quórum qualificado, neste último caso passando a ter a hierarquia de mera norma infraconstitucional.
Ocorre que não se pode deixar à livre escolha do Poder Legislativo a enumeração dos tratados de direitos humanos que são ou não constitucionais, o que equivaleria a autorizar a concessão de tratamentos díspares a instrumentos com conteúdo igualmente fundamental (MAZZUOLI, 2013, p. 57). Por essa sistemática, por exemplo, poder-se-ia chegar ao absurdo de se atribuir equivalência de emenda constitucional a um Protocolo de um tratado de direitos humanos (suplementar ao tratado principal) e deixar sem esse efeito o próprio tratado principal. Verdadeiro paradoxo.
Da mesma maneira se posiciona Simon:
[...] poderia ocorrer, por exemplo, que o Brasil se tornasse signatário de dois tratados diferentes, mas que envolvessem o mesmo conteúdo. Poderia acontecer que o primeiro tratado tenha conteúdo constitucional, seja porque é anterior à EC 45, seja porque foi aprovado pelo procedimento da emenda, e o outro, posterior à emenda e sem a aprovação do quórum qualificado exigido pelo § 3º do artigo 5º da Constituição, seja mera lei ordinária; apesar de regular o mesmo conteúdo. O conceito de constituição material perde a serventia, pois apenas a formalização poderia transformar determinado preceito normativo em constitucional. (2013, p. 112)
Como observou Mazzuoli (2013, p. 47), parece claro que o nosso constituinte reformador, ao conceber esse § 3º, não percebeu que ele rompe com a harmonia do sistema normativo brasileiro, vez que, sem qualquer razoabilidade, cria categorias jurídicas diversas entre os próprios instrumentos internacionais de direitos humanos, conferindo tratamento desigual a normas com o mesmo fundamento de validade, violando, em última instância, a completude material do bloco de constitucionalidade e a indivisibilidade dos direitos fundamentais. Deu-se um passe livre ao legislador ordinário para que confira naturezas jurídicas diversas a instrumentos que possuem o mesmo substrato ético normativo: a proteção dos direitos humanos, consagrando uma “desigualação de iguais” que, ao fim, é completamente antijurídica por violar o princípio da isonomia.
Por tudo isso, o § 3º do art. 5º da Constituição seria mais condizente com a realidade atual se dispusesse, de maneira expressa, que “todos os tratados de direitos humanos pelo Brasil ratificados têm hierarquia constitucional, aplicação imediata e prevalência sobre as normas constitucionais no caso de serem suas disposições mais benéficas ao ser humano”. (MAZZUOLI, 2013, p. 47)
Não se nega que, apesar de entender-se plenamente inteligível a referência constitucional à constitucionalidade material dos tratados de direitos humanos a partir da melhor interpretação do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, havia, de fato (como ainda há), a necessidade de se introduzir um dispositivo naquele artigo 5º que dirimisse de vez as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema.
A Emenda Constitucional 45, todavia, como visto, não atingiu esse propósito. Abrindo brechas para a hierarquização interna dos tratados de direitos humanos, o § 3º parece ser mesmo um grande retrocesso, exemplo claro da falta de compreensão do nosso legislador quanto aos avanços do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Referido dispositivo deveria vir a reforçar a importância devida ao § 2º, positivando de maneira expressa a constitucionalidade material de tais instrumentos, de modo a conferir-lhes interpretação autêntica, e não a diminuir seu caráter inclusivo.
Para tanto, nos trilhos de Mazzuoli (2013, p. 42) e inspirando-se na Constituição da Venezuela de 1999, sugere-se a seguinte redação para esse § 3º:
§ 3º Os tratados internacionais referidos pelo parágrafo anterior, uma vez ratificados, incorporam-se automaticamente na ordem interna brasileira com hierarquia constitucional, prevalecendo, no que forem suas disposições mais benéficas ao ser humano, às normas estabelecidas por esta Constituição.
Evitar-se-iam, com isso, problemas de interpretação constitucional, bem como se contribuiria para o afastamento definitivo do equívoco que toma conta de boa parte dos constitucionalistas brasileiros no que diz respeito à normatividade internacional de direitos humanos – o que provoca um atraso de décadas do Brasil em relação às demais Constituições latino-americanas.
Sobre o tema, por fim, já contundentemente se manifestou o então juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Antônio Augusto Cançado Trindade, em voto proferido no caso Damião Ximenes Lopez vs. Brasil (sentença de 4 de julho de 2006, parágrafos 30, 31, 34 e 35 de seu Voto em Separado):
30. [...] Mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamentável retrocesso em relação ao modelo aberto consagrado pelo parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal de 1988 [...] No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbróglio tão a gosto de publicistas estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciação tão a gosto de publicistas autistas e míopes, tão pouco familiarizados, - assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, - com as conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
31. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos no Estado demandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos gravados de obscurantismo. [...]
34. Os triunfalistas da recente inserção do parágrafo 3 no artigo 5 da Constituição Federal brasileira, reféns de um direito formalista e esquecidos do Direito material, não parecem se dar conta de que, do prisma do Direito Internacional, um tratado como a Convenção Americana ratificado por um Estado o vincula ipso jure, aplicando-se de imediato e diretamente, quer tenha ele previamente obtido aprovação parlamentar por maioria simples ou qualificada. Tais providências de ordem interna, - ou, ainda menos, de interna corporis, - são simples fatos do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional, ou seja, são, do prisma jurídico-internacional e da responsabilidade internacional do Estado, inteiramente irrelevantes.
35. A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanos permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a criação de distintas modalidades de prévia aprovaçãoparlamentar de determinados tratados com pretendidas consequências jurídicas, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados humanitários no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em definitivo, a proteção internacional dos direitos humanos constitui uma conquista humana irreversível, e nãos e deixará abalar por melancólicos acidentes de percurso do gênero. (grifos meus).
2.2 Atual entendimento do Supremo Tribunal Federal. Inconsistência da tese da “supralegalidade”. Necessidade de sua revisão
Como dito, o texto do § 3º do artigo 5º da Carta Maior induz à conclusão de que apenas alguns diplomas internacionais, quais sejam, os aprovados pelo procedimento especial nele previsto, possuem status constitucional. Esse é exatamente o atual posicionamento do STF. Resgatando o antigo entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence e motivada pelo acréscimo do § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, em 3 de dezembro de 2008, a maioria dos ministros da Corte Suprema decidiu conferir um novo patamar normativo para os tratados internacionais de direitos humanos.
Na ocasião, como explica Piovesan (2013, pp. 131 e 132, Epub-Adobe Digital Editions), o STF, por maioria, firmou orientação no sentido de que, em face da previsão do artigo 7º, 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos, a prisão civil por dívida no Brasil está restrita à hipótese de inadimplemento voluntário e inescusável de prestação alimentícia. Concordou-se, ainda, em conferir aos tratados de direitos humanos um regime “especial e diferenciado”, distinto do regime jurídico aplicável aos tratados comerciais. Divergiram, contudo, quanto à hierarquia devida a esses tratados: se haveria um duplo estatuto normativo (supra legalidade ou constitucionalidade, a depender do procedimento de aprovação) ou se todos seriam constitucionais. A primeira tese foi majoritária, tendo ficado vencidos os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau.
A nova posição majoritária do STF foi capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, que sustentou que os tratados internacionais de direitos humanos – anteriores ou posteriores à EC nº 45/2004 –, que não forem aprovados pelo Congresso Nacional pelo rito especial do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, têm natureza supralegal: abaixo da Constituição, mas acima de toda e qualquer lei.
Isso porque, segundo o Ministro, os tratados internacionais de direitos humanos que não passaram pelo procedimento do art. 5º, § 3º, da Constituição da República não poderiam adentrar no ordenamento com o status de leis ordinárias por serem normas de direitos humanos - que o § 3º demonstra serem especiais. Todavia, também não poderiam ser consideradas normas constitucionais por não terem sido aprovadas por procedimento qualificado. Assim, para essa corrente, deveriam adentrar o ordenamento como normas supralegais, uma espécie de meio termo entre o status constitucional e o ordinário, situando-se acima destas e abaixo daquelas, sempre com a possibilidade de virem a se tornar constitucionais caso, a qualquer momento, aprovadas com o quórum do § 3º.
Na ocasião, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que:
a reforma acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. [...] a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n. 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. [...] Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. [...] Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. [...] Deixo acentuado, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição constitucional. [...] Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje, mais do que nunca, está preparado para essa atualização jurisprudencial.
Estabeleceu-se, com isso, o chamado duplo estatuto normativo dos tratados de direitos humanos. Enquanto os aprovados pelo procedimento comum seriam normas infraconstitucionais (supralegais), aqueles integrados ao ordenamento interno por meio do procedimento especial do § 3º teriam força formal e materialmente constitucional.
Esse novo posicionamento gerou uma série de consequências jurídicas. (GONÇALVES, 2014, p. 457)
A primeira delas foi o cancelamento da Súmula nº 619 do STF, bem como a definição de que a prisão civil do depositário infiel seria ilegítima, apesar de autorizada pelo artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, visto que a Convenção Americana de Direitos Humanos previu a prisão civil apenas para os casos de inadimplemento de obrigação alimentar, proibindo, a contrario sensu, qualquer outra modalidade de prisão civil – como a do depositário infiel.
A Convenção, para essa corrente, não teria o condão de contrariar a Constituição Federal. Todavia, considerando seu caráter supralegal, a proibição nela contida “paralisaria” toda a legislação infraconstitucional em contrário que autorizava e regulamentava a prisão civil do depositário infiel, retirando sua eficácia e obstando sua aplicação a todo e qualquer caso concreto. Em consequência, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 25, que dispõe que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Seguindo a mesma linha, também o Superior Tribunal de Justiça editou súmula a respeito, a Súmula 419.
Ao que tudo indica, como bem identificou Henrique Simon (2013, p. 110), a grande preocupação daqueles que de uma forma ou outra defendem a equiparação dos tratados à legislação ordinária ou a eles atribuem caráter supralegal é não lhes conferir imutabilidade, pois, uma vez reconhecidos como integrantes da Constituição, tornam-se cláusulas pétreas.
Por outro lado, a facilidade com que esses direitos, apesar de fundamentais, podem desaparecer do ordenamento jurídico ao bel prazer do legislador ordinário (que, como é sabido, muitas vezes atua de maneira absolutamente questionável), justifica a preocupação dos que atribuem força jurídica materialmente constitucional aos instrumentos que os contêm, arduamente negociados e construídos com outras nações em prol da dignidade humana.
A proposta da supra legalidade, ao conferir dignidade relativamente superior aos tratados de direitos humanos ao mesmo tempo em que preserva a soberania da Constituição, parece conciliar os dois lados, sendo opção para se manter o processo de reforma constitucional adstrito ao procedimento da emenda e, ainda, conferir relevância especial às normas internacionais que versem sobre direitos humanos.
Entretanto, apesar de suas boas intenções, essa compreensão não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico. Em verdade, a supra legalidade não possui qualquer previsão normativa (constitucional ou infraconstitucional). Da mesma forma, afirma que os tratados de direitos humanos não aprovados pelo quórum do § 3º não podem ser considerados constitucionais por não se submeterem a procedimento especial de incorporação, mas cria normas superioresàs ordinárias que entram no ordenamento jurídico com o mesmo quórum de aprovação destas. Ademais, não resolve o problema da proteção dos direitos humanos que, anteriores à EC 45, não puderam ser aprovados via § 3º do artigo 5º. Em síntese, não supera as dificuldades levantadas nos debates que levaram à revisão da posição anterior do STF.
Alguns questionamentos complementares também são necessários: o que significa esse “caráter supralegal”? Uma norma supralegal, conforme decidido pelo STF, não pode ser revogada por uma lei ordinária. Todavia, dizer que o tratado “supralegal” só pode ser revogado por meio de emenda não é o mesmo que dizer que o tratado é norma constitucional, mas sem o status de cláusula pétrea? Afinal, qualquer norma constitucional que não seja cláusula pétrea pode ser modificada ou retirada da Constituição por meio de emenda. Dessa forma, qual seria a utilidade do conceito de supra legalidade? Não seria mais simples e coerente simplesmente reconhecer o caráter materialmente constitucional de tais convenções? Questiona, ainda, Simon (2013, p. 109): como seria a denúncia dos tratados supralegais?
Nosso ordenamento não fornece resposta a qualquer dessas perguntas. Considerar o tratado de direitos humanos como de conteúdo constitucional ao menos leva em conta o § 2º do artigo 5º da Constituição. A supra legalidade, porém, não possui qualquer previsão jurídica, sendo mecanismo criado tão somente para o fim de impedir o reconhecimento da constitucionalidade dos tratados de direitos humanos.
Bernardo Gonçalves (2014, p. 457) ainda alerta para a questionável criação de uma nova modalidade normativa, “desenvolvida (estranhamente, por falta de titularidade para tal!) pelo STF”. E prossegue:
É interessante que a presença da “norma supralegal” não advém de modificação legislativa (sobretudo constitucional via Poder Constituinte derivado), mas de um voto de um Ministro do STF no RE 466.343. A crítica aqui é a seguinte: será que um voto (ainda que vencedor e por mais brilhante que seja na sistematização com o direito comparado) pode mudar a estrutura do nosso ordenamento jurídico? Será que não existiria um “caminho mais legítimo” para determinar a qualificação de normas como supralegais (abaixo da Constituição e acima das leis ordinárias)? (2014, p. 457)
Entende-se, pois, que apenas duas teses são realmente coerentes, pois passíveis de dedução do direito posto: a de que os tratados não aprovados pelo procedimento da emenda possuem status de meras leis ordinárias, podendo ser modificados ou revogados por esse tipo de norma; ou que as normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil fazem parte do conteúdo material da Constituição, da qual são inseparáveis, e, seus direitos, cláusulas pétreas, enquanto o § 3º estabelece o procedimento de formalização de tais direitos e de sua inclusão no corpo da Constituição instrumental (o “documento escrito por meio do qual se apresenta uma Constituição”, como afirma Simon, 2013, p. 109).
Diante do quadro, não há como fugir da controvérsia: ou se dá preferência ao § 2º, considerando-se as normas internacionais de direitos humanos como parte material da Constituição, fazendo com que o § 3º perca o sentido, pois passa a ser mero critério de formalização daquilo que, materialmente, já era constitucional (aderindo-se à segunda tese referida no parágrafo anterior), ou se aceita a preponderância do § 3º, fazendo, todavia, com que o § 2º perca qualquer utilidade na sua referência aos tratados de direitos humanos como partes integrantes do rol de direitos fundamentais (aceitando-se, pois, a primeira tese).
Foi tentando encontrar alguma solução para o problema que surgiu no STF a teoria do pertencimento dos tratados de direitos humanos ao bloco de constitucionalidade, liderada pelo Ministro Celso de Mello e acompanhada pelos Ministros Ellen Gracie, Eros Grau e Cezar Peluso no julgamento do HC nº 87.585/TO, em 12 de março de 2008 (que tratou da questão da prisão civil do depositário infiel), julgado em conjunto com o mencionado RE 466.343. Eles sustentaram a hierarquia constitucional de todos os tratados sobre direitos humanos, aprovados ou não pelo rito especial do artigo 5º, § 3º.
Como defendeu Celso de Mello, “trata-se de adaptar a Constituição Federal, através de interpretação pautada na dignidade da pessoa humana, ao novo contexto de internacionalização dos direitos humanos”. Revendo sua posição anterior, o ministro sustentou que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil integram o ordenamento jurídico com estatura constitucional porque a Carta Maior, em sua redação original, determina a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II) e reconhece o estatuto constitucional de seus diplomas (artigo 5º, § 2º).
Dessarte, concluiu que tais diplomas fazem mesmo parte do bloco constitucional, afirmando, de maneira precisa, que:
[...] uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão ao valor ético-jurídico — constitucionalmente consagrado (CF, art. 4º, II) — da ‘prevalência dos direitos humanos’ permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico e infraconstitucional do ordenamento positivo do Estado brasileiro. Com essa nova percepção do caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, dar-se-á consequência e atribuir-se-á efetividade ao sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana, reconhecendo-se, com essa evolução do pensamento jurisprudencial desta Suprema Corte, o indiscutível primado que devem ostentar, sobre o direito interno brasileiro, as convenções internacionais de direitos humanos, ajustando-se, desse modo, a visão deste Tribunal às concepções que hoje prevalecem, no cenário internacional – consideradas as realidades deste emergentes -, em torno da necessidade de amparo e defesa da integridade dos direitos da pessoa humana. Nesse contexto, e sob essa perspectiva hermenêutica, valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos, mediante atribuição, a tais atos de direito internacional público, de caráter hierarquicamente superior ao da legislação comum, em ordem a outorgar-lhes, sempre que se cuide de tratados internacionais de direitos humanos, supremacia e precedência em face de nosso ordenamento doméstico, de natureza meramente legal. [...]
A tese segundo a qual os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário pertencem ao bloco de constitucionalidade, expressamente prevista no § 2º do artigo 5º e muito bem captada pelo Ministro, não produz incoerências ou inconsistências no ordenamento. Ameniza, ainda, problemas de ordem internacional, pois o inadimplemento dos deveres livremente contraídos por meio de tais tratados, “autorizado” pelas teses que defendem a infraconstitucionalidade, pode ensejar a responsabilidade internacional de nosso País independentemente da natureza jurídica que se reconheça à norma questionada no âmbito interno. Tais problemas são considerados apenas fatos sob a ótica do direito internacional, não possuindo qualquer relevância jurídica. O status de norma constitucional mitiga esse problema, pois, por esse meio, tais tratados devem ser respeitados da mesma forma como devem ser observadas todas as demais normas constitucionais de direitos e garantias fundamentais.
Destaque-se que essa posição ainda é minoritária (ao menos na jurisprudência do STF). Todavia, como aponta Piovesan (2013, p. 132, Epub-Adobe Digital Editions), seu reconhecimento por parte da composição da Suprema Corte é um fator paradigmático, “tendo a força catalisadora de impactar a jurisprudência nacional [...] propiciando a incorporação de parâmetros protetivos internacionais no âmbito doméstico e o advento do controle da convencionalidade das leis”. Segue, inclusive, a jurisprudência da Corte Interamericanade Direitos Humanos (caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, sentença de 26 de setembro de 2006):
Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar que os efeitos dos dispositivos da Convenção não se vejam mitigados pela aplicação de leis contrárias a seu objeto, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos [...] o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle da convencionalidade das leis” entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.
A insustentabilidade sistêmica, assim chamada por Simon (2013, p. 116), dos argumentos que enfrentam a prisão civil do depositário infiel através dos critérios convencionais (e, com relação à proteção dos direitos humanos, ultrapassados) de resolução dos conflitos aparentes de normas, resultando na criação de uma nova e inconsistente modalidade normativa (a supralegal), conduz à conclusão de que, apesar da resistência enfrentada, a única solução coerente em nosso ordenamento é aquela há muito defendida pela doutrina do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em nada modificada pelo novo § 3º: os tratados de direitos humanos são parte integrante do bloco de constitucionalidade.
Portanto, faz-se necessário que o STF reveja sua teoria dos dois estatutos dos direitos humanos (supralegal e constitucional), para acolher a divergência aberta pelo Ministro Celso de Mello e passar a reconhecer aos tratados referidos o caráter materialmente constitucional do § 2º e, ao § 3º, “mero critério de integração do tratado à Constituição instrumental, quer dizer, de positivação constitucional explícita” (SIMON, 2013, pp. 116 e 117), garantindo-se, por fim, a aplicação da norma mais benéfica ao indivíduo em caso de eventual conflito entre as normas formalmente constitucionais e as demais que integrem o bloco de constitucionalidade.
Caso essa minoria não consiga se afirmar no STF, a solução mais adequada é a revisão do texto do § 3º do artigo 5º da Constituição para que se deixe claro o estatuto apenas constitucional de todos os tratados internacionais de direitos humanos. Na oportunidade, sugere-se a eliminação da expressão “que forem”, que enfraquece a adoção de uma teoria de recepção formal dos tratados anteriores.
Ademais, como lembra Mazzuoli (2011, p. 838), afirmar, como afirma o artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, que um tratado equivale a uma emenda constitucional significa atribuir-lhe a mesma força e os mesmos efeitos de uma emenda constitucional. E uma emenda reforma a Constituição. Entretanto, atribuir equivalência de emenda aos tratados internacionais de direitos humanos pode ser perigoso, à medida que a Constituição Federal pode ser mais benéfica, em determinada matéria, que o tratado incorporado por meio daquela sistemática.
Assim, seria muito mais conveniente simplesmente se admitir o status materialmente constitucional desses tratados, em conformidade com o § 2º do art. 5º, caso em que não haveria reforma da Constituição e o problema seria resolvido com a aplicação do princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano, ao invés de atribuir-lhe equivalência de emenda constitucional, e, em consequência, conferir-lhe potencialidade para a derrogação de norma constitucional eventualmente mais benéfica.
Nesse contexto, vê-se apenas uma utilidade para o referido § 3º: conferir aos tratados aprovado por seu procedimento eficácia constitucional formal, para além da constitucionalidade material que já possuem em razão do exaustivamente mencionado § 2º. Isto se dá porque, como ensina Simon (2013, p. 113), os §§ 2º e 3º do artigo 5º da Constituição Federal cuidam da questão da questão da constitucionalidade através de diferentes enfoques: o primeiro reconhece que os direitos humanos são partes inarredáveis do conteúdo material da Constituição e, em consequência, cláusulas pétreas, enquanto o outro estabelece o procedimento de formalização desses direitos e sua inclusão no corpo da Constituição instrumental.
Fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais do garantismo jurídico e da proteção à dignidade humana, chega-se à conclusão de o que o texto constitucional reformado pretendeu dizer é que esses tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que já têm status de norma constitucional por força do § 2º do artigo 5º, poderão ainda se tornar formalmente constitucionais (ou seja, “equivalentes às emendas constitucionais”), desde que, a qualquer momento depois de sua entrada em vigor no Brasil, sejam aprovados pelo quórum qualificado do § 3º do art. 5º da Constituição. (MAZZUOLI, 2013, p. 60).
3 CONCLUSÃO
Ao fim desta exposição teórica, entendem-se terem sido assentadas as seguintes conclusões:
I - Por meio da cláusula de abertura inserida no § 2º do artigo 5º, a Carta Magna permitiu a inclusão, no rol dos direitos fundamentais, dos direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais de direitos humanos, conferindo-lhes força e hierarquia materialmente constitucionais e, em consequência, impedindo sua retirada do ordenamento interno, visto que, por serem normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, passam a ser cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º, inciso IV). O texto constitucional ainda atribuiu eficácia direta e imediata às normas convencionais de direitos humanos, uma vez que seu artigo 5º, § 1º dispõe que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o que leva a crer que, em casos tais, sequer é necessária a edição de decreto presidencial de promulgação.
II - Assim, entende-se de reduzidíssima utilidade o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, acrescido ao texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, da maneira como se encontra redigido. E, tendo em vista que nele se baseia, também se entende insuficiente o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal acerca da hierarquia normativa dos tratados de direitos humanos. Embora o conceito de supralegalidade seja um avanço com relação à anterior equiparação à legislação ordinária federal, fato é que esbarra numa série de problemas e contradições que, se analisadas a fundo, demonstram sua insustentabilidade em face do atual ordenamento jurídico brasileiro, que sequer o prevê.
Nesse contexto, inserido num contexto de interesse global, o Brasil, através da ratificação dos tratados voltados à proteção dos direitos humanos, deve buscar alcançar sua identidade jurídica quanto à aplicabilidade desses instrumentos às situações concretas regidas pelo ordenamento interno, processo esse significativamente intensificado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
O sucesso nessa empreitada requer a máxima conscientização dos operadores do Direito, no que se refere à relevância e à utilidade de divulgar, advogar e aplicar as disposições desses tratados, em conjunto com a Constituição Federal, perante as instâncias nacionais e internacionais competentes.
O caso brasileiro, todavia, é paradoxal: apesar de profundamente comprometido com todos os instrumentos internacionais relevantes em matéria de direitos fundamentais, nosso País, em razão do excessivo apego de determinados setores doutrinários, legislativos e jurisprudenciais a conceitos há muito ultrapassados, não tem se utilizado adequadamente dos meios postos ao seu alcance para efetivar o respeito e a promoção dos direitos humanos. Ocorre que, nas sábias palavras de Piovesan (2012, p. 119, Epub-Adobe Digital Editions), “Não é mais admissível que Estados aceitem direitos e neguem as garantias de sua proteção”. Diante do quadro, avançar é preciso.
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