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61Entrevista Entrevista A ` frica hoje na visªo de Samir Amin* Theotônio dos Santos - Como membro do conselho editorial de C&p, dou as boas-vindas ao nosso convidado, Profes- sor Samir Amin, agradecendo-lhe pela aceitaçªo do convite, como tambØm aos demais membros da mesa. Por uma ques- tªo de eficiŒncia, faria a apresentaçªo dos participantes desta mesa-redonda ao nos- so convidado. Ao meu lado, começo pelo Embaixador Ovidio Melo, que nos anos 70 esteve à frente das dØmar ch e s que leva- ram ao reconhecimento da independŒn- cia de Angola por parte do governo brasi- Inquietante e vexatório para a maioria do povo brasileiro tem sido o tratamento dado pela nossa media aos dramas em curso na ` frica: tragØdia ecológica com desertificaçªo, secas acompanhadas de fome, massacres de etnias, guerras civis, Aids. Sempre exibindo imagens pungentes e discurso fragmentado, essa media nªo explica o que ocorre, justifica o castigo que recebe aquele que nªo quer ou nªo pode ser globalizado.... Desse modo, esconde, entre outros, o fato de que muitas das doenças hoje endŒmicas na ` frica foram disseminadas por açıes de guerra biológica ou teste de vacinas em seres humanos a partir dos anos 60. Em sua exposiçªo, Samir Amin constrói-nos o modelo de compreensªo do drama das jovens naçıes africanas: a) formaçıes pluri-Øtnicas constituindo Estados nacionais segundo o modelo ocidental, sobre um substrato sócio-econômico e cultural da era colonial; b) aceitaçªo pelos agentes sociais do pacto modernizador o poder exercido pelas elites legitimava-se pela fruiçªo (ou crença nessa fruiçªo por parte do povo) das conquistas da civilizaçªo pós-revoluçªo industrial saœde, educaçªo, previdŒncia social o estado do bem-estar; c) desenvolvimento econômico (industriali- zaçªo) financiado pelas atividades agrícolas ou extrativistas... Como se vŒ, Ø o nosso modelo. É patente a vulnerabilidade deste projeto quando se desagrega o esquema geopolítico da bipolarizaçªo. A redaçªo de C&p sente-se orgulhosa por apresentar a seus leitores as anÆlises do Prof. Samir Amin. * Escritor, economista e historiador, o erudito egípcio, Samir Amin Ø mundialmente respeitado como teórico marxista, com uma fØrtil produçªo em torno das questıes candentes deste período entre-sØculos. Este texto Ø transcrito a partir de palestra proferida em francŒs, em junho de 2000, na sede do CEBELA, no Rio de Janeiro. A transcriçªo e traduçªo sªo de Paloma Vidal. S. Amin, T. dos Santos, Ovídio A. Melo e A.C. Peixoto Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.061-179 A ` frica hoje na visªo de Samir Amin62 leiro. Ao seu lado, o Professor Antônio Carlos Peixoto, titular da cadeira de rela- çıes internacionais da UERJ. À nossa fren- te, o Professor Ailton Benedito de Sousa, secretÆrio de redaçªo de nossa revista. Acompanham o nosso convidado, sua es- posa, Isabelle Amin e a Sra. Mônica Bruck- mann, diretora do Instituto de Pesquisas PerœMundo. Ouçamos nosso convidado. Professor Samir Amin - Começarei com algumas questıes gerais, solicitando aos presentes que nªo hesitem em me inter- romper se perguntas houver que possam encaminhar o desenvolvimento da discus- sªo. Começo dizendo que contra a ` frica hÆ muitos preconceitos, preconceitos de raízes históricas, hoje reforçados pelo fato de que o Continente continua sendo uma regiªo fraca, uma das mais vulnerÆveis do sistema capitalista mundial. E quando so- mos fracos, somos sempre desprezados. Sªo inœmeros, portanto, os preconceitos, isso, porØm, nªo impedindo que a ` frica e a ` sia participassem desse gigantesco pro- cesso de transformaçªo do mundo depois da Segunda Guerra Mundial. A anÆlise que faço Ø que a Segunda Guerra Mundial concluiu-se com uma dupla derrota e uma dupla vitória: a derrota do fascismo e a conseqüente vitória da democracia, por um lado: e a derrota do velho colonialismo e a conseqüente vitória dos povos da ` fri- ca e da ` sia, por outro. Essas duas vitórias, ou duas derrotas, criaram relaçıes de for- ças sociais, tanto internas às sociedades, quanto externas ou internacionais, um pou- co menos desfavorÆveis para esses povos do que as que haviam atØ entªo prevalecido sob o capitalismo. Os movimentos de libertaçªo nacional, amplamente disseminados depois da Se- gunda Guerra Mundial, estenderam-se atØ 1994 - œltimo combate na ` frica do Sul; atØ 1980, para ZimbÆbue; atØ 1974 para as colônias portuguesas; atØ 1960 para a maior parte dos países do Continente ao sul do Saara; atØ apenas alguns anos antes, 1954, 1956, no que concerne à evacuaçªo do Egito e ao final do regime de protetorado no Marrocos e na Tunísia, e por fim 1962, no que concerne à guerra da ArgØlia. O Continente como um todo participou, portanto, desse movimento de libertaçªo nacional. Por óbvio, esses movimentos de liberta- çªo nacional apresentaram diferenças em funçªo das condiçıes sociais e históricas locais, cada qual nascido com graus diver- sos de radicalizaçªo, desde dos que man- tinham fidelidade a princípios socialistas e anticapitalistas, atØ os que simplesmente postulavam um projeto nacional puro e simples, sem colocar em questªo as rela- çıes fundamentais do capitalismo, local e internacionalmente. Ao contrÆrio do que normalmente se diz um preconceito os imperialistas nªo concederam a independŒncia à ` frica, mas foi a ` frica que a exigiu, às vezes atravØs de guerras muito longas, como nas colônias portuguesas. E mesmo quan- do nªo houve guerras longas, as houve curtas, entremeadas de batalhas políticas. Se nªo houvesse ocorrido esse grande movimento de insurreiçªo camponesa, de insurreiçªo nacional em vÆrios lugares, a independŒncia da ` frica nªo teria aconte- 63Entrevista cido. Ela nªo foi dada. Os imperialistas nunca fazem concessıes. Eles só as fazem quando sªo obrigados. É verdade que a conjuntura possibilitou que num momento dado os imperialistas percebessem que era preciso fazer con- cessıes antes que fosse tarde demais, e isso eles fizeram, porØm do seu ponto de vista. E essas concessıes nªo impediram certa radicalizaçªo. É enorme a quantida- de de regimes por mim denominados de nacionalistas-populistas embora eles se autodenominem socialistas que o Con- tinente africano conheceu. A metade dos países do Continente conheceu em algum momento regimes nacionalistas-populis- tas radicais. Cabe notar que os regimes que saíram desses movimentos de libertaçªo nacio- nal apresentam, apesar das diferenças, certo nœmero de traços comuns. O parti- do œnico nªo ocorreu, como freqüente- mente se diz, no âmbito dos regimes nªo- democrÆticos; ele foi visto tanto nos regi- mes neocoloniais, como na Costa do Marfim ou no QuŒnia, quanto nos países ditos socialistas, como o Egito de Nasser, a ArgØlia de Boumediene, o Mali, Gana etc. Afinal de contas, corresponde ao pro- jeto nacionalista-populista: um programa modernizador, de aceleraçªo do desen- volvimento econômico atravØs da indus- trializaçªo uma industrializaçªo, pelo menos em teoria, relativamente autôno- ma, relativamente autocentrada, mas em interdependŒncia e nªo numa concepçªo autarquista , implicando transformaçıes sociais mais ou menos importantes, desti- nadas a acompanhar, a criar a base social do projeto modernista, industrialista, na- cionalista, transformaçıes que variaram de reformas agrÆrias, como no Egito e na Etiópia, a simplesmente movimentos de criaçªo de uma base social nova, objetivo de uma estratØgia nacionalista-populista, atravØs da educaçªo, da urbanizaçªo etc. Na Ærea da educaçªo, para dar alguns nœmeros, conheci o ex-Congo Belga1 , um país enorme, onde apenas nove congo- leses haviam terminado o segundo grau. Desses nove, seis eram padres e, dos outros trŒs, dois deviam ser advogados e um mØdico. HÆ certamente mais de um milhªo agora. É um nœmero que muda completamente, em vinte anos, mesmo sob o mais terrívelregime que se possa imaginar, o de Mobutu. A esse respeito, mesmo sob esse regime foi possível fazer mais do que nos setenta anos de coloniza- 1 Atualmente Repœblica do Congo, ex-Zaire, cujo território atØ 1918 manteve-se como propri- edade particular do rei Leopoldo II, da BØlgica. Nessa data, recebeu o status de colônia, cuja luta pela independŒncia conclui-se em 1960, com a criaçªo da primeira Repœblica do Congo. Em 1971 o ditador Mobuto rebatizou o país com o antigo nome portuguŒs: Zaire. Com a vitória de Laurent Kabila em 99, retorna-se ao nome origi- nal. N. do E. Ovidio Melo, A.C. Peixoto, Ailton Benedito Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.063-177 A ` frica hoje na visªo de Samir Amin64 çªo belga. Se observarmos as taxas de crescimento dos anos 60 e 70, vemos que elas sªo duas ou trŒs vezes superiores às melhores das dØcadas da colonizaçªo, superando as do momento atual. Aquele foi um período de um crescimento acele- rado, feito com muitos desequilíbrios, à base de grande dependŒncia, Ø verdade, fundado em grande parte, nesse primeiro estÆgio, sobre a continuaçªo dos valores coloniais, isto Ø, da exploraçªo das ativida- des primÆrias etc. Mas havia um projeto. No plano político, certamente nªo se deu Œnfase à questªo da democratizaçªo, o próprio conceito de democracia sendo um conceito populista de enquadramento das classes populares, de progresso, eu diria um pouco atØ como no sØculo XIX brasileiro, aquela idØia de ordem e pro- gresso, esse tipo de conceito da transfor- maçªo social. Outra característica dos regimes da Øpo- ca: eram regimes trans-Øtnicos, literalmen- te alØm das etnias A colonizaçªo recor- tou o mapa africano de uma maneira artificial que, paradoxalmente, acaba se tornando mais ou menos real, reunindo povos...nªo utilizo o termo tribo, nªo faz sentido: os haussÆs sªo da ordem dos quarenta milhıes, nªo vejo porque eles seriam uma tribo, enquanto os islandeses, que sªo duzentos mil, seriam um povo... repetindo: reunindo povos com línguas, religiıes e histórias bem diferentes. Os regimes entªo se propuseram como trans- Øtnicos, no sentido verdadeiro do termo. Isso quer dizer que, mesmo se em certos casos os políticos podiam criar uma clien- tela em base local ou regional, o fato do ponto de vista da ideologia nªo era tolera- do. A ideologia oficial, compartilhada in- clusive pelas classes populares, era de construçªo de uma naçªo. Nªo se deve ver aí exclusivamente uma ilusªo, uma utopia: era um momento real da constru- çªo nacional a partir de uma ideologia trans-Øtnica. Esse momento Ø positivo na moderna história da ` frica, afirmaçªo que nªo exclui de modo nenhum a neces- sidade de grande rigor na analise das pro- fundas contradiçıes internas que consti- tuíam sua fragilidade. Em primeiro lugar, a ausŒncia de demo- cracia, pois mesmo a questªo trans-Øtnica foi apresentada de maneira burocrÆtica, de cima para baixo: nªo hÆ etnias. Na verdade elas existem, e essa Ø uma manei- ra brutal de negÆ-las. Só hÆ uma realida- de, eles dizem, que Ø a naçªo, quer nigeriana, quer angolana etc. Ou seja, trans-Øtnica, mas nªo democrÆtica. A segunda contradiçªo estÆ relacionada ao projeto populista, no sentido da con- sígnia fazemos coisas pelo povo, que existiu efetivamente. Assim, houve políti- cas pœblicas de educaçªo, de saœde, em funçªo de que ocorreram mudanças fabu- losas, antes que a Aids viesse novamente exterminar populaçıes inteiras. É preciso ser justo: isso foi realizado tanto nos paí- ses nacionalistas radicais, ditos socialistas, talvez um pouco melhor nestes, quanto nos países de opçªo capitalista, como a Costa do Marfim ou o QuŒnia. Nªo hou- ve exemplos ignóbeis como o do Zaire em todos os lugares. 65Entrevista Enfim, em graus diferentes, foram reali- zaçıes muito generalizadas. Mas o proje- to Ø um projeto burguŒs, apesar de suas ambiçıes populares e populistas. BurguŒs no sentido de que nªo concebia formas de organizaçªo da sociedade, da produçªo, da administraçªo etc. que fossem diferen- tes daquelas do Ocidente capitalista de- senvolvido, tomado como modelo geral. Incluem-se aí a neutralidade da tecnologia e a criaçªo de relaçıes de produçªo capi- talistas, mesmo se esse fosse uma ex- pressªo que utilizei para a Uniªo SoviØti- ca, mas que Ø igualmente vÆlida, em vÆrios níveis, para todos os países da ` frica um capitalismo sem capitalista, onde o Esta- do cumpre em grande parte a funçªo ou certas funçıes do capitalista. AlØm disso, e isso constituía a sua fragili- dade, o ponto de partida era uma base freqüentemente muito frÆgil, isto Ø, países muito atrasados pela colonizaçªo, pela forma brutal da colonizaçªo, mantidos fora da revoluçªo industrial, com trinta ou quarenta anos de atraso em relaçªo à AmØrica Latina. A conjuntura econômica era de cresci- mento geral do capitalismo mundial, e a conjuntura política era a bipolaridade e a possibilidade de um país apoiar-se, diplo- mÆtica ou militarmente, na Uniªo SoviØti- ca ou na China, para contrabalançar as ameaças de intervençªo ocidental. Essa conjuntura favoreceu, permitiu essa ex- periŒncia. Mas ela nªo teria ocorrido se nªo houvesse o movimento de libertaçªo nacional interno, ou seja, nªo foi decor- rente da induçªo nem do modelo ociden- tal nem do modelo soviØtico, foi decor- rente de uma vontade construída pela luta de libertaçªo nacional africana, que optou em graus diferentes por um sentido ou por outro, ou ficou entre ambos, a meio caminho entre um e outro. Esses sistemas se esgotaram rapidamente, antes mesmo que pudessem entrar na fase da revoluçªo industrial, industrializando- se. As exportaçıes de produtos primÆrios perderam o fôlego e nªo puderam finan- ciar esse tipo de crescimento, a urbaniza- çªo etc. As transformaçıes sociais que o acompanharam a educaçªo etc. nªo tiveram escoadouro. Houve de fato um período de crescimento elevado foi o momento em que o Banco Mundial falou do milagre do QuŒnia, do milagre do Malavi. Basta olhar esses países para ver onde estÆ o milagre... Eles se esgotaram rapidamente, entraram em crise. A virada da conjuntura internacional acele- rou igualmente a crise. Passou-se, a partir do meio dos anos 70, de um momento de grande crescimento na escala capitalista mundial, fato que nunca havia sido visto na história anterior do capitalismo, com taxas de crescimento muito elevadas nos países capitalistas desenvolvidos, princi- palmente nos países da Europa ocidental, Mônica Bruckmann e o casal Amin Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.065-175 A ` frica hoje na visªo de Samir Amin66 a um momento em que as taxas diminuí- ram pela metade, em que apareceu na Europa e na AmØrica do Norte o desem- prego maciço etc., fenômenos que pareci- am ter desaparecido depois da Segunda Guerra Mundial. Isso criou uma conjun- tura econômica internacional muito mais difícil e foi aí que esses países, como outros na AmØrica Latina e na ` sia, entra- ram no ciclo infernal do endividamento para continuar por algum tempo o mes- mo projeto em condiçıes de crise. Dívida que pôde ser financiada porque a crise no Ocidente gerou um excedente de capital, atribuído freqüentemente ao petróleo, que na verdade representou só uma parte des- se excedente, um excedente à procura de um escoadouro financeiro para o cresci- mento econômico do próprio Ocidente, dos países capitalistas desenvolvidos, que assim financiaram a dívida. Antes mesmo que o sistema soviØtico desmoronasse, no momento em que nos anos 80 ele perde credibilidade, capacidade de intervir, a conjuntura política novamente se modifi- ca e chegamos ao momento atual, que podemos chamar de recolonizaçªo, de recolonizaçªo coletiva, por assim dizer. As políticas ditas de ajuste estrutural sªo políticas de desmantelamento do que ha- via sido feito de positivo, apesar detodas as contradiçıes jÆ apontadas, pelos regi- mes nacionalistas-populistas. Essas polí- ticas restabelecem a dominaçªo unilateral das transnacionais do capital dominante e desmantelam os sistemas de educaçªo, de saœde etc. elementos fundamentais do desenvolvimento social e econômico a longo prazo. O Banco Mundial Ø de uma hipocrisia atroz em seu discurso sobre a pobreza. Nªo se pode combater a pobre- za e simultaneamente desmantelar os sis- temas de educaçªo e saœde nacionais. As ideologias de libertaçªo nacional naci- onalistas-populistas começaram a perder credibilidade frente às classes populares, porque o regime nªo tinha mais nada para dar. Enquanto havia um crescimento ele- vado e as taxas de incremento na educa- çªo eram muito altas, as classes da base da pirâmide social, os camponeses, pensa- vam ser a vida muito difícil para eles, mas que seus filhos iriam ao colØgio e seriam mØdicos, funcionÆrios etc. Havia entªo legitimidade para esse tipo de poder. Eram governos nªo-democrÆticos, mas, exceto no caso do desvio total como Ø o de Mobutu e outros (que aliÆs eram os me- lhores amigos do Ocidente), nªo eram governos tirânicos. Eram nªo-democrÆti- cos, mas populistas em diferentes graus. Havia certa legitimidade, um projeto de legitimaçªo nacional trans-Øtnico. Quando esse tipo de desenvolvimento desmorona-se, quando a ofensiva do ca- pital dominante fecha o cerco em torno desses países, a classe dirigente perde sua legitimidade. O partido œnico e o discurso sobre a naçªo, sobre a modernizaçªo, sobre a industrializaçªo tornam-se cada vez mais... apenas discursos, e as classes populares percebem isso. Por outro lado, fenômenos de corrupçªo, de clientelis- mo, em graus diferentes, tornam-se cada vez mais evidentes e ocupam o primeiro plano. Os regimes ditos liberais, que fo- ram objeto de elogios ilimitados por parte 67Entrevista do Banco Mundial os milagres, como se dizia serªo os que se desmoronaram mais rapidamente, que nªo resistem aos primeiros golpes, às primeiras dificulda- des. Vejam o que acontece no caso da Costa do Marfim, numa situaçªo total- mente dramÆtica. Assim, esse desmoro- namento causou a perda de legitimidade dessas ideologias. A infelicidade histórica Ø que a esquerda, a esquerda comunista, que era a œnica coisa que existia nesses países alØm da ideologia nacionalista-populista, apresen- tou diferentes graus de compreensªo em sua anÆlise crítica dessa situaçªo. Nªo se pode dizer que nunca tenha havido crítica à política nacionalista-populista, mas em geral a esquerda aderiu ao projeto exer- cendo uma crítica moderada enquanto esquerda partícipe do movimento de li- bertaçªo nacional. É o caso do comunis- mo egípcio em relaçªo ao nasserismo, do comunismo do Mali em relaçªo a Modibo Keita, do comunismo em Moçambique, do comunismo em Angola, Ø o caso de todos. É claro que houve nuances, graus diferentes, nem todos os indivíduos tive- ram as mesmas posiçıes sobre os mes- mos problemas. Conseqüentemente, a esquerda, independentemente da derro- cada soviØtica, fez parte do processo de desmoronamento da noçªo de legitimida- de das políticas pœblicas oriundas das hostes dos movimentos de libertaçªo na- cional, perdendo sua legitimidade. E, como diz o provØrbio africano, o peixe começa a apodrecer pela cabeça. Foi a própria classe dirigente que come- çou a apodrecer e que se segmentou, procurando reinstaurar uma legitimidade própria, jogando com as cartas que podia jogar, isto Ø, a religiªo, no sentido tradici- onal do termo, a etnicidade ou as duas. O aniquilamento da sociedade veio de cima. Nªo Ø um fenômeno exclusivo da ` frica. Acredito que o que estÆ acontecendo na IugoslÆvia Ø da mesma natureza, assim como o que ocorre na ex-Uniªo SoviØtica ou na Rœssia. Ou seja, as classes dirigentes que perderam sua legitimidade tentam reconstruí-la sobre outras bases, bases demagógicas. Eles utilizam algo que jÆ existe, como a etnicidade ou a religiªo, mas que nªo era um fato primordial, um fato que determinasse posiçıes ou atitu- des fundamentais e as relaçıes entre as comunidades. Ao mesmo tempo, Ø ai que entra em jogo a estratØgia imperialista da democracia, ou seja, diz-se que o que faliu foi o partido œnico e que basta ter um pluralismo de partidos e eleiçıes para que o problema se resolva, sob a condiçªo de que ao mesmo tempo se aceite o mercado e com isso o ajuste estrutural, a inserçªo na lógica do mercado etc. Entªo, de um lado, estÆ a submissªo ao mercado e, do outro, como compensaçªo, a adoçªo de um mínimo de democracia que se limita praticamente ao Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.067-173 A ` frica hoje na visªo de Samir Amin68 pluralismo de partidos e de um mínimo de respeito, de aceitaçªo da pluralidade polí- tica e de expressªo. Essa Ø a crise atual do Continente. Essa degradaçªo se manifesta numa estagna- çªo e mesmo num recuo econômico nos œltimos dez, quinze anos. Quanto mais somos vulnerÆveis, fracos, mais despreza- dos somos. O preço relativo que se paga pela crise Ø pesado, e mesmo se ele nªo Ø volumoso na escala capitalista mundial, Ø muito pesado para o povo que o sofre. Temos entªo uma estagnaçªo relativa, uma retroaçªo, um desmantelamento ace- lerado do sistema educacional, sanitÆrio, estrutural etc. O funcionamento dessa democracia teve insucessos contínuos, expondo uma vulnerabilidade, uma fragi- lidade visível nesses primeiros passos em direçªo a uma democracia pequeno-bur- guesa. Nos casos mais dramÆticos, che- gou-se à dissoluçªo de toda a sociedade SomÆlia, LibØria, Serra Leoa e a ameaça existe em outros países. Em outros, a etnicidade manipulada pelas classes diri- gentes locais e pelos imperialismos pas- sou a ocupar o primeiro plano político. É o caso de muitas ex-colônias inglesas, Ø o caso talvez do Congo, Ø o caso extremo de Ruanda. Em outros países, ainda, princi- palmente nos países muçulmanos, houve o islamismo político político e nªo fun- damentalista, porque Ø um islamismo que nªo tem nada a ver com a teologia da libertaçªo, Ø uma instrumentalizaçªo po- lítica reacionÆria da religiªo que ocupa o primeiro plano. É o caso dos países Ærabes e do norte da NigØria atualmente, poden- do se tornar o caso do Senegal. Essas sªo, digamos assim, os efeitos negativos, as respostas negativas ao desafio: Ø essa sub- missªo ao mercado, acompanhada de ilu- sıes fundadas seja na religiªo, seja na etnicidade. Mas hÆ tambØm elementos positivos. O maior foi o fim do a p a r t h e i d, fato que muitas vezes Ø apresentado como sendo a evoluçªo natural do capitalismo, jÆ que o capitalismo seria por natureza democrÆti- co e anti-racista, neste caso a ` frica do Sul sendo entªo uma exceçªo à lógica profun- da do capitalismo. A tendŒncia natural encaminhava entªo, em direçªo à demo- cracia. Em minha opiniªo, esse Ø um raciocínio que nada tem a ver com o capitalismo histórico real. Outras explica- çıes, a essa um pouco relacionadas, di- zem que foi a conjuntura internacional que mudou: os Estados Unidos e a Euro- pa sustentaram o regime do apartheid con- tra a Uniªo SoviØtica, presente principal- mente em Angola, no ZimbÆbue, mas quando esse perigo desapareceu, eles abandonaram os regimes do apartheid. Esse Ø um indício, a meu ver, totalmente falso. O a p a r t h e i d foi derrotado pela luta do povo africano durante quarenta anos. Essa luta foi principalmente da classe operÆria, atravØs dos sindicatos e do Partido Co- munista. O desenvolvimento de uma classe operÆria ativa, com uma organizaçªo tal- vez um pouco tradicional, mas eficaz, corroeu progressivamente a margem de rentabilidade desse capitalismo. Foi uma espØcie de greve permanente, de sabota- gem permanente, que gerou primeiro a reduçªo e depois o desmoronamento dos fluxos de investimentos capitalistas na 69Entrevista `frica do Sul, finalmenteprovocando a virada a partir de 1990. HÆ muitas respostas. A história nªo acaba nunca. Vemos, por exemplo, a ditadura militar no Mali de Moussa TraorØ, que foi apoiada pelo Ocidente e principalmente pela França. Ela nªo caiu sem mais nem menos, nªo caiu porque estava na moda ser democrÆtico. Caiu porque houve mi- lhares de pessoas no Mali que lutaram nas ruas, que foram mortas, que participaram de manifestaçıes cotidianas durante no mínimo dois anos, atØ o momento em que o regime desmoronou. Houve a experiŒn- cia de Sankara, com uma tentativa de segunda ediçªo do populismo, mas com um carÆter claramente mais democrÆtico, principalmente no que concernia à auto- nomia das classes populares. Houve tam- bØm esse tipo de resposta. HÆ algumas semanas, vimos as eleiçıes no Senegal, que colocaram no poder um governo dito socialista, ainda que nªo tenha muito a ver com o socialismo, ape- sar de descender da socialdemocracia, numa coalizªo das mais curiosas, reunin- do liberais de direita com a extrema es- querda, composta pelas trŒs correntes do comunismo histórico soviØtico, chinŒs maoísta, e trotskista. Eles ganharam as eleiçıes que os ocidentais, principalmen- te os norte-americanos, nªo teriam aceito hÆ alguns anos, mas que foram impostas por dois ou trŒs anos de luta. Mesmo se o resultado venha a ser duvidoso e signifi- car uma contradiçªo grave no futuro, sªo coisas que acontecem. Esse Ø rapidamen- te o quadro que vejo. HÆ o renascimento de uma consciŒncia pan-africana e pan-Ærabe na ` frica, mas ainda vaga, insuficiente para se tornar o substrato de uma estratØgia como força política, renascimento que continua sen- do muito nacional, muito local. Depois da Segunda Guerra Mundial houve uma fren- te asiÆtica de sustentaçªo das lutas de libertaçªo nacional, incluindo a açªo di- plomÆtica e militar. Houve a conjuntura de convergŒncia das lutas contra os siste- mas coloniais. Hoje hÆ esse renascimento. Como prova, hÆ o exemplo de pequenas coisas, que ainda nªo sªo fatos importan- tes, mas que importantes bem poderiam rapidamente se tornar. Assim, em abril houve uma reuniªo de cœpula euro-africa- na no Cairo, entre a Uniªo EuropØia e a Organizaçªo da Unidade Africana - OUA. Pessoalmente, nªo tenho respeito por ne- nhum dos governos atuais da OUA. Com exceçªo do meu respeito pela ` frica do Sul, zero pelo o resto. Neste encontro, os países europeus propuseram um progra- ma que esvaziava a reuniªo de qualquer conteœdo falavam sobre a corrupçªo etc. Os africanos propuseram um progra- ma centrado em como relançar a questªo do desenvolvimento econômico, discu- tindo, entre outros temas, a questªo da dívida. Todos se mostraram acordes em Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.069-171 Isabelle e Samir Amin A ` frica hoje na visªo de Samir Amin70 torno de algumas questıes comuns como política geral em relaçªo à segurança. Mas a posiçªo africana foi intransigente em relaçªo a dois pontos: o primeiro era a questªo da dívida. Os europeus disseram que nªo podiam discutir a dívida ali por- que a dívida implicava outros parceiros, isto Ø, os Estados Unidos, evidentemente. E os africanos tiveram a coragem de dizer aos europeus: Senhores, vocŒs sªo hipó- critas. O termo hipócrita foi utilizado. Os países da Uniªo EuropØia dispıem no Fundo MonetÆrio e no Banco Mundial de um poder de voto igual ou atØ superior ao dos Estados Unidos. Entªo, por que eles nªo o utilizam? Por que se apoiam nos Estados Unidos? E se negam a discutir na sua ausŒncia? Os europeus estavam es- pantados e nªo tiveram resposta. O segundo ponto dizia respeito ao fato de que a segurança na ` frica depende exclu- sivamente das Naçıes Unidas e da OUA. Isso se tornou totalmente contraditório em relaçªo ao texto que os europeus assi- naram depois da guerra do Kosovo no dia 28 de abril de 1999, na reuniªo da OTAN, que estende a responsabilidade da OTAN às regiıes vizinhas da Europa, isto Ø, à `frica e à ` sia. Como se vŒ, hÆ alguns sinais da possibilidade de emergŒncia de um renascimento, de uma reconstruçªo da frente do Sul. HÆ sinais tambØm na `sia, relacionados com a crise do Sudoes- te asiÆtico. Com isso, termino, meu muito obrigado... Theotônio dos Santos - O agradecimen- to Ø nosso, da direçªo do Cebela, da redaçªo de Comunicaçªo&política, enfim, do pœblico brasileiro e latino-americano que terªo acesso a essa aula atravØs de nossa revista. O pœblico irÆ entender que nessa mesa-redonda, dado o fluxo da ex- posiçªo e interesse em ouvir por parte dos componentes da mesa, nªo couberam as interrupçıes. Nesse sentido, agora a pala- vra estÆ franqueada aos que desejarem fazer perguntas. Ailton Benedito de Sousa - Professor Samir, hÆ uma questªo que jamais ficou clara para o pœblico brasileiro, sobre a qual talvez o senhor possa fornecer alguns elementos. Refiro-me ao acordo entre Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano e as lideranças racistas o gran- de acordo por trÆs da criaçªo da ` frica do Sul, com essa configuraçªo atual: algumas cidades, como a Cidade do Cabo, concen- trando uma grande populaçªo branca; o interior, com certas Æreas impenetrÆveis, concentraçıes negras em outras. Aqui, nós trabalhamos com o conceito de Esta- do patrimonial, que ilustra essa interaçªo, a interaçªo entre um centro e uma perife- ria em torno de demandas da modernida- de, esquema que justificaria que as elites lancem mªo ou se apropriem do patrimô- nio nacional, postergando a criaçªo da naçªo, país do futuro... No caso da ` frica do Sul, como fica esse Estado patrimoni- al? Gostaria de saber se o senhor tem algo a dizer tambØm sobre a Aids na ` frica. Samir Amin - A questªo da ` frica do Sul Ø uma questªo de primeira importância. Enquanto africano, nªo posso ter senªo respeito pelas trŒs forças principais da `frica do Sul, isto Ø, a força sindical, o 71Entrevista Congresso Nacional Africano, o Partido Comunista, alØm da figura de Mandela. No entanto, a história nªo terminou. Foi um capítulo da história que terminou. O que foi ganho em 1990 nªo foi pouca coisa, foi o fim do a p a r t h e i d, o fim do racismo oficial e o princípio político de um ser humano ter uma voz. Mas isso foi acompanhado do compromisso entre o Partido Comunista da ` frica do Sul e o CNA, que se reuniram para redigir a nova Constituiçªo da ` frica do Sul. Eles acei- taram um compromisso, e acho que esta- vam certos em fazer isso, que consistia em manter os princípios fundamentais do capitalismo, isto Ø, o respeito à propri- edade privada. A propriedade privada na `frica do Sul quer dizer que os brancos possuem todas as terras de melhor quali- dade; as indœstrias sªo propriedade das transnacionais, pois hÆ muito pouco ca- pital privado local. Isso quer dizer que o povo sul-africano tem ainda pela frente cinqüenta anos de luta para corrigir esses desequilíbrios criados pela história colo- nial e pelo aparthe id. É uma luta que ainda nªo terminou. Muitos estados ocidentais, as potŒncias ocidentais, seus porta-vozes, e um grande nœmero de políticos sul- africanos gostariam de interromper a his- tória neste capítulo. Pensam que agora tudo estÆ mais ou menos bem, jÆ que o princípio da democracia e o mercado foram adotados e deram por si sós resul- tados relativamente positivos. Mas hÆ uma rachadura que estÆ se desenhando no seio das forças que foram as forças de libertaçªo nacional, no seio da força sin- dical, do CNA, de outras organizaçıes populares, que jÆ existem em grande quan- tidade, no seio do próprio Partido Comu- nista. Entre eles, estªo os que aceitam, em graus diferentes, a idØia de que por um longo momento ainda se deve funcionar sobre as bases de uma democracia bur- guesa, aceitando a integraçªo no sistema capitalista mundial como ele Ø, grosso modo: a estrutura da distribuiçªo da proprieda- de tal como ela existe agora, favorecendo asmultinacionais e a minoria branca no que concerne às terras agrícolas. Na mi- nha opiniªo, isso nªo vai durar muito e as batalhas que vªo se desenvolver nos pró- ximos anos e que jÆ estªo se desenvolven- do dirªo respeito a isso. Os camaradas sul-africanos foram extremamente cora- josos na luta e hÆbeis na negociaçªo, hÆbeis no reconhecimento do que repre- sentava um grande perigo no momento da discussªo sobre a Constituiçªo do Estado. Havia uma tendŒncia de criar um estado federal, admitindo amplos pode- res para os estados e praticamente sobre uma base racial, com uma forte minoria branca, por um lado, e o aniquilamento dos estados negros, por outro, em funçªo justamente das ditas etnias. Tiveram alia- dos africanos os zulus especialmente. Finalmente, o acordo que foi feito na Constituiçªo e que mostra a habilidade Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.071-169 A ` frica hoje na visªo de Samir Amin72 dos negociadores do lado africano das trŒs organizaçıes: tem-se uma Constitui- çªo pseudo-federal, mas centralizada, eli- minando a existŒncia de Estados brancos e a possibilidade de uma Palestina. Isso nªo quer dizer que a batalha tenha termi- nado. HÆ um excelente livro a esse respei- to, de autor sul-africano, que se chama Limits to change, que foi publicado em 1998, mas ainda nªo foi traduzido para o francŒs. Isso Ø o que tenho a dizer a respeito da ` frica do Sul. No que diz respeito à segunda questªo, sobre a Aids, os estragos em algumas regiıes da ` frica, ` frica Central e Orien- tal, principalmente onde houve movimen- tos militares desordenados e permanen- tes, em Uganda, Ruanda e Congo, chegam ao nível da catÆstrofe, com uma amplitu- de gigantesca. Essa questªo Ø certamente muito importante, mas eu nªo conheço todos os detalhes. Antonio Carlos Peixoto - HÆ dois ou trŒs pontos que eu gostaria que o senhor esclarecesse. Eu me pergunto se em al- guns casos, principalmente nos países is- lâmicos, a religiªo nªo pode se transfor- mar numa força de coesªo nacional, mes- mo sendo reacionÆria, mesmo se Ø utiliza- da com propósitos reacionÆrios, mas uma força nacional capaz de impedir esse des- mantelamento de que o senhor falou, mesmo que nªo totalmente, mas ao me- nos num certo nível. Essa Ø a minha primeira pergunta. A segunda pergunta Ø sobre um ponto muito preciso: o senhor considera que a forma Estado Estado enquanto autoridade política centralizada mesmo em graus diferentes, se Ø implantada de maneira definitiva, ela pode subsistir ao desmantelamento das sociedades de que o senhor falou? A terceira pergunta vai num sentido que Ø talvez um pouco mais histórico. O senhor usou o termo etnicidade e disse que se tentou criar estados trans-Øtnicos, que hÆ uma certa renovaçªo dessa etnicidade. O termo usado em geral pela imprensa do Ocidente, principalmente a imprensa mais reacionÆria do Ocidente, Ø tribalizaçªo. Eu me pergunto se nªo dÆ no mesmo. É claro que hÆ um preconceito, que hÆ um lado totalmente negativo em falar de tri- bos. Mas, se usamos etnicidade em rela- çªo à formaçªo de uma estrutura social com mais coesªo e tendo em vista a construçªo de um estado nacional, nªo tem o mesmo efeito? Samir Amin - Respondendo a primeira: nos países Ærabes nªo nos países islâmi- cos em geral, pois hÆ uma grande varieda- de, seria como falar sobre os cristªos em geral , o nacionalismo existente, o naci- onalismo local, principalmente nos países que jÆ tŒm uma estrutura de estado hÆ muito sedimentada, como o Egito evi- dentemente, como o Marrocos, Ø o nacio- nalismo Ærabe, que nªo precisa do islamis- mo como cimento. Muito pelo contrÆrio, nªo Ø porque haja minorias cristªs, por exemplo, como no caso do Egito, da Síria e do Líbano, que existem problemas. Observe-se que sªo minorias pouco signi- ficativas na escala Ærabe. O fato Ø que hÆ uma ideologia reacionÆria manipulada, que 73Entrevista apóia o mercado profundamente, enquan- to que o nacionalismo Ærabe, seja local ou pan-Ærabe Ø, pelo contrÆrio, crítico do mercado, crítico do mercado mundializa- do, pois a história dos países Ærabes Ø a história das vítimas desse mercado mun- dializado. Assim, o nacionalismo Ærabe Ø crítico e sempre foi uma dimensªo impor- tante da política nacional. O islamismo se apresenta, pelo contrÆrio, como pró-mer- cado, sem fazer nenhuma crítica ao capi- talismo, ao mercado etc. Tudo isso estÆ muito bem. No caso da ` frica, eu seria tambØm nega- tivo no que diz respeito ao islamismo político. Evidentemente, Ø preciso anali- sar caso a caso, o perigo das generaliza- çıes abusivas Ø muito grande, e peço desculpas de antemªo. Tomarei um caso preciso, o da Etiópia. A estratØgia dos Estados Unidos foi a de levÆ-la ao des- mantelamento a partir de uma questªo Øtnica ou pseudo-Øtnica, nªo somente se colocando tardiamente do lado de Men- gistu na guerra da Etiópia, mas tambØm sustentando o movimento dos FPLT, de base maoísta um pouco como o Sende- ro Luminoso no Peru , que se tornou etnicista e aceitou a idØia de desmantelar a Etiópia com base nas etnias. A CIA fabricou um mapa de quinze estados, usando o mapa de Mussolini, da gestªo do fascismo italiano, com base nas etnias. A Etiópia Ø um caso parecido com o da IugoslÆvia: se se faz um mapa Øtnico, metade da populaçªo vai ficar de fora, pois nªo hÆ talvez um só bairro que seja homogŒneo etnicamente. É uma estratØ- gia realmente criminosa. Por sorte, na Etiópia, apesar desse governo trazido na bagagem pelos norte-americanos, a rea- çªo do povo foi de recusa à etnicidade, de recusa ao desmantelamento, e hÆ uma forte retomada da afirmaçªo pan-etíope. Esse Ø um exemplo. Nesse exemplo, a etnicidade Ø totalmente negativa. A mun- dializaçªo cria sua própria sustentaçªo na fragmentaçªo mÆxima, nos discursos so- bre a etnicidade, sobre o comunitarismo, no desmantelamento. A etnicidade nªo Ø uma alternativa para a construçªo de Es- tados, nªo direi nacionais, pois nªo se trata de anular a etnicidade, de impedir as pessoas de falar suas línguas ou de se proclamarem como pertencendo a tal ou qual grupo cultural, político ou religioso, mas estados trans-Øtnicos pequenos e tam- bØm grandes. Sou a favor dos grandes Estados. É preciso levar a cabo uma bata- lha ideológica sobre essa questªo. Eviden- temente, isso coloca em questªo as formas do Estado e muitas formas culturais e ideológicas que acompanharam a história da concepçªo de Estado na ` frica. HÆ nas sociedades africanas forças que permitem conceber um Estado trans-Øtnico. Comun i ca çªo&política, n.s., v.VII, n.2 p.073-167
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