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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 31 exemplo a questão da delimitação dos ní- veis de tensão arterial para a determina- ção de hipertensão ou de glicemia, na de- finição do diabete. Esse problema foi cui- dadosamente estudado pelo filósofo e mé- dico francês Georges Canguilhem (1978) cujo livro O normal e o patológico tornou- se indispensável em tal discussão. O conceito de normalidade em psico- patologia também implica a própria defi- nição do que é saúde e doença mental. Esses temas apresentam desdobramentos em várias áreas da saúde mental. Por exemplo: 1. Psiquiatria legal ou forense. A determinação de anormalidade psicopatológica pode ter impor- tantes implicações legais, crimi- nais e éticas, podendo definir o O conceito de saúde e de normalidade em psicopatologia é questão de grande controvérsia (Al- meida Filho, 2000). Obviamente, quando se trata de casos ex- tremos, cujas alterações comportamentais e mentais são de intensidade acentuada e de longa duração, o delineamento das fron- teiras entre o normal e o patológico não é tão problemático. Entretanto, há muitos casos limítrofes, nos quais a delimitação entre comportamentos e formas de sentir normais e patológicas é bastante difícil. Nessas situações, o conceito de normali- dade em saúde mental ganha especial re- levância. Aliás, o problema não é exclusi- vo da psicopatologia, mas de toda a medi- cina (Almeida Filho, 2001); tome-se como O conceito de saúde e de normalidade em psicopatologia é questão de grande controvérsia. 3 O conceito de normalidade em psicopatologia Que é loucura: ser cavaleiro andante ou segui-lo como escudeiro? De nós dois, quem o louco verdadeiro? O que, acordado, sonha doidamente? O que, mesmo vendado, vê o real e segue o sonho de um doido pelas bruxas embruxado? Carlos Drummond de Andrade (Quixote e Sancho de Portinari, 1974) Paulo Dalgalarrondo32 destino social, institucional e le- gal de uma pessoa. 2. Epidemiologia psiquiátrica. Nes- te caso, a definição de normalida- de é tanto um problema como um objeto de trabalho e pesquisa. A epidemiologia, inclusive, pode contribuir para a discussão e o aprofundamento do conceito de normalidade em saúde. 3. Psiquiatria cultural e etnopsi- quiatria. Aqui o conceito de nor- malidade é tema importante de pes- quisas e debates. De modo geral, o conceito de normalidade em psico- patologia impõe a análise do con- texto sociocultural; exige necessa- riamente o estudo da relação entre o fenômeno supostamente patoló- gico e o contexto social no qual tal fenômeno emerge e recebe este ou aquele significado cultural. 4. Planejamento em saúde mental e políticas de saúde. Nesta área, é preciso estabelecer critérios de normalidade, principalmente no sentido de verificar as demandas assistenciais de determinado gru- po populacional, as necessidades de serviços, quais e quantos servi- ços devem ser colocados à dispo- sição desse grupo, etc. 5. Orientação e capacitação pro- fissional. São importantes na de- finição de capacidade e adequa- ção de um indivíduo para exercer certa profissão, manipular máqui- nas, usar armas, dirigir veículos, etc. Como, por exemplo, o caso de indivíduos com déficits cognitivos e que desejam dirigir veículos, pessoas psicóticas que querem portar armas, ou sujeitos com cri- ses epilépticas que manipulam má- quinas perigosas, etc. 6. Prática clínica. É muito importan- te a capacidade de discriminar, no processo de avaliação e interven- ção clínica, se tal ou qual fenôme- no é patológico ou normal, se faz parte de um momento existencial do indivíduo ou é algo francamen- te patológico. CRITÉRIOS DE NORMALIDADE Há vários critérios de normalidade e anor- malidade em medicina e psicopatologia. A adoção de um ou outro depende, entre outras coisas, de opções filosóficas, ideo- lógicas e pragmáticas do profissional (Canguilhem, 1978). Os principais critérios de normalidade utilizados em psicopato- logia são: 1. Normalidade como ausência de doença. O primeiro critério que geralmente se utiliza é o de saúde como “ausência de sintomas, de sinais ou de doenças”. Segundo ex- pressiva formulação de René Le- riche (1936): “a saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Normal, do ponto de vista psicopatológico, seria, então, aquele indivíduo que simplesmente não é portador de um transtorno mental definido. Tal critério é bastante falho e pre- cário, pois, além de redundante, baseia-se em uma “definição ne- gativa”, ou seja, defini-se a nor- malidade não por aquilo que ela supostamente é, mas, sim, por aquilo que ela não é, pelo que lhe falta (Almeida Filho; Jucá, 2002). 2. Normalidade ideal. A normalida- de aqui é tomada como uma certa “utopia”. Estabelece-se arbitraria- mente uma norma ideal, o que é supostamente “sadio”, mais “evo- luído”. Tal norma é, de fato, social- mente constituída e referendada. Depende, portanto, de critérios socioculturais e ideológicos arbitrá- Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 33 rios, e, às vezes, dogmáticos e dou- trinários. Exemplos de tais concei- tos de normalidade são aqueles com base na adaptação do indiví- duo às normas morais e políticas de determinada sociedade (como nos casos do macarthismo nos EUA e do pseudodiagnóstico de dissi- dentes políticos como doentes mentais na antiga União Soviética). 3. Normalidade estatística. A nor- malidade estatística identifica nor- ma e freqüência. Trata-se de um conceito de normalidade que se aplica especialmente a fenômenos quantitativos, com determinada distribuição estatística na popula- ção geral (como peso, altura, ten- são arterial, horas de sono, quan- tidade de sintomas ansiosos, etc.). O normal passa a ser aquilo que se observa com mais freqüência. Os indivíduos que se situam esta- tisticamente fora (ou no extremo) de uma curva de distribuição nor- mal passam, por exemplo, a ser considerados anormais ou doen- tes. É um critério muitas vezes fa- lho em saúde geral e mental, pois nem tudo o que é freqüente é ne- cessariamente “saudável”, e nem tudo que é raro ou infreqüente é patológico. Tomem-se como exem- plo fenômenos como as cáries dentárias, a presbiopia, os sinto- mas ansiosos e depressivos leves, o uso pesado de álcool, fenôme- nos estes que podem ser muito fre- qüentes, mas que evidentemente não podem, a priori, ser conside- rados normais ou saudáveis. 4. Normalidade como bem-estar. A Organização Mundial de Saúde (WHO, 1946) definiu, em 1946, a saúde como o completo bem-es- tar físico, mental e social, e não simplesmente como ausência de doença. É um conceito criticável por ser muito vasto e impreciso, pois bem-estar é algo difícil de se definir objetivamente. Além disso, esse completo bem-estar físico, mental e social é tão utópico que poucas pessoas se encaixariam na categoria “saudáveis”. 5. Normalidade funcional. Tal con- ceito baseia-se em aspectos fun- cionais e não necessariamente quantitativos. O fenômeno é con- siderado patológico a partir do momento em que é disfuncional, produz sofrimento para o próprio indivíduo ou para o seu grupo social. 6. Normalidade como processo. Neste caso, mais que uma visão estática, consideram-se os aspec- tos dinâmicos do desenvolvimen- to psicossocial, das desestrutu- rações e das reestruturações ao longo do tempo, de crises, de mu- danças próprias a certos períodos etários. Esse conceito é particu- larmente útil em psiquiatria in- fantil, de adolescentese geriá- trica. 7. Normalidade subjetiva. Aqui é dada maior ênfase à percepção subjetiva do próprio indivíduo em relação a seu estado de saúde, às suas vivências subjetivas. O ponto falho desse critério é que muitas pessoas que se sentem bem, “mui- to saudáveis e felizes”, como no caso de sujeitos em fase maníaca, apresentam, de fato, um transtor- no mental grave. 8. Normalidade como liberdade. Alguns autores de orientação fe- nomenológica e existencial pro- põem conceituar a doença mental como perda da liberdade existen- cial (p. ex., Henri Ey). Dessa for- ma, a saúde mental se vincularia Paulo Dalgalarrondo34 às possibilidades de transitar com graus distintos de liberdade sobre o mundo e sobre o próprio desti- no. A doença mental é constran- gimento do ser, é fechamento, fossilização das possibilidades existenciais. Dentro desse espírito, o psiquiatra gaúcho Cyro Martins (1981) afirmava que a saúde men- tal poderia ser vista, até certo pon- to, como a possibilidade de dispor de “senso de realidade, senso de humor e de um sentido poético pe- rante a vida”, atributos estes que permitiriam ao indivíduo “relati- vizar” os sofrimentos e as limita- ções inerentes à condição huma- na e, assim, desfrutar do resquí- cio de liberdade e prazer que a existência oferece. 9. Normalidade operacional. Trata- se de um critério assumidamente arbitrário, com finalidades prag- máticas explícitas. Define-se, a priori, o que é normal e o que é patológico e busca-se trabalhar operacionalmente com esses con- ceitos, aceitando as conseqüências de tal definição prévia. Portanto, de modo geral, pode-se concluir que os critérios de normalidade e de doença em psicopatologia variam consideravelmente em função dos fenô- menos específicos com os quais se traba- lha e, também, de acordo com as opções filosóficas do profissional. Além disso, em alguns casos, pode-se utilizar a associa- ção de vários critérios de normalidade ou doença, de acordo com o objetivo que se tem em mente. De toda forma, essa é uma área da psicopatologia que exige postura permanentemente crítica e reflexiva dos profissionais. Questões de revisão • Que áreas da saúde mental estão relacionadas com e implicadas no conceito de normalidade em psicopatologia? • Quais são os principais critérios de normalidade interligados em psicopatologia e quais suas “forças” e “debilidades”? Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 35 histórico, um campo de conhecimento que requer debate constante e aprofundado. Aqui o conflito de idéias não é uma debili- dade, mas uma necessidade. Não se avan- ça em psicopatologia negando e anulando diferenças conceituais e teóricas; evolui-se, sim, pelo esforço de esclarecimento e aprofundamento de tais diferenças, em dis- cussão aberta, desmistificante e honesta. A seguir, são apresentadas algumas das principais correntes da psicopatologia, dispostas de forma arbitrária, por motivos estritamente didáticos, em pares antagô- nicos. PSICOPATOLOGIA DESCRITIVA VERSUS PSICOPATOLOGIA DINÂMICA Para a psiquiatria descritiva, interessa fundamentalmente a forma das alterações psíquicas, a estrutura dos sintomas, aquilo que caracteriza a vivência patológica como sintoma mais ou menos típico. Já para a psiquiatria dinâmica, interessa o conteú- do da vivência, os movimentos internos de afetos, desejos e temores do indivíduo, sua experiência particular, pessoal, não neces- sariamente classificável em sintomas pre- Umas das principais características da psi- copatologia, como campo de conheci- mento, é a multipli- cidade de aborda- gens e referenciais teóricos que tem in- corporado nos últi- mos 200 anos. Tal multiplicidade é vis- ta por alguns como “debilidade” científica, como prova de sua imaturidade. Os psicopa- tólogos são criticados por essa diversidade de “explicações” e teorias, por seu aspecto híbrido em termos epistemológicos. Dizem alguns que, quando se conhe- ce realmente algo, se tem apenas uma teo- ria que explica cabalmente os fatos; quan- do não se conhece a realidade que se estu- da, são construídas centenas de teorias con- flitantes. Discordo de tal visão; querer uma única “explicação”, uma única concepção teórica, que resolva todos os problemas e dúvidas de uma área tão complexa e multifacetada como a psicopatologia é im- por uma solução simplista e artificial, que deformaria o fenômeno psicopatológico. A psicopatologia é, por natureza e destino Umas das principais características da psicopatologia, como campo de conheci- mento, é a multipli- cidade de abordagens e referenciais teóri- cos que tem incorpo- rado nos últimos 200 anos. 4 Os principais campos e tipos de psicopatologia
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