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Junod, Henri, 1996, “Magia”, In: Usos e Costumes dos Bantos: A Vida Duma Tribo do Sul da África, Vol. II. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. Pp. 388-411.

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CAPÍTULO TERCEIRO
Magia
Sem pretender dar aqui definições que possam aplicar-se a
todas as raças primitivas, e reconhecendo, por outro lado, a dificuldade
do assunto, todavia julgo necessário, no começo deste capítulo,
explicar tão claramente quanto possível a distinção que faço entre
Religião, Magia e Ciência, tais como se apresentam entre as tribos do
sul de África.
Sob o termo Religião, compreendo todos os ritos, práticas,
concepções ou sentimentos que pressupõem a crença em espíritos
pessoais ou semipessoais revestidos dos atributos da divindade e com
os quais o homem tenta entrar em relação, com o fim de alcançar a sua
assistência ou desviar a sua cólera, essencialmente por meio de
oferendas e de preces.
No termo Magia incluo todos os ritos, práticas e concepções
que têm por fim actuar sobre influências hostis, neutras ou favoráveis,
exercidos quer por forças impessoais da Natureza, quer pelos seres
humanos que deitam sortes, quer, ainda, por espíritos pessoais,
antepassados-deuses ou espíritos hostis que se supõe tomarem
possessão das suas vítimas — sendo tais ritos e práticas inspirados
pelos princípios da magia que atrás expliquei. Distingo duas espécies
de Magia: a Magia branca, pela qual o homem tenta proteger-se a si
próprio contra essas influências ou tenta voltá-las a seu favor; a Magia
negra, pela qual o homem tenta servir-se dessas forças contra o
próximo.
Chamo científicos todos os ritos, práticas e concepções inspi-
rados pela verdadeira observação dos factos. Incluo nesta categoria
certos tratamentos médicos, certas ideias relativas à botânica, à
zoologia, etc.
Na prática, estes diversos elementos acham-se misturados a tal
ponto que a Religião é fortemente tingida de Magia, como demonstra
o capítulo que se segue. Por outro lado, a Magia combina-se,
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frequentemente, com elementos religiosos (ver «Possessões»), e o
verdadeiro domínio da Ciência é invadido, de todos os lados, pelas
concepções de carácter mágico. Verificá-lo-emos pelo estudo dos
quatro assuntos que incluo no capítulo sobre a Magia: Arte médica.
Possessões, Feitiçaria e Adivinhação.
A confusão destes três domínios no espírito dos indígenas
explica, também, o carácter complexo dos indivíduos que praticam a
arte médica ou mágica. O médico indígena, n'anga, está longe de ser
simplesmente um homem de ciência; tem, também, mais ou menos,
alguma coisa da natureza do feiticeiro e também invoca os
antepassados que lhe transmitiram os seus feitiços. O curandeiro,
mungoma, é, por vezes, uma espécie de padre-quando, por exemplo,
se põe a exorcismar os espíritos dos possessos. O adivinho, wavu/a,
cuja arte se baseia inteiramente em concepções mágicas, reza,
ocasionalmente, aos seus antepassados-deuses para que o auxiliem na
consulta aos ossículos que recebeu deles. Estou convencido de que
estes três domínios são essencialmente distintos e que o Tsonga
percebe, ele próprio, vagamente, essa distinção. Mas interpenetram-se
com a maior facilidade e vou tentar seguir essa gradação, esforçando-
me por não alterar, ao' explicá-las inteligivelmente, as ideias originais.
A — Arte médica
As práticas médicas dos Bantu do sul da África são muito
interessantes, do ponto de vista etnográfico, mas o seu estudo tem,
também, importância prática. Nos países civilizados a profissão médica
está sujeita a restrições: o candidato tem de passar por exames e
demonstrar que é capaz de tratar os seus futuros pacientes. Nada de
semelhante se encontra nos Tsongas. A única qualificação de «doutor»
é ter-se herdado de um antepassado algumas receitas que se aplicam
com maior ou menor êxito para os pacientes. Deveriam ou não os
governos coloniais tomar medidas para pôr termo à actividade dos
médicos- indígenas ou, pelo menos, submetê-la a uma regra? É
necessário ter conhecimento preciso das práticas deles para responder
conclusivamente a este ponto.
Para os missionários também este estudo apresenta grande
interesse. Todos eles têm notado a frequência com que os seus
convertidos, quando adoecem, abandonam a missão e correm aos seus
charlatões, interrompendo talvez bruscamente o tratamento prescrito
por um médico missionário que passou por toda a fieira dos estudos.
O resultado quase certo será a perda da saúde e da fé.
Tentemos, pois, compreender a arte médica indígena e verificar
até que ponto podemos fiar-nos nos seus representantes.
I — Os médicos indígenas
Conheci grande número de n'anga, nome técnico dos médicos
indígenas. Todos têm grande orgulho dos seus conhecimentos que,
facto a notar, são, na maior parte, hereditários. Algumas drogas foram
experimentadas, depois empregadas durante anos por um indivíduo que
as devia, provavelmente, a seu pai ou a qualquer outro antepassado.
Antes de morrer este último transmitiu a sua arte a seu filho ou ao seu
sobrinho uterino, àquele dos seus descendentes que parecia «levado
pelo seu coração» a entrar na carreira. Sendo assim, a competência
dos médicos indígenas varia muito de um indivíduo para outro. Há-os
que tratam só um género de doenças ou uma só categoria de
pacientes, pois são os únicos a conhecer os remédios que convêm aos
seus casos. Eliaxi, por exemplo, um dos nossos primeiros convertidos,
indígena da Khoseni, não tinha senão uma droga, a casca de certa
árvore de propriedades violentamente purgativas e que ele prescrevia
em todos os casos, quase matando aqueles que o procuravam para se
tratarem e que tinham nessa droga uma fé tanto maior quanto de mais
longe ela vinha. Eliaxi não era verdadeiramente um n'anga. Sam
Ngwetsa, meu vizinho da Rikatla, tratava unicamente as doenças
infantis. Conhecia a receita dos milombzana e sabia bzyiketa (vol.l,
pág. 67-72). Iam consultá-lo como especialista, neste domínio apenas.
Vimos já, também, que há um «doutor» especial, cujo forte é tratar o
caso perigoso da mãe dos gémeos, e outro que trata a lepra — este
último é olhado como o mais hábil de todos. Spoon Elias tinha um
conhecimento mais extenso que Sam da «matéria médica» popular más
não era mais que um principiante. O seu colega do Nondrwana, Kokolo,
era infinitamente superior — um indivíduo na força da idade, portador
da coroa negra que distingue os notáveis do país. Pertencia a uma
antiga família de doutores. Seu pai, Mankwena, e seu avô, Mahlahlana,
tinham praticado antes dele e haviam-lhe transmitido o precioso legado
da sua experiência. Tovana, a quem eu pedira que me apresentasse um
prático verdadeiramente inteligente, dissera-me, ao falar desse homem:
Awa daha — «É um daqueles que curam». E acrescentara, com
profundo respeito: «Parece que até os Brancos de Lourenço Marques
vão consultá-lo». Kokolo, sem se fazer rogar muito, mostrou-me as
suas drogas e «desenterrou» algumas propositadamente para mim.
Houve que pagar bem caro, pois este homem da arte não trabalhava
por pouca coisa; foi, de resto, com evidente consciência do seu talento
e das suas capacidades que ele me explicou o uso das suas mezinhas.
Mas o médico indígena mais distinto que conheci foi o velho
Mankhelo que pode olhar-se como um dos mestres da profissão na
tribo tsonga. «O que faço é sério! Bati um boi (isto é, dei de presente
um boi) a meu tio materno Hlomendlhene! Dei-lhe, mesmo, dois bois e
I — Os médicos indígenas
Conheci grande número de n'anga, nome técnico dos médicos
indígenas. Todos têm grande orgulho dos seus conhecimentos que,
facto a notar, são, na maior parte, hereditários. Algumas drogas foram
experimentadas, depois empregadas durante anos por um indivíduo que
as devia, provavelmente, a seu pai ou a qualquer outro antepassado.
Antes de morrer este último transmitiu a sua arte a seu filho ou ao seu
sobrinho uterino, àquele dos seus descendentes que parecia «levado
pelo seu coração» a entrar na carreira. Sendo assim, a competência
dos médicos indígenas varia muito de um indivíduo para outro. Há-os
que tratam só um género de doenças ou uma só categoria de
pacientes, pois são os únicos a conheceros remédios que convêm aos
seus casos. Eliaxi, por exemplo, um dos nossos primeiros convertidos,
indígena da Khoseni, não tinha senão uma droga, a casca de certa
árvore de propriedades violentamente purgativas e que ele prescrevia
em todos os casos, quase matando aqueles que o procuravam para se
tratarem e que tinham nessa droga uma fé tanto maior quanto de mais
longe ela vinha. Eliaxi não era verdadeiramente um n’anga. Sam
Ngwetsa, meu vizinho da Rikatla, tratava unicamente as doenças
infantis. Conhecia a receita dos milombzana e sabia bzyiketa (vol.l,
pág. 67-72). Iam consultá-lo como especialista, neste domínio apenas.
Vimos já, também, que há um «doutor» especial, cujo forte é tratar o
caso perigoso da mãe dos gémeos, e outro que trata a lepra — este
último é olhado como o mais hábil de todos. Spoon Elias tinha um
conhecimento mais extenso que Sam da «matéria médica» popular mas
não era mais que um principiante. O seu colega do Nondrwana, Kokolo,
era infinitamente superior — um indivíduo na força da idade, portador
da coroa negra que distingue os notáveis do país. Pertencia a uma
antiga família de doutores. Seu pai, Mankwena, e seu avô, Mahlahlana,
tinham praticado antes dele e haviam-lhe transmitido o precioso legado
da sua experiência. Tovana, a quem eu pedira que me apresentasse um
prático verdadeiramente inteligente, dissera-me, ao falar desse homem:
Awa daha — «É um daqueles que curam». E acrescentara, com
profundo respeito: «Parece que até os Brancos de Lourenço Marques
vão consultá-lo». Kokolo, sem se fazer rogar muito, mostrou-me as
suas drogas e «desenterrou» algumas propositadamente para mim.
Houve que pagar bem caro, pois este homem da arte não trabalhava
por pouca coisa; foi, de resto, com evidente consciência do seu talento
e das suas capacidades que ele me explicou o uso das suas mezinhas.
Mas o médico indígena mais distinto que conheci foi o velho
Mankhelo que pode olhar-se como um dos mestres da profissão na
tribo tsonga. «O que faço é sério! Bati um boi (isto é, dei de presente
um boi) a meu tio materno Hlomendlhene! Dei-lhe, mesmo, dois bois e
ele ensinou-me a sua arte médica! Levou-me a toda a parte e mostrou-
me todas as suas drogas!» Foi assim que Mankhelo se tornou um
verdadeiro n'anga, sendo já um adivinho, um mestre na arte de deitar
os ossículos, um fazedor de chuva, um conselheiro e o general do
exército. Toda a sua família partilhava do seu carácter profissional e o
assistia nos seus trabalhos. As suas mulheres percorriam o mato para
colherem as raizes medicinais que coleccionavam nos seus cestos
lihlelo. Regressadas a casa, consultavam-se os ossículos, para
indicarem as pessoas que deviam cortar as raizes em bocados
(gemela). Feito isso, as mulheres pilavam-nas nos seus pilões. Uma
porção desta matéria era seca ao ar livre e reduzida a pó, sem
cpzedura, eram as mezinhas machos. A outra porção era assada em
cacos de panelas, carbonizada, pilada e reduzida a pó; eram as
mezinhas fêmeas. Toda a aldeia se reunia e aspirava o fumo, por meio
de canas. Matava-se uma cabra e oferecia-se um sacrifício. O líquido
contido no nsvanyi era espremido sobre as drogas ardentes, para as
apagar, e empregava-se também nisso um pouco* de vukanyi.
Entretanto, Mankhelo fazia pthu e dirigia aos seus deuses, parti-
cularmente àquele que lhe ensinara a sua ciência, a seguinte prece:
«Vós, Fulano! Fazei de maneira que as vossas drogas se le-
vantem (« pfuka», isto é: encontrem nova força). Que eles venham, os
das terras dos Zulus, de Mzilikatsi, de Mpfumu! Que eles pensem nas
nossas folhas (« matluka», o termo comummente empregado para as
drogas). Que eles tragam pontas de elefantes, raparigas casadoiras,
etc. Que eles sonhem connosco!»
Esta operação de renovamento das drogas tem por fim dar-lhes
força nova. Mankhelo dizia: «Nós fazemos kuluma as nossas drogas
para o ano próximo; despertamos as nossas cabaças, para que a
próxima estação não nos seja muito dura. Isto consolida-nos a casa; as
constipações graves não nos atacarão com muita violência; isto
impedirá o vento de entrar; não ficaremos gravemente doentes, porque
arranjámos novas drogas. Quanto às antigas, foram contaminadas
(kukhuma) pelas infelicidades do ano passado. Estão doidas
(hunguki/e). Uma chuva nova cai: que as drogas, elas também, sejam
novas, e poderemos partir para as nossas viagens e vender as nossas
mercadorias».
O	n'anga tirava, então, de cada cabaça, um pouco do antigo pó
e deitava-o no carreiro, no cruzamento dos caminhos; depois, lavava
as cabaças, no mesmo sítio. «A desgraça foi, assim, deitada à terra.
Os transeuntes levá-la-ão com eles porque foi ali, no caminho, que a
deitámos». Em seguida, o novo pó era misturado com o resto do antigo
e fazia-o «levantar».
A fim de melhor fazer compreender a natureza da arte de
Mankhelo, mencionarei brevemente as raizes, rimitru, ou as folhas.
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tluka, ou, para empregar o grande termo genérico, as drogas, murhi, de
que se compunha o pó maravilhoso das cabaças. Mankhelo não era
homem de uma só mezinha. Declarava-se médico universal. Por isso,
misturava todas as diversas espécies de drogas, persuadido de que
desta maneira elas teriam efeito certo sobre todos os casos que lhe
fossem submetidos. Eis a descrição, tal como ele próprio me fez:
Ntreve: aquela que nos dá a força de esmagar aos pés os
nossos inimigos; calcamos aos pés, também, os ventos que estragam
o milho; expulsamos o frio que nos fez tossir (note-se o triplo uso desta
droga).
Xikulu: aquela que calca aos pés a desgraça.
Mpon'wana avurisi matuvatuvana: vencedor do inimigo e da
desgraça.
Xinanu: aquela que faz dormir o inimigo; suspendeis algumas
folhas sobre o vosso escudo e os inimigos são vencidos pelo sono, não
vos vêem chegar.
Nembenembe: graças a ela, surpreendereis o vosso inimigo
enquanto ele dorme e matá-lo-eis antes que ele possa defender-se.
Mpetru wa milomo: a dos lábios! Conjura as maldições e torna
inofensivas as azagaias dos outros!
Rihinga rãndlela: uma raiz encontrada no carreiro; ajuda-vos a
prosseguir o vosso caminho, apesar dos esforços dos outros para vos
deterem.
Xivungwe: a que atrai os pacientes para o doutor.
Nandriyane: a que torna agradáveis as palavras do doutor e as
faz amar pelos pacientes (de nandriya, ser agradável).
Mvakazi, phuphuma rã matlharhi: aquela que é empregada para
fazer os assassinos vomitarem a droga principal dos tinteve (vol.l, pág.
422).
Mbendruía: aquela que fortifica todas as outras drogas.
Tais são as principais árvores ou plantas que entram na com-
posição do pó. É necessário salgá-las, juntando-lhes o mar, isto é, as
mezinhas provenientes do mar, aquelas de que Mankhelo se serve
também para fazer chover (pág. 270).
O carácter sexual destas drogas é essencial. As drogas fêmeas
são, sobretudo, empregadas para aspergir o exército e as azagaias; as
machos, para tratar doenças. Reencontramos aqui a lei de oposição dos
sexos; o domínio militar é o domínio macho, por excelência; há que
tratá-lo por meio das drogas fêmeas; pelo contrário, quando se mata
uma cabra, para um sacrifício, coloca-se-lhe na boca uma pequena
porção de droga macho, com a qual se unta também a arma que se
utiliza — e vice-versa, se se trata de um bode. «Agir doutra maneira é
tabu. Todos os n'anga fazem isto». (Ver a explicação desta regra a
pág. 357).
Pode haver elementos verdadeiramente científicos nas práticas
médicas dos Tsongas. Fez-se a experiência de que certas ervas
curavam certas doenças e a tradição transmitiu a receita delas de pai
a filho. Porque não teriam as plantas do país propriedades curativas
semelhantes às da casca de chinchona ou dos grãos de rícino? E
porque não as teriam descoberto os Tsongas? Todavia, o n'anga
indígena não é, certamente, um homem de ciência e os melhores deles,
os de mais renome, são talvez os menos científicos. Os que tratam
uma só doença e não conhecem mais que uma droga são,
provavelmente, aqueles que se aproximammais dos verdadeiros
médicos; baseiam-se nos resultados da experiência. Mas a linha de
demarcação entre a ciência e a superstição é depressa transposta e a
arte médica penetra com a maior facilidade no domínio da magia, isto
tanto mais quanto a diferença entre Ciência e Magia não é apercebida.
Murhi, que significa originalmente árvore, planta, erva medicinal, é
simultaneamente todo o meio de produzir um efeito qualquer, natural
ou sobrenatural, sobre seja que influência for, hostil ou favorável,
pessoal ou impessoal.1 Assim é que o arbusto ntreve auxilia Mankhelo
a atingir três fins: a cura duma tosse má, a protecção do milho e a
expulsão do inimigo.
Tem-se perguntado muitas vezes se os médicos indígenas serão
sinceros ou se não passam de simples charlatões vivendo da estupidez
dos pacientes que enganam. Estou convencido, depois de ter ouvido
as suas conversas, de que a maior parte deles acreditam realmente no
valor das suas drogas, o que os não impede de, nas oportunidades, se
servirem de truques para impressionarem os clientes e levá-los a
atribuírem-lhe poder miraculoso. Um dos meus alunos que
acompanhara um n'anga durante algum tempo, no desejo de abraçar
a carreira médica, assegurou-me que, de modo geral, esse homem
administrava honestamente as suas drogas, com toda a boa fé. Mas,
se alguém o procurava queixando-se de dores de dentes e pedindo a
sua assistência, o doutor tratava de arranjar, primeiro, um pequeno
verme que se acha na baga dum arbusto da família das solâneas,
chamado rulane. Metia-o numa panela cheia de água a ferver. O
paciente devia, então, aspirar o vapor da panela, cabeça tapada com
um pano. Terminada a inalação, o n'anga pegava num bocado de
'A seguinte narrativa, que ouvi a um dos meus colegas, ilustra bem a ideia que
a maior parte dos Tsongas fazem do murhi, remédio. Um homem do clã de
Libombo encontrou urna garrafa cheia de um sal branco, que imediatamente
imaginou ser um murhi. Guardou cuidadosamente a garrafa na palhota. Um dia,
sentindo-se indisposto, pensou que chegara a ocasião de empregar a sua preciosa
droga e tomou uma forte dose dela. Pois não era um	Ficou envenenado e
teria morrido se o meu colega não tivesse podido salvá-lo dando-lhe um
contraveneno.
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carvão que lhe esfregava na cabeça e à volta dos olhos, dizendo: «Os
teus olhos estão agora abertos e tu és capaz de ver o que causava o
teu sofrimento». Esvaziava a água e o pequeno verme branco aparecia,
semelhante à cárie dum dente estragado. «Eis o que eles te tinham
feito!» — acrescentava o n'anga(eles, significando, evidentemente, os
deitadores de sortes). É um truque puro e simples. Mas, segundo o
meu informador, era também um tratamento médico, porque o fim do
truque era convencer o paciente de que estava curado — era o que nós
diríamos um meio de sugestão. Se, terminada a operação, o mal não
tivesse desaparecido, o n'anga dizia ao seu paciente que a soma paga
não fora bastante para que a cura pudesse ter-se feito, que os seus
antepassados-deuses (os do n'anga, que lhe haviam dado as drogas)
estavam irritados por receberem um pagamento mesquinho, etc... A as-
túcia que consiste em fazer crer aos pacientes que se extraiu dos seus
corpos um objecto malfazejo é empregada frequentemente.
Este processo corresponde a duas ideias de que mais tarde
falaremos e que são particularmente familiares aos indígenas: a doença
é uma coisa material; geralmente é causada por um objecto introduzido
no corpo pelos deitadores de sortes.
O carácter complexo da arte médica dos primitivos, tão evi-
dente nos seus médicos indígenas, aparecerá mais ciaramente à medida
que prosseguirmos o nosso estudo.
II — Práticas médicas
Os casos de cirurgia são tratados da pior maneira. Toda a
intervenção necessitando o uso duma faca é olhada como absurda, se
não culposa. No tratamento das ulcerações, o fim do n'anga parece
ser dissimular a chaga sob um pó negro que deve dar a deixa ao
paciente: crê-se curado, pois que não vê mais a sua ferida. Mankhelo
utilizava a casca da árvore Ndrupfurha (uma árvore de seiva branca)
que triturava e com que untava a ferida, renovando a aplicação no
quarto dia; depois, cinco dias mais tarde; depois, seis dias mais tarde.
Para os ferimentos, Kokolo empregava a seiva do Xilangamahlu, que
deitava gota a gota sobre a ferida em sangue. O Nkahlu, planta de
seiva leitosa, serve comummente para este fim, «mas o chefe é o
Xilangamahlu», diz Kokolo. As contusões são tratadas pelo método do
rimba. Quando uma pessoa deu uma queda e se receiam complicações,
acende-se uma fogueira; quando já há bastantes tições em brasa e o
chão está suficientemente aquecido, afastam-se as cinzas para o lado.[2: 0 Nghunghunyane, que matou milhares de pobres Copi sem o mais pequeno
remorso, não podia dissimular o seu horror ao Dr. Liengme que, para curar os seus
pacientes, ousava amputar-lhes membros ou abrir-lhes o corpo!]
deita-se no chão um pouco de areia do rio e sobre ela dispõem-se
algumas folhas de nkuhlu. O paciente deita-se, então, no lugar assim
tratado. É uma aplicação imprevista do princípio similia simiHbus
curantur; assim como se queimou o solo e depois se refrescou (timula),
por meio de areia, assim se impedirá a contusão de queimar
perigosamente o paciente! Os dentes cariados não são arrancados, a
falar propriamente; são partidos por meio de um bocado de ferro sobre
o qual o dentista indígena bate até ter extraído o mais possível do
dente! Ás vezes parte também a maxila e chega a suceder que a maxila
fura através da face, causando um ferimento terrível! Um dia, um dos
meus colegas teve de proceder à extracção dum osso maxilar inferior
que fora projectado para fora pelos esforços de um n'anga para
arrancar um dente! As mordeduras de serpentes são tratadas por meio
de um pó feito duma serpente queimada, reduzida a cinzas, mistu-
rando-se certos outros ingredientes, sendo o todo salgado com sal
ordinário. Fazem incisões em todas as juntas, punho, tornozelo e
cotovelo, assim como na parte anterior do pescoço e introduz-se nelas
o pó. As crianças são inoculadas, como medida preventiva, a fim de
que uma vez mordidas o veneno não as afecte; o doutor «precedeu a
serpente» (yirangerile).
Os casos de medicina são, em geral, tratados mais racional-
mente que os casos de cirurgia. Eis algumas das receitas de Kokolo e
de Spoon:
Primeiro, a droga empregada quando o paciente «sente a sua
cabeça», ou seja, quando tem dor de cabeça, é a raiz dum arbusto
chamado Nhlangula que parece ser um verdadeiro anestésico e que se
emprega da seguinte maneira: a casca fresca é raspada com uma faca;
põe-se certa porção num pano que se dobra e se aplica sobre a testa
durante meio dia. Para uma dor de dentes, emprega-se a mesma droga,
a que se junta outra denominada Ndrenga; fervem-nas e o paciente
conserva na boca um pouco desta decocção; o mal deve desaparecer.
Quando a coisa «morde dentro», isto é, quando se sofre de
cólicas ou de perturbações intestinais, recorre-se às raizes
Munwangati, Xirimbzati e Xidlanyoka, reunidas em feixe. O doutor
prepara com grande cuidaçlo esta mezinha, cortando as raizes do
mesmo tamanho e atando-as por meio de um cordel de fibra de
palmeira. Faz entrar na mistura grande núnríèro de raizes cujo efeito é
médio e apenas alguns fragmentos das que actuam mais
violentamente. O feixe, chamado xitsimbu, é então fervido, para se
extrair o princípio activo das drogas, e o paciente bebe a decocção tal
como está. Algumas vezes, a decocção é misturada ao milho, na
preparação das refeições, e assim tomada. Como o feixe, ou molho,
destas raizes é reputado capaz de conservar por muito tempo as suas
propriedades medicinais, pode utilizar-se o mesmo molho várias vezes
durante a semana.
Contra a disenteria, a receita é a seguinte: Xirimbzati,
Xidlambangi,	Likalahumba, Nkonono	sericea) e Nsala
( Strychnos spinosa). A da bronquite ou do coriza é: Menyomamba,
Mpheso (espécie de mimosa, Albizzia versicolor),Xongwe, Ntratre
(arbusto da família das papilionáceas), Gowane (Zygia fastigiata,
grande mimosa) e Muhlandlopfu. Esta última droga é muito violenta; a
penúltima é menos. Contra a hidrocele empregam-se as seguintes
raizes: Lihlehlwa, Ntratre, Nkonono e Bamuntana. Os indígenas
consideram contagiosa esta doença, transmitida pelas relações
matrimoniais.
Farmacopeia Tsonga
1. Caixa feita de brâcteas de milho e contendo uma mezinha; 2. Xitsimbu; 3.
Pele de toupeira, contendo drogas pulverizadas; 4. Pílula (Mhula); 5. Bracelete
de trukwnyana; 6. Timfisa, amuletos; 7. Raiz de sungi.
Obtive dos meus doutores indígenas dois purgantes. O primeiro
é um aloés ou cacto, uma variedade do qual cresce abundantemente
nas dunas de areia. Espremem a seiva para cima de grãos de mexoeira
ou mapira, conservados numa espécie de caixas lindamente fabricados
com folhas de milho: colhe-se uma haste de milho, cuja espiga se
parte, e as duas brácteas que a envolvem e aderem pela base à espiga
formam um receptáculo muito primitivo e que se obtém facilmente (n.°
1 na gravura); a mezinha é conservada assim até o momento em que
se necessita dela; é então pulverizada e tomada com água. O segundo
purgante é a casca duma árvore que cresce no vale do Nkomati, nas
terras da Khoseni. É aquele a que já fiz alusão e de que um dos nossos
cristãos, Eliachibe, se servia, administrando-os aos habitantes da
Rikatla em doses tão fortes que fazia, geralmente, mais mal do que
bem.
Na preparação do feixe, xitsimbu, destinado às crianças, entram
ainda mais três ou quatro raizes. Como já dissémos (vol.l, pág. 67), são
compreendidas no termo geral milombzana, que designa as mezinhas
que favorecem o crescimento dos recém-nascidos. Se um parasita
intestinal é expulso pelo d/anyoka, é carbonizado e reduzido a pó;
fazem-se no ventre e flancos da criança incisões e fricciona-se nelas o
pó-, é uma espécie de inoculação, uma outra aplicação do princípio «o
semelhante é curado pelo semelhante».
O feixe empregado para tratar a hematúria contém seis drogas:
Hyimbitlu, Ntropfa, Xintitana (um arbusto Apocíneo, aparentado com
o Artabotris), Likalahumba, Ndrindrila e Xirimbzati. De conformidade
com as ordens do doutor, as drogas são cozidas numa panela
juntamente com feijão; ao fim de pouco tempo, retira-se o feixe. O
paciente deve, então, espetar com um espinho um feijão e atirá-lo por
cima do ombro esquerdo; espeta segundo feijão e atira-o por cima do
ombro direito; terceiro feijão, que engole. Os dois primeiros serviram
para «experimentar a terra», isto é, tornar propícias as diversas
influências malfazejas que existem no solo e são, provavelmente, a
causa da doença; é a primeira parte do tratamento. A segunda consiste
em pilar grossos tubérculos brancos, semelhantes a batatas alongados;
a pasta obtida é espremida numa bilha e o paciente deve beber o sumo
e comer os feijões temperados como atrás dissemos. Beberá, todas as
tardes, uma taça da mistura amarga (o sumo extraído do feixe) e uma
taça da mezinha doce, preparada com os tubérculos. Se a hematúria,
depois disto, não cede, o paciente sofrerá o phungutu, o banho de
vapor de que falei mais atrás. O método que acabo de descrever é o de
Spoon. O Dr. Kokolo receitava um tratamento diferente para o mesmo
mal. Utilizava as raizes de Xirhole, Nembe-nembe e Hlahlana,
recomendando o seu emprego, como de costume, sob a forma de
tisana, depois de as ter cortado em pedacinhos, numa panela. Eram
assadas nas brasas e o fumo devia ser aspirado através duma cana; os
fragmentos carbonizados eram triturados e o pó assim obtido
misturava-se na comida habitual. Facto curioso a notar em relação com
esta doença é que a mulher do paciente, se este for casado, deve
sujeitar-se ao mesmo tratamento.
A gonorreia é tratada pela mistura de Xilangamahlu, Hlahlana,
Nembe-nembe (Cassia Petersiana) e Ntinti (Artabotrys Monteiroi). Se
necessário, junta-se Xirimbzati como auxiliar. Foi com folhas desta
última planta que Kokolo fabricou a enorme pílula de que me fez
presente (n.° 4 na gravura da farmacopeia tsonga).
Para a doença qüe acabámos de mencionar, assim como para
a hematúria, se o tratamento interno não for suficiente recorre-se a
meios mais eficazes. Queirham-se e pulverizam-se certo número de
raizes; o pó negro mistura-se à gordura proveniente do estômago dum
boi; a almôndega assim obtida será colocada num braseiro e o paciente
deve expor a parte doente ao calor e ao fumo que se desprendem do
braseiro.
Os Tsongas não consideram a febre palustre muito perigosa e,
coisa estranha, não têm nome especial para ela. Diz-se que se «sente
a cabeça» ou se «tem calor no corpo». Os indígenas acostumaram-se-
lhe e os acessos são, em geral, tão benignos que lhes não prestam
grande atenção. Deitam-se no chão, expostos aos raios ardentes do
sol, embrulhados numa manta e transpiram com grande alegria! «Pega
na raiz de Mbalatangati, coze-a numa panela pequena, bebe às
colheradas e dormirás bem» — diz Mankhelo. ,
Mankhelo trata a doença dos pulmões (tuberculose) da seguinte
maneira: mistura uma parte dos pulmões dum crocodilo-e duma ovelha
com gordura de gnu e com uma raiz da árvore Khawa; queima todos
estes ingredientes *num caco de panela e o paciente deve aspirar o
fumo, por meio duma cana; isso «secará o seu peito», porque a
gordura do gnu está sempre seca, não pode derreter-se!
A lepra, «a doença que vence os médicos», tem os seus espe-
cialistas. Havia um, nas vizinhanças da Rikatla, mas recusava
absolutampnte revelar o seu segredo. Pertencia à tribo copi. Os Pedi
proíbem aos leprosos as relações sexuais.
Uma ama sem leite deve arranjar certo arbusto, uma eufor-
biácea chamada nete que contém uma seiva leitosa, esmagá-la num
pilão, cozê-la em água e bebê-la. Se uma vaca recusa alimentar o
vitelo, os indígenas friccionam o vitelo com a erva ribvumbara, que tem
cheiro agradável; a vaca cheira-a e permite que o vitelo mame.
O tratamento da esterilidade foi descrito já (vol.l, pág. 180).
Mankhelo tentava curá-la com raizes de Nembe-nembe e de Nhlan-
gawume, que cozia juntas, ordenando à mulher que as comesse,
durante seis dias, misturadas na comida habitual. Esta droga é
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destinada a «fechar» a mulher, de forma a que ela não tenha mais os
seus	tihueti e se torne capaz de conceber. Durante este tempo, ela
deve sujeitar-se ao rito do horola ou hondlola, que adiante descreverei.
A varíola, nyedzana, foi introduzida no país por várias vezes,
pelos Brancos ou pelos exércitos dos Zulus que regressavam das suas
campanhas no norte. Houve cinco ou seis epidemias, pelo menos, nos
arredores de Lourenço Marques, durante os últimos cinquenta anos. Fui
testemunha, na Rikatla, da última, em 1918, e pude obter assim
informações em primeira mão sobre a maneira como os indígenas
tratam esta doença e sobre as suas estranhas ideias a respeito dela.
Publiquei-as no S. A. Journal of Science, de Julho de 1919. Darei aqui
a descrição dos costumes mais importantes dos Rhongas relativos a
esta doença. Quando a varíola invade o país e chega aos limites do
território dum clã, os conselheiros reúnem-se na residência do chefe e
decidem a inoculação geral da população. É um remédio que empregam
de há muito. Observaram que a doença, quando produzida pela
inoculação do vírus, é menos forte que quando kuhahela, quer dizer,
«voa» sobre o indivíduo. (Há uma parte de verdade nesta asserção;
contudo, a protecção não é muito efectiva e a inoculação é,
frequentemente, seguida de casos graves e até fatais. Não imuniza
sempre contra segundo ataque).
Obtém-se o vírus num clã vizinho já atacado pela doença. Os
vatukulu do chefe, os seus sobrinhos uterinos, filhos das suas irmãs,
são as pessoas qualificadas para essa função. Não são eles os
favoritos do seu tio materno? Ninguém poderia suspeitar de eles
trazerem a desgraça à aldeia dos seus vakokwana\ O ntukulu
particularmente escolhido para prestar este serviço ao país será
indicado pelos ossículos.São, também, os ossículos que indicam a
aldeia do clã vizinho aonde ele irá buscar o vírus. O fluido seroso é
colhido em velhos ou crianças que não têm relações sexuais, sabemos
já por que razão. O ntukulu inocula-se a si próprio, inocula os seus
camaradas e regressam a casa. Quando as suas pústulas estão
maduras, inoculam todos os membros do clã ainda porventura não
atingidos pela epidemia. A partir deste dia, começa para todo o clã um
período marginal distinto, com todos os tabus que acompanham as
fases críticas da vida da comunidade. Ninguém é autorizado a lavar o
corpo. É imposta a todos continência absoluta. O sal é proibido porque,
diz-se, faz correr sangue no corpo mais depressa e poderia acirrar as
feridas.
Ao lado destes tabus ordinários, tomam-se ainda outras me-
didas ditadas pela natureza especial da varíola. Nos Negros, esta
doença reveste-se de duas formas diferentes que podem chamar-se a
forma branca e a forma negra. A primeira é muito menos grave que a
segunda; as pústulas são grandes, superficiais, espalhadas por todo o
corpo e separadas umas das outras; a pele que as cobre é descolorida,
esbranquiçada; não tardam a secar e não deixam marcas profundas. Na
segunda forma, que é o tipo confluente e hemorrágico da doença, as
pústulas são pequenas, negras, próximas umas das outras e cheias de
sangue; em breve começam a descarregar um fluido repugnante; a
febre é alta e pode sobrevir a morte. O fim do tratamento consiste
apenas em provocar a forma branca e benigna da varíola e prevenir a
forma negra. É tabu, portanto, comer seja que carne for contendo
sangue, porque o sangue é negro e deve por isso ser evitado. Pelo con-
trário, o peixe é permitido, porque é branco, não contém sangue de cor
carregada. Outro expediente a que os médicos indígenas recorrem para
obter esse resultado é colocar diante dos olhos dos seus pacientes
bagos de milho, porque esses bagos são brancos como as pústulas
desejadas e semelhantes na forma. É necessário evitar, também, que
os pacientes vejam grãos de mexoeira, cuja cor é escura. Amolecem-se
os bagos de milho em água, furam-se e fazem-se com eles colares que
os pacientes usam no pescoço, ao passo que as espigas de mexoeira
que se encontram nos caniços do tecto da palhota devem ser
removidas cuidadosamente e ocultas em qualquer parte, no mato,
durante todo o tempo que dura a epidemia. Se a forma maligna da
varíola se desenvolve, apesar de todas estas precauções, o conselheiro
abana a cabeça e diz aos parentes do paciente:	Façam uma
oferenda!» Mas este hahla particular não é uma verdadeira oferenda:
a prece não é dirigida aos antepassados-deuses. As palavras principais
desta prece são: Mavuzane, dlhula! — expressões zulus que correspon-
dem em rhonga a Mabutise, tlula!, isto é: «Inquisidor, segue o teu
caminho!» Quem é este inquisidor? É a própria Varíola, Nyedzana, mais
ou menos personificada e considerada um terrível visitante que vem,
num dado momento, examinar o país para descobrir os pecadores. O
grande pecado que este inquisidor procura especialmente é o vuloyi ou
morte por enfeitiçamento. Confesse o paciente os actos de feitiçaria
que cometeu e será poupado. Se os oculta, a varíola mata-o.
Suponhamos que a pessoa gravemente doente seja uma mulher adulta,
a mulher dum dos habitantes da aldeia. Primeiro, chamam-se os seus
parentes. O conselheiro e todos os habitantes da aldeia assistem à
sessão na palhota. «Confessa a tua culpa», dizem todos à mulher. É
possível que ela responda: «Não! Não sou deitadora de sortes!» (Andri
noyi7)Eles insistem: «Não escondas nada!» Apertada com perguntas,
ela dirá, talvez: «Sim! Passeio de noite! Comi Fulano e Sicrano! Comi
o meu próprio filho!» Se o paciente é uma criança de pouca idade, será
seu pai quem confessará por ela. Pega na criança ao colo e diz:
«Mavuzane, dlhula! Inquisidor, segue o teu caminho! Sim! Somos
deitadores de sortes! Ensinei meu filho a comer corpos humanos! Mas
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!
não continuaremos com estas más acções. Vai-te e deixa-nos em
paz!»[3: Temos aqui um dos casos em que uma força impessoal da natureza é encarada
como ser pessoal revestido dum poder sobre-humano que se invoca. A prece da
Varíola (com maiúscula) pode comparar-se à que se pronuncia num caso de
imprecação ou quando uma pessoa deseja anular o seu juramento.]
Quando a doença seguiu o seu curso e as pústulas secaram,
fixa-se um dia que marcará o fim do período marginal e a volta à vida
normal, em todo o clã. Esta volta é marcada pelos ritos especiais de
reintegração e de purificação que têm por fim levantar a poluição
trazida pela doença. O principal rito purificador, o que conclui
regularmente todo o período marginal, é a limpeza das palhotas. O chão
de cada palhota é recoberto com uma camada nova de barro,
misturado ou não a estrume de vaca. O antigo chão fica coberto para
sempre; é uma maneira de dizer: «Pronto! As coisas velhas passaram,
todas as coisas se tornaram novas». Na manhã desse dia, cada
paciente deve ir lavar todo o corpo «no caminho», para despejar aí
todas as impurezas da doença. Além disto, as cinzas de todas as
fogueiras no interior das palhotas, os colares de bagos de milho, os
utensílios empregados pelos doentes gravemente atacados, por vezes
as suas roupas, o ocre com que se untaram, enfim todos os objectos
que tiveram uma relação qualquer com o flagelo são reunidos e
atirados, ao acaso, para os carreiros mais frequentados, de preferência
nas bifurcações de caminhos — rito que, na verdade, não é muito
altruísta e ainda menos antisséptico! Veremos, daqui a pouco, qual a
sua explicação.
Os indígenas têm particular receio das doenças nervosas. Acre-
ditam que a melancolia é causada pelos espíritos possessores, que
serão o assunto do parágrafo seguinte. A idiotia não tem remédio.
Nada se pode fazer por um idiota. «É a morte! A morte encontrou-o!»
(Mankhelo). O delírio ( mihahamu)é curado pelo Mbulula khutla. O
paciente tem de se meter na cova donde se tira o barro que serve para
cobrir o chão das palhotas e é aí lavado com uma decocção daquela
droga. Corta-se, ainda, uma vara da mesma árvore, mete-se na
cobertura da palhota e a pessoa que compartilha a palhota do doente
terá, todas as noites, o cuidado de colocar a vara próximo da cabeça
do doente. «É assim que nós matamos o delírio!» (Mankhelo). Outra
forma de demência chama-se ríhuhe, «a doença que vem de longe com
o vento», ripfa tinihehwene (Mankhelo). Prepara-se uma droga com a
raiz xiromu, misturada com o pulmão duma ovelha e o sangue
encontrado no seu coração. Tudo isto é queimado num caco de panela
e reduzido a pó. O paciente é levado ao pé do caco; faz-se-lhe na
cabeça uma incisão, este é fervido na panela, solidifica-se e queimam-
no. O	n'angaque sangra abundantemente, até que a panela fique cheia
de sangue; vai enterrá-lo num formigueiro, conforme o rito do timula,
descrito mais adiante. Introduz-se a mezinha na ferida do doente que
come a carne e adoece. «Se estiveste à altura da situação, ele está
curado; deste-lhe sono em abundância. Mataste o rihuhe» (Mankhelo).
A doença chamada wutleka é, ao mesmo tempo, as convulsões dos
pequenitos, geralmente explicadas pela acção do Céu, THo, e a
epilepsia. O grande remédio para a epilepsia, que aterroriza os
indígenas, é fornecido pelos macacos e pelos babuínos. Assam-se
numa panela partida bocados de pelos desses animais e dos seus
excrementos. Juntam-se-lhes bocados de pele de leão. Quando o pó
está preparado, à maneira ordinária, friccionam-se com ele os membros
do doente e borrifa-se-lhe o corpo com uma dccocção destas mesmas
drogas; ou, ainda, prepara-se com elas um unguento que se lhe aplica
sobre a cabeça, dedos e todos os membros, sendo estes, em seguida,
estirados com força (o/o/a). O doente é estendido e colocam-se-lhe na
cabeça folhas da árvore hlampfura (Kigelia pinnata). «Ele dorme, urina,
evacua — está curado!» Mas, para confirmar a cura, procede-se a uma
muitocuriosa cerimónia que lembra o rito do bode expiatório, tão
frequente nos primitivos. Com uma erva chamada muhulane, o doutor
fabrica uma imagem de macaco ( havque unta com as drogas atrás
mencionadas e que ata a uma corda comprida; um rapazito puxa o
manequim para fora da aldeia, enquanto todos os seus companheiros
lhe batem com paus, gritando: «Vai-te! Vai-te!» Corre para uma árvore,
longe, no mato. Todos os rapazes penduram nela o manequim e aí o
deixam, a baloiçar ao vento. A doença foi assim expulsa.
Quando a loucura é acompanhada de grande excitação, a ponto
de ameaçar a segurança dos habitantes da aldeia, impede-se o doente
de fazer mal pondo-lhe peias. O pé do doente é metido num bloco de
madeira no qual se fez uma abertura em forma de losango; através da
abertura fixa-se numa cavilha, de maneira que o doente não possa
retirar o pé; se quer andar, tem de arrastar após si o pesado bloco de
madeira, não tarda a perder as forças; mal alimentado, coberto de
vérmina, morre em lamentável estado.
* * *
No decurso do nosso estudo dos diversos tratamentos, men-
cionámos uma vintena de receitas dos médicos indígenas, contendo,
ao todo, as suas quarenta ou cinquenta drogas diferentes, que eles
empregam de diversas maneiras: aplicação sobre o corpo, inalação,
fumigação, infusão, decocção, inoculação, manipulações de drogas
carbonizadas ou pulverizadas, etc. Podemos, pois, afirmar que, até
certo ponto, os Tsongas possuem uma arte medica. Para completar a
nossa revista médica, tenho de descrever ainda algumas práticas
curiosas dos doutores tsongas que relembram espantosamente aquelas
a que os nossos médicos recorrem algumas vezes.
Comecemos pela ventosa. Na história de «O salteador da
planície» (Chants et Contes des	pág. 357) é feita uma
descrição pormenorizada da ventosa. Uma rapariga ressuscita, por meio
dela, um búfalo. Eis como ela procede: ferve água, na qual põe o feixe
das drogas requeridas; limpa cuidadosamente certo lugar que se
encontra na região da fonte e faz nele algumas incisões com uma
navalha de barba ( Hkari); aplica-se nas incisões um chifre (
riakutumeka) aberto nas duas extremidades; o operador chupa por uma
das extremidades e faz, assim, sair o sangue abundantemente; a ferida
é, depois, exposta ao vapor que emana do feixe (xitsimbu) que está na
fervura e untada com um unguento especial guardado numa cabaça.
A segunda, no género destas práticas, é o phungulu [Dz.] ou
hungu/u [Ro.], espécie de banho turco ou banho de vapor, prescrito
para curar certos males, assim como após os ritos funerários, para
levantar a poluição da morto (vol.l, pág. 144). Arranja-se, com uma
esteira colocada verticalmente sobre um dos lados, um cerrado circular,
no meio do qual se instala o paciente; perto dele coloca-se, sobre
tições a arder, uma panela contendo as folhas que se julga possuírem
propriedades medicinais. Sobre o cerrado estende-se uma outra esteira,
ficando assim o paciente encerrado numa pequena cela. O fumo dos
tições provoca uma tosse terrível.
O vapor que se escapa da panela causa forte transpiração que sai por
todos os poros. A vítima deste tratamento é deixada numa situação
extremamente inconfortável durante considerável lapso de tempo.
Quando, finalmente, se julga que o remédio teve tempo de fazer todo
o efeito desejado, tiram-se as esteiras. O paciente acha-se do repente
ao ar livre, escorrendo em suor. Vi um homem ficar assim exposto à
frescura do cair da noite, com grande perigo do contrair uma
inflamação dos pulmões. O doutor esfrega-lhe as faces e outras partes
do corpo com um pó branco ou negro. Tal é o banho turco dos
Tsongas, ao qual se faz frequentemente alusão no seu folclore. Na
maior parte dos casos o phungulu é administrado quando se receia a
poluição ritual ou se pensa que essa poluição é a causa da doença. O
envenenamento especial provocado pelas impurezas que respeitam à
morte, à menstruação, aos lóquios, etc., manifesta-se por inchaço das
articulações, das mãos e dos pés, dores nos ossos, etc. Recorre-se,
também, a este banho de vapor para curar as pessoas casadas que não
podem ter filhos. Nestes casos, o médico faz um feixe (	) com
as raizes seguintes: Nhiangawume, Mpongwana,	coze-as na
panela, dentro do cerrado; põe no fogo, sob a penela, uma porção da
carne da cabra sacrificada nesta ocasião, em especial do útero, carne
que foi previamente untada com drogas. Desta maneira, a mezinha
introduzir-se-á nos pacientes quer pelo vapor quer pelo fumo. Bawupfa,
«eles amadurecem» ou «eles são cozinhados». Quando se tira a esteira,
deita-se sobre eles uma panela de água fria, que extingue o phungulu
que «os cozeu». Os pacientes deverão levar a carne e cozê-la, na sua
palhota, com o feixe de raizes; outro feixe deve ser posto na panela em
que guardam a cerveja.
Terceira prática, tão antiga como a precedente, é o thlenza ou
cauterização. Pode ser feita colocando sobre a parte doente um feixe
de raizes previamente aquecidas. Mas, dum modo geral, a cauterização
é praticada com o pé. Curioso processo, realmente! Kokolo fez-me uma
descrição minuciosa. Aquece-se uma enxada até o rubro branco. Um
indivíduo complacente põe à disposição o seu pé, um pé que não
conhece o emprego do calçado e cuja planta é dura como coiro. Esta
sola natural é devidamente esfregada com folhas duma planta chamada
Xiungwe que foi primeiro mastigada, depois misturada na palma da
mão, com saliva e gordura. Para obter o mesmo efeito, Mankhelo
servia-se duma espécie de gordura contendo, a par doutros
ingredientes, as seguintes drogas: Hlampfura e N'wambula-wamitwa.
Depois, o obsequiante operador põe o pé na enxada em brasa, retira-o
e, com um movimento rápido, aplica-o sobre o sítio a cauterizar. O
paciente mal pode suportar este contacto. Quanto ao proprietário do
pé, a pele calosa da planta desse pé é, ao que parece, tão espessa que
ele não sente dor. É o remédio para o «sangue» dito xitreve, isto é, pro-
vavelmente a pleurisia.
A última prática a mencionar, aquela pela qual o doutor dá ao
seu paciente um certificado de cura, é o hondlola [Ro.] ou hondla [Dz.].
É uma cerimónia de purificação, praticada após o tratamento, para
levantar a poluição, nsila, da doença. «Desta maneira — diz Mankhelo
— dispersamos ( kuhulurisa)o sangue que tornou o paciente doente e
que não lhe voltará mais com violência». O hondla é obrigatório depois
de todas as doenças graves e depois do desmame. Já o descrevi neste
último caso (vol.l, pág. 75). Segundo Mankhelo, o hondlola deve ser
sempre acompanhado por um sacrifício. No caso dum adulto, mata-se
uma cabra; o doutor põe de lado um pedaço de cada um dos membros
da cabra e «por meio deles» reza aos seus deuses, dizendo:
«Tu, Fulano, eis o boi que degolei... Dá-me a força (ndri thwas-
ane matimba) de curar este homem. Não tenho outras drogas! Não
misturo nenhuma àquelas que me deste! Portanto, dá-me força; aceita-
me com as duas mãos, a fim de que ou seja capaz de realizar esta
cura.»
O nsvanyi da cabra é, então, misturado a diversas drogas, em
particular ao xirheti e ao pó das cabaças. O paciente, sentado numa
esteira, esfrega vigorosamente todo o corpo com o	; reúnem-se
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cuidadosamente todas as partículas que caem na esteira (timhore ou
timhorola ou, ainda, timbhorola) e consultam-se os ossículos para se
saber em que lugar devem ser deitadas. É o rito do tumba, que se
segue ao hondlola. Os ossículos indicarão, possivelmente, um buraco
no tronco duma árvore, o rio, a vasa do pântano, um formigueiro ou a
entrada duma toca de toupeira. O médico põe os timbhorola num
fragmento de panela partida ou numa casca de sala e mete-os no
buraco, que tapa com um pouco de barro; levou consigo água, numa
pequena cabaça, toma uma golada, dizendo: «Pthu! (ou Phew!) Que a
desgraça fique aqui!» No regresso, nunca deve olhar para trás: é tabu.
Se o tumba é praticado num formigueiro e se as próprias formigas
fecham a entrada, é muito bom sinal! Os ossículos ordenarão,talvez,
que as partículas contidas na casca de sala sejam depositadas numa
outra espécie de formigueiro, feito de erva; o n'anga deverá ir, de dia,
preparar o lugar para a casca; caída a noite, irá, na obscuridade,
introduzi-la no buraco, andando às arrecuas. As formigas levarão todos
os timbhorola para o seu abrigo e assim «a desgraça ficará com elas»
(Mboza). O rito do hondlola é, geralmente, acompanhado pela
preparação de amuletos protectores (timfisa). Cortadas as unhas e os
cabelos do paciente, metem-se em pequenos sacos de pele de lagarto
que se usam ao pescoço. É frequente encontrar indígenas portadores
deste ornamento, cujo fim é assegurar a permanência da cura. Algumas
vezes, as unhas são duma mão e dum pé, apenas. Os svirungulu, isto
é, o astrágalo da cabra sacrificado, ou o bico, as patas e algumas
penas da galinha, são, também, suspensos do pescoço do paciente. É
o amuleto religioso, ao passo que o saquinho de pele de lagarto é o
amuleto médico-mágico. Aos convalescentes põe-se um fowa, que
consiste numa raiz de sungi (não há relação entre este termo e o sungi
da escola da circuncisão), guardada numa espécie de caixita redonda
feita de folhas de palmeira e que se usa no tornozelo; deve protegê-los
contra a transpiração das pessoas casadas.
Algumas vezes usam um pedacito de cana cheio de pó pro-
tector; as amas fazem o mesmo durante todo o período da ama-
mentação (vol.l, pág. 66).[4: Mencionarei ainda dois artigos que os indígenas tsongas usam frequentemente.
Um, é o receptáculo seco que continha as sementes do grande arbusto Prótea
(árvore de açúcar), muito comum nas encostas do Drakensberg; tem a aparência
dum cone duro, pardacento, todo coberto de linhas concêntricas de pequenas
asperezas quadradas. Cura da vertigem. Porquê? Sem dúvida porque, se o fizermos
rodar rapidamente, causa vertigem no espectador. Pendura-se ao pescoço, com um
fio. Este curioso remédio vem das montanhas de Barberton, trazido pelos que vão
trabalhar no Transval. O segundo é um bracelete que se vê no pulso das criancitas.
É feito da pele curtida duma espécie de toupeira, chamada trukunyana, que abre
os seus sulcos quase ao nível do solo. O parasita Filária, frequente na nossa tribo,]
Amuletos médico-mágicos (fowa e timfisaj.
0 rito do hondlola marca, também, o momento em que as
relações sexuais, suspensas durante a doença, são restabelecidas. 0
dia do hondlola, sendo, como é, a celebração da vitória alcançada
sobre a doença, é considerado dia de festa. Para «regozijar o coração»
do doutor, e em sinal de gratidão, fabrica-se cerveja.
É, também, o dia da liquidação da conta. Há que pagar ao
doutor. De resto, este não esperou até agora para reclamar um
«refresco». Desde o princípio da doença houve que kupfula huama, isto
é, levantar a tampa da sacola que contém a mezinha, por meio duma
moeda de prata. Várias vezes o doutor sentiu vivo desejo de mudar de
mezinha e nessas ocasiões especiais fez-se-lhe presente duma galinha,
à guisa de encorajamento. Mas no dia do hondlola, quando o seu valor
for vitoriosamente comprovado e a cura é um facto, trata-se de liquidar
definitivamente as contas do n'angaque cessará, desde então, as suas
visitas.
mina sob a pele duma maneira semelhante. São estes, pois, dois novos exemplos
do principio similia similibus curantur. Usam-se também, como preventivos,
saquitos cheios de pó de serpente.
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III — Concepção da doença
Os pormenores que precedem habilitam-nos a compreender as
concepções que estão na base destes ritos e destas cerimónias.
Possuindo noções de anatomia e de fisiologia tão restritas e inexatas,
não é de espantar que os Bantu do sul da África careçam totalmente
dum conhecimento correcto da patologia. O seu saber é,
simultaneamente, superficial e supersticioso. Tentarei fornecer a prova
disto pelo estudo dos nomes que dão às doenças, das causas a que as
atribuem, da sua noção de contágio e das ideias bases dos ritos que
marcam o fim da doença.
1No que respeita ao método que empregam para denominar
as doenças, é extremamente infantil. Os Tsongas dão à doença o nome
do órgão afectado. Por exemplo: «Tenho um pé, tenho uma mão, tenho
um pescoço» ndri ninenge, boko, nkolo) significa «estou doente dum
pé, duma mão, do pescoço». Estas curiosas expressões provêm, sem
dúvida, do facto de que eles não dão pela existência dum órgão
particular senão quando sofrem dele. «Ele tem uma cabeça» significa
«está atacado de loucura». Para «tenho dor de cabeça» dizem,
geralmente, «sinto a minha cabeça». Ouvimo-los muitas vezes
queixarem-se dum «sangue» (ngati) que se move dum sítio para outro
e se aloja, por fim, no flanco, no estômago ou outro lugar. É uma ideia
análoga à dos antigos humores mórbidos. Há, por consequência, tantas
doenças quantos os órgãos. Pedem-nos muitas vezes remédios contra
a doença «da nuca» ou contra «uma perturbação de dentro». Esta
última pode significar gastrite, congestão do fígado ou disenteria, e ver-
nos-íamos na impossibilidade de prescrever um remédio se não fossem
as imagens pitorescas e, por vezes, singularmente apropriadas de que
se servem os pacientes ou os seus amigos para descreverem os
diversos sintomas da doença. Por exemplo: se um doente que sofre de
«perturbação de dentro» diz que aquilo «morde», sabemos que se trata
de cólica intestinal. Mas o caso torna-se embaraçante quando o
paciente declara que sofre dum verme interior que passa do estômago
ao pescoço e regressa pelos pulmões, se não lhe dá na gaita instalar-se
na cabeça! «Faz barulho, qualquer coisa como pfi... », explicava-
me um velhote, descrevendo esse animal que tem um papel importante
na ciência médica dos indígenas (vol.l, pág. 67).1
'A solitária e a lombriga, ambas chamadas tinyokana, serpentes pequenas, são
muito comuns nos indígenas, que as conhecem muito bem. Chegam a pensar que
estes vermes são necessários à digestão. Uma mulher velha pedira um vermífugo
a um dos meus colegas e a droga produzira o devido efeito. A velhota voltou a
pedir-lhe outro remédio que impedisse de fugirem todos os seus vermes, porque,
dizia ela, «quem é qye depois comeria a minha comida?».
No entanto, há alguns nomes técnicos para designar certas
doenças. Assim, mukuhlwana significa tosse e catarro mucoso da
garganta e do nariz. O mbukulu ordinário parece designar a inflamação
das amígdalas, ao passo que o mbukulu especial, doença geralmente
atribuída a influências malfazejas dos espíritos dos defuntos, é
acompanhado de febre, vertigem, delírio e loucura. A hidrocele
( masangu ou masenge) é muito conhecida e está muito espalhada,
assim como a bilhárzia, uma forma de hematúria denominada xinhalu
ou ntrundrwana, a qual pode revestir forma perigosa e é devida a um
parasita especial. O reumatismo chama-se xifambu, «o corredor»,
porque vai de lugar em lugar. A sífilis, importada de há muito pelos
Europeus, é universalmente conhecida e está, infelizmente, tão
espalhada nos arredores de Lourenço Marques que quase todos os
indígenas se acham atacados. Os indígenas chamam-lhe buba
(provavelmente, de bubo). A gonorreia é de importação mais recente;
segundo o meu informador Tovana, data do tempo em que foi
construído o caminho de ferro de Pretória; é chamada xikandrameti, a
doença que esmaga as aldeias.
As doenças eruptivas são, talvez, as que os indígenas melhor
sabem reconhecer. Xintrinana é o nome dado ao sarampo e que parece
aplicar-se também à febre escarlatina. A varíola chama-se nyedzane.
As perturbações psíquicas ou nervosas, cujo tratamento estu-
dámos há pouco, são atribuídas quer ao Céu, quer aos espíritos maus,
quer aos ventos. O nome da doença wutleka vale a pena ser notado.
Trata-se da epilepsia. A palavra vem de wutla, que significa roubar,
arrancar à força; wutleka, o derivado qualificativo «	thonga,
§ 196), significa o estado duma coisa que foi arrancada. Poder-se-ia
concluir que o sentido é passivo: o paciente foi roubado pela doença
que lhe arrancou a consciênciade si. Todavia, a explicação de
Mankhelo é esta: «O paciente roubou o	(awutle	A
palavra rhiravi está estreitamente ligada a ravi, ramo. O velho doutor
afirma que é este o nome da doença. Se esta etimologia é correcta,
então o paciente é que se apoderou da doença, cometendo uma
espécie de rapto. Mas toda a etimolologia indígena deve sujeitar-se a
caução.
Todos estes nomes demonstram a falta de precisão dos conhe-
cimentos patológicos dos Tsongas.
2.° Com respeito às causas das doenças, os Tsongas estão
mergulhados na mais profunda superstição. Todos os médicos, antes
de tratarem uma doença, tentam diagnosticar-lhe a causa e assim
também faz o n'anga, mas com esta diferença: a de que ele não toma
quase em nenhuma consideração os sintomas físicos. Nem
auscultação, nem palpação, nem exame de secreções, sangue, saliva
ou urina — pois estas coisas são repugnantes e devem ser tapadas
com areia o mais depressa possível! O grande meio de que se dispõe
para diagnosticar uma doença são os ossículos. Há três grandes causas
de doença: os espíritos dos deuses, os deitadores de sortes e os
makhumu, ou sejam, a poluição da morte e o contacto com pessoas
impuras. Quarta causa, menos comum, é o Céu. Os ossículos, segundo
a maneira por que caem, revelam qual destas causas deve ser
combatida.
3.° As suas ideias sobre contágio não são mais exactas que as
outras concepções patológicas. As duas doenças mais temidas, a este
respeito, são a tuberculose pulmonar	e a lepra	A
tuberculose não é um mal inteiramente novo, introduzido pela
civilização, se bem que tenha aumentado enormemente depois que
os rapazes tsongas foram trabalhar nas cidades. Prova de que ela era
conhecida desde longa data, é a existência dum ritual estabelecido na
maneira de a tratar. No espírito do Tsonga, é causada pelo makhumu,
isto é, pela contaminação da morte ou pela poluição resultante de
contacto com mulher em estado de impureza fisiológica. Daí a lei
ordenando a todos os atingidos por estes makhumu que se sirvam de
colheres para comer. Protegem-se, assim, contra o veneno que podia
provocar a tuberculose.[5: A tuberculose pulmonar parece mais antiga nos arredores da cidade de
Lourenço Marques que no interior. Com efeito, foram os meus informadores dessa
região que me deram a descrição dos costumes relativos ao encerramento dos
tísicos. No entanto, Mankhelo conhecia também a rifuva (mesma palavra que
Hfuva) em Xiluvana, Transval. Devia, porém, serrara. O Dr. Liengme assegurou-me
que não encontrara um único caso na corte de Nghunghunyane, onde residiu em
1894 e 1895, a despeito de ter visto milhares de homens. Actualmente, os
estragos da tuberculose, sobretudo nos mancebos que trabalharam nas minas, são
terríveis. «Morrem desta afecção, nos hospitais do Transval, 16,3 por cento»,
escrevia o chefe do Serviço de Saúde de Lourenço Marques, em 1925 — e
quantos não vão extinguir-se miseravelmente nas suas aldeias. H. Ph. Junod viu,
em Mandlakazi, a terça parte do grup.o dos seus jovens evangelistas arrebatados,
em poucos anos, pela terrível doença: seis, em dezoito. As mulheres começam a
contaminar-se (ver o artigo do Dr. A. Perret-Gentil, Revue Médicale de la Suisse
Romande, 1931, n.° 1).]
Eis um traço curioso da sua concepção do contágio. Quando
Sokisi morreu (vol.l, pág. 139) ouvi alguns dos presentes dizerem à
irmã que transportava às costas um bebé: «Não chores! Se chorares,
a doença salta sobre o bebé!» Havia duas razões para este aviso:
chorar em face do infortúnio decuplica o perigo (compare pág. 275); a
contaminação da doença deve ser particularmente receada se se trata
de membros da família do doente ou defunto. Donde este estranho
costume: quando um homem morre de tuberculose é absolutamente
proibido aos seus parentes comerem a mais pequena parcela que seja
ros alimentos por ele deixados. A cerimónia do kuluma milomo (vol.l,
pág. 145) não tem nenhuma utilidade, neste caso. Outrora, queimavam
todo o milho deixado. Hoje, no entanto, permite-se às pessoas não
pertencentes à família comprarem e consumirem essas provisões. O
celeiro grande continha o milho colhido nas lavras de Sokisi; esse milho
era vendido a estranhos, ao passo que as pessoas de família com-
pravam o milho arrecadado no celeiro pequeno para uso da viúva e dos
filhos. Sem dúvida, é por esta mesma razão que a mulher de um
tuberculoso deve kulahla khombo com estranhos e não com os homens
da aldeia (vol.l, pág. 193).
Esta singular ideia do contágio dita, também, as regras relativas
ao sepultamento dos leprosos. As pessoas pertencentes à família nada
devem ter com o encerramento (vol.l, Apêndice VIII). Os parentes por
aliança é que têm esse dever. É possível, também, que na sua
amargura a família do leproso falecido recorra a um amigo. Este
perguntará: «Preparam alguma coisa para me recompensarem?» Se
sim, começa a abrir a cova, mesmo ao lado da palhota onde o doente
faleceu; tira alguns caniços da parede e puxa o cadáver para a cova,
sem que se realize qualquer das cerimónias habituais. A família está
reunida longe, na praça da aldeia; não ousa, sequer, assistir ao enterro.
Todos os utensílios são quebrados e atirados para muito longe, para a
espessura da floresta, com medo de que algum membro da família lhes
toque e morra. Podem ser deixados na palhota e toda a aldeia se muda
imediatamente. Chama-se à lepra nhlulabadayi, a doença que é mais
forte que os doutores. É muito temida. No entanto, os leprosos não são
separados da comunidade; vivem na aldeia com todos os outros
habitantes e tomam parte nas refeições em comum, mas comem
depois dos outros. Assistem às «festas de cerveja» mas devem munir-
se com copo próprio, ao passo que os demais convidados recebem o
seu do dono da aldeia.
Outra doença de que os indígenas receiam o contágio é a
«possessão» pelos espíritos dos Ndrawus. Se apanhardes do caminho
algum objecto que pertenceu a um possesso, a doença «saltará sobre
vós» (tlulela ).A epilepsia é, também, temida pela mesma razão. É
indispensável que uma mulher que amamenta não veja um epiléptico
em crise: a criança que ela tem às costas tomar-se-ia epiléptica.
Tratando da concepção da doença, devo relembrar ao leitor a
convicção dos indígenas de que as relações sexuais entre os habitantes
da aldeia agravam o estado do paciente que viva nessa aldeia; por
consequência, são proibidas durante os períodos de epidemia e em
todos os casos de doença grave. Daí as precauções tomadas para que
os convalescentes usem o sungi, como acabámos de ver.
4.° Os ritos especiais que marcam o fim de uma doença pro-
jectam viva luz sobre a concepção tsonga da doença. Um mal grave
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constitui um período marginal, seja para o indivíduo doente, seja, em
caso de epidemia, para a comunidade, e o rito do hondlola é o método
para reintegrar o paciente na sociedade. Tem, pois, claramente, o
carácter dum rito de passagem. A fricção por meio do nsvanyi, o
levantamento da poluição da doença, a rejeição dos timbhorola, as
unhas e os cabelos cortados — todos estes ritos são ritos de separação
do período da doença. Os regozijos do dia do hondlola e o
restabelecimento das relações sexuais são ritos de reintegração. Nas
doenças de possessão trata-se, como veremos, da admissão na
sociedade de pessoas possuídas pelos espíritos, e este rito corresponde
a uma iniciação.[6: Sabe-se, com frequência, que uma mulher cristã que se tratou com um médico
pagão- teve com ele relações sexuais. Atribuímos, geralmente, o facto a pura
imoralidade. É provável, porém, que se trate duma parte do tratamento, no
momento preciso em que os tabus sexuais eram levantados.]
Nos casos de epidemia, é todo o clã que passa pelo período
marginal; todos os seus membros devem cumprir os ritos de rein-
tegração que os fazem reentrar na vida normal.
Mas estes ritos têm, ainda, outra significação. Têm por fim
«dispersar a doença». No verdadeiro hondlola, as partículas caídas na
esteira durante a operação de fricçãosão deitadas num formigueiro. É
o tumba, correspondente ao rito que consiste em deitar na bifurcação
de caminhos toda a nsila, isto é, todas as impurezas dos doentes de
varíola. Nesta ocasião, o corpo do paciente é lavado, no mesmo lugar.
Sucede o mesmo no caso de sarampo. Na base de todos estes
costumes há uma ideia única: por meio deles o paciente ou o clã
desembaraça-se definitivamente da doença. A doença forma um todo
orgânico; um dos seus elementos importantes é o depósito deixado
pela transpiração na pele — dizendo doutra maneira: a porcaria que a
cobre — , nos utensílios empregados pelo doente durante o período do
seu isolamento, no pó da sua palhota, etc. Deita-se, portanto, tudo isto
num formigueiro (e os insectos que se avenham) ou no caminho, onde
os viajantes os espezinharão — e, ao pisarem essas impurezas, não só
contraem a doença que elas representam como a levarão com eles para
terras distantes! A prece do médico indígena será, assim, satisfeita:
«Que ele se vá, o mau sangue, para Nkhavelana, para Xivurhi... para
os confins da terra!» Não creio que este acto, aparentemente hostil, de
atirar para o caminho o pó duma palhota contaminada, tenha por
origem o desejo de que os viajantes sejam iníestados pêla dóêhÇS. 0
objectivo principal dos Tsongas é dispersar o contágio, de
conformidade com os princípios da magia comunionista e imitativa.
Mas é perigoso, não há dúvida, para o transeunte andar sobre essas
porcarias. Um destes makhumu poderia ser a causa duma doença.
No sistema médico dos Bantu misturam-se tantas superstições
e erros, que não se saberia conceder-lhe alguma confiança. É, pois,
muito difícil responder à pergunta que formulei no começo deste
capítulo. Qual o dever do governo dos Brancos em face dos
curandeiros indígenas? O ideal seria substituí-los por doutores bem
qualificados e civilizados. Sendo isto impossível, encorajem-se, ao
menos, os médicos-missionários, aumente-se o número deles e institua-
se um curso de medicina para indígenas educados. Se este curso não
pode ser um curso universitário completo, dê-se ao menos uma
instrução suficiente para permitir a esses indígenas tratar
cientificamente a sua gente e ponha-se, pouco a pouco, termo às
práticas da arte duvidosa dos médicos indígenas.
B — Possessões
O curioso fenómeno psíquico que vou agora descrever pertence
ao domínio da medicina. Efectivamente, chamam-lhe «a doença» ou,
antes, «a loucura dos deuses» (vuvavyi bza svikwembu). Tem, além
disso, carácter acentuadamente religioso, pois os espíritos figurados
como causa da doença são svikwembu, espíritos dos falecidos, aos
quais se deve prestar culto. Por outro lado, os ritos relativos ao
tratamento desta espécie de loucura são positivamente mágicos e
aqueles que dela sofreram tornam-se, muitas vezes, curandeiros e
atribuem-se poder sobrenatural.
Este assunto apresenta grande interesse do ponto de vista da
psicologia e psiquiatria. Os fenómenos de possessão existem na maior
parte das raças não-civilizadas e até em povos mais avançados, e seria
útil comparar as manifestações desta doença nos Rhongas com as que
se encontram noutras partes do mundo. Deixarei, todavia, essa tarefa
a profissionais e tentarei descrever fiel e claramente — e, se possível,
compreender — os factos de que fui, eu próprio, testemunha. Esta
doença espalhou-se enormemente entre os Tsongas depois do último
quarto do século passado. Diz-se que, anteriormente, era muito rara ou
até desconhecida. De então para cá tomou-se verdadeira epidemia,
posto que actualmente em decréscimo. As possessões são mais
frequentes nos Rhongas que nos clãs do norte.
I — Os espíritos que causam a doença
Coisa estranha, os deuses ou espíritos a que se atribui o poder
de tomar possessão de seres humanos não são os antepassados dos
Tsongas, os antepassados-deuses, mas sim os espíritos dos Zulus e os
da tribo dos Ndrawus, os quais habitam o país além do Save até os
arredores da -Beira. Parece que as primeiras possessões que se
manifestaram eram devidas aos espíritos dos Zulus e dos Ngonis; é
possível que tenham coincidido com a invasão dos guerreiros de
Manukuse c com o êxodo crescente de mancebos para as cidades,
quando iam trabalhar nas minas de diamantes de Kimberley ou nas
minas de ouro de Joanesburgo ou Natal, atravessando assim nas suas
viagens territórios ocupados pelos Zulus. Quanto aos espíritos dos
Ndrawus, são algumas vezes chamados	e diz-se seguiram os
guerreiros tsongas e ngonis do Nghunghunyane que se estabeleceram,
põr alguns anos, na Musapa, em pleno país ndrawu, ao norte do Save,
e que depois regressaram dessa região montanhosa para a fértil
planície do Bilene (Baixo Limpopo). Por outro lado, quando a guerra de
1894 a 1895 obrigou à fuga os Rhongas do norte, os de Mavota,
Zihlahla e Nondrwana, eles levaram consigo, ao que se conta, os
espíritos que os tinham possuído e «disseminaram-nos» tão
completamente nos países do norte que, de regresso a casa, não mais
foram molestados por esses svikwembu. É, pelo menos, o que um
indígena me assegurou. Desde já devemos notar cuidadosamente estas
duas ideias: os espíritos que atormentam os indígenas são os manes de
membros de outras tribos, não dos da gente do país, e atacam fre-
quentemente os Tsongas que atravessaram regiões estrangeiras, se-
guindo com eles nas suas subsequentes migrações.1
As possessões pelos Ndrawus parecem ser mais perigosas que
as dos Zulus. Vundrawu bza kareta, «a possessão ndrawu é dolorosa».
Se as encantações se fazem em zulu para as possessões dos Zulus,
fazem-se em língua ndrawu quando são causadas pelos espíritos
ndrawu. Reconhecem-se aqueles que esta desgraça atingiu por grandes
contas brancas que trazem no cabelo. Algumas vezes têm um simples
cordão de contas suspenso de qualquer parte da cabeça. Recordo-me
muito bem de ter visto, à beira de um riacho, num vale arborizado
chamado Nhalalene, onde fizéramos alto no decurso de uma viagem,
uma bela mulher nova que usava um destes adornos. Isso
impressionou-me e perguntei a um dos nossos companheiros porque
estava ela assim adornada. «Ela invoca os espíritos dos Vandrawu»,
responderam eles.
'Todavia, no caso de Mholombo, o espírito era um velho chefe do Tembe. No
caso do N'waxin'hwana, havia nela uma multidão de ocupantes, entre os quais seu
próprio filho Manuel, falecido algum tempo antes. No caso de Mboza, era também
um rhonga, mas que morrera em país estrangeiro (ver adiante).
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Il — Começo e diagnóstico da doença
Estudei com cuidado a história de diversos casos de possessão
entre os Rhongas (ver Bulletin de la Société Neuchâteloise de Géo-
graphie, tomo X, pág. 388). A maior parte deles começam por uma
crise muito distinta, em que o paciente fica inconsciente; não parece,
no entanto, que ela tenha sido preparada por perturbações nervosas.
Uma mulher dos arredores de Lourenço Marques, N'waxin'hwana,
fugiu de casa e atirou-se ao mar; o contacto com a água fria fê-la
retomar os sentidos; depois, os ossículos declararam que ela tinha
svikwembu. Outra, Mholombo, ouviu em sonho uma voz que a
chamava; era o espírito possessor que mais tarde se revelou como
sendo o de um chefe morto havia muito tempo. Vou descrever agora
minuciosamente o caso de Mboza, que esteve possesso ele próprio e
mais tarde se tornou um verdadeiro exorcista. Depois de ter trabalhado
algum tempo em Kimberley, regressou a casa de boa saúde. Pouco
tempo depois, começou a coxear e assim andou seis meses. Atribuía
a reumatismo (xifambu) a dificuldade que tinha de andar. Melhorou,
mas começaram a manifestar-se outros sintomas. Perdia o apetite; em
breve deixou de comer, quase por completo. Ouçamos a sua própria
declaração:
«Um dia fui com outro homem apanhar juncos para fazer uma esteira; de
repente, os svikwembu começaram em mim ( sunguleka hi svikwembu
xikan'we). Voltei à aldeia com todos os membros frementes. Entrei na palhota
mas, de repente, saltei e pus-me a atacar as pessoas da aldeia.Depois fugi,
seguido pelos meus amigos. Estes agarraram-me e imediatamente os espíritos se
dispersaram (	hangaiaka).Voltado a mim, soube que tinha ferido um khehla (um.
homem de coroa de cera, vol.l, pág. 138) e batido nas costas de outras duas
pessoas. Há! — disseram eles — Ani svikwembu(Ele tem os deuses, ou ele está
doente dos deuses).»
Parece, pois, que os primeiros sinais da possessão são a crise
nervosa e também a aparição de certos sintomas suspeitos: uma dor
persistente no peito, um soluço impossível de reprimir, bocejos desa-
costumados, emagrecimento sem causa aparente, etc. Todavia, não
bastam estes sintomas para se pronunciar um diagnóstico e os
ossículos devem ser sempre consultados antes de se chegar a uma
conclusão. Colocam-se os amuletos do paciente (a sua «sombra»,
como se lhes chama) sobre a esteira. Os ossículos são deitados ao iado
deles. Veremos, na letra D, de que maneira os ossículos devem cair
para confirmar o diagnóstico. Se assim sucede, tem lugar segunda
consulta para designar o doutor a quem será confiado o tratamento. Há
médicos indígenas especializados nesta doença. Não são verdadeiros
n'anga; chamam-se govela. Pelo menos é o que sucede entre os
Rhongas, que sofrem mais de possessões que qualquer outro clã. Estes
govela fundaram grande número de escolas rivais, diferindo
ligeiramente nas drogas empregadas e ritos seguidos: as escolas de
Khongosa, Sindondondo, N'watxulu, que são homens, e as de
N'wamuthetu (nas terras de Xifimbatlelo) e Thambulanyoka, isto é,
Osso-de-Serpente, que, são duas mulheres, etc. N'waxin'hwana foi
tratada por um discípulo de Khongosa; Mboza por N'watxulu.
III — O tratamento das possessões ou exorcismo
Outrora o único remédio consistia em baloiçar diante do pa-
ciente uma grande folha de palmeira (milala). Acreditava-se que isso
bastava para «dispersar os espíritos». Agora o tratamento é muito mais
complicado. Embora varie um pouco de uma escola para outra,
compreende quatro ritos principais: o toque de tambores, a ablução na
cabaça govo, a absorção do sangue duma vítima e a cerimónia do
hondlola. No tratamento de Khongosa o rito do govo é o primeiro;
chama-se vase/o. Prepara-se certa raiz, o	mergulha-se na
água duma grande cabaça, cortada em duas de maneira a formar uma
grande coveta; mexe-se a mistura, produzindo-se uma espuma branca
abundante, com a qual o paciente deve lavar-se ou, então, tendo a
coveta sobre os joelhos, toma um pouco da espuma entre os lábios e
sopra-a aos quatro ventos, fazendo pthu. Isto é, evidentemente, um
meio preliminar de ganhar o favor dos espíritos possessores que no rito
seguinte vão ser invocados e suplicados a revelarem-se.
No caso de Mboza, o rito da cabaça era a segunda parte do
tratamento, o qual se iniciava pelos tambores.
1.° — 0 toque de tambores («gongondrela»)
Este extraordinário rito acorda a lembrança dos sabbats de
bruxas da Idade Média, pelo barulho infernal que o possesso tem de
sofrer. Todavia, esta semelhança não passa de exterior, pois nada tem
que ver com a bruxaria propriamente dita e, aos olhos dos Tsongas, é
uma «prática médica». Estranha prática médica, realmente — e mais
feita para matar o paciente que para curá-lo!
Em primeiro lugar os ossículos têm de ser consultados para
indicarem o lugar onde deve realizar-se o sabbat. Se o ossículo que
representa o paciente cai no meio dos outros, isso quer dizer que os
tamborins ou tantãs devem ser tocados no interior da palhota; se cai
sobre o bordo exterior, no limiar da porta; se cai mais longe que os
outros, na praça da aldeia ( hubzene); se rola para mais longe ainda e
o astrágalo da gazela errante fica também separado dos outros
ossículos, a reunião deve efectuar-se no mato, muito longe da aldeia.
Se os ossículos ficam mudos, se nada revelam, há que deitá-los
novamente, atrás da palhota ou na praça da aldeia, até que falem. É
necessário, também, que as quatro conchas Olivas e Cipreias, que
fazem parte da colecção dos ossículos, caiam sobre o dorso, isto é,
que a abertura da concha fique à vista. Isso significa que os deuses da
possessão, os espíritos, ir-se-ão embora; uma saída lhes foi reservada,
ao passo que, se as conchas caem na posição inversa, expondo o seu
lado convexo, o adivinho dirá: Matikarata ntsena — «Todos os vossos
esforços são vãos». O sabbat não terá efeito; os espíritos não
encontrarão nenhuma porta de saída! Mas não se tardará em encontrar
o meio de resolver esta dificuldade e depressa o sabbat atingirá o auge.
No centro da palhota senta-se o paciente. Abatido, os olhos
baixos, o olhar fixo, espera... Por todo o país se sabe que hoje, à noite,
quando a lua nova aparecer, o estranho e terrível exorcismo começará.
Todos os que já foram possessos, outrora, serão agora os oficiantes.
O director da cerimória, govela, que foi indicado p'elos ossículos, pega
no seu tamborim, feito de pele do grande lagarto varano, estendida
num quadro circular (ver a gravura a pág. 111, n.° 9). No ar calmo da
noite ressoa a primeira batida. Repercute por todos os lados. Através
dos bosques, chega às aldeias vizinhas — e provoca uma estranha
emoção, um extraordinário arrebatamento, inspirado pela curiosidade,
a maldade e não sei que sentimento de satisfação inconsciente. Toda
a gente se precipita na direcção donde vem o som bem conhecido;
todos se apressam a dirigir-se à palhota do possesso; não há ninguém
que não tenha o desejo de tomar parte nesta luta, neste ccfhflito com
as forças do mundo invisível.
Ei-los todos reunidos. Uns muniram-se de tamborins; outros de
grandes latas de folha apanhadas nos despejos fora da cidade (as latas
em que se vende o petróleo em Lourenço Marques); outros, ainda, de
cabaças cheias de pequenos objectos e que vão funcionar como
matracas (ndre/e). E, agora, todos, comprimindo-se à volta do paciente,
começam o tremendo barulho, batendo, brandindo, sacudindo com
todas as forças os seus diversos instrumentos de tortura. Alguns
afloram a cabeça e os ouvidos do desgraçado. É uma algazarra
ensurdecedora que se prolonga, com breves interrupções, por toda a
noite, até o momento em que os executantes deste fantástico concerto
não podem mais de fadiga.
. Isto, porém, não é mais que a orquestra, o acompanhamento.
O essencial é o canto, a voz humana, o coro dos exorcismados, cprto
refrão que segue um solo mais curto ainda, repetido cem, mil vezes,
sempre com o mesmo objectivo em vista, para o qual todos se
encarniçam cpm seriedade e persistência: forçar o ser espiritual, o
misterioso espírito que lá está presente a revelar-se e a declarar o seu
nome. Só então será considerado vencido. Tais cantos são, a um
tempo, simples e poéticos. Dirigem-se ao espírito em termos de louvor,
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tentando acarinhá-lo, lisonjeá-lo, pôr-se ao lado dele e levá-lo assim a
conceder o favor de se entregar. Eis o primeiro dos cantos que ouvi.
Um dia, em viagem, a minha atenção foi despertada pelo barulho duma
destas reuniões, proximo duma mata; saltei do carroção e achei-me no
meio de uma cerimónia de exorcismo.
Xivedrana! Uvukele vantol
Rinoceronte! Tu atacas os homens!
Assim gritavam os cantores, reunidos em volta de uma pobre
mulher que parecia mergulhada numa espécie de sonho e comple-
tamente inconsciente. A minha chegada quase não teve efeito sobre
o barulho infernal, embora o aparecimento de um Branco nas aldeias
desta região fosse geralmente considerada um acontecimento.
Quando as horas passam sem que qualquer efeito visível se
produza no paciente, o refrão muda. A noite vai, provavelmente, já
muito adiantada, a aurora vai despontar:
Sai, espírito, tu fazes-nos chorar até ao nascer do sol!
Porque nos maltratas desta maneira?
Ou, então, com o fim de exercer uma pressão mais forte, amea-
çam o espírito de o abandonar definitivamente se ele recusa prestar
atenção às injunções dos tocadores de tantãs.
Vinde! Vamos embora! Ave dos chefes! Partamos
(visto que nos tratas tão duramente!)
As melodias das encantações

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