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CAPÍTULO TERCEIRO Magia Sem pretender dar aqui definições que possam aplicar-se a todas as raças primitivas, e reconhecendo, por outro lado, a dificuldade do assunto, todavia julgo necessário, no começo deste capítulo, explicar tão claramente quanto possível a distinção que faço entre Religião, Magia e Ciência, tais como se apresentam entre as tribos do sul de África. Sob o termo Religião, compreendo todos os ritos, práticas, concepções ou sentimentos que pressupõem a crença em espíritos pessoais ou semipessoais revestidos dos atributos da divindade e com os quais o homem tenta entrar em relação, com o fim de alcançar a sua assistência ou desviar a sua cólera, essencialmente por meio de oferendas e de preces. No termo Magia incluo todos os ritos, práticas e concepções que têm por fim actuar sobre influências hostis, neutras ou favoráveis, exercidos quer por forças impessoais da Natureza, quer pelos seres humanos que deitam sortes, quer, ainda, por espíritos pessoais, antepassados-deuses ou espíritos hostis que se supõe tomarem possessão das suas vítimas — sendo tais ritos e práticas inspirados pelos princípios da magia que atrás expliquei. Distingo duas espécies de Magia: a Magia branca, pela qual o homem tenta proteger-se a si próprio contra essas influências ou tenta voltá-las a seu favor; a Magia negra, pela qual o homem tenta servir-se dessas forças contra o próximo. Chamo científicos todos os ritos, práticas e concepções inspi- rados pela verdadeira observação dos factos. Incluo nesta categoria certos tratamentos médicos, certas ideias relativas à botânica, à zoologia, etc. Na prática, estes diversos elementos acham-se misturados a tal ponto que a Religião é fortemente tingida de Magia, como demonstra o capítulo que se segue. Por outro lado, a Magia combina-se, 387 388 389 frequentemente, com elementos religiosos (ver «Possessões»), e o verdadeiro domínio da Ciência é invadido, de todos os lados, pelas concepções de carácter mágico. Verificá-lo-emos pelo estudo dos quatro assuntos que incluo no capítulo sobre a Magia: Arte médica. Possessões, Feitiçaria e Adivinhação. A confusão destes três domínios no espírito dos indígenas explica, também, o carácter complexo dos indivíduos que praticam a arte médica ou mágica. O médico indígena, n'anga, está longe de ser simplesmente um homem de ciência; tem, também, mais ou menos, alguma coisa da natureza do feiticeiro e também invoca os antepassados que lhe transmitiram os seus feitiços. O curandeiro, mungoma, é, por vezes, uma espécie de padre-quando, por exemplo, se põe a exorcismar os espíritos dos possessos. O adivinho, wavu/a, cuja arte se baseia inteiramente em concepções mágicas, reza, ocasionalmente, aos seus antepassados-deuses para que o auxiliem na consulta aos ossículos que recebeu deles. Estou convencido de que estes três domínios são essencialmente distintos e que o Tsonga percebe, ele próprio, vagamente, essa distinção. Mas interpenetram-se com a maior facilidade e vou tentar seguir essa gradação, esforçando- me por não alterar, ao' explicá-las inteligivelmente, as ideias originais. A — Arte médica As práticas médicas dos Bantu do sul da África são muito interessantes, do ponto de vista etnográfico, mas o seu estudo tem, também, importância prática. Nos países civilizados a profissão médica está sujeita a restrições: o candidato tem de passar por exames e demonstrar que é capaz de tratar os seus futuros pacientes. Nada de semelhante se encontra nos Tsongas. A única qualificação de «doutor» é ter-se herdado de um antepassado algumas receitas que se aplicam com maior ou menor êxito para os pacientes. Deveriam ou não os governos coloniais tomar medidas para pôr termo à actividade dos médicos- indígenas ou, pelo menos, submetê-la a uma regra? É necessário ter conhecimento preciso das práticas deles para responder conclusivamente a este ponto. Para os missionários também este estudo apresenta grande interesse. Todos eles têm notado a frequência com que os seus convertidos, quando adoecem, abandonam a missão e correm aos seus charlatões, interrompendo talvez bruscamente o tratamento prescrito por um médico missionário que passou por toda a fieira dos estudos. O resultado quase certo será a perda da saúde e da fé. Tentemos, pois, compreender a arte médica indígena e verificar até que ponto podemos fiar-nos nos seus representantes. I — Os médicos indígenas Conheci grande número de n'anga, nome técnico dos médicos indígenas. Todos têm grande orgulho dos seus conhecimentos que, facto a notar, são, na maior parte, hereditários. Algumas drogas foram experimentadas, depois empregadas durante anos por um indivíduo que as devia, provavelmente, a seu pai ou a qualquer outro antepassado. Antes de morrer este último transmitiu a sua arte a seu filho ou ao seu sobrinho uterino, àquele dos seus descendentes que parecia «levado pelo seu coração» a entrar na carreira. Sendo assim, a competência dos médicos indígenas varia muito de um indivíduo para outro. Há-os que tratam só um género de doenças ou uma só categoria de pacientes, pois são os únicos a conhecer os remédios que convêm aos seus casos. Eliaxi, por exemplo, um dos nossos primeiros convertidos, indígena da Khoseni, não tinha senão uma droga, a casca de certa árvore de propriedades violentamente purgativas e que ele prescrevia em todos os casos, quase matando aqueles que o procuravam para se tratarem e que tinham nessa droga uma fé tanto maior quanto de mais longe ela vinha. Eliaxi não era verdadeiramente um n'anga. Sam Ngwetsa, meu vizinho da Rikatla, tratava unicamente as doenças infantis. Conhecia a receita dos milombzana e sabia bzyiketa (vol.l, pág. 67-72). Iam consultá-lo como especialista, neste domínio apenas. Vimos já, também, que há um «doutor» especial, cujo forte é tratar o caso perigoso da mãe dos gémeos, e outro que trata a lepra — este último é olhado como o mais hábil de todos. Spoon Elias tinha um conhecimento mais extenso que Sam da «matéria médica» popular más não era mais que um principiante. O seu colega do Nondrwana, Kokolo, era infinitamente superior — um indivíduo na força da idade, portador da coroa negra que distingue os notáveis do país. Pertencia a uma antiga família de doutores. Seu pai, Mankwena, e seu avô, Mahlahlana, tinham praticado antes dele e haviam-lhe transmitido o precioso legado da sua experiência. Tovana, a quem eu pedira que me apresentasse um prático verdadeiramente inteligente, dissera-me, ao falar desse homem: Awa daha — «É um daqueles que curam». E acrescentara, com profundo respeito: «Parece que até os Brancos de Lourenço Marques vão consultá-lo». Kokolo, sem se fazer rogar muito, mostrou-me as suas drogas e «desenterrou» algumas propositadamente para mim. Houve que pagar bem caro, pois este homem da arte não trabalhava por pouca coisa; foi, de resto, com evidente consciência do seu talento e das suas capacidades que ele me explicou o uso das suas mezinhas. Mas o médico indígena mais distinto que conheci foi o velho Mankhelo que pode olhar-se como um dos mestres da profissão na tribo tsonga. «O que faço é sério! Bati um boi (isto é, dei de presente um boi) a meu tio materno Hlomendlhene! Dei-lhe, mesmo, dois bois e I — Os médicos indígenas Conheci grande número de n'anga, nome técnico dos médicos indígenas. Todos têm grande orgulho dos seus conhecimentos que, facto a notar, são, na maior parte, hereditários. Algumas drogas foram experimentadas, depois empregadas durante anos por um indivíduo que as devia, provavelmente, a seu pai ou a qualquer outro antepassado. Antes de morrer este último transmitiu a sua arte a seu filho ou ao seu sobrinho uterino, àquele dos seus descendentes que parecia «levado pelo seu coração» a entrar na carreira. Sendo assim, a competência dos médicos indígenas varia muito de um indivíduo para outro. Há-os que tratam só um género de doenças ou uma só categoria de pacientes, pois são os únicos a conheceros remédios que convêm aos seus casos. Eliaxi, por exemplo, um dos nossos primeiros convertidos, indígena da Khoseni, não tinha senão uma droga, a casca de certa árvore de propriedades violentamente purgativas e que ele prescrevia em todos os casos, quase matando aqueles que o procuravam para se tratarem e que tinham nessa droga uma fé tanto maior quanto de mais longe ela vinha. Eliaxi não era verdadeiramente um n’anga. Sam Ngwetsa, meu vizinho da Rikatla, tratava unicamente as doenças infantis. Conhecia a receita dos milombzana e sabia bzyiketa (vol.l, pág. 67-72). Iam consultá-lo como especialista, neste domínio apenas. Vimos já, também, que há um «doutor» especial, cujo forte é tratar o caso perigoso da mãe dos gémeos, e outro que trata a lepra — este último é olhado como o mais hábil de todos. Spoon Elias tinha um conhecimento mais extenso que Sam da «matéria médica» popular mas não era mais que um principiante. O seu colega do Nondrwana, Kokolo, era infinitamente superior — um indivíduo na força da idade, portador da coroa negra que distingue os notáveis do país. Pertencia a uma antiga família de doutores. Seu pai, Mankwena, e seu avô, Mahlahlana, tinham praticado antes dele e haviam-lhe transmitido o precioso legado da sua experiência. Tovana, a quem eu pedira que me apresentasse um prático verdadeiramente inteligente, dissera-me, ao falar desse homem: Awa daha — «É um daqueles que curam». E acrescentara, com profundo respeito: «Parece que até os Brancos de Lourenço Marques vão consultá-lo». Kokolo, sem se fazer rogar muito, mostrou-me as suas drogas e «desenterrou» algumas propositadamente para mim. Houve que pagar bem caro, pois este homem da arte não trabalhava por pouca coisa; foi, de resto, com evidente consciência do seu talento e das suas capacidades que ele me explicou o uso das suas mezinhas. Mas o médico indígena mais distinto que conheci foi o velho Mankhelo que pode olhar-se como um dos mestres da profissão na tribo tsonga. «O que faço é sério! Bati um boi (isto é, dei de presente um boi) a meu tio materno Hlomendlhene! Dei-lhe, mesmo, dois bois e ele ensinou-me a sua arte médica! Levou-me a toda a parte e mostrou- me todas as suas drogas!» Foi assim que Mankhelo se tornou um verdadeiro n'anga, sendo já um adivinho, um mestre na arte de deitar os ossículos, um fazedor de chuva, um conselheiro e o general do exército. Toda a sua família partilhava do seu carácter profissional e o assistia nos seus trabalhos. As suas mulheres percorriam o mato para colherem as raizes medicinais que coleccionavam nos seus cestos lihlelo. Regressadas a casa, consultavam-se os ossículos, para indicarem as pessoas que deviam cortar as raizes em bocados (gemela). Feito isso, as mulheres pilavam-nas nos seus pilões. Uma porção desta matéria era seca ao ar livre e reduzida a pó, sem cpzedura, eram as mezinhas machos. A outra porção era assada em cacos de panelas, carbonizada, pilada e reduzida a pó; eram as mezinhas fêmeas. Toda a aldeia se reunia e aspirava o fumo, por meio de canas. Matava-se uma cabra e oferecia-se um sacrifício. O líquido contido no nsvanyi era espremido sobre as drogas ardentes, para as apagar, e empregava-se também nisso um pouco* de vukanyi. Entretanto, Mankhelo fazia pthu e dirigia aos seus deuses, parti- cularmente àquele que lhe ensinara a sua ciência, a seguinte prece: «Vós, Fulano! Fazei de maneira que as vossas drogas se le- vantem (« pfuka», isto é: encontrem nova força). Que eles venham, os das terras dos Zulus, de Mzilikatsi, de Mpfumu! Que eles pensem nas nossas folhas (« matluka», o termo comummente empregado para as drogas). Que eles tragam pontas de elefantes, raparigas casadoiras, etc. Que eles sonhem connosco!» Esta operação de renovamento das drogas tem por fim dar-lhes força nova. Mankhelo dizia: «Nós fazemos kuluma as nossas drogas para o ano próximo; despertamos as nossas cabaças, para que a próxima estação não nos seja muito dura. Isto consolida-nos a casa; as constipações graves não nos atacarão com muita violência; isto impedirá o vento de entrar; não ficaremos gravemente doentes, porque arranjámos novas drogas. Quanto às antigas, foram contaminadas (kukhuma) pelas infelicidades do ano passado. Estão doidas (hunguki/e). Uma chuva nova cai: que as drogas, elas também, sejam novas, e poderemos partir para as nossas viagens e vender as nossas mercadorias». O n'anga tirava, então, de cada cabaça, um pouco do antigo pó e deitava-o no carreiro, no cruzamento dos caminhos; depois, lavava as cabaças, no mesmo sítio. «A desgraça foi, assim, deitada à terra. Os transeuntes levá-la-ão com eles porque foi ali, no caminho, que a deitámos». Em seguida, o novo pó era misturado com o resto do antigo e fazia-o «levantar». A fim de melhor fazer compreender a natureza da arte de Mankhelo, mencionarei brevemente as raizes, rimitru, ou as folhas. 389 391 390 tluka, ou, para empregar o grande termo genérico, as drogas, murhi, de que se compunha o pó maravilhoso das cabaças. Mankhelo não era homem de uma só mezinha. Declarava-se médico universal. Por isso, misturava todas as diversas espécies de drogas, persuadido de que desta maneira elas teriam efeito certo sobre todos os casos que lhe fossem submetidos. Eis a descrição, tal como ele próprio me fez: Ntreve: aquela que nos dá a força de esmagar aos pés os nossos inimigos; calcamos aos pés, também, os ventos que estragam o milho; expulsamos o frio que nos fez tossir (note-se o triplo uso desta droga). Xikulu: aquela que calca aos pés a desgraça. Mpon'wana avurisi matuvatuvana: vencedor do inimigo e da desgraça. Xinanu: aquela que faz dormir o inimigo; suspendeis algumas folhas sobre o vosso escudo e os inimigos são vencidos pelo sono, não vos vêem chegar. Nembenembe: graças a ela, surpreendereis o vosso inimigo enquanto ele dorme e matá-lo-eis antes que ele possa defender-se. Mpetru wa milomo: a dos lábios! Conjura as maldições e torna inofensivas as azagaias dos outros! Rihinga rãndlela: uma raiz encontrada no carreiro; ajuda-vos a prosseguir o vosso caminho, apesar dos esforços dos outros para vos deterem. Xivungwe: a que atrai os pacientes para o doutor. Nandriyane: a que torna agradáveis as palavras do doutor e as faz amar pelos pacientes (de nandriya, ser agradável). Mvakazi, phuphuma rã matlharhi: aquela que é empregada para fazer os assassinos vomitarem a droga principal dos tinteve (vol.l, pág. 422). Mbendruía: aquela que fortifica todas as outras drogas. Tais são as principais árvores ou plantas que entram na com- posição do pó. É necessário salgá-las, juntando-lhes o mar, isto é, as mezinhas provenientes do mar, aquelas de que Mankhelo se serve também para fazer chover (pág. 270). O carácter sexual destas drogas é essencial. As drogas fêmeas são, sobretudo, empregadas para aspergir o exército e as azagaias; as machos, para tratar doenças. Reencontramos aqui a lei de oposição dos sexos; o domínio militar é o domínio macho, por excelência; há que tratá-lo por meio das drogas fêmeas; pelo contrário, quando se mata uma cabra, para um sacrifício, coloca-se-lhe na boca uma pequena porção de droga macho, com a qual se unta também a arma que se utiliza — e vice-versa, se se trata de um bode. «Agir doutra maneira é tabu. Todos os n'anga fazem isto». (Ver a explicação desta regra a pág. 357). Pode haver elementos verdadeiramente científicos nas práticas médicas dos Tsongas. Fez-se a experiência de que certas ervas curavam certas doenças e a tradição transmitiu a receita delas de pai a filho. Porque não teriam as plantas do país propriedades curativas semelhantes às da casca de chinchona ou dos grãos de rícino? E porque não as teriam descoberto os Tsongas? Todavia, o n'anga indígena não é, certamente, um homem de ciência e os melhores deles, os de mais renome, são talvez os menos científicos. Os que tratam uma só doença e não conhecem mais que uma droga são, provavelmente, aqueles que se aproximammais dos verdadeiros médicos; baseiam-se nos resultados da experiência. Mas a linha de demarcação entre a ciência e a superstição é depressa transposta e a arte médica penetra com a maior facilidade no domínio da magia, isto tanto mais quanto a diferença entre Ciência e Magia não é apercebida. Murhi, que significa originalmente árvore, planta, erva medicinal, é simultaneamente todo o meio de produzir um efeito qualquer, natural ou sobrenatural, sobre seja que influência for, hostil ou favorável, pessoal ou impessoal.1 Assim é que o arbusto ntreve auxilia Mankhelo a atingir três fins: a cura duma tosse má, a protecção do milho e a expulsão do inimigo. Tem-se perguntado muitas vezes se os médicos indígenas serão sinceros ou se não passam de simples charlatões vivendo da estupidez dos pacientes que enganam. Estou convencido, depois de ter ouvido as suas conversas, de que a maior parte deles acreditam realmente no valor das suas drogas, o que os não impede de, nas oportunidades, se servirem de truques para impressionarem os clientes e levá-los a atribuírem-lhe poder miraculoso. Um dos meus alunos que acompanhara um n'anga durante algum tempo, no desejo de abraçar a carreira médica, assegurou-me que, de modo geral, esse homem administrava honestamente as suas drogas, com toda a boa fé. Mas, se alguém o procurava queixando-se de dores de dentes e pedindo a sua assistência, o doutor tratava de arranjar, primeiro, um pequeno verme que se acha na baga dum arbusto da família das solâneas, chamado rulane. Metia-o numa panela cheia de água a ferver. O paciente devia, então, aspirar o vapor da panela, cabeça tapada com um pano. Terminada a inalação, o n'anga pegava num bocado de 'A seguinte narrativa, que ouvi a um dos meus colegas, ilustra bem a ideia que a maior parte dos Tsongas fazem do murhi, remédio. Um homem do clã de Libombo encontrou urna garrafa cheia de um sal branco, que imediatamente imaginou ser um murhi. Guardou cuidadosamente a garrafa na palhota. Um dia, sentindo-se indisposto, pensou que chegara a ocasião de empregar a sua preciosa droga e tomou uma forte dose dela. Pois não era um Ficou envenenado e teria morrido se o meu colega não tivesse podido salvá-lo dando-lhe um contraveneno. 392 393 394 carvão que lhe esfregava na cabeça e à volta dos olhos, dizendo: «Os teus olhos estão agora abertos e tu és capaz de ver o que causava o teu sofrimento». Esvaziava a água e o pequeno verme branco aparecia, semelhante à cárie dum dente estragado. «Eis o que eles te tinham feito!» — acrescentava o n'anga(eles, significando, evidentemente, os deitadores de sortes). É um truque puro e simples. Mas, segundo o meu informador, era também um tratamento médico, porque o fim do truque era convencer o paciente de que estava curado — era o que nós diríamos um meio de sugestão. Se, terminada a operação, o mal não tivesse desaparecido, o n'anga dizia ao seu paciente que a soma paga não fora bastante para que a cura pudesse ter-se feito, que os seus antepassados-deuses (os do n'anga, que lhe haviam dado as drogas) estavam irritados por receberem um pagamento mesquinho, etc... A as- túcia que consiste em fazer crer aos pacientes que se extraiu dos seus corpos um objecto malfazejo é empregada frequentemente. Este processo corresponde a duas ideias de que mais tarde falaremos e que são particularmente familiares aos indígenas: a doença é uma coisa material; geralmente é causada por um objecto introduzido no corpo pelos deitadores de sortes. O carácter complexo da arte médica dos primitivos, tão evi- dente nos seus médicos indígenas, aparecerá mais ciaramente à medida que prosseguirmos o nosso estudo. II — Práticas médicas Os casos de cirurgia são tratados da pior maneira. Toda a intervenção necessitando o uso duma faca é olhada como absurda, se não culposa. No tratamento das ulcerações, o fim do n'anga parece ser dissimular a chaga sob um pó negro que deve dar a deixa ao paciente: crê-se curado, pois que não vê mais a sua ferida. Mankhelo utilizava a casca da árvore Ndrupfurha (uma árvore de seiva branca) que triturava e com que untava a ferida, renovando a aplicação no quarto dia; depois, cinco dias mais tarde; depois, seis dias mais tarde. Para os ferimentos, Kokolo empregava a seiva do Xilangamahlu, que deitava gota a gota sobre a ferida em sangue. O Nkahlu, planta de seiva leitosa, serve comummente para este fim, «mas o chefe é o Xilangamahlu», diz Kokolo. As contusões são tratadas pelo método do rimba. Quando uma pessoa deu uma queda e se receiam complicações, acende-se uma fogueira; quando já há bastantes tições em brasa e o chão está suficientemente aquecido, afastam-se as cinzas para o lado.[2: 0 Nghunghunyane, que matou milhares de pobres Copi sem o mais pequeno remorso, não podia dissimular o seu horror ao Dr. Liengme que, para curar os seus pacientes, ousava amputar-lhes membros ou abrir-lhes o corpo!] deita-se no chão um pouco de areia do rio e sobre ela dispõem-se algumas folhas de nkuhlu. O paciente deita-se, então, no lugar assim tratado. É uma aplicação imprevista do princípio similia simiHbus curantur; assim como se queimou o solo e depois se refrescou (timula), por meio de areia, assim se impedirá a contusão de queimar perigosamente o paciente! Os dentes cariados não são arrancados, a falar propriamente; são partidos por meio de um bocado de ferro sobre o qual o dentista indígena bate até ter extraído o mais possível do dente! Ás vezes parte também a maxila e chega a suceder que a maxila fura através da face, causando um ferimento terrível! Um dia, um dos meus colegas teve de proceder à extracção dum osso maxilar inferior que fora projectado para fora pelos esforços de um n'anga para arrancar um dente! As mordeduras de serpentes são tratadas por meio de um pó feito duma serpente queimada, reduzida a cinzas, mistu- rando-se certos outros ingredientes, sendo o todo salgado com sal ordinário. Fazem incisões em todas as juntas, punho, tornozelo e cotovelo, assim como na parte anterior do pescoço e introduz-se nelas o pó. As crianças são inoculadas, como medida preventiva, a fim de que uma vez mordidas o veneno não as afecte; o doutor «precedeu a serpente» (yirangerile). Os casos de medicina são, em geral, tratados mais racional- mente que os casos de cirurgia. Eis algumas das receitas de Kokolo e de Spoon: Primeiro, a droga empregada quando o paciente «sente a sua cabeça», ou seja, quando tem dor de cabeça, é a raiz dum arbusto chamado Nhlangula que parece ser um verdadeiro anestésico e que se emprega da seguinte maneira: a casca fresca é raspada com uma faca; põe-se certa porção num pano que se dobra e se aplica sobre a testa durante meio dia. Para uma dor de dentes, emprega-se a mesma droga, a que se junta outra denominada Ndrenga; fervem-nas e o paciente conserva na boca um pouco desta decocção; o mal deve desaparecer. Quando a coisa «morde dentro», isto é, quando se sofre de cólicas ou de perturbações intestinais, recorre-se às raizes Munwangati, Xirimbzati e Xidlanyoka, reunidas em feixe. O doutor prepara com grande cuidaçlo esta mezinha, cortando as raizes do mesmo tamanho e atando-as por meio de um cordel de fibra de palmeira. Faz entrar na mistura grande núnríèro de raizes cujo efeito é médio e apenas alguns fragmentos das que actuam mais violentamente. O feixe, chamado xitsimbu, é então fervido, para se extrair o princípio activo das drogas, e o paciente bebe a decocção tal como está. Algumas vezes, a decocção é misturada ao milho, na preparação das refeições, e assim tomada. Como o feixe, ou molho, destas raizes é reputado capaz de conservar por muito tempo as suas propriedades medicinais, pode utilizar-se o mesmo molho várias vezes durante a semana. Contra a disenteria, a receita é a seguinte: Xirimbzati, Xidlambangi, Likalahumba, Nkonono sericea) e Nsala ( Strychnos spinosa). A da bronquite ou do coriza é: Menyomamba, Mpheso (espécie de mimosa, Albizzia versicolor),Xongwe, Ntratre (arbusto da família das papilionáceas), Gowane (Zygia fastigiata, grande mimosa) e Muhlandlopfu. Esta última droga é muito violenta; a penúltima é menos. Contra a hidrocele empregam-se as seguintes raizes: Lihlehlwa, Ntratre, Nkonono e Bamuntana. Os indígenas consideram contagiosa esta doença, transmitida pelas relações matrimoniais. Farmacopeia Tsonga 1. Caixa feita de brâcteas de milho e contendo uma mezinha; 2. Xitsimbu; 3. Pele de toupeira, contendo drogas pulverizadas; 4. Pílula (Mhula); 5. Bracelete de trukwnyana; 6. Timfisa, amuletos; 7. Raiz de sungi. Obtive dos meus doutores indígenas dois purgantes. O primeiro é um aloés ou cacto, uma variedade do qual cresce abundantemente nas dunas de areia. Espremem a seiva para cima de grãos de mexoeira ou mapira, conservados numa espécie de caixas lindamente fabricados com folhas de milho: colhe-se uma haste de milho, cuja espiga se parte, e as duas brácteas que a envolvem e aderem pela base à espiga formam um receptáculo muito primitivo e que se obtém facilmente (n.° 1 na gravura); a mezinha é conservada assim até o momento em que se necessita dela; é então pulverizada e tomada com água. O segundo purgante é a casca duma árvore que cresce no vale do Nkomati, nas terras da Khoseni. É aquele a que já fiz alusão e de que um dos nossos cristãos, Eliachibe, se servia, administrando-os aos habitantes da Rikatla em doses tão fortes que fazia, geralmente, mais mal do que bem. Na preparação do feixe, xitsimbu, destinado às crianças, entram ainda mais três ou quatro raizes. Como já dissémos (vol.l, pág. 67), são compreendidas no termo geral milombzana, que designa as mezinhas que favorecem o crescimento dos recém-nascidos. Se um parasita intestinal é expulso pelo d/anyoka, é carbonizado e reduzido a pó; fazem-se no ventre e flancos da criança incisões e fricciona-se nelas o pó-, é uma espécie de inoculação, uma outra aplicação do princípio «o semelhante é curado pelo semelhante». O feixe empregado para tratar a hematúria contém seis drogas: Hyimbitlu, Ntropfa, Xintitana (um arbusto Apocíneo, aparentado com o Artabotris), Likalahumba, Ndrindrila e Xirimbzati. De conformidade com as ordens do doutor, as drogas são cozidas numa panela juntamente com feijão; ao fim de pouco tempo, retira-se o feixe. O paciente deve, então, espetar com um espinho um feijão e atirá-lo por cima do ombro esquerdo; espeta segundo feijão e atira-o por cima do ombro direito; terceiro feijão, que engole. Os dois primeiros serviram para «experimentar a terra», isto é, tornar propícias as diversas influências malfazejas que existem no solo e são, provavelmente, a causa da doença; é a primeira parte do tratamento. A segunda consiste em pilar grossos tubérculos brancos, semelhantes a batatas alongados; a pasta obtida é espremida numa bilha e o paciente deve beber o sumo e comer os feijões temperados como atrás dissemos. Beberá, todas as tardes, uma taça da mistura amarga (o sumo extraído do feixe) e uma taça da mezinha doce, preparada com os tubérculos. Se a hematúria, depois disto, não cede, o paciente sofrerá o phungutu, o banho de vapor de que falei mais atrás. O método que acabo de descrever é o de Spoon. O Dr. Kokolo receitava um tratamento diferente para o mesmo mal. Utilizava as raizes de Xirhole, Nembe-nembe e Hlahlana, recomendando o seu emprego, como de costume, sob a forma de tisana, depois de as ter cortado em pedacinhos, numa panela. Eram assadas nas brasas e o fumo devia ser aspirado através duma cana; os fragmentos carbonizados eram triturados e o pó assim obtido misturava-se na comida habitual. Facto curioso a notar em relação com esta doença é que a mulher do paciente, se este for casado, deve sujeitar-se ao mesmo tratamento. A gonorreia é tratada pela mistura de Xilangamahlu, Hlahlana, Nembe-nembe (Cassia Petersiana) e Ntinti (Artabotrys Monteiroi). Se necessário, junta-se Xirimbzati como auxiliar. Foi com folhas desta última planta que Kokolo fabricou a enorme pílula de que me fez presente (n.° 4 na gravura da farmacopeia tsonga). Para a doença qüe acabámos de mencionar, assim como para a hematúria, se o tratamento interno não for suficiente recorre-se a meios mais eficazes. Queirham-se e pulverizam-se certo número de raizes; o pó negro mistura-se à gordura proveniente do estômago dum boi; a almôndega assim obtida será colocada num braseiro e o paciente deve expor a parte doente ao calor e ao fumo que se desprendem do braseiro. Os Tsongas não consideram a febre palustre muito perigosa e, coisa estranha, não têm nome especial para ela. Diz-se que se «sente a cabeça» ou se «tem calor no corpo». Os indígenas acostumaram-se- lhe e os acessos são, em geral, tão benignos que lhes não prestam grande atenção. Deitam-se no chão, expostos aos raios ardentes do sol, embrulhados numa manta e transpiram com grande alegria! «Pega na raiz de Mbalatangati, coze-a numa panela pequena, bebe às colheradas e dormirás bem» — diz Mankhelo. , Mankhelo trata a doença dos pulmões (tuberculose) da seguinte maneira: mistura uma parte dos pulmões dum crocodilo-e duma ovelha com gordura de gnu e com uma raiz da árvore Khawa; queima todos estes ingredientes *num caco de panela e o paciente deve aspirar o fumo, por meio duma cana; isso «secará o seu peito», porque a gordura do gnu está sempre seca, não pode derreter-se! A lepra, «a doença que vence os médicos», tem os seus espe- cialistas. Havia um, nas vizinhanças da Rikatla, mas recusava absolutampnte revelar o seu segredo. Pertencia à tribo copi. Os Pedi proíbem aos leprosos as relações sexuais. Uma ama sem leite deve arranjar certo arbusto, uma eufor- biácea chamada nete que contém uma seiva leitosa, esmagá-la num pilão, cozê-la em água e bebê-la. Se uma vaca recusa alimentar o vitelo, os indígenas friccionam o vitelo com a erva ribvumbara, que tem cheiro agradável; a vaca cheira-a e permite que o vitelo mame. O tratamento da esterilidade foi descrito já (vol.l, pág. 180). Mankhelo tentava curá-la com raizes de Nembe-nembe e de Nhlan- gawume, que cozia juntas, ordenando à mulher que as comesse, durante seis dias, misturadas na comida habitual. Esta droga é 395 397 396 destinada a «fechar» a mulher, de forma a que ela não tenha mais os seus tihueti e se torne capaz de conceber. Durante este tempo, ela deve sujeitar-se ao rito do horola ou hondlola, que adiante descreverei. A varíola, nyedzana, foi introduzida no país por várias vezes, pelos Brancos ou pelos exércitos dos Zulus que regressavam das suas campanhas no norte. Houve cinco ou seis epidemias, pelo menos, nos arredores de Lourenço Marques, durante os últimos cinquenta anos. Fui testemunha, na Rikatla, da última, em 1918, e pude obter assim informações em primeira mão sobre a maneira como os indígenas tratam esta doença e sobre as suas estranhas ideias a respeito dela. Publiquei-as no S. A. Journal of Science, de Julho de 1919. Darei aqui a descrição dos costumes mais importantes dos Rhongas relativos a esta doença. Quando a varíola invade o país e chega aos limites do território dum clã, os conselheiros reúnem-se na residência do chefe e decidem a inoculação geral da população. É um remédio que empregam de há muito. Observaram que a doença, quando produzida pela inoculação do vírus, é menos forte que quando kuhahela, quer dizer, «voa» sobre o indivíduo. (Há uma parte de verdade nesta asserção; contudo, a protecção não é muito efectiva e a inoculação é, frequentemente, seguida de casos graves e até fatais. Não imuniza sempre contra segundo ataque). Obtém-se o vírus num clã vizinho já atacado pela doença. Os vatukulu do chefe, os seus sobrinhos uterinos, filhos das suas irmãs, são as pessoas qualificadas para essa função. Não são eles os favoritos do seu tio materno? Ninguém poderia suspeitar de eles trazerem a desgraça à aldeia dos seus vakokwana\ O ntukulu particularmente escolhido para prestar este serviço ao país será indicado pelos ossículos.São, também, os ossículos que indicam a aldeia do clã vizinho aonde ele irá buscar o vírus. O fluido seroso é colhido em velhos ou crianças que não têm relações sexuais, sabemos já por que razão. O ntukulu inocula-se a si próprio, inocula os seus camaradas e regressam a casa. Quando as suas pústulas estão maduras, inoculam todos os membros do clã ainda porventura não atingidos pela epidemia. A partir deste dia, começa para todo o clã um período marginal distinto, com todos os tabus que acompanham as fases críticas da vida da comunidade. Ninguém é autorizado a lavar o corpo. É imposta a todos continência absoluta. O sal é proibido porque, diz-se, faz correr sangue no corpo mais depressa e poderia acirrar as feridas. Ao lado destes tabus ordinários, tomam-se ainda outras me- didas ditadas pela natureza especial da varíola. Nos Negros, esta doença reveste-se de duas formas diferentes que podem chamar-se a forma branca e a forma negra. A primeira é muito menos grave que a segunda; as pústulas são grandes, superficiais, espalhadas por todo o corpo e separadas umas das outras; a pele que as cobre é descolorida, esbranquiçada; não tardam a secar e não deixam marcas profundas. Na segunda forma, que é o tipo confluente e hemorrágico da doença, as pústulas são pequenas, negras, próximas umas das outras e cheias de sangue; em breve começam a descarregar um fluido repugnante; a febre é alta e pode sobrevir a morte. O fim do tratamento consiste apenas em provocar a forma branca e benigna da varíola e prevenir a forma negra. É tabu, portanto, comer seja que carne for contendo sangue, porque o sangue é negro e deve por isso ser evitado. Pelo con- trário, o peixe é permitido, porque é branco, não contém sangue de cor carregada. Outro expediente a que os médicos indígenas recorrem para obter esse resultado é colocar diante dos olhos dos seus pacientes bagos de milho, porque esses bagos são brancos como as pústulas desejadas e semelhantes na forma. É necessário evitar, também, que os pacientes vejam grãos de mexoeira, cuja cor é escura. Amolecem-se os bagos de milho em água, furam-se e fazem-se com eles colares que os pacientes usam no pescoço, ao passo que as espigas de mexoeira que se encontram nos caniços do tecto da palhota devem ser removidas cuidadosamente e ocultas em qualquer parte, no mato, durante todo o tempo que dura a epidemia. Se a forma maligna da varíola se desenvolve, apesar de todas estas precauções, o conselheiro abana a cabeça e diz aos parentes do paciente: Façam uma oferenda!» Mas este hahla particular não é uma verdadeira oferenda: a prece não é dirigida aos antepassados-deuses. As palavras principais desta prece são: Mavuzane, dlhula! — expressões zulus que correspon- dem em rhonga a Mabutise, tlula!, isto é: «Inquisidor, segue o teu caminho!» Quem é este inquisidor? É a própria Varíola, Nyedzana, mais ou menos personificada e considerada um terrível visitante que vem, num dado momento, examinar o país para descobrir os pecadores. O grande pecado que este inquisidor procura especialmente é o vuloyi ou morte por enfeitiçamento. Confesse o paciente os actos de feitiçaria que cometeu e será poupado. Se os oculta, a varíola mata-o. Suponhamos que a pessoa gravemente doente seja uma mulher adulta, a mulher dum dos habitantes da aldeia. Primeiro, chamam-se os seus parentes. O conselheiro e todos os habitantes da aldeia assistem à sessão na palhota. «Confessa a tua culpa», dizem todos à mulher. É possível que ela responda: «Não! Não sou deitadora de sortes!» (Andri noyi7)Eles insistem: «Não escondas nada!» Apertada com perguntas, ela dirá, talvez: «Sim! Passeio de noite! Comi Fulano e Sicrano! Comi o meu próprio filho!» Se o paciente é uma criança de pouca idade, será seu pai quem confessará por ela. Pega na criança ao colo e diz: «Mavuzane, dlhula! Inquisidor, segue o teu caminho! Sim! Somos deitadores de sortes! Ensinei meu filho a comer corpos humanos! Mas 398 400 ! não continuaremos com estas más acções. Vai-te e deixa-nos em paz!»[3: Temos aqui um dos casos em que uma força impessoal da natureza é encarada como ser pessoal revestido dum poder sobre-humano que se invoca. A prece da Varíola (com maiúscula) pode comparar-se à que se pronuncia num caso de imprecação ou quando uma pessoa deseja anular o seu juramento.] Quando a doença seguiu o seu curso e as pústulas secaram, fixa-se um dia que marcará o fim do período marginal e a volta à vida normal, em todo o clã. Esta volta é marcada pelos ritos especiais de reintegração e de purificação que têm por fim levantar a poluição trazida pela doença. O principal rito purificador, o que conclui regularmente todo o período marginal, é a limpeza das palhotas. O chão de cada palhota é recoberto com uma camada nova de barro, misturado ou não a estrume de vaca. O antigo chão fica coberto para sempre; é uma maneira de dizer: «Pronto! As coisas velhas passaram, todas as coisas se tornaram novas». Na manhã desse dia, cada paciente deve ir lavar todo o corpo «no caminho», para despejar aí todas as impurezas da doença. Além disto, as cinzas de todas as fogueiras no interior das palhotas, os colares de bagos de milho, os utensílios empregados pelos doentes gravemente atacados, por vezes as suas roupas, o ocre com que se untaram, enfim todos os objectos que tiveram uma relação qualquer com o flagelo são reunidos e atirados, ao acaso, para os carreiros mais frequentados, de preferência nas bifurcações de caminhos — rito que, na verdade, não é muito altruísta e ainda menos antisséptico! Veremos, daqui a pouco, qual a sua explicação. Os indígenas têm particular receio das doenças nervosas. Acre- ditam que a melancolia é causada pelos espíritos possessores, que serão o assunto do parágrafo seguinte. A idiotia não tem remédio. Nada se pode fazer por um idiota. «É a morte! A morte encontrou-o!» (Mankhelo). O delírio ( mihahamu)é curado pelo Mbulula khutla. O paciente tem de se meter na cova donde se tira o barro que serve para cobrir o chão das palhotas e é aí lavado com uma decocção daquela droga. Corta-se, ainda, uma vara da mesma árvore, mete-se na cobertura da palhota e a pessoa que compartilha a palhota do doente terá, todas as noites, o cuidado de colocar a vara próximo da cabeça do doente. «É assim que nós matamos o delírio!» (Mankhelo). Outra forma de demência chama-se ríhuhe, «a doença que vem de longe com o vento», ripfa tinihehwene (Mankhelo). Prepara-se uma droga com a raiz xiromu, misturada com o pulmão duma ovelha e o sangue encontrado no seu coração. Tudo isto é queimado num caco de panela e reduzido a pó. O paciente é levado ao pé do caco; faz-se-lhe na cabeça uma incisão, este é fervido na panela, solidifica-se e queimam- no. O n'angaque sangra abundantemente, até que a panela fique cheia de sangue; vai enterrá-lo num formigueiro, conforme o rito do timula, descrito mais adiante. Introduz-se a mezinha na ferida do doente que come a carne e adoece. «Se estiveste à altura da situação, ele está curado; deste-lhe sono em abundância. Mataste o rihuhe» (Mankhelo). A doença chamada wutleka é, ao mesmo tempo, as convulsões dos pequenitos, geralmente explicadas pela acção do Céu, THo, e a epilepsia. O grande remédio para a epilepsia, que aterroriza os indígenas, é fornecido pelos macacos e pelos babuínos. Assam-se numa panela partida bocados de pelos desses animais e dos seus excrementos. Juntam-se-lhes bocados de pele de leão. Quando o pó está preparado, à maneira ordinária, friccionam-se com ele os membros do doente e borrifa-se-lhe o corpo com uma dccocção destas mesmas drogas; ou, ainda, prepara-se com elas um unguento que se lhe aplica sobre a cabeça, dedos e todos os membros, sendo estes, em seguida, estirados com força (o/o/a). O doente é estendido e colocam-se-lhe na cabeça folhas da árvore hlampfura (Kigelia pinnata). «Ele dorme, urina, evacua — está curado!» Mas, para confirmar a cura, procede-se a uma muitocuriosa cerimónia que lembra o rito do bode expiatório, tão frequente nos primitivos. Com uma erva chamada muhulane, o doutor fabrica uma imagem de macaco ( havque unta com as drogas atrás mencionadas e que ata a uma corda comprida; um rapazito puxa o manequim para fora da aldeia, enquanto todos os seus companheiros lhe batem com paus, gritando: «Vai-te! Vai-te!» Corre para uma árvore, longe, no mato. Todos os rapazes penduram nela o manequim e aí o deixam, a baloiçar ao vento. A doença foi assim expulsa. Quando a loucura é acompanhada de grande excitação, a ponto de ameaçar a segurança dos habitantes da aldeia, impede-se o doente de fazer mal pondo-lhe peias. O pé do doente é metido num bloco de madeira no qual se fez uma abertura em forma de losango; através da abertura fixa-se numa cavilha, de maneira que o doente não possa retirar o pé; se quer andar, tem de arrastar após si o pesado bloco de madeira, não tarda a perder as forças; mal alimentado, coberto de vérmina, morre em lamentável estado. * * * No decurso do nosso estudo dos diversos tratamentos, men- cionámos uma vintena de receitas dos médicos indígenas, contendo, ao todo, as suas quarenta ou cinquenta drogas diferentes, que eles empregam de diversas maneiras: aplicação sobre o corpo, inalação, fumigação, infusão, decocção, inoculação, manipulações de drogas carbonizadas ou pulverizadas, etc. Podemos, pois, afirmar que, até certo ponto, os Tsongas possuem uma arte medica. Para completar a nossa revista médica, tenho de descrever ainda algumas práticas curiosas dos doutores tsongas que relembram espantosamente aquelas a que os nossos médicos recorrem algumas vezes. Comecemos pela ventosa. Na história de «O salteador da planície» (Chants et Contes des pág. 357) é feita uma descrição pormenorizada da ventosa. Uma rapariga ressuscita, por meio dela, um búfalo. Eis como ela procede: ferve água, na qual põe o feixe das drogas requeridas; limpa cuidadosamente certo lugar que se encontra na região da fonte e faz nele algumas incisões com uma navalha de barba ( Hkari); aplica-se nas incisões um chifre ( riakutumeka) aberto nas duas extremidades; o operador chupa por uma das extremidades e faz, assim, sair o sangue abundantemente; a ferida é, depois, exposta ao vapor que emana do feixe (xitsimbu) que está na fervura e untada com um unguento especial guardado numa cabaça. A segunda, no género destas práticas, é o phungulu [Dz.] ou hungu/u [Ro.], espécie de banho turco ou banho de vapor, prescrito para curar certos males, assim como após os ritos funerários, para levantar a poluição da morto (vol.l, pág. 144). Arranja-se, com uma esteira colocada verticalmente sobre um dos lados, um cerrado circular, no meio do qual se instala o paciente; perto dele coloca-se, sobre tições a arder, uma panela contendo as folhas que se julga possuírem propriedades medicinais. Sobre o cerrado estende-se uma outra esteira, ficando assim o paciente encerrado numa pequena cela. O fumo dos tições provoca uma tosse terrível. O vapor que se escapa da panela causa forte transpiração que sai por todos os poros. A vítima deste tratamento é deixada numa situação extremamente inconfortável durante considerável lapso de tempo. Quando, finalmente, se julga que o remédio teve tempo de fazer todo o efeito desejado, tiram-se as esteiras. O paciente acha-se do repente ao ar livre, escorrendo em suor. Vi um homem ficar assim exposto à frescura do cair da noite, com grande perigo do contrair uma inflamação dos pulmões. O doutor esfrega-lhe as faces e outras partes do corpo com um pó branco ou negro. Tal é o banho turco dos Tsongas, ao qual se faz frequentemente alusão no seu folclore. Na maior parte dos casos o phungulu é administrado quando se receia a poluição ritual ou se pensa que essa poluição é a causa da doença. O envenenamento especial provocado pelas impurezas que respeitam à morte, à menstruação, aos lóquios, etc., manifesta-se por inchaço das articulações, das mãos e dos pés, dores nos ossos, etc. Recorre-se, também, a este banho de vapor para curar as pessoas casadas que não podem ter filhos. Nestes casos, o médico faz um feixe ( ) com as raizes seguintes: Nhiangawume, Mpongwana, coze-as na panela, dentro do cerrado; põe no fogo, sob a penela, uma porção da carne da cabra sacrificada nesta ocasião, em especial do útero, carne que foi previamente untada com drogas. Desta maneira, a mezinha introduzir-se-á nos pacientes quer pelo vapor quer pelo fumo. Bawupfa, «eles amadurecem» ou «eles são cozinhados». Quando se tira a esteira, deita-se sobre eles uma panela de água fria, que extingue o phungulu que «os cozeu». Os pacientes deverão levar a carne e cozê-la, na sua palhota, com o feixe de raizes; outro feixe deve ser posto na panela em que guardam a cerveja. Terceira prática, tão antiga como a precedente, é o thlenza ou cauterização. Pode ser feita colocando sobre a parte doente um feixe de raizes previamente aquecidas. Mas, dum modo geral, a cauterização é praticada com o pé. Curioso processo, realmente! Kokolo fez-me uma descrição minuciosa. Aquece-se uma enxada até o rubro branco. Um indivíduo complacente põe à disposição o seu pé, um pé que não conhece o emprego do calçado e cuja planta é dura como coiro. Esta sola natural é devidamente esfregada com folhas duma planta chamada Xiungwe que foi primeiro mastigada, depois misturada na palma da mão, com saliva e gordura. Para obter o mesmo efeito, Mankhelo servia-se duma espécie de gordura contendo, a par doutros ingredientes, as seguintes drogas: Hlampfura e N'wambula-wamitwa. Depois, o obsequiante operador põe o pé na enxada em brasa, retira-o e, com um movimento rápido, aplica-o sobre o sítio a cauterizar. O paciente mal pode suportar este contacto. Quanto ao proprietário do pé, a pele calosa da planta desse pé é, ao que parece, tão espessa que ele não sente dor. É o remédio para o «sangue» dito xitreve, isto é, pro- vavelmente a pleurisia. A última prática a mencionar, aquela pela qual o doutor dá ao seu paciente um certificado de cura, é o hondlola [Ro.] ou hondla [Dz.]. É uma cerimónia de purificação, praticada após o tratamento, para levantar a poluição, nsila, da doença. «Desta maneira — diz Mankhelo — dispersamos ( kuhulurisa)o sangue que tornou o paciente doente e que não lhe voltará mais com violência». O hondla é obrigatório depois de todas as doenças graves e depois do desmame. Já o descrevi neste último caso (vol.l, pág. 75). Segundo Mankhelo, o hondlola deve ser sempre acompanhado por um sacrifício. No caso dum adulto, mata-se uma cabra; o doutor põe de lado um pedaço de cada um dos membros da cabra e «por meio deles» reza aos seus deuses, dizendo: «Tu, Fulano, eis o boi que degolei... Dá-me a força (ndri thwas- ane matimba) de curar este homem. Não tenho outras drogas! Não misturo nenhuma àquelas que me deste! Portanto, dá-me força; aceita- me com as duas mãos, a fim de que ou seja capaz de realizar esta cura.» O nsvanyi da cabra é, então, misturado a diversas drogas, em particular ao xirheti e ao pó das cabaças. O paciente, sentado numa esteira, esfrega vigorosamente todo o corpo com o ; reúnem-se 401 403 402 cuidadosamente todas as partículas que caem na esteira (timhore ou timhorola ou, ainda, timbhorola) e consultam-se os ossículos para se saber em que lugar devem ser deitadas. É o rito do tumba, que se segue ao hondlola. Os ossículos indicarão, possivelmente, um buraco no tronco duma árvore, o rio, a vasa do pântano, um formigueiro ou a entrada duma toca de toupeira. O médico põe os timbhorola num fragmento de panela partida ou numa casca de sala e mete-os no buraco, que tapa com um pouco de barro; levou consigo água, numa pequena cabaça, toma uma golada, dizendo: «Pthu! (ou Phew!) Que a desgraça fique aqui!» No regresso, nunca deve olhar para trás: é tabu. Se o tumba é praticado num formigueiro e se as próprias formigas fecham a entrada, é muito bom sinal! Os ossículos ordenarão,talvez, que as partículas contidas na casca de sala sejam depositadas numa outra espécie de formigueiro, feito de erva; o n'anga deverá ir, de dia, preparar o lugar para a casca; caída a noite, irá, na obscuridade, introduzi-la no buraco, andando às arrecuas. As formigas levarão todos os timbhorola para o seu abrigo e assim «a desgraça ficará com elas» (Mboza). O rito do hondlola é, geralmente, acompanhado pela preparação de amuletos protectores (timfisa). Cortadas as unhas e os cabelos do paciente, metem-se em pequenos sacos de pele de lagarto que se usam ao pescoço. É frequente encontrar indígenas portadores deste ornamento, cujo fim é assegurar a permanência da cura. Algumas vezes, as unhas são duma mão e dum pé, apenas. Os svirungulu, isto é, o astrágalo da cabra sacrificado, ou o bico, as patas e algumas penas da galinha, são, também, suspensos do pescoço do paciente. É o amuleto religioso, ao passo que o saquinho de pele de lagarto é o amuleto médico-mágico. Aos convalescentes põe-se um fowa, que consiste numa raiz de sungi (não há relação entre este termo e o sungi da escola da circuncisão), guardada numa espécie de caixita redonda feita de folhas de palmeira e que se usa no tornozelo; deve protegê-los contra a transpiração das pessoas casadas. Algumas vezes usam um pedacito de cana cheio de pó pro- tector; as amas fazem o mesmo durante todo o período da ama- mentação (vol.l, pág. 66).[4: Mencionarei ainda dois artigos que os indígenas tsongas usam frequentemente. Um, é o receptáculo seco que continha as sementes do grande arbusto Prótea (árvore de açúcar), muito comum nas encostas do Drakensberg; tem a aparência dum cone duro, pardacento, todo coberto de linhas concêntricas de pequenas asperezas quadradas. Cura da vertigem. Porquê? Sem dúvida porque, se o fizermos rodar rapidamente, causa vertigem no espectador. Pendura-se ao pescoço, com um fio. Este curioso remédio vem das montanhas de Barberton, trazido pelos que vão trabalhar no Transval. O segundo é um bracelete que se vê no pulso das criancitas. É feito da pele curtida duma espécie de toupeira, chamada trukunyana, que abre os seus sulcos quase ao nível do solo. O parasita Filária, frequente na nossa tribo,] Amuletos médico-mágicos (fowa e timfisaj. 0 rito do hondlola marca, também, o momento em que as relações sexuais, suspensas durante a doença, são restabelecidas. 0 dia do hondlola, sendo, como é, a celebração da vitória alcançada sobre a doença, é considerado dia de festa. Para «regozijar o coração» do doutor, e em sinal de gratidão, fabrica-se cerveja. É, também, o dia da liquidação da conta. Há que pagar ao doutor. De resto, este não esperou até agora para reclamar um «refresco». Desde o princípio da doença houve que kupfula huama, isto é, levantar a tampa da sacola que contém a mezinha, por meio duma moeda de prata. Várias vezes o doutor sentiu vivo desejo de mudar de mezinha e nessas ocasiões especiais fez-se-lhe presente duma galinha, à guisa de encorajamento. Mas no dia do hondlola, quando o seu valor for vitoriosamente comprovado e a cura é um facto, trata-se de liquidar definitivamente as contas do n'angaque cessará, desde então, as suas visitas. mina sob a pele duma maneira semelhante. São estes, pois, dois novos exemplos do principio similia similibus curantur. Usam-se também, como preventivos, saquitos cheios de pó de serpente. 405 406 III — Concepção da doença Os pormenores que precedem habilitam-nos a compreender as concepções que estão na base destes ritos e destas cerimónias. Possuindo noções de anatomia e de fisiologia tão restritas e inexatas, não é de espantar que os Bantu do sul da África careçam totalmente dum conhecimento correcto da patologia. O seu saber é, simultaneamente, superficial e supersticioso. Tentarei fornecer a prova disto pelo estudo dos nomes que dão às doenças, das causas a que as atribuem, da sua noção de contágio e das ideias bases dos ritos que marcam o fim da doença. 1No que respeita ao método que empregam para denominar as doenças, é extremamente infantil. Os Tsongas dão à doença o nome do órgão afectado. Por exemplo: «Tenho um pé, tenho uma mão, tenho um pescoço» ndri ninenge, boko, nkolo) significa «estou doente dum pé, duma mão, do pescoço». Estas curiosas expressões provêm, sem dúvida, do facto de que eles não dão pela existência dum órgão particular senão quando sofrem dele. «Ele tem uma cabeça» significa «está atacado de loucura». Para «tenho dor de cabeça» dizem, geralmente, «sinto a minha cabeça». Ouvimo-los muitas vezes queixarem-se dum «sangue» (ngati) que se move dum sítio para outro e se aloja, por fim, no flanco, no estômago ou outro lugar. É uma ideia análoga à dos antigos humores mórbidos. Há, por consequência, tantas doenças quantos os órgãos. Pedem-nos muitas vezes remédios contra a doença «da nuca» ou contra «uma perturbação de dentro». Esta última pode significar gastrite, congestão do fígado ou disenteria, e ver- nos-íamos na impossibilidade de prescrever um remédio se não fossem as imagens pitorescas e, por vezes, singularmente apropriadas de que se servem os pacientes ou os seus amigos para descreverem os diversos sintomas da doença. Por exemplo: se um doente que sofre de «perturbação de dentro» diz que aquilo «morde», sabemos que se trata de cólica intestinal. Mas o caso torna-se embaraçante quando o paciente declara que sofre dum verme interior que passa do estômago ao pescoço e regressa pelos pulmões, se não lhe dá na gaita instalar-se na cabeça! «Faz barulho, qualquer coisa como pfi... », explicava- me um velhote, descrevendo esse animal que tem um papel importante na ciência médica dos indígenas (vol.l, pág. 67).1 'A solitária e a lombriga, ambas chamadas tinyokana, serpentes pequenas, são muito comuns nos indígenas, que as conhecem muito bem. Chegam a pensar que estes vermes são necessários à digestão. Uma mulher velha pedira um vermífugo a um dos meus colegas e a droga produzira o devido efeito. A velhota voltou a pedir-lhe outro remédio que impedisse de fugirem todos os seus vermes, porque, dizia ela, «quem é qye depois comeria a minha comida?». No entanto, há alguns nomes técnicos para designar certas doenças. Assim, mukuhlwana significa tosse e catarro mucoso da garganta e do nariz. O mbukulu ordinário parece designar a inflamação das amígdalas, ao passo que o mbukulu especial, doença geralmente atribuída a influências malfazejas dos espíritos dos defuntos, é acompanhado de febre, vertigem, delírio e loucura. A hidrocele ( masangu ou masenge) é muito conhecida e está muito espalhada, assim como a bilhárzia, uma forma de hematúria denominada xinhalu ou ntrundrwana, a qual pode revestir forma perigosa e é devida a um parasita especial. O reumatismo chama-se xifambu, «o corredor», porque vai de lugar em lugar. A sífilis, importada de há muito pelos Europeus, é universalmente conhecida e está, infelizmente, tão espalhada nos arredores de Lourenço Marques que quase todos os indígenas se acham atacados. Os indígenas chamam-lhe buba (provavelmente, de bubo). A gonorreia é de importação mais recente; segundo o meu informador Tovana, data do tempo em que foi construído o caminho de ferro de Pretória; é chamada xikandrameti, a doença que esmaga as aldeias. As doenças eruptivas são, talvez, as que os indígenas melhor sabem reconhecer. Xintrinana é o nome dado ao sarampo e que parece aplicar-se também à febre escarlatina. A varíola chama-se nyedzane. As perturbações psíquicas ou nervosas, cujo tratamento estu- dámos há pouco, são atribuídas quer ao Céu, quer aos espíritos maus, quer aos ventos. O nome da doença wutleka vale a pena ser notado. Trata-se da epilepsia. A palavra vem de wutla, que significa roubar, arrancar à força; wutleka, o derivado qualificativo « thonga, § 196), significa o estado duma coisa que foi arrancada. Poder-se-ia concluir que o sentido é passivo: o paciente foi roubado pela doença que lhe arrancou a consciênciade si. Todavia, a explicação de Mankhelo é esta: «O paciente roubou o (awutle A palavra rhiravi está estreitamente ligada a ravi, ramo. O velho doutor afirma que é este o nome da doença. Se esta etimologia é correcta, então o paciente é que se apoderou da doença, cometendo uma espécie de rapto. Mas toda a etimolologia indígena deve sujeitar-se a caução. Todos estes nomes demonstram a falta de precisão dos conhe- cimentos patológicos dos Tsongas. 2.° Com respeito às causas das doenças, os Tsongas estão mergulhados na mais profunda superstição. Todos os médicos, antes de tratarem uma doença, tentam diagnosticar-lhe a causa e assim também faz o n'anga, mas com esta diferença: a de que ele não toma quase em nenhuma consideração os sintomas físicos. Nem auscultação, nem palpação, nem exame de secreções, sangue, saliva ou urina — pois estas coisas são repugnantes e devem ser tapadas com areia o mais depressa possível! O grande meio de que se dispõe para diagnosticar uma doença são os ossículos. Há três grandes causas de doença: os espíritos dos deuses, os deitadores de sortes e os makhumu, ou sejam, a poluição da morte e o contacto com pessoas impuras. Quarta causa, menos comum, é o Céu. Os ossículos, segundo a maneira por que caem, revelam qual destas causas deve ser combatida. 3.° As suas ideias sobre contágio não são mais exactas que as outras concepções patológicas. As duas doenças mais temidas, a este respeito, são a tuberculose pulmonar e a lepra A tuberculose não é um mal inteiramente novo, introduzido pela civilização, se bem que tenha aumentado enormemente depois que os rapazes tsongas foram trabalhar nas cidades. Prova de que ela era conhecida desde longa data, é a existência dum ritual estabelecido na maneira de a tratar. No espírito do Tsonga, é causada pelo makhumu, isto é, pela contaminação da morte ou pela poluição resultante de contacto com mulher em estado de impureza fisiológica. Daí a lei ordenando a todos os atingidos por estes makhumu que se sirvam de colheres para comer. Protegem-se, assim, contra o veneno que podia provocar a tuberculose.[5: A tuberculose pulmonar parece mais antiga nos arredores da cidade de Lourenço Marques que no interior. Com efeito, foram os meus informadores dessa região que me deram a descrição dos costumes relativos ao encerramento dos tísicos. No entanto, Mankhelo conhecia também a rifuva (mesma palavra que Hfuva) em Xiluvana, Transval. Devia, porém, serrara. O Dr. Liengme assegurou-me que não encontrara um único caso na corte de Nghunghunyane, onde residiu em 1894 e 1895, a despeito de ter visto milhares de homens. Actualmente, os estragos da tuberculose, sobretudo nos mancebos que trabalharam nas minas, são terríveis. «Morrem desta afecção, nos hospitais do Transval, 16,3 por cento», escrevia o chefe do Serviço de Saúde de Lourenço Marques, em 1925 — e quantos não vão extinguir-se miseravelmente nas suas aldeias. H. Ph. Junod viu, em Mandlakazi, a terça parte do grup.o dos seus jovens evangelistas arrebatados, em poucos anos, pela terrível doença: seis, em dezoito. As mulheres começam a contaminar-se (ver o artigo do Dr. A. Perret-Gentil, Revue Médicale de la Suisse Romande, 1931, n.° 1).] Eis um traço curioso da sua concepção do contágio. Quando Sokisi morreu (vol.l, pág. 139) ouvi alguns dos presentes dizerem à irmã que transportava às costas um bebé: «Não chores! Se chorares, a doença salta sobre o bebé!» Havia duas razões para este aviso: chorar em face do infortúnio decuplica o perigo (compare pág. 275); a contaminação da doença deve ser particularmente receada se se trata de membros da família do doente ou defunto. Donde este estranho costume: quando um homem morre de tuberculose é absolutamente proibido aos seus parentes comerem a mais pequena parcela que seja ros alimentos por ele deixados. A cerimónia do kuluma milomo (vol.l, pág. 145) não tem nenhuma utilidade, neste caso. Outrora, queimavam todo o milho deixado. Hoje, no entanto, permite-se às pessoas não pertencentes à família comprarem e consumirem essas provisões. O celeiro grande continha o milho colhido nas lavras de Sokisi; esse milho era vendido a estranhos, ao passo que as pessoas de família com- pravam o milho arrecadado no celeiro pequeno para uso da viúva e dos filhos. Sem dúvida, é por esta mesma razão que a mulher de um tuberculoso deve kulahla khombo com estranhos e não com os homens da aldeia (vol.l, pág. 193). Esta singular ideia do contágio dita, também, as regras relativas ao sepultamento dos leprosos. As pessoas pertencentes à família nada devem ter com o encerramento (vol.l, Apêndice VIII). Os parentes por aliança é que têm esse dever. É possível, também, que na sua amargura a família do leproso falecido recorra a um amigo. Este perguntará: «Preparam alguma coisa para me recompensarem?» Se sim, começa a abrir a cova, mesmo ao lado da palhota onde o doente faleceu; tira alguns caniços da parede e puxa o cadáver para a cova, sem que se realize qualquer das cerimónias habituais. A família está reunida longe, na praça da aldeia; não ousa, sequer, assistir ao enterro. Todos os utensílios são quebrados e atirados para muito longe, para a espessura da floresta, com medo de que algum membro da família lhes toque e morra. Podem ser deixados na palhota e toda a aldeia se muda imediatamente. Chama-se à lepra nhlulabadayi, a doença que é mais forte que os doutores. É muito temida. No entanto, os leprosos não são separados da comunidade; vivem na aldeia com todos os outros habitantes e tomam parte nas refeições em comum, mas comem depois dos outros. Assistem às «festas de cerveja» mas devem munir- se com copo próprio, ao passo que os demais convidados recebem o seu do dono da aldeia. Outra doença de que os indígenas receiam o contágio é a «possessão» pelos espíritos dos Ndrawus. Se apanhardes do caminho algum objecto que pertenceu a um possesso, a doença «saltará sobre vós» (tlulela ).A epilepsia é, também, temida pela mesma razão. É indispensável que uma mulher que amamenta não veja um epiléptico em crise: a criança que ela tem às costas tomar-se-ia epiléptica. Tratando da concepção da doença, devo relembrar ao leitor a convicção dos indígenas de que as relações sexuais entre os habitantes da aldeia agravam o estado do paciente que viva nessa aldeia; por consequência, são proibidas durante os períodos de epidemia e em todos os casos de doença grave. Daí as precauções tomadas para que os convalescentes usem o sungi, como acabámos de ver. 4.° Os ritos especiais que marcam o fim de uma doença pro- jectam viva luz sobre a concepção tsonga da doença. Um mal grave 407 409 408 constitui um período marginal, seja para o indivíduo doente, seja, em caso de epidemia, para a comunidade, e o rito do hondlola é o método para reintegrar o paciente na sociedade. Tem, pois, claramente, o carácter dum rito de passagem. A fricção por meio do nsvanyi, o levantamento da poluição da doença, a rejeição dos timbhorola, as unhas e os cabelos cortados — todos estes ritos são ritos de separação do período da doença. Os regozijos do dia do hondlola e o restabelecimento das relações sexuais são ritos de reintegração. Nas doenças de possessão trata-se, como veremos, da admissão na sociedade de pessoas possuídas pelos espíritos, e este rito corresponde a uma iniciação.[6: Sabe-se, com frequência, que uma mulher cristã que se tratou com um médico pagão- teve com ele relações sexuais. Atribuímos, geralmente, o facto a pura imoralidade. É provável, porém, que se trate duma parte do tratamento, no momento preciso em que os tabus sexuais eram levantados.] Nos casos de epidemia, é todo o clã que passa pelo período marginal; todos os seus membros devem cumprir os ritos de rein- tegração que os fazem reentrar na vida normal. Mas estes ritos têm, ainda, outra significação. Têm por fim «dispersar a doença». No verdadeiro hondlola, as partículas caídas na esteira durante a operação de fricçãosão deitadas num formigueiro. É o tumba, correspondente ao rito que consiste em deitar na bifurcação de caminhos toda a nsila, isto é, todas as impurezas dos doentes de varíola. Nesta ocasião, o corpo do paciente é lavado, no mesmo lugar. Sucede o mesmo no caso de sarampo. Na base de todos estes costumes há uma ideia única: por meio deles o paciente ou o clã desembaraça-se definitivamente da doença. A doença forma um todo orgânico; um dos seus elementos importantes é o depósito deixado pela transpiração na pele — dizendo doutra maneira: a porcaria que a cobre — , nos utensílios empregados pelo doente durante o período do seu isolamento, no pó da sua palhota, etc. Deita-se, portanto, tudo isto num formigueiro (e os insectos que se avenham) ou no caminho, onde os viajantes os espezinharão — e, ao pisarem essas impurezas, não só contraem a doença que elas representam como a levarão com eles para terras distantes! A prece do médico indígena será, assim, satisfeita: «Que ele se vá, o mau sangue, para Nkhavelana, para Xivurhi... para os confins da terra!» Não creio que este acto, aparentemente hostil, de atirar para o caminho o pó duma palhota contaminada, tenha por origem o desejo de que os viajantes sejam iníestados pêla dóêhÇS. 0 objectivo principal dos Tsongas é dispersar o contágio, de conformidade com os princípios da magia comunionista e imitativa. Mas é perigoso, não há dúvida, para o transeunte andar sobre essas porcarias. Um destes makhumu poderia ser a causa duma doença. No sistema médico dos Bantu misturam-se tantas superstições e erros, que não se saberia conceder-lhe alguma confiança. É, pois, muito difícil responder à pergunta que formulei no começo deste capítulo. Qual o dever do governo dos Brancos em face dos curandeiros indígenas? O ideal seria substituí-los por doutores bem qualificados e civilizados. Sendo isto impossível, encorajem-se, ao menos, os médicos-missionários, aumente-se o número deles e institua- se um curso de medicina para indígenas educados. Se este curso não pode ser um curso universitário completo, dê-se ao menos uma instrução suficiente para permitir a esses indígenas tratar cientificamente a sua gente e ponha-se, pouco a pouco, termo às práticas da arte duvidosa dos médicos indígenas. B — Possessões O curioso fenómeno psíquico que vou agora descrever pertence ao domínio da medicina. Efectivamente, chamam-lhe «a doença» ou, antes, «a loucura dos deuses» (vuvavyi bza svikwembu). Tem, além disso, carácter acentuadamente religioso, pois os espíritos figurados como causa da doença são svikwembu, espíritos dos falecidos, aos quais se deve prestar culto. Por outro lado, os ritos relativos ao tratamento desta espécie de loucura são positivamente mágicos e aqueles que dela sofreram tornam-se, muitas vezes, curandeiros e atribuem-se poder sobrenatural. Este assunto apresenta grande interesse do ponto de vista da psicologia e psiquiatria. Os fenómenos de possessão existem na maior parte das raças não-civilizadas e até em povos mais avançados, e seria útil comparar as manifestações desta doença nos Rhongas com as que se encontram noutras partes do mundo. Deixarei, todavia, essa tarefa a profissionais e tentarei descrever fiel e claramente — e, se possível, compreender — os factos de que fui, eu próprio, testemunha. Esta doença espalhou-se enormemente entre os Tsongas depois do último quarto do século passado. Diz-se que, anteriormente, era muito rara ou até desconhecida. De então para cá tomou-se verdadeira epidemia, posto que actualmente em decréscimo. As possessões são mais frequentes nos Rhongas que nos clãs do norte. I — Os espíritos que causam a doença Coisa estranha, os deuses ou espíritos a que se atribui o poder de tomar possessão de seres humanos não são os antepassados dos Tsongas, os antepassados-deuses, mas sim os espíritos dos Zulus e os da tribo dos Ndrawus, os quais habitam o país além do Save até os arredores da -Beira. Parece que as primeiras possessões que se manifestaram eram devidas aos espíritos dos Zulus e dos Ngonis; é possível que tenham coincidido com a invasão dos guerreiros de Manukuse c com o êxodo crescente de mancebos para as cidades, quando iam trabalhar nas minas de diamantes de Kimberley ou nas minas de ouro de Joanesburgo ou Natal, atravessando assim nas suas viagens territórios ocupados pelos Zulus. Quanto aos espíritos dos Ndrawus, são algumas vezes chamados e diz-se seguiram os guerreiros tsongas e ngonis do Nghunghunyane que se estabeleceram, põr alguns anos, na Musapa, em pleno país ndrawu, ao norte do Save, e que depois regressaram dessa região montanhosa para a fértil planície do Bilene (Baixo Limpopo). Por outro lado, quando a guerra de 1894 a 1895 obrigou à fuga os Rhongas do norte, os de Mavota, Zihlahla e Nondrwana, eles levaram consigo, ao que se conta, os espíritos que os tinham possuído e «disseminaram-nos» tão completamente nos países do norte que, de regresso a casa, não mais foram molestados por esses svikwembu. É, pelo menos, o que um indígena me assegurou. Desde já devemos notar cuidadosamente estas duas ideias: os espíritos que atormentam os indígenas são os manes de membros de outras tribos, não dos da gente do país, e atacam fre- quentemente os Tsongas que atravessaram regiões estrangeiras, se- guindo com eles nas suas subsequentes migrações.1 As possessões pelos Ndrawus parecem ser mais perigosas que as dos Zulus. Vundrawu bza kareta, «a possessão ndrawu é dolorosa». Se as encantações se fazem em zulu para as possessões dos Zulus, fazem-se em língua ndrawu quando são causadas pelos espíritos ndrawu. Reconhecem-se aqueles que esta desgraça atingiu por grandes contas brancas que trazem no cabelo. Algumas vezes têm um simples cordão de contas suspenso de qualquer parte da cabeça. Recordo-me muito bem de ter visto, à beira de um riacho, num vale arborizado chamado Nhalalene, onde fizéramos alto no decurso de uma viagem, uma bela mulher nova que usava um destes adornos. Isso impressionou-me e perguntei a um dos nossos companheiros porque estava ela assim adornada. «Ela invoca os espíritos dos Vandrawu», responderam eles. 'Todavia, no caso de Mholombo, o espírito era um velho chefe do Tembe. No caso do N'waxin'hwana, havia nela uma multidão de ocupantes, entre os quais seu próprio filho Manuel, falecido algum tempo antes. No caso de Mboza, era também um rhonga, mas que morrera em país estrangeiro (ver adiante). 410 411 412 Il — Começo e diagnóstico da doença Estudei com cuidado a história de diversos casos de possessão entre os Rhongas (ver Bulletin de la Société Neuchâteloise de Géo- graphie, tomo X, pág. 388). A maior parte deles começam por uma crise muito distinta, em que o paciente fica inconsciente; não parece, no entanto, que ela tenha sido preparada por perturbações nervosas. Uma mulher dos arredores de Lourenço Marques, N'waxin'hwana, fugiu de casa e atirou-se ao mar; o contacto com a água fria fê-la retomar os sentidos; depois, os ossículos declararam que ela tinha svikwembu. Outra, Mholombo, ouviu em sonho uma voz que a chamava; era o espírito possessor que mais tarde se revelou como sendo o de um chefe morto havia muito tempo. Vou descrever agora minuciosamente o caso de Mboza, que esteve possesso ele próprio e mais tarde se tornou um verdadeiro exorcista. Depois de ter trabalhado algum tempo em Kimberley, regressou a casa de boa saúde. Pouco tempo depois, começou a coxear e assim andou seis meses. Atribuía a reumatismo (xifambu) a dificuldade que tinha de andar. Melhorou, mas começaram a manifestar-se outros sintomas. Perdia o apetite; em breve deixou de comer, quase por completo. Ouçamos a sua própria declaração: «Um dia fui com outro homem apanhar juncos para fazer uma esteira; de repente, os svikwembu começaram em mim ( sunguleka hi svikwembu xikan'we). Voltei à aldeia com todos os membros frementes. Entrei na palhota mas, de repente, saltei e pus-me a atacar as pessoas da aldeia.Depois fugi, seguido pelos meus amigos. Estes agarraram-me e imediatamente os espíritos se dispersaram ( hangaiaka).Voltado a mim, soube que tinha ferido um khehla (um. homem de coroa de cera, vol.l, pág. 138) e batido nas costas de outras duas pessoas. Há! — disseram eles — Ani svikwembu(Ele tem os deuses, ou ele está doente dos deuses).» Parece, pois, que os primeiros sinais da possessão são a crise nervosa e também a aparição de certos sintomas suspeitos: uma dor persistente no peito, um soluço impossível de reprimir, bocejos desa- costumados, emagrecimento sem causa aparente, etc. Todavia, não bastam estes sintomas para se pronunciar um diagnóstico e os ossículos devem ser sempre consultados antes de se chegar a uma conclusão. Colocam-se os amuletos do paciente (a sua «sombra», como se lhes chama) sobre a esteira. Os ossículos são deitados ao iado deles. Veremos, na letra D, de que maneira os ossículos devem cair para confirmar o diagnóstico. Se assim sucede, tem lugar segunda consulta para designar o doutor a quem será confiado o tratamento. Há médicos indígenas especializados nesta doença. Não são verdadeiros n'anga; chamam-se govela. Pelo menos é o que sucede entre os Rhongas, que sofrem mais de possessões que qualquer outro clã. Estes govela fundaram grande número de escolas rivais, diferindo ligeiramente nas drogas empregadas e ritos seguidos: as escolas de Khongosa, Sindondondo, N'watxulu, que são homens, e as de N'wamuthetu (nas terras de Xifimbatlelo) e Thambulanyoka, isto é, Osso-de-Serpente, que, são duas mulheres, etc. N'waxin'hwana foi tratada por um discípulo de Khongosa; Mboza por N'watxulu. III — O tratamento das possessões ou exorcismo Outrora o único remédio consistia em baloiçar diante do pa- ciente uma grande folha de palmeira (milala). Acreditava-se que isso bastava para «dispersar os espíritos». Agora o tratamento é muito mais complicado. Embora varie um pouco de uma escola para outra, compreende quatro ritos principais: o toque de tambores, a ablução na cabaça govo, a absorção do sangue duma vítima e a cerimónia do hondlola. No tratamento de Khongosa o rito do govo é o primeiro; chama-se vase/o. Prepara-se certa raiz, o mergulha-se na água duma grande cabaça, cortada em duas de maneira a formar uma grande coveta; mexe-se a mistura, produzindo-se uma espuma branca abundante, com a qual o paciente deve lavar-se ou, então, tendo a coveta sobre os joelhos, toma um pouco da espuma entre os lábios e sopra-a aos quatro ventos, fazendo pthu. Isto é, evidentemente, um meio preliminar de ganhar o favor dos espíritos possessores que no rito seguinte vão ser invocados e suplicados a revelarem-se. No caso de Mboza, o rito da cabaça era a segunda parte do tratamento, o qual se iniciava pelos tambores. 1.° — 0 toque de tambores («gongondrela») Este extraordinário rito acorda a lembrança dos sabbats de bruxas da Idade Média, pelo barulho infernal que o possesso tem de sofrer. Todavia, esta semelhança não passa de exterior, pois nada tem que ver com a bruxaria propriamente dita e, aos olhos dos Tsongas, é uma «prática médica». Estranha prática médica, realmente — e mais feita para matar o paciente que para curá-lo! Em primeiro lugar os ossículos têm de ser consultados para indicarem o lugar onde deve realizar-se o sabbat. Se o ossículo que representa o paciente cai no meio dos outros, isso quer dizer que os tamborins ou tantãs devem ser tocados no interior da palhota; se cai sobre o bordo exterior, no limiar da porta; se cai mais longe que os outros, na praça da aldeia ( hubzene); se rola para mais longe ainda e o astrágalo da gazela errante fica também separado dos outros ossículos, a reunião deve efectuar-se no mato, muito longe da aldeia. Se os ossículos ficam mudos, se nada revelam, há que deitá-los novamente, atrás da palhota ou na praça da aldeia, até que falem. É necessário, também, que as quatro conchas Olivas e Cipreias, que fazem parte da colecção dos ossículos, caiam sobre o dorso, isto é, que a abertura da concha fique à vista. Isso significa que os deuses da possessão, os espíritos, ir-se-ão embora; uma saída lhes foi reservada, ao passo que, se as conchas caem na posição inversa, expondo o seu lado convexo, o adivinho dirá: Matikarata ntsena — «Todos os vossos esforços são vãos». O sabbat não terá efeito; os espíritos não encontrarão nenhuma porta de saída! Mas não se tardará em encontrar o meio de resolver esta dificuldade e depressa o sabbat atingirá o auge. No centro da palhota senta-se o paciente. Abatido, os olhos baixos, o olhar fixo, espera... Por todo o país se sabe que hoje, à noite, quando a lua nova aparecer, o estranho e terrível exorcismo começará. Todos os que já foram possessos, outrora, serão agora os oficiantes. O director da cerimória, govela, que foi indicado p'elos ossículos, pega no seu tamborim, feito de pele do grande lagarto varano, estendida num quadro circular (ver a gravura a pág. 111, n.° 9). No ar calmo da noite ressoa a primeira batida. Repercute por todos os lados. Através dos bosques, chega às aldeias vizinhas — e provoca uma estranha emoção, um extraordinário arrebatamento, inspirado pela curiosidade, a maldade e não sei que sentimento de satisfação inconsciente. Toda a gente se precipita na direcção donde vem o som bem conhecido; todos se apressam a dirigir-se à palhota do possesso; não há ninguém que não tenha o desejo de tomar parte nesta luta, neste ccfhflito com as forças do mundo invisível. Ei-los todos reunidos. Uns muniram-se de tamborins; outros de grandes latas de folha apanhadas nos despejos fora da cidade (as latas em que se vende o petróleo em Lourenço Marques); outros, ainda, de cabaças cheias de pequenos objectos e que vão funcionar como matracas (ndre/e). E, agora, todos, comprimindo-se à volta do paciente, começam o tremendo barulho, batendo, brandindo, sacudindo com todas as forças os seus diversos instrumentos de tortura. Alguns afloram a cabeça e os ouvidos do desgraçado. É uma algazarra ensurdecedora que se prolonga, com breves interrupções, por toda a noite, até o momento em que os executantes deste fantástico concerto não podem mais de fadiga. . Isto, porém, não é mais que a orquestra, o acompanhamento. O essencial é o canto, a voz humana, o coro dos exorcismados, cprto refrão que segue um solo mais curto ainda, repetido cem, mil vezes, sempre com o mesmo objectivo em vista, para o qual todos se encarniçam cpm seriedade e persistência: forçar o ser espiritual, o misterioso espírito que lá está presente a revelar-se e a declarar o seu nome. Só então será considerado vencido. Tais cantos são, a um tempo, simples e poéticos. Dirigem-se ao espírito em termos de louvor, 413 415 414 tentando acarinhá-lo, lisonjeá-lo, pôr-se ao lado dele e levá-lo assim a conceder o favor de se entregar. Eis o primeiro dos cantos que ouvi. Um dia, em viagem, a minha atenção foi despertada pelo barulho duma destas reuniões, proximo duma mata; saltei do carroção e achei-me no meio de uma cerimónia de exorcismo. Xivedrana! Uvukele vantol Rinoceronte! Tu atacas os homens! Assim gritavam os cantores, reunidos em volta de uma pobre mulher que parecia mergulhada numa espécie de sonho e comple- tamente inconsciente. A minha chegada quase não teve efeito sobre o barulho infernal, embora o aparecimento de um Branco nas aldeias desta região fosse geralmente considerada um acontecimento. Quando as horas passam sem que qualquer efeito visível se produza no paciente, o refrão muda. A noite vai, provavelmente, já muito adiantada, a aurora vai despontar: Sai, espírito, tu fazes-nos chorar até ao nascer do sol! Porque nos maltratas desta maneira? Ou, então, com o fim de exercer uma pressão mais forte, amea- çam o espírito de o abandonar definitivamente se ele recusa prestar atenção às injunções dos tocadores de tantãs. Vinde! Vamos embora! Ave dos chefes! Partamos (visto que nos tratas tão duramente!) As melodias das encantações
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