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A CRIANÇA DO ESPELHO

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A CRIANÇA DO ESPELHO 
 A criança do espelho, assim chamado por J.-D. Nasio, é o título de um livro que relata suas conversas com Françoise Dolto a propósito da imagem inconsciente do corpo. Trata-se de uma menina tratada pela Sra. Dolto, mas o relato desse caso é pouco desenvolvido em seus livros.
 Optamos por apresentar aos leitores o caso dessa criança e de duas outras tratadas por Dolto, que nos pareceram ilustrar exemplarmente a imagem inconsciente do corpo, conceito central de sua teoria. Seu primeiro artigo sobre o assunto data de 1957.1 No entanto, encontramos indícios desse conceito, oriundo de sua clínica com crianças— em particular as muito pequenas e as psicóticas —, em observações que ela nos fornece datadas do início dos anos quarenta. Durante o tratamento, o adulto fala e faz associações. Françoise Dolto percebeu com clareza, assim como outros, que essa forma de trabalho não era transponível para o tratamento de crianças. Aos poucos, ela foi elaborando seu instrumento analítico em torno do desenho e da modelagem, materiais que interpretava como os sonhos ou as fantasias produzidos pelo analisando adulto. Mas não eram tampouco o desenho ou a modelagem em si que constituíam os verdadeiros instrumentos da análise, e sim o dito que lhes era associado: o da criança, quando ela podia enunciá-lo, ou o proposto por Dolto, nos outros casos. Ao elaborar o conceito de imagem do corpo, Dolto não falou do desenho, que não passa, assim como a modelagem, de sua transposição. Para compreender esse conceito, portanto, é preciso esclarecer que não se trata de uma imagem que possamos ver. Convém acrescentar que a imagem do corpo não é o corpo e, embora os dois estejam ligados, ela também não é o esquema corporal. O esquema corporal é uma mentalização do corpo que se estrutura a partir do corpo biológico, material e objetivável. Está ligado à localização das sensações. É um processo neurológico que nos informa sobre o lugar de recepção das sensações. Quando tocamos na ponta do dedo, o esquema corporal indica a ponta do dedo como lugar de contato. Uma perturbação neurológica pode alterar gravemente o esquema corporal. “ A imagem do corpo é a fantasia das relações afetivas e eróticas com a mãe, das relações eróticas que foram castradas, cada qual a seu tempo.” 2 A imagem do corpo não existe para uma única pessoa. Só se constrói e só existe na relação com alguém. A menina do espelho: aspectos clínicos do caso A título de preâmbulo, eu gostaria de contar duas histórias de que fui testemunha ao preparar este trabalho. A primeira história é a de uma gaivota e se passa na Bretanha, sobre o telhado de uma casa em frente a minha janela. Em dado momento, ouvi gritos particularmente insistentes de gaivotas..Intrigada, fui ver de onde vinham esses gritos e descobri uma cena surpreendente. Sobre o telhado plano, uma gaivota agitadíssima bicava um cano de chaminé de alumínio, ou melhor, bicava “ sua própria imagem” nesse espelho improvisado. Decerto achava que se tratava de outra gaivota. Infelizmente, ela não conseguia entender nada e girava incansavelmente em torno da chaminé. A imagem girava junto com ela. O macho a acompanhava, mas se mantinha à distância. Essa manobra durou quase até o anoitecer. Na manhã seguinte, os gritos recomeçaram. E vi a fêmeachegar, trazendo minhocas no bico para alimentar esse suposto Outro. Evidentemente, nenhum filhote de gaivota se apoderou delas. Essa manobra durou vários dias. O casal passava a maior parte do tempo no telhado. A fêmea chocava-se sem parar com a imagem. Achei que iria cansar-se, mas ela se chocava incessantemente com aquele engodo. Era terrível. Não havia uma linguagem comum entre nós, de modo que eu não podia lhe dizer nada. A segunda história passou-se numa loja de roupas, na época do Natal. Havia diversas cabines de prova, cada qual com as cortinas abertas e tendo ao fundo um espelho. De repente, um garotinho (de uns dois anos e meio) que estava agarrado à saia da mãe — e que devia estar muito entediado — precipitou-se com toda a força contra um dos espelhos. Sem dúvida deve ter imaginado que havia encontrado um coleguinha de sua idade, e bateu no espelho com muita força. Parou, assustado. A mãe ouviu o barulho: “ Bem feito!” , disse-lhe. Olhei para os dois. O menino olhou para a mãe e para mim. Mudei de posição, para não lhe esconder o reflexo da mãe no espelho. Ela entendeu meu gesto e se abrandou. Explicou-lhe: “ Ora, mas era você no espelho!” Pensei comigo mesma: “ Ora se é!”
 O menino entendeu que havia alguma coisa acontecendo. Voltou devagar para o espelho, olhou para ele, olhou para mim e começou a brincar... Foi olhar os espelhos de todas as outras cabines. A mãe se “ ausentara” de novo do filho, ocupada em experimentar suas roupas. Não sei se ele compreendeu que se tratava de sua imagem, mas deve ter compreendido, pelo menos, que não era outra criança “ de verdade” . Ao contrário da gaivota... Decididamente, nessas duas histórias, alguém se choca com o espelho. Digo espelho [glace] deliberadamente, e não miroir, porque, para Françoise Dolto, os espelhos existem muito antes da descoberta do espelho plano.
Essa história mostra com clareza que o choque diante do espelho não é um ato solitário, mas é prontamente acompanhado pela percepção de uma testemunha presente, no caso, a mãe. E é o aspecto relacional e simbólico dessa experiência que importa. Caso contrário, “ Ele é um momento de abalo do sentimento de existir para a criança” .3 É assim que, procurando encontrar o Outro, a criança não encontra ninguém. A falta da relação com o outro, quer se trate da mãe ou de outra pessoa mediadora, pode ser dramática para a criança. Isso é o que nos
conta A criança do espelho. Françoise Dolto expôs o caso da “menina do espelho” no livro escrito com J.-D. Nasio, mas também falou dele noutros textos, sem nunca fornecer uma versão completa do caso da menina e de seu tratamento. Agora iremos apresentá-lo aos leitores, assim como os casos de Léon e Agnès, que também dão um testemunho da imagem inconsciente
do corpo antes do encontro com o espelho.
Abandono e despedaçamento
 Trata-se de uma menina de dois anos e meio, que chegou dos EstadosUnidos com os pais para uma temporada de dois meses em Paris.4 Havia também um bebê. A família hospedou-se num hotel e, enquanto os pais visitavam Paris, as crianças foram confiadas a uma babá francesa que falava algumas palavras de inglês, mas não conhecia o inglês norte-americano. E eis que lá estava essa menina, que fizera uma viagem longa e havia deixado seu ambiente familiar — avós, pessoas que cuidavam dela e com quem ela se sentia em segurança. Os cheiros, os barulhos, as presenças, as sensações, as idas e vindas e as separações cotidianas já simbolizadas, os objetos conhecidos, os espaços da criança que descobre e que se desenvolve, tudo isso estava ausente. E a ausência a ameaçava. Ela se viu num país estrangeiro, imersa numa língua que não conhecia, tendo acabado de ganhar um irmãozinho ou irmãzinha e, portanto, tendo visto a mãe com o corpo transformado e, depois, ocupada com esse bebê; sem dúvida, estava internalizando seu novo lugar de irmã mais velha, entregue a uma babá que mal podia falar com ela e que cuidava muito do recém-nascido. Os pais, portanto, ausentavam-se para visitar Paris. Quando voltava ao hotel, a mãe alimentava o bebê, certamente pouco disponível para a menina, que assim se viu entregue a si mesma, num quarto desconhecido. Ora, nesse quarto, todos os móveis e paredes eram recobertos de espelhos [glaces]. Imaginemos o que ela deve ter sentido, expatriada, sozinha, sem outras crianças e sem uma língua comum. No entanto, era invadida por uma multidão de outras “ ela” que apareciam nos espelhos... crianças inteiras, fragmentos de crianças: a cabeça aqui, ali o busto, acolá a parte inferior do corpo, com pedaços de corpos de adultos que atravessavam esse campo de vez em quando. A menina ficou perdida, desmembrada, despedaçada em todo o espaço daquele quarto inquietante,sem nenhu-ma presença amiga que pudesse tranqüilizá-la. Não apenas encontrou ali a armadilha ilusória da relação com outra criança, como também, ao entrar nesse quarto, não podia escapar dela. E ninguém para lhe dizer: é sua perna que você está vendo no espelho, aquele lá é seu rosto, ali é
sua mão. E ninguém, tampouco, para lhe falar da ausência dos pais. Ninguém, enfim, que representasse a mediação entre o espaço habitual e o espaço novo. Ela perdeu a tal ponto seus referenciais que, em dois meses, tornou-se esquizofrênica. Perdeu ao mesmo tempo a linguagem e a possibilidade de mastigar. À maneira das cobras, engolia os alimentos. Voltou a ser um bebezinho que já não sabia mastigar. O quadro foi dramático. Françoise Dolto disse ter visto fotografias da menina antes dessa viagem e, mais tarde, ter ouvido o testemunho dos avós nos Estados Unidos: era uma criança muito viva. Dolto a recebeu para uma consulta quando a menina estava para fazer cinco anos, dois anos depois da experiência traumática com o espelho. A mãe contou que, desde aquela época, ela não pegava nada com as mãos. Quando lhe apresentavam um objeto que pudesse despertar
seu interesse, ela fechava os dedos das mãos, dobrava as mãos sobre os antebraços e os antebraços sobre o peito, de tal maneira que suas mãos não tocavam no objeto. Tornara-se fóbica ao contato. Quando sentia fome, comia diretamente do prato.
Simbolização: a ligação com a fala
 Françoise Dolto entregou-lhe a massa de modelar e lhe disse: “ Você pode pegá-la com sua boca de mão.” Imediatamente, a menina pegou a massa de modelar e a levou à boca, com a ajuda do braço, que, em vez de ficar dobrado sobre o corpo, estendeu-se e permitiu que a mão
segurasse, coisa que já havia meses que ela não fazia. Françoise Dolto escreveu: “ Pus uma boca em sua mão, como se minha fala fosse uma ligação entre sua boca e sua mão.” 5 E, mais
adiante: “ As mãos são o lugar de deslocamento da zona erógena oral depois do desmame. Funcionam como bocas preênseis com os objetos. Como os dentes, como a pinça formada pelo maxilar e pela mandíbula, os dedos afundam-se nos objetos moles que estão a seu alcance, arranhando, despedaçando, apalpando, apreciando as formas. Os bebês gostam de brincar de rasgar com as mãos, com uma alegria lúdica. É essa a utilização da boca de mão.” 6
Agora, ouçamos Françoise Dolto dizer-nos como explica o sofrimento dessa menina: “ Era terrível ver como essa experiência do espe-lho, ou melhor, dos espelhos, havia dissociado e dispersado seu ser. E dizer que, no começo, os pais tinham ficado contentes, achando que
aqueles múltiplos pedaços de espelho seriam muito divertidos para ela!” 7
Um testemunho pelo desenho
 Para mostrar a que ponto essa questão do espelho pode revelar-se importante numa psicanálise de criança, proponho-lhes o desenho de uma menina com quem eu mesma trabalhei. Considero que essa menina superou a experiência difícil do espelho e a contou à sua maneira, desenhando. Eis o comentário da menina: “ É o quarto do hotel em Dinard... Minha irmã em frente aos três espelhos... A janela com a planta... A rua... A tevê... Uma mesa... Em cima, a cama coberta de bonecas...” (Estariam todas sozinhas no quarto, talvez?) Portanto, ela desenhou sua irmã de costas, olhando-se. A imagem no espelho está de frente e só apresenta o busto. Não se vê a parte inferior do corpo. Em geral, a imagem especular representa apenas a imagem frontal, ao passo que a criança sente seu corpo em todas as suas dimensões. É compreensível que ela se
pergunte: “ E eu, como me vêem de costas? Porque eu vejo a minha irmã de costas!’’ Observe-se que essa representação das costas é encontrada em outros de seus
desenhos.

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