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A tutela relativa a deveres de fazer e de não fazer na tradição jurídica luso-brasileira (TALAMINI, Eduardo)

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EDUARDO TALAMINI
EDITORA l'i'iI
REVISTA DOS TRIBUNAIS
CPC, art. 461; COC, art. 84
TUTELA RELATNA
AOS.DEVERES DE FAZER-E DE NAO FAZER
,.,,
Bibliografia.
ISBN 85.203.1953-X
COU-347.919.6(8! )
I. Tutel3 jurisdicional - Brasil 2. Obrigações de fazer e de não fazer
Brasil 3. Processo civil - Brasil I. Título.
Talamini, Eduardo
Tutela. relativa, aos deveres de fazer e de não fazer: CPC. art. 461; COC.
art. 84 (Eduardo T31amini. - São Paulo: Editam Revista dos Tribun3is. 2001.
-Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira -do LÍ\';~, SP, Brasil)
OBRAS DO AUTOR
Curso avançado tle processo cij,'il. V. 1 : Teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 3. ed. rev., aLua!. e ampl. São Paulo: RT, 2000. Co-autol;a
com Luiz Rodrigues Wambier e Flávio Renato Correia de Almeida.
Curso aral1çado de processo cidL. V. 2 : Processo de execução. 3. ed. rev., atual.
e ampL São Paulo: RT, 2000. Co-autoria com Luiz Rodrigues Wambier e
Flávio 'Renato Correia de Almeida.
Curso "QveIf''Çado de processo civil. V. 3 : Processo cautelar e procedimentos
espeCiais. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : RT, 2000. Co-autoria com
Luiz Rodrigues Wambier e Flávio Renato Correia de Almeida.
TuteÚl monitória: a ação monitória, Lei 9.079/95. São Paulo: RT, 1998 (Coleção
estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 37.)
01-0602
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Deveres de fazer e de não fazer : Tutela
jurisdicional: Processo civil 347.9l9.6(81) 2. Brasil: Tutela jurisdicional Deveres de fazer
e de não fazer: Processo civil 347.9l9_6(81)
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ORiGINA •...
(2) O até aqui resumido está em Istituti ... , n. 3-6, p. 494-501. A seguinte passagem
de Liebman sintetiza a característica do direito brasileiro ora apontada: He il
fatto che la sua evoluzione interna si e svolta ininterrota daI secolo XV, doe
dall'epoca della recezione dei diritto romano camune neHe Ordenações do
Reino, senza piu allontanarsi profondamente dalla configurazione acquisrara
in que! momento e risentendo scarsamente influenza di fattori estranei. In
particolare il diritto francese, di importanza preponderante nella formazione
dei moderni diriui eurapei, nOBha invece esteso la sua infiuenza sul diritto
brasiliano, il quale e perciõ rimasto piu attaccato alla sua lontana origine ed
ha patuto conservare, piu ameno intatti, numerosi isrituti dei diritto camune
che 11011 sono ormai in Europa~se non dei ricordi slorici" (Istiluri ... , n. 6, p. 501).
Pode-se acrescentar que apenas no século XX, com o Código Civil de 1916,
as transformações advindas do direito francês passaram a ganhar terreno em
nossos direitos privado e processual. Veja-se, por exemplo, a lição de Bevilaqua,
emDireito das obrigações, li 16, p. 66-67. Confira-se,ainda,A. Junqueirade
Azevedo,Influência..., p. 189 e 191.
(Jj Istituti...,. n. 7-13, p. 502-516.
da vida européia". O direito manteve-se estável, atrelado às Ordena-
ções, cujos esquemas e conceitos remontavam em sua maioria à metade
do século Xv. Por isso, mesmo quando o direito comum deixou de valer
como fonte de direito subsidiária, suas diretrizes e institutos continu-
aram em vigor em Portugal e suas colônias, pela via indireta das
Ordenações.
Com a invasão francesa, no início do século XVIII, o panorama
alterou-se. A exemplo do que se deu em tantos outros países europeus,
os códigos napoleônicos, com normas e princípios inovadores, subs-
tituíram o direito local - estancando a prolongada sobrevivência do
direito Comum em Portugal.
O Brasil, entretanto, ficou "imune à fratura produzida na Europa
pelo direito francês". A família real portuguesa estabeleceu a corte no
Rio de Janeiro, e continuaram aqui vigendo as regras calcadas no
direito comum. Eis o traço que, segundo Liebman, confere, talvez mais
do que qualquer outro, "individualidade histórico-comparada" ao direi-
to privado e processual brasileiro.'
Em seguida, Liebman apresenta, a título ilustrativo, alguns dos
institutos provenientes do direito comum e então ainda vigentes no
direito brasileiro.'
Ainda que Liebman não enfoque o tema, não parece exagero
incluir nesse quadro o tratamento conferido pelo antigo direito luso-
3
A TUTELA RELATIVA A DEVERES DE FAZER E
DE NÃO FAZER NA TRADIÇÃO JURÍDICA LUSO-
BRASILEIRA
SUMÁRIO: 3.1 As raízes interditais dos embargos à primeira - As
Ordenações do Reino - 3.2 A gradual eliminação do caráter
interditaI do preceito cominatório - 3.3 Consolidação Ribas, Regu-
lamento 737 e Códigos Estaduais - 3.4 A ação cominatória no
Código de Processo Civil de 1939 - 3.5 Supressão da cominatória
no Código de Processo Civil de 1973 - 3.6 O acentuado caráter
público do processo brasileiro - A jurisdição constitucional das
liberdades - A teoria brasileira do habeas corpus e a teoria da posse
dos direitos pessoais.
3.1 As raízes interditais dos embargos à primeira - As Ordenações
do Reino
Em célebre ensaio publicado na Itália pouco depois de seu retorno
do Brasil, Liebman ocupou-se em demonstrar as razões históricas da
subsistência de inúmeros institutos de direito comum no contemporâ-
neo processo brasileiro.'
Observa Liebman que POltugal, ainda muito cedo, compilou nas
Ordenações do Reino as regras e princípios vigentes no direito comum
(1456, 1514 e 1603). Depois - exauridas suas "melhores forças" no
período das grandes viagens e descubertas, e por estar inteiramente
voltado para as questões de suas imensas colõnias -, o país "fechou-
se em si mesmo" e permaneceu relativamente alheio às "vicissitudes
(I) Istituti dei diritto comune nel processo civile brasiliano, publicado pela
primeira vez em 1948.
r"
I
TRADIÇÃO JURÍDICA LUSG-BRASILEIRA
t
101
(j) Ord. Filipinas, liv. m, tít. 78, ~ 5: "E quanto ao ten:eiro caso dos autos
extrajudieiaes, que não são começados, mas comminatorios, dizemos que a
parte, que se teme, ou receia ser aggravada per a outra parte, p6de recorrer
aos Juizes da terra, implorando seu Offieio, que o provejam, como lhe não
seja feito aggravo. E poderá ainda f6ra do Juizo appellar de tal comminação,
pondo-se sob poderio do Juiz, requerendo, e protestando de sua parte áquelle,
de que se tem ser aggravado, que tal aggravo lhe não faça. E se depois do
dito requerimento e protestação assi feita, for alguma novidade commetida
ou attentada, mandará o Juiz (se for requerido) tomar e restituir tudo ao
primeiro stado. E em tal protestação será inserta e declarada a causa verisimil
e razoada, por que assi protestou: p6de-se pôr exemplo: se algum se temer
de outro, que o qúeira offender na pessoa, ou lhe queira sem razão ocupar
e tomar suas causas,. poderá requerer ao Juiz que segure á elle as suas causas
do outro, que o quizer õWender,a qual segurança lhe o Juiz dará; e se depois
della elle receb~roffensa daquelle, de que foi seguro, restiuil-o-há o Juiz, e
torn~rá tudo o que foi commetido e attentado depois da segurança dada, e
mais precederá contra o que a quebrantou, e menosprezou seu mandado,
Como achar per.Direito."
103TRADIÇÃO JURíDICA LUSQ-BRASILEIRA
Tais regras toram reiteradas nas Ordenações Manoelinas (1514 _
liv. m, tít. 62, ~~ 5-7) e, em termos mais sintéticos, nas Ordenacões
Filipinas (1603).' .
Não é difícil extrair desses dispositivos os atributos essenciais da
medida, intimamente vinculados aos remédios interditais (v. itens 2.1.2
e 2. 1.3) e à tutela específica, e, portanto, avessos à estrutura meramente
condenatória e voltada à conversão em perdas e danos. Assim: i) a tutela
tinha inclusive caráter preventivo ("atos não começados, mas
cominatórios"; "parte que se teme ou receia ser agravada"); ii) desenvol-
via-se cognição sumária ("causa verossímil e razoada"); iii) o juiz emitia
verdadeira ordem ("mandado"; "segurança"; por-se sob o "poderio do
Juiz"); iv) impunha-se comportamento específico (proverque "não lhe
sejafeíto tal agravo"; mandar "tomare restituir ao primeiro estado"); v)
assegurava-se, em caso de transgressão, a própria restituição ao status
quo ante, e não a simples compensação por equivalente pecuniário; vi)
a transgressão posterior à concessão da tutela era qualificada como
afronta à autoridade judicial ("quebrantou a segurança"; "menosprezou
seu mandado"; "menosprezou seu poderio"), e, por isso contra o
transgressor haveria de se proceder, à parte a restituição.
As regras em discurso, em virtude da dupla exemplificação nelas
contida - temor de ofensa à "pessoa" ou às suas "coisas" _, serviram
(~} Fiquemos apenas com dois exemplos contidos no m~smo título da medida
que ora nos interessa (tít. 80): no S 4, estava previsto o interdito recuperafório;
no ~ 5, providência correspondente à nunciação de obra nova. Confonne o
~ 4, aquele voltava-se contra atos ("autos") que "sam começados, e acabados"
(esbulhos); esta, contra atos que "sam começados, e nam acabados" (obras
em curso).
J 02 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
brasileiro à tutela relativa a deveres de fazer e de não fazer. Não é difícil
constatar que. também nesse terreno, o direito luso-brasileiro perma-
neceu, até o final do século XIX, muito mais próximo dos institutos
do direito comum (v. item 2.1.3) do que do sistema francês, tal como
originalmente estabelecido, ou de outros ordenamentos neste inspira-
dos. O processo civil brasileiro, enquanto vigorou O "preceito comina-
tório" fiel à linha dos interditos, esteve, até certo ponto, alheio à
tendência de rejeição ao emprego de meios coercitivos para imposição
de deveres de fazer e de não fazer.
As Ordenações Afonsinas (1456), entre inúmeros outros disposi-
tivos prevendo formas de interditos,' veiculava, no título atinente às
"apelações extrajudiciais" (Iiv. III, tít. 80), a seguinte regra a respeito
dos atos ("autos") ainda não começados mas "cominatórios" (i.e., que
ameaçavam ocorrer):
ª 6 No terceiro caso, honde tratamos dos autos nom começados,
mais cominatorios, dizemos que a parte, que se teme ou recea ser
aggravada, se pode socorrer aos Juizes da terra, improrando seu Officio,
per que mandem prover como lhe nom seja feito tal aggravo (original
sem destaques).
E do ª 8, que tratava do conteúdo da "apelação" ou "protestação",
extraem-se de modo mais preciso o campo de incidência e a eficácia
da medida:
ª 8 E em tal apelaçam, ou protestaçam assy feita deve ser inserta,
e declarada a causa verisimil e resoada, por que assy apelou, ou
protestou, como dito he nas outras apelaçoens. Pode-se poer exemplo:
Eu me temo de alguum, q~e me queira ofender na pessoa, ou me queira
sem rezam ocupar, e tomar minhas causas; se eu quero, posso requerer
ao Juiz, que segure mim, e minhas cousas deIle, a qual segurança me
deve dar; e se depois deIla eu receber ofença do que fuy seguro, o Juiz
deve hy tomar, e restituir todo o que for cometido, e atentado depois
da dita segurança dada, e mais proceder contra aquelle que a quebran-
tou, e menos presou seu poderio (original sem destaques).
I
do Direito"), preocupava-se em demonstrar a existência de casos em
que era legítima a concessão de mandado sine clausula. Entre esses,
destacavam-se as situações em que havia perigo de graves danos. Lobão
ponderava que cabia ao juiz exercer "um bem pensante e prudente
arbítrio" Y
(') Lobão, Tratado, I, ~ 542-552, p. 359-368. "Podem ocorrer casos taes, que
precisem de uma prompta providencia; nunca porém o Juiz se precipite
inconsiderado" (~ 547, p. 363).
(lU) Lobão, Tratado, 1, ~ 504, p. 334. Bem por isso, Ribas, em sua Consolidação,
veio a empregar fórmula mais ampla: "coisas" e "direitos", no lugar de
"coisas" e "pessoas" (art. 769). Havia, entretanto, quem sustentasse o caráter
restritivo da nonna (1. Alvares da Costa, cil. por C. Mendes de Almeida,
Ordenações, p. 689, nota I; Corrêa Telles, Doutrina, ~ 201. p. 95).
(11) Lobão, Tratado, I, ~~ 508-538, p. 336-356. O trecho citado literalmente está
no ~ 504, p. 334-335.
Conquanto a Ordenação parecesse indicar apenas uma tutela
impositiva de dever de abstenção, e a exemplificação nela contida
concernisse apenas à proteção da integridade pessoal e da posse,
estabeleceu-se largo domínio de emprego dos preceitos cominatórios.
Afirmava-se o caráter não exaustivo da regra. 10 Era bastante conhecida
a compilação feita por Lobão de vinte e dois casos, além dos dois
expressos na Ordenação, em que "o Direito, e a Praxe permittem taes
preceitos para diversos fins". Nesse rol, encontravam-se hipóteses de
proteção de direitos reais, hereditários, obrigacionais etc. Havia, até
mesmo, casos em que a tutela tinha caráter preventivo e instrumental
em relação a uma outra pretensão (por exemplo, o "décimo quarto",
"décimo quinto" e "décimo sexto" casos, atinentes à conservação
jurídica de coisa litigiosa). Ademais - e eis o aspecto mais importante
-, as situações protegidas abarcavam inclusive inúmeras prestações de
fatos positivos (deveres de fazer)."
Entre essas merece destaque o "terceiro caso": "se o que se
obrigou a algum facto, ou fazer alguma obra até certo tempo não a
cumpriu, póde requerer-se Preceito Comminatorio, para que no mesmo,
oú outro breve tempo faça ou complete a obra, com a comminação de
ser estimada, e se fazer por outros, e de pagar outro tanto em pena,
quanta for a estimação da obra". Lobão anotava a admissão desse
preceito pela "Pratica", com amparo no princípio do título 70 do livro
105TRADIÇÃO JURíDICA LUSO-BRASILEIRA
(6) Machado Guimarães, Comentários, IV, n. 164, p. 161-162; Amaral Santos,
Ações, l.a parte, n. 10, p. 57-58; Pontes de Miranda, Comellfários ao CPC
[1939], ITI-l, n. I e 3 ao TÍt. n, p. 89-91.
(7) Sobre o procedimento a seguir descrito: Lobão, Tratado, I, ~~ 557-561, p.
370-372; Pereira e Sousa - Teixeira de Freitas, Primeiras linhas, nota 957,
p. 447; Ramalho, Licções, n. LXII, p. 247, e Praxe, ~ 285, p. 421-423. Além
da ação de preceito cominatório, o antigo prqcesso lusitano albergava.,
também com estrutura monitória, a ação decendiária. Embora se aproximas-
sem quanto à origem remota, diferenciavam-se no que concernia à finalidade
e aos antecedentes imediatos. Sobre a formação histórica do processo
monitório, v. Talamini, Tutela monitória, parte primeira. .
(li) Lobão, Tratado, I, 9 540. p. 357-358; Pereira e Sousa - Teixeira de Freitas,
Primeiras linhas, nota 957, p. 448; Ramalho, Praxe, ~ 283, p. 421.
104 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
de supedâneo para duas tutelas distintas: o "interdito proibitório", de
caráter possessório, e outra, de caráter pessoal. destinada a impor a
prestação de fatos positivos "e negativos.('
De início, ambas revestiam-se dos caracteres interditais, acima
apontados, e desenvolviam-se mediante estrutura monitória.' Em
cognição sumária, o juiz apreciava a pretensão do autor e, reputando-
a "verossímil e razoada", expedia mandado contra o réu, acompanhado
da cominaçâo de uma pena (o "preceito cominatório"). Normalmente,
o mandado era com cláusula justificativa. Vale dizer: dava ao réu o
ensejo de opor-se ao preceito, instaurando processo de cognição mais
ampla (ordinário ou sumário, conforme a natureza da causa). Para tanto,
cabia ao demandado comparecer à audiência que lhe era assinada e nela
opor embargos. (Daí o nome "embargos à primeira" [audiência], pelo
qual a ação de preceito cominatório era também conhecida.) Nessa
hipótese, ficava suspenso o preceito, convertido em simples citação. Se
o réu não comparecesse à audiência, 0l:l, comparecendo, não se
opusesse ao preceito, o preceito cominatório era imediatamente a seguir
confirmado e julgado por sentença.
Em homenagem a valores que modemamente vincularíamos ao
contraditório e ao devido processo legal, os praxistas e doutrinadores
afirmavam que, em regra, o preceito cominatório sem cláusula era
"proibido", eis que "contrário à razãonatural e à eqüidade". 8 Lobão,
todavia, e ainda que compartilhando desse entendimento (tinha os
mandados sem cláusula por "repugnantes aos Elementares Princípios
3.2 A gradual eliminação do caráter interditaI do preceito comina-
tório
107TRADIÇÃO JURÍDICA LUSO-BRASILEIRA
(apresentação, pelo devedor, de inventário de seus bens e dívidas e
demonstração de que a perda de seu patrimônio Ocorrera sem o
concurso de sua culpa e posteriormente à contração das dívidas). Na
Carta de Lei de 20.06.1774, limitou-se a prisão por dívida a hipóteses
excepcionais, legalmente explicitadas (arrematantes remissos, recebe-
dores fiscais, tutores, fraudadores da execução e de credores, deposi-
tários etc.)." Ao que se infere, a prisão como medida coercitiva para
deveres de outra natureza, ainda que vista com cautela, ficava à margem
dessas limitações. Só mais tarde passou a se reputar o rol exaustivo de
detenções por dívida um óbice a qualquer outra forma de prisão civil
coercitiva (v. itens 3.3 e 12.1).
Desse modo, por longo período, vigorou no processo luso-
brasileiro a ação de preceito cominatório para tutela de deveres de fazer
e não fazer, com características de interdito. Entretanto _ e esse é outro
traço que não pode deixar de ser notado -, verificou-se progressiva
mitigação dos traços interditais da tutela para as obrigações de fazer
e de não fazer. E isso se deu por razões ainda alheias a uma possível
influência do direito francês.
Por muito tempo, foi freqüente a indistinta atribuição de natureza
possessória tanto ao interdito proibitório quanto ao preceito cominató-
rio destinado à tutela de deveres de fazer e de não fazer. '6 Tal confusão
era resquício do alargamento do conceito de posse, procedido pelos
praxistas na Idade Média, de que se tratou no item 2.1.3. anterior. Como
posterior reação a tal alargamento, pretendeu-se estabelecer distinção
entre as hipóteses' verdadeiramente possessórias de as demais _ de
modo a reservar-se apenas às primeiras a tutela com caráter interditaI.
Nessa reação, deixava-se de considerar a circunstância histórica de que,
a rigor, os interditos romanos não se limitavam aos conflitos possessórios.
Foram os glosadores que, em' virtude de um então incompleto conhe-
cimento das fontes romanas, reputaram existir tal limitação, e preten-
Cal vão da Silva, Cumprimento, n. r60, p. 385-386; Almeida Costa, Direito,
n. 5.5, p. 65.
(16) Sobre o tema, v. Amaral Santos, Ações, I.a parte, n. 10, p. 58-59, e n. 27 e
seguintes, p. I 10 e seguintes.
. (15)
106 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
IV das Ordenações Filipinas," e o indicava "como muito frequente
contra os obreiros, e artífices", U
Vê-se que de tal Ordenação não se extraia simples regra de
conversão em perdas e danos - mas a imposição do cumprimento
específico. Previa-se "pena" inconfundível e cumulável com a indeni-
zação. A multa tanto podia ser convencional quanto fixada pelo juiz,
para fazer com que se observasse seu mandado. E era daí que se extraía
o cabimento de preceito cominatório.
É bem verdade que, segundo muitos, o obrigado exonerava-se da
obrigação pagando a verba pecuniária ("prestando o interesse"). O
próprio Lobão consignava que esse entendimento parecia autorizado
pela Ordenação. Mas destacava que, "por estylo do nosso Reino", o
obrigado podia ser "compellido com prisão" - ainda que pusesse em
dúvida a eficácia prática da detenção pessoal nesses casos. Mencionava,
além disso, doutrina que houvera reunido quatorze casos em que o
obrigado ao fato não cumpria prestando o interesse. E arrematava
destacando que, qualquer que fosse a opinião seguida, o uso do preceito
cominatório era útiL"
Cabe aqui breve parêntese sobre a prisão como medida coercitiva,
no direito luso-brasileiro. Por muito tempo, distinguiu-se a detenção
por dívida pecuniária da constrição pessoal como técnica de coerção
de deveres de outra natureza. A prisão por dívida pecuniária foi, desde
cedo - e cada vez mais -, limitada. As Ordenações Afonsinas (Iiv. IV,
tít. 67), Manuelinas (liv. IV, tít. 62) e Filipinas (liv. IV, tít. 76), na esteira
de textos legislativos anteriores (Regimento da Casa Real de 1258; Lei
de 24.08.1282), restringiram a prisão por dívida pecuniária ao caso de
insolvência do devedor. A prisão era evitada pela "cessão dos bens"
(12) Cujo teor, no trecho que ora interessa, era o seguinte: "quando [o devedor]
fôr obrigado a alguma obra, ou feito, que promettesse fazer a tempo certo;
porque em tal caso não a fazendo ao tempo, á que se obrigou, deve ser
estimada a obra, que houvera de ser feita, e quanto fôr a estimação, tanto
poderá crescer a pena, e mais não. (... ) E isto, que dito he das penas
convencionaes, haverá lugar nas judiciaes, postas per alguns Juizes á algumas
panes, ou fiadores em algum caso:'
(13) Tratado. I, ~ 510, p. 337-338.
(l~) Lobão, Tratado, I, ~ 510, p. 338. Dinamarco, com amparo na doutrina de
Silvestre Gomes de Morais, do século XVIII, também noticia o emprego de
medidas de coerção, inclusive corporal (Execução, n. 30, p. 69).
I'
I
!,
108 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
deram ultrapassá-Ia pela ampliação do conceito de posse (v. item 2.1.3).
Portanto, e ainda que se considerasse inadequada a deturpação da noção
de posse, nem mesmo razões-histórico-dogmáticas - não bastassem as
pragmáticas ~ poderiam obstar a extensão dos interditos à proteção
geral de deveres de fazer e de não fazer.
Daquela reação limitadora dos interditos à tutela possessória
advieram duas significativas decorrências.
A primeira, ressaltada por Amaral Santos, foi a indevida restrição
dos preceitos cominatórios às relações estritamente possessórias."
Nesse sentido, podem ser citados os escólios de Corrêa Telles, quali-
ficando como "abuso" o emprego dos embargos à primeira fora dos
casos em que os interditos proibitórios possessórios eram usados no
direito romano, e de Paula Baptista, atribuindo apenas função possessória
aos embargos à primeira." A mesma orientação foi adotada, por
exemplo, pelo Regulamento de reorganização da Justiça local do
Distrito Federal (art. 203, Dec. 5.56111905), por alguns dos Códigos
estaduais (v. item seguinte) e pela Consolidação das Leis Federais, de
1923 (art. 1.362).
A segunda, em que incidiram mesmo doutrinadores que haviam
criticado a primeira tendência, consistiu em enfraquecer ou até eliminar
O caráter interditaI da ação de preceito cOllÚnatório para deveres de
fazer e de não fazer - preservando-o apenas no interdito proibitório.
Ness.a linha, o interdito proibitório permitia a concessão de mandado
liminar, se necessário desde logo eficaz, e tinha sua sentença final
efetivada no mesmo processo, sem nova citação do réu. Já a ação de
preceito cominatório apenas daria ensejo à futurà formação de título
executivo - sendo necessário subseqüente processo de execução. Isso
significava - adiantando classificação exposta no capítulo 6 - que o
interdito proibitório mantinha sua eficácia mandamental, ao passo que
a ação de preceito cominatório seria meramente condenatória. Essa
orientação está na base do pensamento de Amaral Santos, ao insistir
na distinção entre interdito proibitório e ação de preceito cominatório. I')
Está igualmente explícita na ponderação de Carvalho Santos de que é
3.3 Consolidação Ribas, Regulamento 737 e Códigos Estaduais
Em Portugal, os embargos à primeira tiveram seu campo de
aplicação circunscrito, em 1841, às hipóteses expressamente previstas
nas Ordenações e demais leis e às prestações de contas. Essa regra foi
mantida no Código de Processo Civil português de 1877 _ até a
extinção da ação cominatória pelo Código processual de 1939.23
109TRADiÇÃO JURíDICA LUSO-BRASILEIRA
inadmissível confundir ação cominatória COminterdito proibitivo, uma
vez que "na primeira o preceito tem caráter simplesmente cominatório,
enquanto que, na segunda, tem caráter proibitivo".~o Váriosdos Códi-
gos estaduais foram pelo mesmo caminho, atribuindo os diferentes
regimes jurídicos acima indicados para o interdito proibitório e a ação
de preceito cominatório (v.g., os Códigos do Distrito Federal, São
Paulo, Espírito Santo). Idêntico viria a ser, depois, o tratamento dado
ao tema no Código de Processo Civil de 1939.
É nesse contexto que se pode apreender o sentido da tese de Ruy
Barbosa sobre a posse de direitos pessoais (que torna a ser examinada
no item 3.6). Através de tal teoria buscava-se ir além da simples
afirmação do cabimento do preceito cominatório aos deveres de fazer
e de não fazer alheios ao campo tradicional da posse. Mais do que isso,
pretendia-se defender o emprego do interdito na plenitude de sua
eficácia (ordem). O caminho adotado foi o da ressurreição da antiga
tese de que os direitos pessoais eram passíveis de posse e, assim,
tutelados pelos interditos. Talvez se pudesse ter buscado idêntico
resultado mediante a demonstração de que não se justificava, dos
pontos de vista histórico e prático, a limitação da força interditai às
relações possessórias _21 mesmo porque, à época. (final do séc. XIX),
ainda era viável sustentar a vigência do ~ 5 do título 78 do livro IH
das Ordenações.22
(21) Ação ..., n. I, p. I. Do mesmo autor: Codigo de Pmcesso, IV, n. I ao art. 302.
p. 238. Também:De Plácidoe Silva, Comentários, lI, n. 78], p. 340,
(~l.l E foi O que fizeram, aliás, muitos dos que discordavam da teoria de Ruy
Barbosa (v. AmaralSantos,Ações, l' parte, n. 34, p, ']25-127),
(~2) Como fez o Ministro Pedro Lcssa, em acórdão ,do STF, já em 1917, para
afirmar a possibilidade de, mediante embargos à primeira, Opor-se à execução
de uma lei inconstitucional(Ac. de 24.01.1917, v.m., em RT 22/375).
(13) V Machado Guimarães, Comentários, IV, n. 165, p. 163.
r";"..!.,
I
I
Ações, L" parte, n. 28, p. 111-112.
C. Telles,Doutrina, ~~ 200-205, p. 95-98; EP, Baptista,Compendio, ~ 30,
p. 32.
Ações, l.a parte, esp. cap. IV.
(17)
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(I!!)
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i::; (9)
"
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j]
"7) V. Amaral Santos, Ações; 1."parte, n, 28-29, p. 112-113: Machado Guima-
rães, Comentários, IV, n. 167, p. 164.
(18) Sobre .estes três C6digos, vede: Camara Leal, Codigo, IV, notas ao art. 795
e seguintes, p. 457 e seguintes; Helvecio de Gusmão, Codigo, n. 505-506,
, p. 394-397: Amaral Santos, Ações, L" parte, n. 29-31, p. 112-118.
111TRADIÇÃO JURíOICA LUSQ-BRASILEIRA
Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. No
Rio de Janeiro, o Código de 1912 previa ação de preceito cominatório
para prestação de fato ou abstenção de ato, que foi suprimida, contudo,
do Código de 1919. Em todos esses diplomas, continuou existindo
interdito proibitório, para proteção exclusivamente possessória."
Em São Paulo, a proposta inicial de uma cláusula genérica
autorizando ação de preceito cominatório para deveres de fazer e de
não fazer acabou vencida. O Código paulista veio a prever somente
hipóteses taxativas de ação cominatória para prestação de fato (arts. 795
e 800). A mesma diretriz foi adotada no Código do Espírito Santo (art.
600). Já o Código do Distrito Federal consagrou regra ampla, autori-
zando o emprego daquela ação para qualquer prestação de fato o
abstenção de ato (art. 573). Nos três diplomas, foi mantido o mecanis-
mo monitório (respectivamente: art. 796; arts. 601 e 602; arts. 574 e
575). Como já se adiantou no item anterior, nos três Códigos previu-
se separadamente o interdito proibitório, para proteção possessória
(respectivamente: art. 619; art. 441; art. 523) - retirando-se da ação
cominatória o caráter interditaI (no Código do Distrito Federal, indi-
cava-se expressamente que a sentença cominatória serviria de título
para subseqüente processo executivo - 'art. 575)."
Bem por isso, merece especial destaque o Código do Ceará, de
1921. Nele mantinha-se a carga interditaI dos preceitos cominatórios
para prestação de fato ou abstenção de ato. Embora disciplinados em
capítulos distintos o interdito proibitório e o preceito cominatório,
aplicavam-se, por expressa disposição (art. 645), as regras daquele a
este (arts. 391-401). O objeto dos preceitos cominatórios era definido
mediante técnica que depois viria a ser repetida no Código de 1939:
um rol de casos específicos (incs. I a VII do art. 645) seguido de
cláusula abrangendo a generalidade dos deveres de fazer e não fazer
(inc. VIII).
Mediante a aplicação ao preceito cominatório das regras do inter-
dito proibitório, ficava clara no diploma cearense a possibilidade de
. cumulação da pena cominada ao réu com' as perdas e danos e a reposição
1",\~,r"..
~
110 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
No Brasil independente, os embargos à primeira tiveram vida mais
longa.
O Regulamento 737, de 18S0, instituído para disciplinar as causas
comerciais. não previa os preceitos cominatórios - que, assim, conti-
nuaram vigorando apenas para as causas cíveis." Por força do Decreto
763, de 1890, o Regulamento 737 passou a ser aplicado em sua maior
parte também aos conflitos não mercantis. No entanto, continuaram em
vigor as disposições legais reguladoras de processos especiais, não
compreendidos no Regulamento (Dec. 763, art. 1.0, par. ún.)," de modo
que a ação de preceito cominatório permaneceu possível no foro civil
(não comercial).
Por outro lado, o Regulamento 737 regulou de modo exaustivo as
hipóteses de detenção pessoal - nenhuma delas funcionando como
mecanismo coercitivo de deveres de fazer e de não fazer. Nessa época,
já se considerava impossível qualquer detenção pessoal em casos não
"expressos em direito"."
Antes, porém, de o Regulamento 737 aplicar-se ao processo civil,
o Conselheiro Antonio Joaquim Ribas realizou a Consolidação das
dísposíções legíslatívas e regulamentares concernentes ao processo
civil, que, aprovada por Resolução imperial em 1876, ganhou força de
lei. Na Consolidação, mantinha-se ainda a ação de preceito cominatório
ou embargos à primeira com dupla finalidade, possessória e pessoal _
autorizando-se, em ambos os casos, a expedição de "mandado
prohibitorio" (art. 769). O duplo objeto de proteção contemplado na
anterior Ordenação - "pessoa" e "coisa" - recebeu configuração mais
ampla: "coisa" e "direitos". Definiu-se que o mandado haveria de ser
"sempre" com cláusula e manteve-se a estrutura procedimental monitória
(arts. 770-772).
Com a atribuição aos Estados, pela Constituição de 1891, da
competência para legislar sobre processo, a ação de preceito comina-
tório como forma de tutela dos deveres de fazer e de não fazer, deixou
de vi~orar em muitos deles. Foi o que se teve com os Códigos de Santa
"" Amaral Santos, Ações, 1." parte, n. 26, p. 110.
"5, Sobre esse dispositivo, vede Bento de Faria (Codigo, nota 2, p. 686), que
apresenta elenco meramente exemplificativo de processos especiais que
permaneceram vigentes.
("l Sobre o tema, vede Bento de Faria, Codigo, n. 245, p. 810.
(32) Este já influenciado pelo Código de Napoleão - conforme indicado na nota 2.
01) Note-se, porém, que nesses casos, [rata. se de ônus estabelecidos pelo direito
material.
ll3TRADiÇÃO JURíDICA LUSO-BRASILEIRA
Ambos desenvolviam-se por procedimento monitório. Na ação
cominatória, o réu era citado para, em dez dias, cumprir dever de fazer
ou de nao fazer, sob a pena contratual, legal ou a pedida pelo autor,
quando nenhuma estivesse prevista. Não cumprindo nem contestando,
seria condenado imediatamente a seguÍr. Contestando, a ação prosse-
guiria com rito ordinário (art. 303). No interdito proibitório, idêntica
estrutura era adotada (arts. 379-380).
Entretanto, no interdito proibitório, desde o início, o juiz expedia
mandado proibitório, segurando o autor da violência eminente, ucom
a cominação de pena pecuniária para o caso de transgressão" (art. 378).
Tal ordem desde logo era eficaz, não se suspendendo com a propositura
de contestação. Tanto que, se no cursoda ação o mandado fosse
transgredido, o juiz imediatamente determinaria a manutenção ou
reintegração de posse (art. 379).
Já na ação cominatória, a contestação afastava, como regra, toda
a eficácia do mandado inicial. Apenas a sentença final, confirmando o
mandado. teria força executiva - e a ser concretizada em subseqüente
processo de execução. Somente em dois casos excepcionais, a decisão
liminar poderia ser desde logo efetivada: nas hipóteses dos incisos VII
e VIII do art. 302, se houvesse perigo iminente e o réu não oferecesse
oportuna caução (art. 304); na hipótese do inciso XI, se verificada, por
perito, a urgência alegada pela União, Estado ou Município (art. 305).
Ademais, apenas em específicas hipóteses existiam adequadas
cominações (v.g., o descumprimento da determinação de reforço de
garantia pessoal ou fidejussória [inc. IV] geraria, em certas hipóteses,
o vencimento antecipado da dívida; a não prestação de contas pelo
devedor [inc. V], acarretaria a imposição da apresentada pelo credor)."
Na maioria dos casos, faltavam adequados mecanismos coercitivos, que
conferissem eficácía à ação comÍnatória.
Recaía-se no regime previsto no Código Civil:32 conversão em
perdas e danos e (ou) a sub-rogação em terceiro, às custas do devedor,
da prestação do fato ou destruição do indevidamente feito, quando
fungíveis estas atividades (arts. 878 a 883). Tais conseqüências, por
guardarem equivalência econômica com a prestação específica preten-
(29) Conforme edição oficial do Codigo do Processo Civil e Commercial. de 1921.
(30) "Art. 302. A ação cominat6ria compete: I - ao fiador, para exigir que o
afiançado satisfaça a obrigação ou o exonere da fiança; II - ao fiador, para
que o credor acione o devedor; III - ao deserdaqo, para que o herdeiro
instituído, ou aquele a quem aproveite a deserdação, prove o fundamento
desta; IV - ao credor, para obter reforço ou substituição de garantia
fidejussória ou real; V - a quem tiver direito de exigir prestação de contas
ou for obrigado a prestá-Ias; VI - ao locador, para que o locatário consinta
nas reparações urgentes de que necessite o prédio; VII - ao proprietário ou
inquilino do prédio, para impedir que o mau uso da propriedade vizinha
prejudique a segurança, o sossego ou a saúde dos que o habitam; VIII - ao
proprietário, inclusive o de apartamento em -edifício de mais de cinco (5)
andares, para exigir do dono do prédio vizinho, ou do condômino, demolição,
reparação ou caução pelo dano iminente; IX - ao proprietário de apartamento
em edifício de mais de cinco (5) andares para impedir que o ~ondômino
transgrida as proibições legais; X - à União ou ao Estado, para que o titular
do direito de propriedade literária, científica ou artística reedite a obra., sob
pena de desapropriação; XI- à União. ao Estado ou ao Município, para pedir:
a) a suspensão ou demolição da obra que contravenha a lei, regulamento ou
postura; b) a obstrução de vales ou escavações, a destruição de plantações,
a interdição de prédios e, em geral, a cessação do uso nocivo da propriedade.
quando °exija a saúde, a segurança ou outro interesse público; XII- em geral,
a quem, por lei ou convenção, tiver direito de exigir de outrem que se abstenha
de ato ou preste fato dentro de certo prazo."
das coisas ao estado anterior (arts. 392 e 393). O processo era monitório,
nos moldes antes examinados (arts. 396-398). O comparecimento do réu,
contudo, não anulava os efeitos do mandado (art. 399)."
112 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
3.4 A ação cominatória no Código de Processo Civil de 1939
Com a reunificação processual aperfeiçoada em 1939, voltou a
existir, como figura geral, o preceito cominatório para a prestação de
fato ou abstenção de ato. Previram-se onze casos. especiais de deveres
de fazer ou de não fazer e uma cláusula de encerramento de sÍstema,
abrangendo a generalidade das prestações legais e convencionais com
esse objeto (CPC/1939, art. 302, I a XII).'o
No entanto, c,?nfirmando-se a tendência que antes já se delineava
(v. item 3.2), conferiu-se tratamento diferenciado para a ação cominarória
para prestação defato ou abstenção de ato (arts. 302-310) e o imerdito
proibitório (arts. 377-380).
"" Amaral Santos, Ações, l.' parte, n. 57, p. 189. Ver também: Frederico
Marques, Instituições, V, n. 1.253, p. /96-197; Pontes de Miranda, Comen-
tários ao CPC (I 939), VI, n. I ao art. 1.005,p. 366; CarvalhoSantos, Codigo
de Processo, X, 0..2 ao art. 1.005. p. 271; De Plácido e Silva, C~mentários,
VI, n. 2.642, p. 272-273. Joaquim Munhoz de Mello, em nota ao PIVCesso
de execução de Liebman (n. 97, nota 1, p. 234), noticiajurisprudência nesse
sentido: RT 443/1 17, 452/72, 455/65; RTf 77/489.
(36) Mendonça Lima, Comentários, VI, n. 1.794, p. 694 ..
"1) V. Carvalho Santos, Código Civil, XI, n. 2 ao art. 880, p. 90.
(3~) V. Barbosa Moreira (Antecedentes ... , p. 35), que noticiava, porém, "reação
muito sadia" dos tribunais, nos últimos tempos de vigência do Código de
1939, n.o sentido de tornar a considerar a data do descumprimento do preceito
como cj.ies a quo da aplicação da sanção. Esse último sempre foi o
entendimento preconizado por autorizada doutrina (assim, Machado Guima-
rães, Comentários, IV, n. 243, p. 228; Ação..., n. XI-XII, p. 317-318).
No entanto, não se pode dizer que esse entendimento fosse pacífico
ou, mesmo, prevalecente. Outra parte da doutrina reconhecia que a multa
ex art. 1.005 não se confundia, na essência, com a indenização. Afirma-
va-lhe, explicitamente, o "caráter coercitivo". Admitia até, mediante
algum esforço interpretativo, a cumulação da multa com as perdas e
danos. Assim, Amaral Santos sustentava que, para as obrigações
infungíveis, no art. 1.005, não se havia reiterado a previsão alternativa
(não cumulativa) de multa "ou" perdas e danos, constante do art. 999 _
norma essa que só se aplicaria às obrigações fungíveis.35
De qualquer modo, e ainda que aceitas essas características,
punha-se grave restrição à função coercitiva da multa do art. 1.005. A
letra da lei era clara ao prever "cominação pecuniária, que não exceda
o valor da prestação" (art. 1.005, parte final). Mesmo que fosse
cumulável com a indenização, faltava à multa o caráter ilimitado _ o
que levou doutrinadores a afirmar a inexistência, no Código de 1939,
de uma técnica de pressão verdadeiramente comparável à astreinte
jrancesa.
36
Tampouco vingou entre nós a fOI:mulação dessa medida
coercitiva pecuniaria de incidência periódica com base nas regras
materiais sobre perdas e danos."
Na jurisprudência, ademais, havia passado a prevalecer o enten-
dimento de que a sanção cominada incidiria a partir do trãnsito em
julgado da sentença - e, não, do descumprimento do preceito comina-
tório. Essa interpretação contribuía para desnaturar ainda mais a ação
cominatória.38
r
i
114 TUTELA RELATIVA AOS OIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
dida, revestiam-se de pOuca eficácia intimidativa, para levar o réu ao
cumprimento voluntário do mandado. Faltava verdadeiro mecanismo
de pressão psicológica, consistente na atribuição de desvantagem maior
do que a que o réu teria se cumprisse espontaneamente o comando (v.
item 5.2.2).
É bem verdade que o próprio Código de 1939, no título reservado
à execução das obrigações de jazer ou não jazer, deu tímido passo,
abrindo margem à engendração de medida coercitiva, por parcela da
doutrina e dos tribunais.
O art. 999, em regra ampla que abrangia as obrigações de fazer
e de não fazer, estabelecia que o descumprimento do preceito executivo
daria ao exeqüente a alternativa de requerer multa ou perdas e danos.
Por outro lado, nos arts. 1.000 a 1.004, previu-se expressamente
a possibilidade da prestação do fato fungível por terceiro, às custas do
devedor - providência já contemplada no Código Civil e que era, de
há muito, admitida na praxe luso-brasileira."
Mas, no art. 1.005, para o "ato que só puder ser executadopelo
devedor", estabeleceu-se que o juiz ordenaria que este o fizesse, no
prazo fixado, "sob cominação pecuniária, que não exceda o valor da
prestação".
Processualistas de escol, como Bueno Vidigal, Machado Guima-
rães e Liebman, reputavam que a "cominação pecuniária" do art. 1.005
teria finalidade indenizatória; não sendo cumulável com outra verba a
tal título. Vidigal, inclusive, considerava que, por ser limitada ao "valor
da prestação" (art. 1.005, parte final), essa verba propiciaria ao credor
resultado pior do que o passível de obtenção pelo credor de obrigação
de fazer fungível, cujo inadimplemento poderia ser ressarcido por
montante não sujeito àquele limite (art. 999).34
(33) O antigo uso dessa técnica sub-rogatória é noticiado, entre.,outros, por
FredericoMarques (Instituições, V,n. l.255, p. 198)e Dinamarco (Execução,
n. 30, p. 69). V. lambém Lobão, Trotado, I, ~ 510, p. 338. O previsto nos
arts. 1.000a l.004 era estendido ao desfazimento do indevidamente feito (v.,
por todos, Pontes de Miranda, Comentários ao CPC [1939], VI, n. I ao art.l.007, p. 384).
(3-1) Bueno Vidigal, Da execução ... , n. 59, p. 158-]59; Machado Guimarães,
Comentários, IV: n. 247, p. 231; Liebman, PlVcesso de execução, n. 97-98,
p. 234-235. Note-se que todos esses autores eram críticos quanto à solução
que reputavam ter sido adotada pela lei.
TRADiÇÃO JURÍDICA LUSO-BRAStLEIRA 115
116 TUTELA RELATIVA AOS DrREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER TRADIÇÃO JURíDICA LUSO-BRASILEIRA 117
3.5 Supressão da cominatória no Código de Processo Civil de 1973
No Código de 1973, a ação cominatória não subsistiu naquilo que
tinha de essencial: comando para fazer oü não fazer, em processo de
estrutura monitória.
Entre as hipóteses de cabimento de ação cominatória. no Código de
1939 (art. 302, I a XII): a) parte delas simplesmente deixou de existir e
merecer qualquer tutela, eis que as regras que as previam tinham
inclusive conteúdo de direito material, ao estabelecer deveres de fazer
ou de não fazer não contemplados em outros dispositivos do ordenamen-
to (incs. II, li e X); b) outras duas passaram a ser tuteladas por "ações
especiais" (inc. Y: prestação de contas; inc. XI, no que tange à pretensão
do Município de suspender ou demolir obra que contravenha lei, regu-
lamento ou postura: nunciação de obra nova); e c) a maioria passou a ser
tutelada pelo procedimento comum do processo de conhecimento."
E, no processo comum de conhecimento, a conjugação dos arts.
287, 644 e 645 do Código de 1973 não autorizava resposta diversa
acerca do desaparecimento da "ação cominatóriaH - ainda que, sobre-
tudo no foro, essa denominação tenha continuado a ser eventualmente
empregada para a demanda que contivesse pedido nos termos do
primeiro de tais dispositivos (v. item 17.1). O art. 287 apenas possi-
bilitava que na inicial se pleiteasse o estabelecimento de multa para o
"descumprimento da sentença" (art. 287, parte final). Nesse caso, a
multa era fixada na "sentença, que julgou a lide" (CPC, art. 645) - e
não em uma decisão liminar ou interlocutória. A multa haveria de ser
pedida no começo do processo, portanto, para ser deferida e fixada em
eventual sentença de procedência do pedido - e para passar a incidir
apenas no momento da execução desse provimento. Isso fica bem claro,
inclusive, pela remissão que o ar!. 287 faz aos arts. 644 e 645 -
constantes do Livro II, "Do Processo de Execução".'o
(.1'1) Conl1ra-se o levantamento feito por Calmon de Passos, Comentários, III, S.
ed., n. 132, p. 182.185.
(~U) Sobre o tema, V., entre outros: W. Moreira Pimentel, Comentários, IlI, nota
ao art. 287, p. 178-179: OvídioB. da Silva,Curso, lI, ~ 57, p. 103; Amilcar
de Castro, Comentários, VIII, itens 251 e 252, p. 187-188; G. Cribari,
Execução específica ... , n. 1-6, p. 47-53.; Amaral Santos, Primeiras linhas, n,
n. 422, p. 157. Em jurisprudência, ver, por todos, o acórdão do STF no RE
85.933-RJ, V.U., reI. Min. Cunha Peixoto, j. 14.06.1977, em RTl 89/556.
:j
A falta de contestação pelo réu passou a ensejar apenas a revelia,
com a eventual ocorrência de seu efeito principal (art. 319: presunção
de veracidade dos fatos narrados pelo autor). Mas, mesmo quando há
o efeito principal da revelia, a conseqüência que disso advém (a
possibilidade de julgamento antecipado da lide) não se confunde com
a sentença que, AO procedimento da cominatória, apenas confirmava a
injunção inicial contra o réu inerte.
É bem verdade que finalmente se instituiu inequívoca medida de
coerção: multa diária, que doutrina e jurisprudência vieram a reputar
aplicável às obrigações fungíveis e infungíveis, ilimitada e cumulável
com as perdas e danos (v. itens 9.1,9.3.3 e 9.4). Mas desapareceu a
possibilidade de um comando initio litis acompanhado de medida
coercitiva. Sob esse aspecto, o Código de 1973 acabou consagrando
aquela tendência jurisprudencial que já se esboçava sob a égide do
Código de 1939, no sentido de que a multa só começaria a incidir
depois do trânsito em julgado. 41
Para todos os casos em que era indispensável uma tutela preven-
tiva (que, de resto, tampouco era normalmente conseguida através da
antiga ação cominatória) - o que quase sempre ocorre no ãmbito dos
deveres de abstenção - passou-se a utilizar o processo cautelar." Restou
superada dúvida acerca do caráter exemplificativo do art. 799, de modo
que o poder geral de cautela também embasa a imposição da prática
de atos, e não só sua abstenção." No entanto, para o processo cautelar
faltava um adequado sistema de mecanismos coercitivos, que assegu-
rassem a plena efetivação de seus provimentos. Ficava descartada, por
exemplo, a aplicabilidade da multa diária - cabível, segundo o
entendimento majoritário, apenas na execução da sentença de ação
principal (v. item 15.10.2). Ademais, havia a controvérsia acerca da
(-11) V. Barbosa Moreira, Tutela sancionatória ... , n. 8, p. 28-29; Ada Grinover, A
tutela preventiva ..., n. 3, p. 75.
(-1~) v., por todos, Barbosa Moreira, A tutela específica do credor ... , n. 11, p. 42.
(-H) Vede, por todos, Galena Lacerda, Comentários, VIII-I, n. 33, p. 96-98, n. 37,
D, a, p. 126. No minucioso exame, feito por Lacerda, de direitos passíveis
de proteção mediante medida cautelar atípica, no direito' público e privado
(n. 34-39, p. 98-144), evidencia-se que a ampla maioria dos casos envolvia
a antecipação de tutela final concernente a um fazer ou não fazer. Conferir
também Barbosa Moreira, Notas ... , n. 7, p. 39-40, e Moniz de Aragão,
Medidas..., 'n. 8.3, p. 48-49.
possibilidade do emprego da medida cautelar para o adiantamento da
tutela do processo principal (item 15.10.1).
Continüaram, porém, existindo ações especiais destinadas à tutela
de deveres de fazer e de não fazer, inclusive em caráter preventivo, fiéis
ao antigo modelo interditaI: interdito proibitório, manutenção de pOSse,
reintegração de posse, nunciação de obra nova etc. Dessa circunstância,
duas constatações são extraíveis. Primeira: continuava a se reconhecer
a aptidão de o juiz ordenar a prestação de fatos positivos e negativos,
tutelar preventivamente e antecipar tais tutelas. Apenas se limitava o
desempenho de tal poderio a campos restritos e especialíssimos. E a isso
ligava-se a segunda constatação. As posições jurídicas que recebiam tal
proteção eram eminentemente patrimoniais. Faltava idêntica Proteção
aos direitos personalíssimos, especialmente no terreno das relações
estritamente privadas (na esfera pública, havia, quando menos, os
instrumentos de jurisdição constitucional das liberdades - v. item 3.6).
Portanto, era grande a lacuna no sistema de tutelas.
As alterações impostas, pelos Códigos de 1939 e 1973, ao
mecanismo de tutela dos deveres de fazer e de não fazer representaram
o ápice da quebra da orientação diferenciada que inicialmente
peculiarizou o processo lusitano (e, depois, o brasileiro). Essa orien-
tação - não parece exagero afirmar - foi retomada(ainda que agora
sob outras roupagens) com os sucessivos reforços à tutela relativa a
fazer e não fazer (Lei da Ação Civil Pública [7.347/85], Estatuto da
Criança e do Adolescente [L. 8.069/90], Código de Defesa do Consu-
midor [L. 8.078/90], Lei contra Abuso de Poder Econômico [8.884/
94] ...) - que culminaram no atual ar!. 461. É o que se buscará
demonstrar no curso deste trabalho.
em que o "processo civil" é campo de solução das controvérsias
eminentemente privadas, reservando-se as causas de direito público
precipuamente ao "contencioso administrativo". A jurisdição "civil" é
assim qualificada em contraposição à jurisdição "criminal" - e abrange
. toda e qualquer causa alheia à persecução penal (e à proteção contra
# esta), seja de direito público ou privado.
E, no âmbito do controle dos atos do Estado, de há muito vigoram
~ instrumentos jurisdicionais tendentes à tutela específica de deveres de
. fazer ou de não fazer, inclusive passíveis de utilização preventiva
(habeas corpus, mandado de segurança, ação popular empregada em
caráter preventivo ...). Daí que, na tradição processual civil brasileira,
mesmo depois de minorado o alcance dos interditos provenientes do
direito comum lusitano, continuaram vigendo outras tantas hipóteses
de emanação de ordens pelo juiz, destinadas a impor condutas ativas
ou de abstenção.
É interessante notar que a instauração de tais instrumentos no
direito brasileiro inspirou-se não apenas no modelo anglo-saxônico do
habeas corpus e de outros writs. O acolhimento desse modelo vingou
precisamente por encontrar suporte na "cartas ,de seguro" :"5 na "ape-
lação extrajudiciaf' e em outros mecanismos de tutela interditai
previstos nas Ordenações do Reino. Vale dizer: o mesmo caráter
interditaI, que estava nas origens anglo-saxônicas do habeas corpus,
fazia-se ainda presente na ordem processual brasileira (então, ainda
ligada à lusitana), quando, em rS32, o Código de Processo Criminal
expressamente previu a medida, com o nome cunhado pelos ingleses46
Aliás, a dimensão preventiva que .0-habeas corpus brasileiro passou
119TRADiÇÃO JURÍDICA LUSQ-BRASILEIRA
'1-
TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER118
3.6 O acentuado caráter público do processo brasileiro _ A jurisdi-
ção constitucional das liberdades - A teoria brasileira do habeas
corpus e a teoria da posse dos direitos pessoais
Também é contrastante, em face dos ordenamentos europeus
continentais, o marcante traço publicista do processo "civil" brasilei-
ro.44 Não vigora entre nós sistema de jurisdição bipartida ("dúplice"),
<,-I, V.GalenaLacerda,Comentários, VIII-I,n. 32,p. 94-95: CândidoDinamarco,
A instrumentalidade. n. S:'p. 49-51, e nota 23 ao Manual, I. de Liebman (n.
18, p. 33); Araken de Assis, Cumulação, n. 18, p. 78-79, entre outros.
,<s, ardo Afonsinas, liv.V,ti!. 58; ardo Manuelinas,liv.V,ti!.44; ardo Filipinas,
liv.v, ti!. 129.
(46) Na História e prática' do habeas corpus, Pontes de Miranda, acerca das
"cartas de seguro", observa que "esse remédio - mais do que todos os
interditos de liberis exhibendis e de homine libero exhibendo - nos preparou
para recebermos, em 1832, dos ingleses, o remedial mandatoTJ; writ (... ). Ele
mesmo tem caracteres essenciais dos interditos" (~ 45, n. 3, p. 144). No
Tratado das ações, VI, depois de citar. as já mencionadas regras do título 78
do livro lU das Ordenações Filipinas e seus precedentes, acerca da "apelação
extraju.dicial", afirma: "O que, depois, por influência da terminologia inglesa
chamamos 'habeas corpus', e o que se denomina 'mandado de segurança',
lá estavam,em conjunto" (~4. n. 4, p. 21; v. também~ 7, n. 2, p. 44-46).
120 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER TRADIÇÃO JURíDICA LUSO-BRAStLEIRA 121
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também a ter, a partir de 1871 (L. 2.033), nem lhe era inicialmente
atribuída no direito inglês, mas estava presente nas "cartas de seguro"."
Recai-se, assim, na constatação, antes feita, darelevãncia da sobrevi_
vência dos interditos em nossa tradição' processual."
Durante o Império, embora limitado a garantir a liberdade física,
o habeas corpus foi empregado não apenas no campo do direito
criminal, no combate à persecução penal indevida, mas também na
esfera civil. Assim, Pontes de Miranda cita como exemplos dois
interessantes acórdãos em que se concedia ordem para assegurar a
liberdade de escravos libertos através de cartas de' alforria duvidosas
- remetendo as partes interessadas às vias ordinárias, para provar que
o ato de libertação havia sido indevido.49
(47) V. Ada Grinover. A tutela preventiva..., n. 4, p. 76-77.
H8) Em obra cuja primeira edição data da década de 1930, Castro Nunes
ressaltava a peculiaridade de que se revestia a vigência do mandado de
segurança e do habeas corpus no nosso sistema: "No direito continental
europeu a restauração do direito individual violado por ato do Poder Público
se opera, em regra, sob a forma reparatória. Não se admitem injunções contra
a administração"(Do mandado, n. 22, p. 57). Depoisde mencionaralgumas
poucas exceções, todas posteriores à Primeira Guerra (n. 22, p. 57-58),
destacava o amparo espanhol: "A Espanha é uma caso à,parte. O amparo da
Constituição republicana de 1931 tem raízes profundas no velho direito
aragonês. Não é instrumento do contencioso administrativo; vai além, é o
habeas corpus ibérico, transportado para o México e para o Salvador, onde
se aclimou, e de onde voltou à pátria de origem" (n. 22, p. 58-59). E, em
nota de rodapé, frisava que o amparo mexicano "tem suas raízes históricas
no fuero de manifestación, misto de interdito e habeas corpus, que visava
principalmente à ação exorbitante dos juízes e dos particulares, nos atentados
à pessoa e aos bens. Com esse caráter passou para o México e outras
repúblicas de origem ibérica" (n. 22, nota 18, p. 58; v. também Buzaid, 'luicio
de amparo'..., n. 14, nota 54, p. 48-49). Nota-se assim que, a exemplodo
ocorrido no Brasil, o estabelecimento do amparo como instrumento de
"jurisdição constitucional das liberdades" deveu-se em muito aos resíduos de
tutela interditai do direito comum - e não apenas, como por vezes se supõe,
às influências do direito constitucional norte-americano sobre as nações
latino-americanas. Aliás, no que tange ao habeas COlpUS brasileiro, sua
instauração em nossa ordem foi mesmo allterior a tal influência (quanto a
isso, confira-se em Pontes deMiranda, História, S 57. p. 176: "não o bebemos
nos Estados Unidos, maS',diretamente, na Inglaterra").
História, ~ 51, n. 1, p. 154-155.
:{
Mas foi sob a égide da Constituição de 1891 que o habeas corpus
pôde parcialmente assumir o papel de instrumento mais amplo de tutela
específIca relativa a deveres de fazer ou de não fazer. A medida ganhou
o status de garantia constitucional. O dispositivo que a previa valia-se
de redação extremamente ampla (art. 72, 9 22 - "Dar-se-á habeas corpus
'i sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer
violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder"). Não havia, na
1 fórmula constitucional, nenhuma restrição do instrumento à tutela da
í- liberdade de locomoção. Daí o surgimento de três correntes de entendi-
mento acerca do alcance do habeas corpus em nosso sistema.5O
Para a primeira delas, a garantia em exame poderia ser empregada
na defesa de qualquer direito - e não apenas da liberdade de locomoção
- ameaçado ou afrontado por ilegalidade ou abuso de poder, eis que
o texto constitucional não estabelecera nenhuma limitação quanto ao
seu campo de abrangência, nem mantivera a fórmula mais restrita antes
empregada. Foi a "teoria brasileira do habeas corpus", que teve em Ruy
Barbosa seu principal formulador e conferiu à medida conotação de
remédio geral, peculiar em relação a outros ordenamentos.sl Há notícia
de julgados que, adotando essa tese, concederam habeas corpus para
combater indevidoscancelamentos de matrículas em escola, assegurar
a realização de comícios eleitorais, possibilitar o livre exercício de
profissão, fazer circular jornaL." Tratou-se, sem dúvida, de um dos
mais interessantes capítulos da experiência constitucional brasileira.
Através de interpretação inovadora em relação à tradição histórica do
instituto do habeas corpus, porém compatível com a letra da Consti-
(50) Sobre as três correntes, vede Pontes de Miranda, História, S~ 58 a 62, p. 180
e seguintes, 9 72 a 74, p. 227 e seguintes.
(51) A tese foi defendida por Ruy Barbosa sobretudo em pareceres, petições,
discursos e artigos na imprensa. Parte dessas manifestações está compilada
nos seus Com.entários à Constituição (vol. V, comento ao art. 72, 9 22.°, esp.
p. 501-512e p. 527-532).VedetambémPontesde Miranda,História, ~ 58,
~. 2, b, p. 180-182;OrlandoBilar, Presença..., IV, n. 3, p. 218-219.
(52) Confira-se o segundo grupo de julgados citados por Seabra Fagundes, em O
controle dos atos, n. 105, nota 1, p. 253: menciona-se inclusive ordem obtida
pelo próprio Ruy Barbosa para., como parlamentar, poder publicar seus
discu~sosno Congresso também em outros jornais, que não o Diário Oficial.
Vede,também, STF, HC 3.187, j. 11.05.1912(cit. por Pontes de Miranda,
História, -~ 58, n. 2, b, p. 182).
volume da História do Supremo (1899-1910). descreve em detalhes a
concessão, por aquela corte, de habeas corpus para reposição do governador
doAmazonas (HC 2.950,j. 15.10.1910). O acórdão foi relatado peloMinistro
Pedro Lessa. que aplicou a teoria intermediária ora mencionada (História do
Supremo, capo IX, p. 161 e seguintes). Outros exemplos de julgados do STF
representativos da fase inicial da aplicação dessa teoria são dados pela autora
no capo X da mesma obra (letra 11, p. 198 e seguintes).
(57) V.Afonso Arinos de Mello Franco, Curso, lI, n. 260, p. 166-167; Pontes de
Miranda, História, ~ 75, p. 239-241; OrlandoBitar,Presença..., IV, n. 5, p. 220.
(5S) Assim foram, por exemplo, as propostas de Alberto Torres, em 1914, e Muniz
Barrelo, em 1922 (v. CasIro Nunes, Do mandado, n. 2-4, p. 20-28; Celso
Barbi. Do mandado, n. 58, p. 33; Buzaid, Do mandado, I, n: 15, p. 28-29).
(5') A esse respeito, vede. por todos, Castro Nunes, Do mandado, n. 26, p. 65,
e n. 198, p. 405-406.
(60) Em artígos publicados no Jornal do C0111171ercio.em 1896. reunidos em livro
intitulado Posse de direitos pessoais (1900, reeditado em 1986).
A reforma constitucional de 1926 veio a encerrar os debates, ao
restringir explicitamente o campo de abrangência do habeas corpus à
proteção da liberdade de locomoção em si mesma.57
Com isso, os demais direitos ficaram desamparados de instrumen-
to de tutela célere e eficaz, por certo período. A lacuna só veio a ser
em parte suprida com a criação do mandado de segurança, alguns anos
depois. O suprimento foi apenas parcial porque o instrumento criado
restringiu-se basicamente às relações de direito público (proteção de
direitos contra lesões ou ameaças advindas de atos do Poder Público
ou quem lhe fizesse as vezes) - muito embora várias tenham sido as
sugestões de criação de um remédio especial amplíssimo, que prote-
gesse os direitos públicos ou privados, lesados por atos de autoridade
ou eminentemente particulares, e que não pudessem ser protegidos pelo
habeas corpus em sua conformação tradicional." Como já se viu,
também o mandado de segurança filia-se às origens interditais. E foi
exatamente esse "parentesco" com os interditos que facilitou o pronto
reconhecimento, pela doutrina, do "caráter proibitório ou compulsório
da ordem judicial". nele contida."
Antes, porém, da criação do mandado de segurança, em esforço
interpretativo semelhante àquele da "teoria brasileira do habeas corpus",
retomou-se formulação que já havia sido defendida também por Ruy
Barbosa:60 a "posse de direitos pessoais" (v. item 3.2). Procurava-se
....
123TRADiÇÃOJURiDICALUSQ-BRASILEIRA
-~-,
"" V. Pontes de Miranda, História, ~ 58, n. 2, início e letra a, p. 179-180.
"'l V. Pontes de Miranda, História, ~ 58, n. 2, c, e ~ 59, p. 182 e seguintes.
"" Voto de Lessa no HC 3.567, de 1.°.07:1914 (cit. por Pontes de Miranda
História, ~ 59, n. 4, p. 186). Vede também Orlando Bitar, Presença .... IV, n~
4, p. 219-220.
(56) "Doutrina generosa que. de braços com a de Rui (sic). permitiu, em nova fase,
ao Supremo Tribunal conceder as mais amplas ordens de habeas corpus _
para f7so1ver questões de direito civil (tutela, pátrio poder, investigação de
paternidade, levantamento de interdições); para assegurar a deputados o
direito de publicarem os seus discursos, votos e parecer; para o exercício de
função pública e de mandatos políticos. corno, por ex .• o acórdão n. 2.990,
de 25-1-1911, a favor dos Conselheiros Municipais do D.F. (...); a preten-
dentes ao Governo dos estados para assegurar-lhes a posse e exercício do
car~o,?a presidência; para exercício de profissão; contra a expulsão do
terntono nacional; para que banda de música tocasse em praça pública sem
~onstrangimento policial; para proteger a inviolabilidade de lar contra as
Inspeções sanitárias e devassa particular etc." (Orlando Bitar, Presença .... IV,
n. 4, p. 220). Vede também <s decisões citadas por Seabra Faoundes em O
Controle, n. 105, nota I, p. 252-253. Leda Boechat Rodrigue:, no s~gundo
12i TUTELARELATIVAAOSDIREITOSDEFAZEREDENÃOFAZER
tuição, elaborou-se efici~nte instrumento de proteção a direitos a u
fazer ou não fazer, no mais das vezes, insuscetíveis de adequad~
equivalência pecuniária. .
Outros, apegando-se à origem histórica do habeas corpus, restrin_
giam-no à exclusiva defesa da liberdade de locomoção."
Estabeleceu-se, ainda, tese intermediária, sustentada, entre outros
pelo Mi~i:tro Pedro Lessa, do Supremo Tribunal Federal, e consagrad~
~m declsoes daquel~ _corte. O hab,!as corpus protegeria não só a
lIberdade de locomoçao, mas tambem todas as situações em que a
ofensa a essa lIberdade fosse meio de afronta a outro direito."
Co.n~orme ex~mplo dado por Pedro Lessa, a restrição à liberdade
reli!l.'0sa efetIvada mediante proibição de ingresso no templo seria
a~~avel por habeas corpus; no entanto, esse remédio não poderia ser
utlhzad.o para combater afronta à mesma liberdade de religião, que se ;i
c?ncretlzasse pela destruição de objetos do culto, pois, nessa segunda' ~
hIpótese, não se cogitaria de violação a direito de ir, vir ou ficar."
~am.bém .essa construção interpretativa conferiu ao habeas corpus
slgmficatlvo campo de incidência, não limitado à defesa da liberdade
de locomoção, nem apenas ao estrito controle dos atos públicos."
124 TUTELA RELATIVA AOS DIREITOS DE FAZER E DE NÃO FAZER
assim viabilizar o uso das ações possessórias - de caráter interditai,
mais eficiente do que a via ordinária - em situações alheias à posse
de coisas corpóreas, a fim de. assegurar tutela adequada a direitos que
vinham antes sendo protegidos pelo habeas corpus.6J
A relevância histórica e comparativa de construções como a
"teoria brasileira do habeas corpus" e a "teoria da posse dos direitos
pessoais", para os fins do presente texto, não está apenas na criatividade
demonstrada pelos operadores do direito na busca de suprir lacunas de
tutela. Interessa, sobretudo, a tentativa de estender o campo de
abrangência de tutelas já instituídas.
Os remédios já existiam. Já se reconhecia ao juiz o poder
necessário. Faltava apenas a sua adequada extensão a todas as situação
carentes de tutela. Buscava-se, portanto, uma inovação quantitativa -
e não qualitativa. O juiz civil já expedia ordens; já detinha poderes para
a consecução da tutela específica - ainda que não em âmbito geral. Daí
que a lacuna que se apresentava era significativamente distinta daquela
que se põe, até hoje, em um ordenamento como o italiano, em que se
continua discutindo a própria possibilidade e efetividade (e não a
abrangência) da imposição de um dever de não fazerou de um dever
de fazer infungível (v. item 2.1.5).
(fil) Sobre o tema, confiram-se, entre outros; Bueno Vidigal, Do mandado ..., n.
8, 10, 12e 13. p. 15.18; San Tiago Dantas, Programa, m, p. 50.53; Amaral.
Santos,Ações, 1.' parte, n.,34-35, p. 122-133- além da obra de Ruy Barbosa,
citada na nota anterior.
I
4
PRETENSÕES ABRANGIDAS
PELA TUTELA EX ART. 461
SUMÁRIO: 4.1 O sentido de "obrigações", no art. 461 - 4.2
Deveres cujo cumprimento específico é excluído pelo direito ma-
terial - 4.3 Delimitação dos deveres de fazer - 4.4 Segue. Alguns
exemplos (deveres decorrentes de planos e seguros de assistência à
saúde, concessão mercantil. prestação de serviços públicos. direitos
sociais a prestações estatais) - 4.5 Segue. A exigibilidade em juízo
('~usticialidade") dos direitos fundamentais a prestações positivas
do Estado - 4.6 Segue. Direitos a prestações estatais normativas -
4.7 Deveres de não fazer - 4.8 Segue. O dever geral de abstençãà
- 4.9 O dever de ~mitir declaração de vontade e a tutela ex art. 461
- 4.10' Distinção entre a hipótese examinada no item anterior e o
dever de liberar garantia incidente sobre imóvel - 4.11 Deveres de
fazer e de não fazer internos ao processo - 4.12 Dever de exibir
documento ou coisa.
Cabe delimitar o âmbito das situações substanciais atingíveis pelo
regime de tutela previsto no art. 461. A expressão de que se valeu o
legislador - "obrigações de fazer ou não fazer" - exige vários
esclarecimentos.
4.1 O sentido de "obrigações", no art. 461
Primeiro passo consiste em identificar a acepção legal de "obri-
gações".
Tecnicamente, "obrigação" é conceito menos amplo do que "dever
jurídico". Trata-se de noção assente em sede teórica. Os doutrinadores
destacam a impropriedade do emprego dos termos como sinônimos e
••. ,i-
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