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Greenbatt - Mariavilhosas Possessões

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• 
Maravilhosas Possessões 
omecemos pelo mais famoso 
dos começos: 
U Como sei que ficareis satisfei­
to com a grande vitória com 
que Nosso Senhor coroou mi­
nha viagem, eu vos escrevo esta, 
pela qual sabereis como, em 33 
dias, fiz a travessia das Ilhas Ca­
nárias às Indias coro a frota que 
me foi dada pelos ilustríssimos 
Rei e Rainha, nossos soberanos. 
E lá encontrei numerosas ilhas, 
habitadas por incontáveis pessoas, 
e de todas elas tomei posse para 
Suas Altezas, por proclamação e 
com o estandarte real desfraldado, 
e não fui contradito. À primeira 
ilha que encontrei dei o nome de 
San Salvador, em homenagem à 
Divina Majestade, que maravilho­
samente me concedeu tudo isto; 
os Indios a chamam de 'Guanaha­
ni', À segunda dei o nome de Isla 
de Santa Maria de Concepci6n; à 
terceira. de Fernandina; à quarta 
de Isabel/a; à quinta, de 1sla lua-
Stephen Greenblatt 
na; e, assim, a cada uma dei um 
novo nome." 1 
Assim tem infcic> o célebre relato 
de Colombo de sua primeira viagem, 
O momento, certamente, fixou-se na 
imaginação popular: o grande aven­
tureiro na praia, desfraldando o estan­
darte real e tomando posse do Novo 
Mundo. As palavras de Colombo são 
completadas pelo que sabemos ter-se 
seguido: outras viagens, descobertas, 
a constatação reveladora de que a 
geografia clássica estava errada e de 
que todo um hemisfério novo tinha 
sido descoberto, o violento embate de 
civilizações, o empreendimento mis­
sionário, escravidão e morte em mas­
sa. o imenso projeto de colonização. 
Afora a determinação de retornar. 
Colombo não poderia ter sabido ou 
previsto nada desta história subse­
qüente - o que surpreende. à dis­
tância atual. é quão pouco ele perce­
beu em 1492 de onde se encontrava 
ou do que lhe estava acontecendo, 
Suas palavras foram portanto escritas, 
num certo sentido. como suportes va-
Nola: Esta tradução é de Francisco de Castro Azevedo. 
EstudM HlltdrlC08. Rio de Janeiro, vol. 2. n. 3, 1989. p. 43-62. 
44 ESTUI)()S HISTÓRICOS - 1989/3 
zios de eventos futuros inimaginá­
veis, mas ainda assim sua carta pare· 
ce antecipar e promover o sentido mí· 
tico com que o tempo investiu seu re­
lato. Podemos senti-lo construindo o 
mito já no floreio com que proclama 
"la gran victoria", frase mais apro­
priada em 1492 à conquista de Gra­
nada do que ao desembarque no Ca­
ribe, ' e no termo usado para descre­
ver a dádiva feita por Deus das 
ilhas descobertas: "maravilhosamen­
te".' Eu diria que Colombo tinha um 
interesse bastante consciente no mara­
vilhoso. 
Por que Colombo, que trazia con­
sigo um salvo-conduto e cartas reais, 
pensou em tomar posse de tudo, se 
l1a verdade acreditava que tinha che-
o gado às remotas regiões da (ndia? 
Afinal de contas, Dão ocorrera a Mar­
co Polo, no final do século Xlll, rei­
vindicar para os venezianos quaisquer 
direitos territoriais no Oriente. Tam­
pouco. no século XIV, Sir lohn Man­
deville. que alegava ter-se deparado 
diretamente com as maravilhas das 
Indias, desfraldou uma bandeira em 
nome de uma monarquia européia. De 
fato, no clímax da narrativa de Man­
deville, o cavaleiro e seus companhei­
ros piamente se recusam a recolher 
o ouro e as pedras preciosas que co­
briam o vale pelo qual passavam. Co­
lombo. que muito provavelmente car­
regava consigo os relatos de viagem de 
Marco Polo e Mandevi1le, comportou­
se de maneira surpreendentemente cli­
ferente. 
A diferença pode certamente re­
montar ao fato de que, ao contrário 
de Marco Polo e Mandevi1le, Colom­
bo não era nem mercador ncm perc-
. . -grmo: encOntrava-se em urr: mlssao 
patrocinada por uma nação envolvi­
da com o empreendimento da recon­
quista. Mas tornou-se notoriamente 
difícil determinar o objetivo desta 
missão. O salvo-conduto de Colombo 
parece sugerir que ele se dirige a um 
lugar conhecido - as Indias - para 
tratar de assunto que diz respeito à fé 
ortodoxa.' O original de seu diário 
de bordo desapareceu, mas a trans­
crição de seu contemporâneo las Ca­
sas indica que Colombo fora incum­
bido de ir à cidade de Quinsay -
isto é, Hangshou - "para entregar 
cartas de Suas Altezas ao Grande 
Khan e solicitar sua resposta, que 
trarei de volta".' Ao mesmo tempo, 
as credenciais que Colombo recebeu 
de Fernando e Isabel falam de Co­
lombo como "indo por nossa ordem, 
com alguns de nossos navios e nossos 
súditos, descobrir e ganhar certas ilhas 
e terras firmes nO Mar Oceano" (Jane, 
Ixxii). Esta linguagem - "descobrir 
e ganar" - sugere alguma coisa mais 
que uma viagem diplomática ou c0-
merciai, mas nem os marinheiros nem 
os navios da primeira expedição eram 
apropriados para uma campanha mi­
litar séria, de modo que se toma di­
fícil visualizar que tipo de "ganho" 
os monarcas tinham em mente_ Não 
tenho solução para esses famosos 
enigmas, mas proponho que examine­
mos cuidadosamente a ação relatada 
por Colombo e que consideremos a 
extraordinária medida em que esta 
ação é discursiva. 
A afirmação de uma "grande vitó­
ria" e o desfraldar do estandarte real 
sugerem que estamos prestes a ouvir 
o relato de uma batalha, mas o que 
temos em vez disso é a narrativa de 
uma série de atos de fala: uma procla­
mação (preg6n), pela qual Colombo 
toma posse das ilhas, seguida da atri­
buição de nomes. Esses atos de fala 
- "he tomado posesi6nu, "puse 
nombre" - são-nos tão familiares 
que é difícil encontrar neles algo 
digno de nota. Na realidade, porém, 
eles são estranhíssimos. O desfraldar 
do estandarte real marca a formalida­
de da ocasião; o que estamos teste-
M ARA"! L HOSAS POSSESSÔES 45 
munhando é um ritual legal, executa­
do por homens cuja cultura leva extre­
mamente a sério tanto cerimônias co­
mo formalidades jurídicas_ As anota­
ções do diário de Colombo em 12 de 
outubro fornecem alguns dos detalhes 
do ritual: "O Almirante chamou os 
dois capilães e os outros que tinham 
desembarcado e Rodrigo Escobedo, 
escrivão da frota, e Rodrigo Sanchez 
de Segovia, e pediu que eles prestas­
sem testemunho fiel de que ele toma­
ra posse da ilha - o que ele fez -
para seus soberanos e senhoresl o Rei 
• a Rainha. Em seguida fez as decla­
rações exigidas, que estão registradas 
de maneira mais extensa na prova 
então feita por escrito." 6 Tomar pos­
se é evidentemente a realização de um 
conjunto de atos lingüísticos: decla­
rar, testemunhar, registrar. Os atos 
são públicos e oficiais: Colombo f.la 
c.:omo representante do rei e da rainha. 
e seu discurso deve ser ouvido e com­
preendido por testemunhas competen­
tes e com nome, testemunhas que pos­
sam posteriormente ser chamadas pa­
ra atestar o fato de que o desfraldar 
da bandeira e .s "declarações exigi­
das" ocorreram conforme se alega. E, 
como a cultura de Colombo não con­
fia' inteiramente no testemunho ver­
bal, ele toma a precaução de reali­
zar seus atos de fala na presença do 
escrivão da f rota (pois a f rota que não 
tinha capelão tinha um escrivão), as­
segurando-se assim de que tudo será . .. " escrito e consequentemente tera maIOr 
autoridade. Mas o que são esses atos 
lingüísticos? Para quem e por qual di­
reito estão eles sendo realizados? Por 
que se presume que sejam eficazes? 
Em parte a resposta pode estar na 
estranha rrase ';y no me jué contra­
dicho". Tal frase presumivelmente se 
refere não aos espanhóis - que foram 
chamados para testemunhar e que na­
quele momento dificilmente teriam al­
go a objetar" -, mas aos nativos. 
Mas o que pode semelhante frase sig­
nificar? E possível, suponho, imagi­
ná-Ia como um sarcasmo cínico ou 
uma brincadeira cética. No primeiro 
caso, Colombo estaria se divertindo 
diante da impossibilidade de os nati­
vos contradizerem algo que estavam 
deliberadamente impedidos de enten­
der ou, alternativamentel diante de 
sua impotência para contradizer o 
confisco de suas terras mesmo queti­
vessem entendido perfeitamente a pro­
c1amaçao. No último caso, Colombo 
estaria zombando da ignorância irre­
mediável dos nativos: "Se o cavalo 
tivesse algo a dizer, ele diria.H Porém, • raramente em seus escrllOS, ou nun-
ca, Colombo parece mostrar-se cínico 
, . . . . ou cetlco, e mUIto menos o sena aqUI, 
no momento de narrar O evento cen­
trai de toda a sua viagem. Devemos 
pressupor que ele escreve com since­
ridade e que está levando a sério o 
fato de não ser contradito. Tal fato 
seria importante para a Espanha esta­
belecer a base legal de suas reivindi­
cações sobre as terras recém-desco­
bertas, pela "escolha voluntária" dos 
habitantes originais - ou seja. se 
esses habitantes desejavam de fato 
transrerir o título de suas terras e pos­
sessões para os espanhóis, deveria ser­
lhes permitido fazê-lo. A base legal 
para semelhante transação encontra­
se no direito romano, no qual, de 
acordo com as lnstilutiones de lusti­
niano, "não existe nada tão natural 
quanto o fato de a intenção do pro­
prietário de transferir sua proprieda­
de para Oulro dever ter o deito que 
lhe é dado".' No Digeslo de lustinia­
no, Ulpiano escreve: "Dizemos que 
urnél pessoa possui sub-I'epticiamente 
quando entra na posse sem o conhe­
cimento daquele que ela suspeita que 
se oporia à sua tomada l quem sibi 
cOlllroversiam jacturwH suspicaba­
tIIr] . . . Ninguém adquire possessão 
sub-repticiamente quando lama posse 
46 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
com o conhecimento ou o consenti� 
menta [sciente aut uolente] do pro­
prietário da coisa," 9. E em sua im­
portante glosa a esta passagem, Acur­
sio, em meados do século XIII, acres­
centa a frase Het non conlradicen­
te". 1. Daí deriva a declaração de 
Colombo "e não fui contradito" ou, 
na tradução latina, "contradicente 
nemine possessionem accep;". 11 
Mas como se pôde pensar que se­
melhante princípio se aplicava a este 
caso? Por que se deveria pensar que 
palavras pronunciadas em uma lín­
gua que os nativos obviamente ja­
mais tinham ouvido antes constitui­
riam um alo de fala válido, transfe­
rindo suas terras para aqueles cujos 
sinais visuais absolutamente incom­
preensíveis - uma cruz. duas coroas, 
as letras F e V - estavam impressos 
nas bandeiras espanholas? Por que se 
deveria pensar que os nativos seriam 
capazes, naquelas circunstâncias, de 
assentir ou contradizer? 1! 
Penso que a resposta pode estar no 
extremo formalismo dos atos lingüís­
ticos de Colombo. Ou seja, Colombo 
está observando uma forma - o diá­
rio, convém lembrá-lo, fala em fazer 
as "declarações exigidas" -, e essa 
forma evidentemente prevê a possi­
bilidade de uma contradição, uma de­
claração contrária àquela pela qual a 
possessão é reivindicada. 11 esta oca­
sião formal que deve ser observada, 
mais do que a contingência para a 
qual a ocasião formal deve originaria­
mente ter sido concebida. Daí que Co-
1ombo não escreveu "os nativos não 
me contradisseram", mas antes anão 
fui contradito". Ele não está preocu­
pado com uma consciência subjetiva 
particular correspondente à proclama­
ção, mas com 8 ausência formal de 
uma objeção às suas palavras. O por­
quê de não existir objeção não tem 
maiores conseqüências; tudo o que 
importa é que não haja objeção. O 
formalismo da proclamação de Ca­
lombo deriva não apenas do fato de 
que ela representa a escrupulosa ob­
servância de uma forma preconcebida 
(portanto, não espontânea ou aleató­
ria), mas também de sua completa in­
diferença à consciência do outro. As 
palavras constituem um sistema fe­
chado, fechado de tal forma que si­
lencia aqueles cuja objeção poderia 
desafiar ou negar a proclamação que 
formalmente, mas apenas formalmen­
te, prevê a possibilidade de contradi­
ção. 13 
De acordo com os conceitos medie­
vais de lei natural, territórios desabi­
tados tornam-se possessão de quem 
primeiro ns descobre." Poderíamos 
dizer que o formalismo de Colombo 
tenta tornar as novas terras desabita­
das pelo esvaziamento da categoria do 
outro. O outro ex.iste apenas como um 
sinal vazio, um zero. Daí. não poder 
haver contradição à proclamação da 
parte de ninguém das ilhas, porque 
somente a competência lingüística, a 
habilidade de entender e falar, possi­
bilitaria alguém a preencher o sinal. 
Existe, naturalmente, toda uma cultu­
ra multinacional - a Europa de onde 
Colombo veio - que tem esta compe­
tência e poderia entender e contestar 
a possessão reclamada. Só que esta 
cultura não se encontra no lugar cer­
to na hora certa. Chegado o momento 
de contradizer a proclamação, aqueles 
que poderiam fazê-lo estavam ausen­
tes, e todas as reclamações subseqüen­
tes chegariam atrasadas, sendo portan­
to inválidas. Quando, quase imediata­
mente após seu regresso, a carta de 
Colombo é publicada em diversas lín­
guas por toda a Europa, ela na verda­
de promulga a reivindicação da Es­
panha e afirma que o momento da 
contradição havia irrevogavelmente 
passado. O ritual da posse, embora 
aparentemente dirigido aos nativos, 
alcança assim seu pleno significado 
• MARAVILHOSAS POSSESSÕES 47 
em relação às outras potências euro­
péias quando estas ouvem falar da des­
coberta. J; como se, desde o instante 
do seu desembarque, Colombo imagi­
nasse que tudo o que ele vê já é pos­
sessão de uma das monarquias a que 
se oferecera para servir - portugue­
sa, inglesa, espanhola -, e procedes­
se ao estabelecimento da reivindica­
ção correta pelo ato de fala formal 
apropriado. O formalismo tem então 
a virtude de simultaneamente provo­
car e excluir a contradição, tanto no 
presente como DO futuro. 
O formalismo que descrevi é im­
portante como agente discursivo do 
poder de Colombo, mas penso que de­
vemos resistir à noção de que o for­
malismo tem uma poUtica necessária 
e inerente, e que esta poUtica é colo­
ni.lista. De fato, uma geração de­
pois, um formalismo comparável le­
vou o grande teólogo Francisco de 
Vitoria, partindo dos princípios da lei 
natural, a argumentar que os povos 
indígenas não tiveram seus direitos 
respeitados e a desafiar toda a reivin­
dicação espanhola sobre as Indias, ao 
mesmo tempo em que. inversamente, 
uma posição teórica inteiramente 
oposta ao formalismo pode ser utili­
zada para sustentar a reivindicação 
espanhola. Assim, do ponto de vista 
de um historicismo antiformalista, o 
cronista oficial das Indias, Oviedo, 
na verdade despreza a suprema impor­
tância da reivindicação d� Colombo. 
A viagem é celebrada por sua ousadia 
visionária, seu uso sem precedentes 
de instrumentos de navegação, seu 
significado geopoUtico, mas neste 
ponto Oviedo seleciona cuidadosa­
mente histórias destinadas a demons­
trar que a pretendida descoberta é na 
realidade uma redescoberta, que ou­
tros haviam estado lá antes, que Ca­
lombo aprendeu sua rota de um piloto 
moribundo. Acima de tudo, Oviedo 
prova, ao menos para sua própria sa-
tisfação, que as Indias são a mesma 
coisa que as Hespérides, nome tirado 
de Hésperos, duodécimo rei da Espa­
nha em linha direta de Tubalcaim, e 
que portanto "os reis de Espanha têm 
sido senhores das Hespérides durante 
3.193 anos ao todo", "Observe-se o 
cuidado de Deus", declara ele, Hem 
dar as Indias a seus verdadeiros do­
nos!" 15 
Não deveríamos então dizer que as 
palavras não importam, que as táti­
cas discursivas são intercambiáveis, 
que a linguagem não passa de uma 
simples moldura para a realidade 
brutal do poder? Penso que existem 
fortes razões para se adotar este ponto 
de vista: nas gerações que se seguem 
à de Colombo, desaba uma inundação 
de palavras sobre o Novo Mundo, 
ocorrem debates sérios em Salamanca 
e em toda parte sobre a legitimidade 
do domínio espanhol, fazem-se de­
núncias de atrocidades e defesas apai­
xonadas da necessidade da severidade 
militar. Mas que diferença faz tudo 
isto? Toda a miserávelhistória, histó­
ria de uma negação absoluta de con­
sentimento, já não está escrita no pri­
meiro espirro espanhol, com seus mi­
lhões de balas invisíveis? O destino 
dos nativos já não está selado com o 
primeiro sangue inocentemente der­
ramado - "Pois, enquanto eu lhes 
mostrava as espadas, eles as pegaram 
pelas lâminas, cortando-se por igno­
rância"? 16 Esta "ignorância" - pri­
meiro lampejo de 11m desequilíbrio 
decisivo na tecnologia militar - jun­
tamente com vulnerabilidade às doen­
ças européias, iria djzimar os nativos 
do Caribe e fatalmente enfraquecer 
os grandes impérios índios que os es­
panhóis muito em breve encontra­
riam, Dever-se-ia talvez acrescentar 
um outro fato físico brutal: a horrível 
desventura de que a terra do Novo 
Mundo abrigava ouro e que muitos 
dos povos nativos trabalhavam este 
48 P.STUOOS HISTÓRICOS - 19119/3 
ouro transformando-o em ornamentos 
que traziam sobre o corpo para os �s· 
panhóis verem. Nâo resla dúvida de 
que as armas e os micróbios atingi· 
riam de qualquer forma os povos do 
Novo Mundo, mas sem o ouro as for­
ças destrutivas leriam agido mais len­
lamenle, podendo, porlanlo, haver 
tempo para a formação de uma de· 
fesa. 
Do alto desla superioridade. as pa· 
lavras parecem meros disfarces para 
as ações espanholas e as conseqüên­
cias físicas dessas ações. As teias do 
discurso deveriam ser rasgadas e des­
cartadas para se encarar resolutamen­
le o lerrível significado de 1492 e de 
suas conseqüências: espadas e balas 
transpassando carne nua e micróbios 
matando corpos carentes das imunida­
des necessárias. Sou professor de li­
teratura e portanto, por treinamento 
e impulso, hostil à semelhante argu­
menlação, mas acho muito difícil des· 
considerá-Ia. As palavras no Novo 
Mundo parecem sempre seguir o ras­
tro dos eventos que por sua vez se­
guem uma lógica terrível, lolalmenle 
diferente dos frágeis significados que 
elas constr6em. No enlanto, se somos 
assim for�ados a abandonar o sonho 
da onipotência lingüística. a fantasia 
de que compreender O discurso é com­
preender o evento, não somos ao mes­
mo tempo compelidos a, ou sequer 
nos é perm:lido. descartar completa­
mente as palavras. De fato, se os mi­
cróbios permanecem inteiramente fo­
ra do alcance do discurso da Renas­
cença, as outras forças que citamos 
como faLOS brutais de maneira nenhu­
ma deveriam ser naturalizadas. A pos­
se de armas c a vontade de usá·las 
contra povos indefesos são assuntos 
cullurais intimamente ligados ao dis­
curso, e. se o outro é um fenômeno 
natural, o desejo ardenle de ouro que 
a ludo consome. seguramente não O 
é.17 Além disso, se cerlos aspectos 
cruciais do encontro europeu com o 
Novo Mundo estão além das palavras 
(e além da compreensao de qualquer 
dos participantes), os próprios euro­
peus se esforçaram para colocar o má· 
ximo possível de sua experiência sob 
O conlrole do discurso. Como pode­
riam eles - ou, no que diz respeito 
a isto. como poderíamos nós - agir 
de outra maneira? IK E não é apenas 
como uma tentativa fútil de compre­
ender o inimaginável que este discur­
so pode interessar-nos, mas também 
como um instrumento e como um fim 
de império. 
Voltando à proclamação inicial de 
Colombo, se não há nenhuma neces­
sidade teórica para seu formalismo. 
nenhuma política inerente e nenhum 
determinante, existem não obstante 
razões estratégicas para a presença do 
formalismo como uma força model.­
dora do discurso. Este discurso, como 
vimos, capacita Colombo a encenar 
um ritual legal que depende da possi­
bilidade formal de contradição sem 
de fato permitir semelhante contradi-- . . . çao; ou seja, capaclla-o a esvaziar a 
existência dos na ti vos, recon hecendo 
ao mesmo tempo oficialmente que eles 
exjstem. Mas este paradoxo simples­
mente não acaba por esvaziar o pró­
prio ritual legal? Nao Iransforma em 
chacota a base sobre a qual Colombo 
rundamenta a reivindicação espanho­
la sobre as [ndias? O ato de fala fun­
dador de Colombo no Novo Mundo 
é tremendamente "infeliz" em prati­
camenle lodos os senlidos delalhados 
por Austin em How To Do Thi/lgs 
With Words: é falho na detonação, 
na invocação. na aplicaçãu e na exe­
cução. E é difícil acredilar-se que Co­
lombo não tenha consciência dessas 
infelicidades, porque ele sabe muilo 
bem que aqueles não são territórios 
desabitados; na realidade, ele observa 
que eles possuem uma imensa popu­
lação - "gente si" mímero". Ele não 
M ARA V I LHOSAS POSSESSÕES 49 
sabe qual é • sua ordem política. mas 
acredita ter chegado às .. [ndias" -
portanto, deve supor que se encontra 
nas regiões remotas de um grande imo 
pério, em última instância sob o con· 
trole do Grande Khan. " E reconhe· 
cc quase de imediato que mesmo aqui. 
nessas pequenas ilhas com seus habi­
tantes nus vivendo em aldeolas, exis­
te uma ordem política e social de al­
gum tipo. 
Este reconhecimento leva-nos de 
volta " questão de como é possível 
"Iomar posse" de um lal lugar na pre­
sença daqueles que o habilam. A ques­
lão não surgiria caso as terras rossem 
desabitadas, C0l110 não surgiria, pelo 
menos nos mesmos lermos, se se tra­
lasse da conquista de um inimigo re­
conhecido. Em 1500, no relato da 
terceira viagem. Colombo. responden­
do a alaques à sua conduta, tenla re­
formular seu papei. .. Em minha ler­
ratl, escreve ele. "julgam-me como um 
governador enviado à Sicilia ou a 
uma ou duas cidades com governu 
estabelecido, onde as leis podem ser 
plenamente mantidas. sem medo dI.! 
que tudo possa ser perdido:' Esle 
modo de ver a situação. afirma ele, é 
inteiramente inapropriado: .. Devo ser 
julgado como um capitão que veio da 
Espanha às [ndias para conquislar um • povo, guerreiro e numeroso, com cos-
tumes e crenças muito direrentes dos • nossos. um povo que vIve em serras 
c montanhas, sem moradia rixa. e se­
parado de nós; e onde, pela vontade 
de Deus, eu trouxe para O domínio 
do Rei e da Rainha, nossos sobera· 
nos, um outro mundo, com o que � 
Espanha, que anles era chamada po· 
bre. é agora riquíssima.":!II 
A primeira carta é cuidadosa em 
indicar que os ritos formais da legali­
dade foram observados; esta carla, 
escrita em circunstâncias prorunda­
mente diferentes. insiste, por contras· 
te. em que tal observância seria inlei· 
ramente inapropriada. uma espécie de 
meliculosidade teórica, que acaba ca­
locando ludo a perder." Os índios 
receberam aqui os estigmas de fora­
da-lei ou rebeldes; são um povo que . ., . vive nas margens - Slerras y mon-
les, s)'n pueblo osel/lado, ni /lOSO­
Iras". Esta existência marginal c nô­
made, as vidas daqueles que "não 
são nós", não indicam apenas sua dis­
tância da civilidade - indicam a di­
ficuldade de pacificá-los e conlê-Ios. 
ISlo porque a autoridade européia no 
início da idade moderna era a autori­
dade da planície, das cidades mura­
das que poderiam, se necessário, ser 
siliadas e levadas à submissão pela 
fome; as uUloridades centrais temiam 
e odiavam as montanhas. E nalural­
menle, para Colombo, os nativos do 
Novo Mundo nào eram simplesmenle 
como os indômitos habitantes das in­
cultas lerras européias: desde o pri­
meiro dia ele suspeila de algo pior, e 
a suspeita vai se rirmando na cerleza 
de que muitas das ilhas são habila· 
das por canibais. 
Mas em 1492 Colombo desvia-se 
deste l:aminho para apresenl3r um 
quadro muilo diferente de todos os 
nalivos com quem de rala se encon­
tra. Esses mltivos. a bem da verdade, 
não moram em cidades ou povoados . 
n:as habilam pequenas aldeias Cpe­
que,ias poblaciones") e são completa· 
mente inorensivos: "Não têm armas 
de ferro ou aço. nem estão aptos a 
usá-Ias, c não por não serem homens 
bem construídos e de boa estatura. 
mas por serem muito maravilhosa­
mente tímidos (muy temerosos á ma­
,ovilla)." O que torna sua timidez 
maravilhosa? Eles fogem à aproxima­ção dos espanhóis, explica Colombo, 
e "um pai nem mesmo espera por seu 
filho". O exemplo eSlabelece uma nor­
ma de coragem natural. a coragem que instintivamente surge em todos os 
homens para defender sua prole ou. 
50 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
• • mais precisamente, sua prole mascu-
lina. E este instinto natural está inex­
plicavelmente ausente nos ttmidos na­
tivos, inexplicavelmente não apenas 
em relação ao cuidado natural do pai 
por seu filho, mas também em relação 
ao comportamento inteiramente amis­
toso e generoso dos espanhóis. 
lÔ estranho: Colombo acabara de 
tomar posse unilateralmente de tudo 
o que vira em favor do rei e da rai­
nha de Espanha; ele declara, além 
disso, que, "assim que cheguei às In­
dias, na primeira ilha que encontre.i, 
peguei alguns deles pela força, para 
que aprendessem e me dessem infor­
mação' (1: 10)_ Ainda assim, este in­
vasor armado que se apossa de terras 
e pessoas vê suas próprias intenções 
como impecavelmente generosas: "Em 
todos os lugares onde estive e pude 
falar, dei-lhes de tudo que tinha, como 
roupa e muitas outras coisas, sem re­
ceber nada por isto" (1 :8). lÔ carac­
terfstico do discurso de Colombo reu­
nir ações, atitudes ou percepções que 
parecem eticamente incompaHveis, to­
mando. como aqui, tudo com uma 
mão, e dando tudo com a outra. As 
duas coisas estão claramente relacio­
nadas de alguma maneira, mas não se 
chocam diretamente, da mesma for­
ma como existe uma relação não-ex­
pressa e não-reconhecida entre o [ato 
de que os nativos não entendem sua 
língua e o fato de que ninguém con­
tradiz sua proclamação. Suponho que 
seja possível chamar isto de hipocri­
sia, mas o termo sugere uma encens­
ção de atitudes morais que na reali­
dade não são sentidas nos pro[ undos 
recessos do coração. uma autocons­
ciência teatral que me parece comple­
tamente alheia à fé ardente de Co­
lombo. Eu pensaria antes que estamos 
frente a um importante aspecto da 
economia discursiva de Colombo, um 
traço retórico caractedstico daquilo 
que podemos chamar seu imperialis-. -mo cnstao. 
A economia discursiva coloca opos­
tos na mais íntima união entre si, e 
mesmo assim deixa misterioso o' âma­
go de sua relação. Colombo toma pos­
se absoluta em favor da coroa espa­
nhola a fim de fazer uma doação abso­
luta; busca o ganbo telleno a fim de 
servir a um propósito divino; os ín­
dios devem perder tudo para receber 
tudo; os inocentes nativos se desfarão 
de seu ouro por quinquilharias, mas 
receberão um tesouro muito mais pre­
cioso que o ouro; os nativos maus (os 
"canibaisH) serão escravizados para 
serem libertados de sua própria bes­
tialidade. Permitir esses paradoxos é 
uma antiga retórica cristã, que tem 
sua mais famosa expressão inglesa d. 
Renascença nos Sonetos Sagrados de 
/ohn Donne: 
Que eu possa me levantar e ficar 
de pé, ou jogar-me por terra e do­
brar 
Tua força, para quebrar-me, apa­
gar-me. queimar-me e fazer-me 
novo ... 
Toma-me para ti, aprisiona-me, 
porque eu, 
A menos que me escravizes, ja­
mais serei livre, 
Nem jamais serei casto. a menos 
que me possuas. 
A versão de Colombo desta retó­
rica é ao mesmo tempo menos bistri6-
nica e mais paradoxal, uma vez que 
ela não está moldada numa oração ou 
num poema, mas em um relato que 
estabelece a autoridade secular sobre 
terras e povos recém-descobertos: im­
perialismo não é de forma alguma o 
oposto de cristianismo, mas tampou­
co simplesmente se identifica com ele. 
Porque, da mesma maneira que o for­
malismo legal que estivemos vendo, 
a fé cristã pode compatibilizar, posi-
MARAVILHOSAS POSSESSÕES 51 
ções radicalmente opostas: se, em no­
me do cristianismo, a piedosa Rainha 
Isabel podia decretar o uso da força 
contra os índios "onde quer que não 
se fizesse de imediato a conversão à 
santa Fé Católica e o compromisso de 
fidelidade à Coroa"," da mesma for­
ma, em nome do cristianismo, o do­
minicano Bartolomeu de las Casas po­
dia condenar amargamente todo o 
empreendimento espanhol. 
Desde os primeiros momentos, o 
encontro com o Novo Mundo mobili­
za em Colombo anseios de poder, 
status e riqueza, anseios que se colo­
cam em uma desconfortável relação 
com sua religiosidade franciscana, seu 
desejo de converter e salvar, seus so­
nhos apocal!ticos. Seria um erro pen­
sar que se trata simplesmente de de­
sejos opostos � o lado espiritual de 
Colombo em guerra com seu lado car­
nal -, pois toda a realização do dis­
curso do imperialismo cristão consis­
te em representar os desejos como • • converslve,s e em constante processo 
de permuta. Fossem esses desejos real­
mente idênticos, Colombo não teria 
necessidade de articular todas as ma­
neiras em que eles se cruzam dois a 
dois; fossem eles realmente opostos, 
ele não seria capaz de trocar um pelo 
outro. A possibilidade de semelhante 
permuta, enraizada talvez em sua ex­
periência de vida mercantil italiana, 
permeia seus escritos: "Genoveses, ve­
nezianos e todos os que têm pérolas, 
pedras preciosas e outras coisas de va­
lor, todos as transportam para o fim 
do mundo para trocá-Ias, convertê-Ias 
em ouro (para las trocar, convertir in 
oro) . O ouro é o bem excelente. O ou­
ro constitui tesouro, e quem o possui 
pode fazer o que quer no mundo, e 
pode assim levar almas para o Paraí­
so" (2:102-4). Neste momento rapsó­
dico, a conversão de bens em OurO 
desliza liquidamente para a conversão 
e, daí, para a salvação das almas. 
A tarefa retórica do imperialismo 
cristão é então juntar conversão de 
bens e conversão espiritual." Na 
maioria das vezes esses valores são 
simplesmente justapostos por Colom­
bo, como se as energias de um natu­
ralmente penetrassem no outro, mas 
em certas ocasiões seu intercâmbio é 
articulado de maneira mais direta: 
"Dizei a Suas Altezas", escreve Ca­
lombo a seu agente Antonio de Tor­
res, "que o bem .. star das almas dos 
chamados canibais [os nativos que os 
espanhóis escravizaram e embarcaram 
para a Espanha], e também daqueles 
daqui, induziu a idéia de que quantos 
mais forem enviados, melhor será, e 
nisto Suas Altezas podem ser servidas 
da seguinte maneira. Que, tendo visto 
quão necessários são aqui gado e bes­
tas de carga, para apoio às pessoas 
que devem ficar aqui, e na verdade 
para todas essas ilhas, Suas Altezas 
poderiam dar licença e permissão pa­
ra um número suficiente de caravelas 
vir aqui todos os anos e transportar 
o dito gado e outros suprimentos e 
coisas para a colonização do pafs e o 
desenvolvimento da terra, e isto a pre­
ços razoáveis para cobrir custos da­
queles que os transportam. O paga­
mento para essas coisas poderia ser­
lhes feito em escravos, dentre esses 
canibais, um povo muito selvagem e 
apropriado para este propósito, e bem 
constituído e de muito boa inteligên­
cia. Acreditamos que eles, tendo aban­
donado aquela inumanidade, sair-se-ão 
melhor que quaisquer outros escra­
vos, e sua inumanidade eles a perde­
rão imediatamente após safrem de sua 
terra" ( 1 :90-92). 
Bestas de carga serão trocadas por 
bestas de carga: tantos índios por tan­
tas cabeças de gado. No entanto, Co­
lombo não pode se sentir satisfeito 
propondo uma transação puramente 
mercantil, nem é este seu interesse 
mais premente. Aqueles índios identi-
52 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
ficados como canibais serão caçados, 
capturados, arrancados de suas terras 
e sua cultura, embarcados nos navios 
ainda fedendo aos animais pelos quais 
estão sendo trocados e enviados pa­
ra a escra vidão. Mas a transação eco­
nômica, como Colombo a concebe, se­
rá feita para o bem-estar das almas 
dos escravizados: os índios são tro­
cados por bestas para se converterem 
em humanos. Esta transformação não 
os alforriará; ela apenas fará· deles 
excelentes escravos. Contudo, eles le· 
rão conquistado sua liberdade espiri­
tual. No âmagoda transação não está 
a riqueza ou a conveniência, embora 
elas sejam bem-vindas, mas uma me­
tamorfose da inumanidade em huma­
nidade.24 
A relação oculta entre opostos apa­
rentes no discurso cristão de John 
Donne conduz o leitor à contempla­
ção da natureza misteriosa da Encar­
nação; a relação oculta entre opostos 
aparentes no discurso imperialista 
cristão de Colombo conduz o leitor à 
contemplação da natureza "maravi­
lhosa" do Novo Mundo e de seus ha­
bitantes. O assombro suscitado pelos 
canibais é duplo; ele está na estranha 
conjunção de inteligência. e inumani­
da de dos nalivos, e também no estra­
nho poder da escravidão. para huma­
nizar. Mas, como já observamos, não 
são apenas os belicosos canibais que 
despertam assombro. Na carta de 
1500, Colombo deseja que seus leito· 
res pensem nos índios como guerrei­
ros; na carta de 1492, deseja que eles 
sejam considerados tímidos, na ver­
dade maravilhosamente Ilmidos. O 
termo "maravilhoso", que já vimos 
Colombo usar na primeira sentença 
da primeira carta, obviamente apela 
para as expectativas do leitor quanto 
ao gênero de literatura de viagem. 
Mas a timidez neste contexto é uma 
maravilha peculiar, e Colombo refor­
ça sua peculiaridade enfatizando que 
os nativos são "homens bem construí­
dos e de boa estatura". Não estamos 
lidando aqui com uma estranha raça 
de criaturas que não carregam armas 
porque não têm braços, pernas ou 
feições humanas. Os leitores de Co­
lombo estariam bem preparados para 
o monstruoso. O que eles não pode­
riam esperar encontrar é o maravi­
lhoso na timidez humana. Insistindo 
em que eles assim procedam, e por 
isso deslocando o maravilhoso do gro­
tesco para o comum, Colombo induz 
seus leitores a juntarem-se a ele na­
quiio que podemos chamar de um 
ato de esquecimento ideológico. Se al­
guém se lembrasse claramente das 
ações que Colombo acabou de descre­
ver - seqüestro e expropriação de 
terras - seria mui to difícil ver no 
medo pânico dos nativos todo esse 
maravilhoso. 
Colombo não usa o discurso do 
maravilhoso para criar uma amnésia 
momentânea sobre suas ações; ele 
induz uma amnésia momentânea so­
bre suas ações para criar o djscurso 
do maravilhoso. Na verdade, a produ­
ção de um senlido do maravilhoso no 
Novo Mundo está bem no centro de 
virtualmente todos os escritos de Co­
lombo sobre suas descobertas. (IÕ pos­
sível argumenlar que Colombo tives­
se um vocabulário tão pobre que não 
pudesse pensar em outra palavra. para 
descrever suas experiências.) Esta in­
sistência no maravilhoso é geralmente 
tratada como se fosse um simples re­
gistro do que Colombo e seus compa­
nheiros sentiram, como se o discurso 
de Colombo fosse perfeitamente trans­
parente, e seus sentimentos, aqueles 
"naturalmente" evocados por suas 
experiências. Mas a transparência dis­
cursiva é uma ilusão, e os sentimentos 
que chamamos naturais são precisa­
mente aqueles mais intimamente liga­
dos a complexa. estratégias culturais. 
Talvez exista algo como O assombro 
MARAVIL HOSAS POSSESSÕES 53 
puro, a emoção que Fitzgerald elo­
qüentemente evoca ao imaginar os 
primeiros marinheiros contemplando 
o "seio fresco e verde do Novo Mun­
do": "Por um momento transitório e 
encantado o homem deve ter suspen­
dido a respiração na presença deste 
continente, forçado a uma contempla­
ção estética que ele nem entendia nem 
desejava, face a face pela última vez 
na história com algo proporcional à 
sua capacidade de assombrar-se." As 
ironias luxuriantes c românticas de 
The Great Gatsby dependem da evo­
cação deste arregalar primordial dos 
olhos, desta respiração ofegante e sem 
palavras, e, por tudo O que sabemos, 
este momento de intensidade, a parti· 
cularidade empregada e silenciosa da 
visão, deixou sua marca etimológica e 
experimentalmente na maravilla de 
Colombo. Mas neste caso trata-se ape­
nas de uma marca, embutida em um 
desempenho retórico, legal e narrati­
vo, um discurso em que compreensão 
e desejo estão inteiramente implica­
dos. As implicações estão semi-ocultas 
na primeira carta, com sua resposta 
maravilhada à inocência, à beleza e 
ao frescor, mas sua linguagem já se 
encontra carregada de significados es­
tratégicos que subseqüentemente se­
rão explicitados. Em seu relatório ofi­
cial a Fernando e Isabel sobre a ter­
ceira viagem, Colombo escreve que, 
em resposta à "difamação e menos­
cabo da empreitada iniciada" no No­
vo Mundo. porque "não enviara ime· 
dialamente caravelas carregadas de 
ouro", decidira Hvir a Vo�sas Alte· 
zas e fazê-Ias maravilharem·se com 
tudo, e mostrar-lhes a razão que eu 
tinha em tudo" - "y maravil/arme de 
todo, y mostrar/es la raz6n que en 
todo avia" (2:4)." Existe, portanto, 
uma razão polftica e retórica especí­
fica para a produção do assombro: o 
maravilhoso é precisamente o sentido 
que confirmará o poder e a vali dez 
das reivindicações de Colombo COntra 
aqueles que reclamam sinais mais 
tanglveis de ganho. Não suscitar as­
sombro significa sucumbir aos ata· 
ques que lhe são movidos. Assim, a 
produção do assombro não é apena, 
uma expressão do efeito que a via­
gem tivera sobre ele, mas uma estra­
tégia retórica calculada, o desdobra­
mento de uma resposta estética a ser­
viço de um processo de legitimação. 
A estética do assombro não legiti­
ma porém inerentemente a reivindi­
cação da posse. Na verdade, para 
Mandeville, a experiência das maravi­
lhas do Oriente conduz precisamente 
a um senso de despossessão. a uma 
renúncia às certezas dogmáticas. a 
uma tolerância convicta em face da 
estranheza, da diversidade e da opa­
cidade do mundo: "Porque não sabe­
mos a quem Deus ama ou a quem 
Deus odeia."" Por que Colombo, 
cujos interesses são diametralmente 
opostos aos de Mandeville, teria evo­
cado o assombro? Em parte, porque 
o maravilhoso está intimamente liga­
do. na retórica clássica e cristã, ao 
empreendimento heróico. As viagens 
de Ulisses, particularmente, durante 
séculos forneceram ocasião para es­
peculações estéticas e filosóficas sobre 
a relação entre o heroísmo e o desper­
tar do assombro através de uma re­
presentação de maravilhas. Em parte, 
porque existe um "maravilhoso" es­
pecificamente cristão, que identifica 
a autenticidade espiritual com a evo­
cação do assombro." E em parte, 
porque as maravilhas estão insepara­
velmente ligadas, na tradição retórica 
e pictórica, às viagens às !ndias. Afir­
mar a natureza 'fmaravilhosa" das 
descobertas é, mesmo sem que os lu­
crativos carregamentos estejam a bor­
do, sustentar a alegação de haver 
alcançado os lendários reinos do ouro 
e das especiarias. Este é o significado, 
penso eu, da menção de Colombo, na 
54 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
. . ; . pnmetra carts, a uma provmC18 em 
Cuba, que os índios chamam Avan, 
onde as "pessoas nascem com cau­
das" (Jane, 1 :12); 28 tais prodígios 
eram uma verdadeira exigência para 
os viajantes que iam à India. 
Contudo, as obse.rvações que ele re­
gistra para criar O efeito do maravi­
lhoso são, em sua maioria, bem dife­
renies das maravilhas convencional­
mente registradas nas histórias dos 
viajantes. Certa feita, ao largo da cos­
ta do Haiti, Colombo avistou "três 
sereias (serenas) erguendo-se muito 
alto sobre o mar". Mas a descrição 
desses prodígios em seu diário de bor­
do - com toda probabilidade, trata­
va-se de manatis ou vacas-marinhas 
do Caribe - sugere fortemente uma 
resistência à iconografia tradicional : 
"Elas não eram tão bon.itas como são 
pintadas, embora até certo ponto apre­
sentassem uma aparência humana no 
rosto." 2. Em 4 de novembro de 1492, 
Colombo anota em seu diário de bor­
do uma aparente confirmação nativa 
de maravilhas sobre as quais ele deve 
ter andado perguntando: "Muito lon­
ge daqui", contam-lhe supostamente 
os nativos numa linguagem de sinais, 
"existiam homens com umsó olho, e 
outros com cabeça de cão, que ca­
miam carne humana e que. ao mata­
rem um homem, decapitavam-no, be­
biam-lhe o sangue e cortavam-lhe os 
membros genitais." 3D (E possível ima­
ginar-se alguém dizendo isto por meio 
de sinais?) Mas na época em que es­
creve a primeira carta, ele parece mui­
to mais cético: "Nestas ilhas até agora 
não encontrei monstruosidades huma­
nas, como muitos esperariam, mas. 
ao contrário, toda a população é mui­
to bem formada." 0:14) Colombo pa­
rece estar distinguíndo então entre 
monstruosidades e maravilhas: as pri­
meiras são violações vívidas e físicas 
das normas universais; as últimas são 
impressões físicas que provocam as-
• 
sombra. Ele não está pretendendo ex­
cluir a possibilidade do monstruoso, 
mas mostra-se escrupuloso em limitar 
suas afirmações a ter pessoalmente 
testemunhado monstruosidades: o ma­
ravilhoso, ao contrário, ele nota em 
primeira mão repetidas vezes. 
O maravilhoso funciona para Ca­
lombo como agente de conversão: um 
mediador fluido entre o exterior e o 
interior, o espiritual e o ,carnal, o rei­
no dos objetos e as impressões subje­
tivas provocadas por esses objetos, a 
recalcitrante alteridade de um novo 
mundo e o efeito emocional suscitado 
por essa alteridade. Mais precisamen­
te, o maravilhoso registra a presença 
dos temores e desejos de Colombo nos 
próprios objetos que ele percebe e, 
inversamente, a presença em seu dis­
curso de um mundo de objetos que ex­
cede sua compreensão do provável e 
do familiar. Assim, por exemplo, Co­
lombo escreve que uviu muitas árvo­
res bem diferentes das nossas, e mui­
tas delas têm ramos de diferentes ti­
pos, e todos em um tronco, e um broto 
é de um tipo e outro de outro, e tão 
diferentes que isto é a maior maravi­
lha do mundo" ("Ia mayor maravilla 
dei mundo")." "Aqui os peixes são 
tão diferentes dos nossos", anota ele 
na mesma entrada do diário de bordo, 
no dia 16 de outubro, "que é mara­
vilhoso; existem alguns semelhantes 
aos peixes-galos, nas COres mais bri­
lhantes do mundo, azul, amarelo, ver­
melho e de todas as cores, e outros 
pintados de milhares de maneiras; e 
as cores são tão brilhantes que ne­
nhum homem deixaria de se maravi­
lhar e ter grande prazer em olhá-los" 
(p. 72). Como essas passagens suge­
rem, não é simplesmente o reconheci­
mento do incomum que constitui uma 
maravilha, mas um certo exagero. uma 
intensidade hiperbólica, um sentido 
de deleite estupefato. 
MARAVILHOSAS POSSESSÕES 55 
o maravilhoso para Colombo, por­
lanto, normalmente envolve um ultra­
passar das medidas, uma elevação das 
impressões, até elas alcançarem uma 
espécie de perfeição_ Espano/a, escre­
ve ele na primeira carta, lCé infinita­
mente fértil"; suas enseadas estão 
' Iacima de comparação com outras 
que conheço na cristandade"; ela tem 
muitos rios bons e grandes, "o que é 
maravilhoso" (Hque es maravilla"); e 
suas montanhas estão li acima de com­
paração com a ilha de Tenerife" (p. 
4) . " Essas montanhas, contudo, não 
são assustadoras; "todas são belíssi­
mas, com milhares de formas, e todas 
são acessíveis e cheias de árvores de 
milhares de tipos e altas, e elas pare­
cem tocar o céu" (4-6). As árvores, 
foi dito a Colombo, jamlÚs perdem sua 
folhagem, e ele acredita no que lhe foi 
dito, "porque as vi tão verdes e boni­
tas como são na Espanha em maio . . . 
E o rouxinol estava cantando, e outros 
pássaros de mil bares de espécies, no 
mês de novembro" (6). Números gran­
des, particularmente HmilharesH, são 
repetidos como talismãs convencionais 
do assombro, se bem que númerOs 
muito menores provoquem o mesmo 
efeito: "Existem seis ou oito tipos de 
palmeiras, que é uma admiração vê­
las (que es admiración verias) em vir­
tude de sua bela variedade", e e"is­
tem " maravilhosos bosques de pinhei­
ros" (pinares á maravilla). O maravi­
lhoso, como se pode notar aqui, tem 
pouco ou nada a ver com o grotesco 
ou o bizarro. Ele denota, a bem da 
verdade, um certo desvio, um deslo­
camelito ou um ultrapassar do normal 
ou do provável, mas na direção de 
uma deliciosa variedade e encanto. 
Este encanto estende-se, na primeira 
carta, aos nativos. Depois que supe­
raram sua "maravilhosa timidez". os 
nativos "todos trouxeram algo de ca­
mer e beber, que eles deram com ex­
traordinária afeição" (con un amor 
maravil/oso) (p. 1 0). Este amor, Co­
lombo infere, é fortalecido pela con­
vicção de que ele, Colombo, com seus 
navios e homens, veio dos céus; ou 
seja, para os índios, que jamais tinham 
visto grandes navios ou homens vesti­
dos, os espanhóis também eram uma 
maravilha. Mas este reconhecimento 
de um assombro inverso não qualifi­
ca as próprias percepções de Colom­
bo nem torna o maravilhoso um fenô­
meno relativo. Os nativos não come­
tem seu erro por serem estúpidos; 
eles possuem, diz ele, uma inteligên­
cia muito aguda, lide modo que é as· 
sombroso (es maravilla) como eles 
têm uma boa noção de tudo" (p. 30)." 
Todas as suas impressões deliciosas 
combinam-se para Colombo em uma 
única e dominante percepção: "La 
Espanola es maravilla" (p. 7). " 
Nesta frase, o maravilhoso foi ao 
mesmo tempo desvinculado da enu­
meração de particulares bizarros e 
teve seu escopo alargado para caracte­
rizar todo um lugar, um lugar de be­
leza surpreendente e intensa. Olhar 
(mirar) para um tal lugar é assombrar­
se (maravillar). Esta caracterização as­
socia as descobertas ao mesmo tempo 
com o cativante olhar da poesia eró­
tica e com os sonhos do paraíso ter­
restre, e nos anos seguintes essas as­
sociações passam a interessar a Co­
lombo com uma intensidade cada vez 
maior. O mundo não é perfeitamente 
redondo, escreve ele em seu relatório 
da terceira viagem, mas tem antes a 
forma de uma pêra ou uma bola em 
que foi colocado "algo semelhante ao 
bico do seio de uma mulher" (2:30). 
O mamilo do mundo é a terra recém­
descoberta, e todos os sinais apontam 
a localização em seu centro do paraí­
so terrestre. E se esses sinais - s0-
bretudo os grandes cursos de água 
fresca que emanam da terra - não 
apontam para o Eden, se a água não 
vem do paraíso, isto parece, escreve 
56 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1989/3 
Colombo, "ser uma maravilha ainda 
maior (parece aun maior maralii/la), 
porque não creio que seja conhecido 
no mundo um rio tão grande e tão 
profundo" (2:38). A idéia de uma ma­
ravilha maior que o paraíso provoca 
impacto, mas ela surge da única QU­
tra hipótese que Colombo pode postu­
lar para suas observações: "E eu digo 
que, se não é do paraíso terrestre que 
este rio vem, ele se origina de uma 
terra vasta, que se estende para o sul, 
da qual até agora não se teve nenhum 
conhecimento" (2:42). Diante de um 
pensamento tão desconcertante - a 
idéia, com efeito, da América do Sul 
-, Colombo retira-se para o terreno 
mais seguro da terra do IÔden: "Po­
rém eu estou muito mais convencido 
em minha própria mente de que lá 
onde eu disse fica o paraíso terrestre," 
Uma recuperação real do paraíso 
terrestre teria algo a ver com o mira­
culoso, mas Colombo pára um pouco 
antes de semelhante afirmação, como 
faz na maioria de seus escritos. " 
Com efeito, o maravilhoso toma o lu­
gar do miraculoso, absorvendo algo de 
sua força, mas evitando os problemas 
teológicos e comprobatórios inerentes 
à asserção direta de um milagre. Em 
vez de uma afirmação teológica, o ter­
mo marallil/a, como é usado por Co­
lombo, faz uma asserção estética. O 
maravilhoso havia desempenhado des­
de a Antigüidade um papel funda­
mentai na estética européia, papel que 
se intensificou na Idade Média e foi 
exaustivamente teorizado na Renas­
cença. Esta teorização é ao mesmo 
tempo demasiado complexa e dema­
siado tardia para ser explorada aqui, 
mas podemos deter-nos nela durante 
alguns momentos, como um desdobra­
mento, em um registro diferente, das 
implicaçõesdo assombro no discurso 
de Colombo. 
"Ninguém poderá ser chamado de 
poeta", escreve o influente crftico ita-
Iiano Minturno na década de 1 550; 
use não se sobressair no poder de pro­
vocar assombro_" ·· Para Aristóteles, 
o assombro está associado ao prazer 
como fim da poesia, e na Poética ele 
examina as estratégias pelas quais os 
poetas trágicos e épicos empregam o 
maravilhoso para provocar assombro. 
Também para os platônicos o assom­
bro é um elemento essencial na arte. 
pois é um dos principais efeitos da be­
leza. Nas palavras de Platina, "Este 
é o efeito que a Beleza deve sempre 
induzir, assombro e pasmo deleitoso. 
desejo e amor, e um terror que seja 
prazeroso." S7 No século XVI . o neo­
platônico Francesco Patrizi define o 
poeta como O "criador do maravilho­
so", e afirma que o maravilhoso está 
presente quando os homens ficam "es­
tupefatos, arrebatados em êxtase". Pa­
trizi chega ao ponto de considerar o 
maravilhamento uma faculdade espe­
cial da mente, uma faculdade que na 
verdade é mediadora entre a capaci­
dade de pensar e a capacidade de 
sentir. 38 
Na teoria estética da Renascença, o 
assombro está associado à superação 
de grandes dificuldades e a uma es­
tranha mistura de acaso e intenção 
humana (Castelvetro); ou ao espe­
táculo do inesperado e do extraordi­
nário (Robertelli); ou às paixões, re­
veses e descobertas (Veltori); ou à 
reconciliação da unidade e da varie­
dade (Tasso) ; ou a novos e surpreen­
dentes volteios da narrativa (Denores, 
Talenlono); ou aos efeitos do lemor 
reverente e da admiração ligados a 
sentimentos religiosos e, portanto, à 
sublimidade e gravidade ( Patrizi). " 
Virtualmente todas essas calegorias es­
téticas estão implícitas no insistente 
uso que Colombo faz Jo maravilhoso, 
e agora talvez nos encontremos em 
melhor posição para perguntar como 
O termo expressa o ritual legal pelo 
MARAVILHOSAS I}QSSESSÔES 57 
qual Colombo reivindica a possessão 
espanhola das Indias. 40 
Aquele ritual tem seu cenlro, como 
vimos, uma falha, um absurdo. a in­
vocação tragicômica da possibilidade 
de uma recusa que não poderia de 
fato, concebivelmente, acontecer: y no 
me filé cOlltradic/lO. A declaração le­
gal poderia ter lugar dentro do espí­
rilo de um formalismo radical, mas 
esse formalismo deixa em sua esteira 
uma vacância emocional e intelectual. 
um buraco, que ameaça arrastar o lei­
tor do discurso de Colombo em dire­
ção ao riso ou às lágrimas e em dire­
ção ao questionamento da legitimida­
de da reivindicação espanhola." Co­
lombo tenta conduzir o leitor ao as­
sombro, ao senlido do maravilhoso 
que com efeito preenche o vazio no 
centro do rito mutilado da posse. Ime­
diatamente após descrever o rito, re­
lembremos, Colombo declara: " À pri­
meira ilha que encontrei dei o nome 
de Sau Salvador, em homenagem à 
Divina Majestade que maravilhosa­
mente me concedeu tudo isto." A ma­
ravilha do dom divino é aqui ao mes­
mo tempo uma legitimação e uma 
transcendência do ato legal. 
Em uma notável passagem de seu 
Comentário sobre a metafísica de Aris­
tóteles, o mestre de Tómas de Aquino, 
Alberto o Grande, tenta dar uma des­
crição convincente da dinâmica inter­
na do assombro: • 
o assombro é definido como uma 
constrição e suspensão do coração 
causada pelo pasmo diante do apa­
recimento sensível de algo tão por­
tentoso, grande e incomum que o 
coração sofre uma sístole. Portan­
to, o assombro é algo semelhante 
ao medo em seu efeito sobre o c0-
ração. Este efeito do assombro. en­
tão, esta constrição e sístole do co­
ração, brotam de um desejo insa-
lisfeilo mas senlido de conhecer a 
causa daquilo que parece porten-
o o o • toso e Incomum: assim era no lm-
cio, quando os homens, até então 
incultos, começaram a filosofar . . . 
Assim sendo, o homem que fica 
perplexo e se assombra aparente­
mente não conhece. Portanto, o as­
sombro é o movimento do homem 
que não conhece em direção à des­
coberla, em direção ao fundo da­
quilo com que ele se assombra 
para determinar sua causa . . . Tal 
é a origem da filosofia. " 
Obviamente, o assombro não con­
duz Colombo em direção à filosofia, 
mas o conduz. em resposta à dádiva 
portentosa e incomum de Deus, em di­
reção a um alo que, na Idade Média 
e na Renascença, está intimamente li­
gado à filosofia: o ato de nomear. Es­
sa atribuição de nomes certamente tem 
muito a ver com a manifestação do 
poder através de títulos eponímicos 
- daí, Fernandina, Isabella e Isla )ua­
na <em vez de Príncipe luan, pois as 
ilhas tradicionalmente levavam desi­
nências femininas). Mas os dois pri­
meiros nomes - San Salvador e Isla 
de Santa Maria de Concepci6n - su-. -gerem uma vez malS que a asserçao 
de posse, recitada durante décadas na 
recollquista, está ligada, para o impe­
rialismo cristão, à concessão de uma 
dádiva preciosa. E a concessão de uma 
dádiva está ligada por sua vez ao c0-
nhecimento superior, ao conhecimen­
to da verdade. 
O ato de Adão dar nomes aos ani­
mais em Gênesis 2 : 1 9 foi interpre­
tado pelos comentaristas medievais 
como sendo um ato de maravilhoso 
entendimento. Martinho Lutero segue 
uma longa tradição exegética quando 
glosa o versículo da seguinte maneira: 
Aqui mais uma vez somos lembra­
dos do conhecimento e da sabedo-
58 ESTUDOS H ISTÓRICOS - 1989/3 
ria superiores de Adão, que foi 
criado na inocência e integridade. 
Sem qualquer outra iluminação e 
unicamente em razão da excelên­
cia de sua natureza, ele vê todos 
os animais e assim chega a um 
conhecimento de sua natureza que 
pode dar a cada um um nome 
apropriado, que se harmoniza com 
sua natureza. 43 
Semelhante entendimento, continua 
Lutero, está ligado ao poder: " Desta 
iluminação também decorreu, natural­
mente, o domínio sobre todos os ani· 
mais, algo que também está indicado 
aqui, uma vez que eles receberam seu 
nome de acordo com a vontade de 
Adão. Conseqüentemente, com uma 
única palavra ele estava apto a com­
pelir leões, ursos, javaHs, tigres e o • • • • • que maiS eXiste entre os ammaIS mais 
importantes, a fazerem aquilo que es­
tava de acordo com sua natureza" 
(p. 1 19-20) . 
Colombo pode ter pensado que es· 
tava próximo do paraíso, mas sabia 
também que era o herdeiro do pecado 
de Adão, pelo qual, como nota Lute· 
ro, perdemos o paraíso e o poder de 
atribuir nomes primordiais e compelir 
através da nomeação. Além disso, em 
sua carta Colombo deixa claro que en­
controu não um mundo que jamais 
fora nomeado, mas antes um mundo 
de nomes alienígenas: "Os índios a 
chamam de "Guanahani". Seu ato, as­
sim, é o cancelamento de um nome 
ex.istente. Mas por que pensaria Ca­
lombo, em contraste com Marco Pala 
ou Mandeville, em renomear a terra 
que encontrou? Para, diz ele, come­
morar a maravilhosa dádiva do Sal­
vador. O ato de fundação do impe­
rialismo cristão é um batismo. " Tal 
batismo obviamente acarreta o cance­
lamento do nome nativo e, por conse­
guinte, como que torna novo o que é 
batizado: trata-se ao mesmo tempo de 
um apagamento, de uma apropriação 
e de uma dádiva. 
No primeiro encontro, Colombo 
capturou diversos nativos para utilizá­
los como informantes e intérpretes. 
Seis deles sobreviveram à viagem de 
volta à Espanha e, em memorável ce­
rimônia, com Fernando, Isabel e o In­
fante atuando como padrinhos, foram 
batizados. " O mais perspicaz dos na­
tivos, o mais serviçal para os espa­
nhóis, recebeu o sobrenome do pró­
prio Colombo e o prenome de seu pri­
mogênito: foi batizado como Don Die­
go Colón. A magia da renome ação 
estendeu-se ao próprio Colombo: após 
a Descoberta, em lugar de Cristóbal, 
ele passou a assinar suas cartas com o 
nome de Christoferens, o portador de 
Cristo. E, segundo o cosmógrafo Se­
bastian Münster, o rei de Espanha 
disse que Colombo não deveria ser 
chamado de Almirante, mas de Admi­rans, aquele que se admira. " Este 
batismo jocoso ex.prime em pequena 
escala a trajetória que vimos acompa­
nhando: do ritual legal, através da ex­
periência do maravilhoso, ao entendi­
mento místico e ao poder apropriativo 
da atribuição de nomes. A reivindica­
ção da possessão fundamenta-se no p0-
der do assombro. 
Na medida em que a visão de Ca­
lombo se obscureceu ao longo dos 
anos, ele parece ter investido cada vez 
mais suas esperanças de posse no po­
der maravilhoso do nome. Revendo os 
anos passados na busca infrutífera de 
apoio real, ele declara que jamais per­
deu a esperança, pois Deus "falou de 
maneira muito clara dessas ilhas pela 
boca de Isaías, em muitas passagens 
de seu Livro, afirmando que a partir 
da Espanha seu santo nome deveria 
ser-lhes proclamado" (2 :4). O primei­
ro ato de nomeação de Colombo -
San Salvador em lugar de Guanaha-
MARAVILHOSAS POSSESSÕES 59 
Di - foi assim O cumprimento de 
uma profecia b(blica. O tomar novo 
é paradoxalmente a realização do an­
tigo. Se o ato de nomear faz o mundo 
conforme à palavra, Colombo acre­
dita ao mesmo tempo que a palavra 
está de acordo, em última instância, 
com o mundo. Nas palavras da Escri­
tura, Hcomo é seu nome, assim ele 
é" ( 1 Sam. 25:25). 
Em sua última viagem ao Novo 
Mundo, em desespero, rodeado por na­
tivos hostis, "profundamente só, com 
febre alta e em um estado de grande 
exaustão", Colombo adormece e ouve 
11mB "VOZ compassiva" que lhe fala 
sobre seu próprio nome: 
Ú louco e lento em acreditar e ser­
vir a teu Deus, o Deus de lodos! 
Que mais fez Ele por Moisés e por 
Seu servo Davi! Desde que nas­
ceste Ele te teve no mais vigilante 
carinho. Quando Ele te viu em 
uma idade que Lhe agradou, fez 
teu nome soar maravilhosamente 
na terra (lnaravillosalnente hizo 
sonar tu nOlnbre en la tierra). 
Agora, não é o nome divino, mas o 
de Colombo que está no ámago do as­
sombro. E agora, na mente de Colom­
bo e em seu texto, a conjunção da 
lerra, do maravilhoso e do nome pro­
duz uma possessão absoluta, não para 
o rei e a rainha de Espanha, mas ape­
nas para ele próprio. E a voz misteria-
• 
53 contmua: 
As lndias, que são uma parte tão 
rica do mundo. Ele as deu a ti e sa­
mente a ti; tu as dividiste como te 
aprouve, e Ele te permitiu fazê-lo. Das 
barreiras do Mar Oceano, que esta­
vam fechadas com correntes lão pode­
rosas, Ele te deu as chaves; e tu foste 
obedecido em muitas terras e entre os 
cristãos ganhaste uma fama honrada. 
O que mais fez Ele pelo povo de Is-
• 
rael quando o tirou do Egito? O u por 
Davi, a quem de pastor Ele fez rei 
da Judéia? 47 
Por um momento ao menos - um 
momento ao mesmo tempo de perfeito 
assombro e de loucura possessiva -, 
Colombo tornou-se rei da Terra Pro­
melida. 
Notas 
1 . Se/eel Documenls IIlustrating lhe Four 
Voyages 01 Columbus. org, e trad. por Cecil 
fane. Londres, HakJuyl Society, t933, 2.' 
série, N. 70, 2 vais., 1:2. 
2 . Sobre quem Colombo pensa ter obti­
do uma vitória: sobre os índios? sobre o 
poder destruidor do mar? sobre seus detra­
tores na Europa? sobre os geógrafos clás­
sicos e, no fundo, sobre lodo o mundo 
clássico? 
3 . Poderíamos talvez perceber também 
um elemento construtor do mito na força 
simbólica do número de dias - 33 - que 
o relato diz ter demorado 8 travessia. Exis­
te, contudo, alguma dúvida sobre esse 
número, uma vez que a carta in-f6lio erra­
damente transcreve o intervalo como "vinte" 
dias. 
4 . "Millimus in presenciarum nobilem 
virum Chrislophorum Coloo cum tribus 
caravelis arma tis per mada oceania ad 
partes lndie proaliquibus causis el negotiis 
seruicium Dei ac fidem ortodoxe coocer­
oenlibus" (Jane. Ixx). 
5 . The Four Voyages 0/ Christopher 
Columbus, org. e trad. por J . M. Cohen. 
Bahimore. Penguin Books. 1969, p. 12. 
6 . Four Voyages. p. 53. 
7 . Não devemos simplesmente desconsi­
derar a importância para os espectadores 
espanhóis do ritual do convite à contradi­
ção. A submissão formal à autoridade real 
- uma frágil ficção legal - transformava 
o que poderia parecer um selvagem com­
bate corpo a corpo na promulgação da 
ordem. Afinal de contas, desde o princípio 
havia outros capitães que disputavam com 
Colombo o controle da expedição, bem 
como a parte do leão na partilha dos des-• paJOS. 
8 . lustin jan's lnstitutes, org. e uad. por 
Peter 8irks c Grant McLcod, com texto 
em latim ed. par Paul Krueger. Hhaca 
Cornell University Press. 1987, 2 . 1 . 40. Esta 
passagem é citada por Francisco de Vitoria 
em sua brilhante análise de reivindicações 
60 ESTUUOS H ISTÓRICOS - 1<,)89/1 
espanholas (e. oe maneira mais &I!ral, euro­
péias) sobre as (ndias. Ver lames Brown 
Seott. The Span;sh Origin 01 ",terna/ional 
Law: Francisco de Vitoria aI.d His LoUl o/ 
Nations. Oxford. Clarenclon. 1 934, p. xxxiii. 
9 . The Digesl 01 Jus/inlarl. org. e Irad. 
por Ala" Watson do texto em !utim ed. por 
Theodor Mommsen. Philadelphia, Uni ver· 
sity af Pennsylvania Press. 1985. 41 .2 .6. 
l a . Acúrsio. C/ossa ordinária, em Digesl 
4 1 . 2 . 6. Agradeço a Laurent Mayali por esta 
referência. 
1 1 . The Leite, 01 Columbus 0" Ilte Ois· 
c:overy of America. New York. Lenox 
Library. 1892. p. 19. 
12. A ,dutação da reivindicação espa· 
nhola formulada por Vitoria na década de 
1530 merece ser citada: 
"Este título de posse também é insufi­
ciente. Isto torna·se visível. em primeiro 
lugar, porque o medo e a ignorância, 
que viciam qualquer escolha, deviam 
estar ausentes. Mas eles foram signifi­
cativamente operantes nos casos de esco­
lha e aceitação em consideração. porque 
os índios não sabiam o que estavam 
fazendo; mais ainda, eles nào podiam 
ter entendido o que os espanhóis esta­
vam pretendendo. Além disso, vemos os 
espanhóis fazendo exigências com osten­
tação de armas perante um grupo pacf­
fico e tímido. Além disso. uma vez que 
os aborígenes. como foi dito acima, 
tinham senhores e prfncipes verdadeiros. 
o populacho não podia procurar novos 
senhores sem outra causa .razoável, pois 
isto ofenderia a seus antigos senhores. 
Além disso, por outro lado. esses pró­
prios senhores não poderiam designar 
um novo príncipe sem o consentimento 
do populacho. Tendo em vista, portan­
to, que em casos de escolha e aceitação 
como este não estão presentes todos os 
elementos exigidos para uma escolha 
válida. o título sob exame é absoluta­
mente inadequado e ilegal para a posse 
lo! a guarda das províncias em questão." 
1 3 . Deveríamos considerar este aspecto 
dos atos de fala de Colombo como seu "for­
malismo formal", em contraste com O "for­
malismo aberto" que prevê um preenchi­
mento subseqüente da palavra? 
1 4 . Vitoria considera e rapidamente li­
quida com este argumento em relação ao 
Novo Mundo: "Existe um outro título de 
posse que pode ser estabelecido, sentado, 
a saber. aquele baseado no direito de des­
coberta; e nenhum outro tftulo foi antes 
�prcscntado. e foi em razão apenas deste 
titulo que o genovês Colombo fez-se à vela. 
E este pnreçe ser um título adequado, por­
que aquelas regiões que são desertas tor­
nam-se. pela lei das nações e pela lei natu­
ral, propriedade do primeiro ocupante (Inst. 
2 . 1 . 12). Portanto. como os espanhóis foram 
os primeiros a descobrir e ocupar 8S pro­
vincias em questão. eles estão na posse 
legal delas. exatamente como se tivessem 
descoberto alguma região solitária e até 
então desabitada. 
Contudo. não é preciso dizer muito sobre 
este terceiro titulo, porque. como ficou pro­
vado acima. os bárbaros eram os verdadei­
ros donos, tanto do ponto de vista público 
como do privado_ Ora, a regra da lei das 
nações é que o que não pertence a ninguém 
seja concedido no primeiro ocupante, como 
é expressamente afirmado na passagem 
acima citada das lnstitutioues. E assim. 
como o objeto emquestão não estava sem 
dono, não se submete ao título que esta­
mos discutindo . . . Em si e por si [este 
título] não fornece qualquer fundamento ao 
confisco dos aborígenes, niio mais do que 
se fossem eles que nos tivessem descober· 
to" ($colt, xx.iv-xxv). 
15 . Gonzalo Femandez de Oviedo. Gelfe­
rol and Natural History 01 lhe Indies, em 
The Four Voyages 01 Christopher Colum­
bus. org. e Irad. por J . M. Cohen. Balti­
more. Penguill Books. 1969, p. 3 1 e 34. 
16. Bartolomé de los Casas, Digesl 01 
Columbus Log-Book on his First Voyage. 
terça-feira, 1 1 dt: outubro, em The Four 
Voyages 01 Columbus, ed. e transer. por 
J. M. Cohen. Baltimore. Penguin Books. 
1969. p. 55. 
17. Eu acrescentaria que as mortes por 
doença tiveram elas próprias que ser inter­
pretadas. e que por isso foram imediata­
mente vinculadas a teorias concorrentes. 
18. O impulso de colocar a experiência 
sob o controle do discurso é inseparável 
da tarefa de justificação ética c legitima­
ção. As desastrosas doenças epidêmicas que 
arligiram os índios podem. em última ins­
tância. ter-se mostrado um falar histórico 
mais decisivo do que as atrocidades espa­
nholas, mas a preocupação eticamente 
constrangedora é uma avaliação interior 
daquilo que guia as · ações, ou seja, uma 
avaliação de intenções. Devo acrescentar 
que os observadores do século XVI tenta­
ram moralizar as doenças epidêmicas de 
diversas maneiras: como punição de Deus 
pela incredulidade pagã, por exemplo, ou 
como a horrível conseqüência da crueldade 
MARAVILHOSAS POSSESSÕES 61 
espanhola. Essas moralizações podem ser 
entendidas como tentativas de compreender 
e. por conseguinte, controlar imaginativ.a· 
mente o natural. As estratégias pós-i1umi. 
nistas para obter semelhante controle con· 
centraram-se na ciência mais do que na 
polêmica religiosa, e envolveram caract'eris­
ricamente, de um lado, a busca da cura 
(ou ao menos das causas médicas) e. de 
outro, 8 busca de meios para inrJigir a 
doença no outro. 
19 . Não é inteiramente claro quem os 
espanhóis imaginavam ser o Grande Khan 
ou como concebiam seu governo. mas é 
claro que eles imaginavam que havia algum 
tipo de império com uma eSlrullJra de aUlo­
ridade central. 
20. Jane. 2:66. 
21 . Aqui, Colombo lembra Maquiavel. 
descrevendo o que é necessário fazer para 
sobreviver_ 
22 . Ver 8arlolomé de las Casas, Hislory 
u/ lhe Jndíes, Irad. por Andrée M . Col­
lurd. New York. Harper & Row. 197 1 . 
p. 121. 
23. Em relação à paradoxalidade do 
imperialismo cristão, ver a carta sobre a 
terceira viagem: "Eu vim com a missão à 
vossa presença rcal, que sois os mais excd­
sos príncipes cristãos e tão ardentemente 
devotados à Fé e à sua expansão . . . Neste 
afã passei seis ou sele anos de profunda 
ansiedade. expondo. o melhor que podia. 
quão grande serviço poderia ser assim pres­
tado ao Senhor. pela proclamação no 
estrangeiro de Seu santo nome c de Sua 
fé a tantos povos. o que era coisa de grande 
excelência para a impolula fama de grandes 
príncipes e para seu notável memorial. Era 
necessário lambém falar do ganho lemporul 
aí incluído . . . ,. (Jane, 2: I ). 
24. Em "The Boat of Romance and Re­
naissance Epic". em Romance: Getleric' 
Trorrslormotioll }rom Chrétien de Troyes lo 
Cervolltes. org. por Kevin e Mariana 8rown· 
Ice, Hanover e Londres. Uriiversity Press of 
New En8land. 1985. p. 118·202. David 
Quint explora as tensões desla relação. 
Quint argumenta que a tensão central estu· 
va entre um relato arislocnllico das via· 
gens de descoberta e um relato " burguês" 
- o primeiro lllilldo à épica e o úlrimo, ao 
romance. Colombo parece-me combinar 
ambos com um desrespeito ousado pelo 
decoro literário. Devo acrescentar que a 
Rainha Isabel rejeitou em úhima instância 
a proposta de Colombo de escravizar os 
indios e ordenou que aqueles já levados 
para a Espanha fossem devolvidos às suas 
terras. 
25 _ Pode exislir nesta passagem uma con· 
junção extremamente cuidadosa de mora· 
vilha e razão, já que é u m Jugar-comum. 
cujas origens estão em Aristóteles. existir 
uma relação entre o assombro e a filoso­
fia. sendo a primeira, de fala. 8 causa da 
última. 
26. The Travels 01 Sir /ohn Matldeville. 
Irad. e org_ por C. W. R. D. Mosely. Har· 
mondsworth. Inglaterra. Penguin. 1983. 
p. 1 80. 
27 . Ver. especialmente. Baxt'er Halho­
way, Marvels and Commollplaces: Rena;s­
sance Literary Criticism. New York, Ran· 
dom House. 1968. p_ 1 33-51. 
28. Cf. a observação cética de Andrés 
Bernáldez, Que acredita que essas histórias 
sâo contadas por alguns índios zombando 
de outros que vestem roupas (Jane, 1 : 128)_ 
29. Citando em Samuel Eliol Morison. 
AdmiraI O/ lhe Ocean Sea: A Li/e 01 Chris· 
lopher Columbus. Boston , Lillle, Brown and 
Company. 1942. p. 309-iO. 
30. loumal and Olher Documeflls 011 
lhe Lile und Voyages 01 Chrislopher Colum­
bus. trad. e org. por Samuel Eliot Morison. 
New York, Heritage, 1963. p. 88. 
3 1 . Tex.to em inglês em Marisan. p. 72; 
o texto espanhol enconlra·se em Martin Fer­
nandez de Navarrete, org .. Colecci6n de lus 
Viages y Descubrimientos. 5 vaIs. ( 1 825). 
Buenos Aires, Editorial Guarania. 1945. 
1 : 1 15. 
32 . Na verdade o pico mais elevado de 
Tenerife é consideravelmente mais alto que 
o mais elevado pico de Espaiiola. 
33 . Colombo não parece muito interes­
sado em livrar os nativos de suas impres­
sõcs errôneas sobre os espanhóis, embora 
lhes diga que vem de outro reino. c não 
do céu. Quando, na segunda viagem, ele 
explica ao cacique índio que serve 80S go­
vernantes daquele reino. o cacique fica sur­
preso: "E o rndio. muito maravilhado (rnuy 
muruvil/udo), respondeu ao intél-"rete dizen· 
do: 'Como? Este almirante tem outro 
senhor e lhe presta obediênci,,?' E o intér· 
prete dos índios disse: • Ao rei e à rainha 
de Castela. que são os maiores soberanos 
do mundo.' E imediatamente ele contou ao 
c.ncique e ao velho e 8 todos os ou Iras 
índios as coisas que vira em Castela e as 
maravilhas de Espanha. c falou-lhes das 
grandes cidades e fortalezas t! igrejas. e 
das pessoas e cavalos e animais. (' da grande 
nobreza e riqueza dos soberanos e grandes 
senhores. e dos tipos de alimento. c dos 
festivais e torneios que "ira, e das toura· 
62 ESTUOOS H IST6RICOS - 1989/3 
das. e daquilo que aprendera sobre as 
guerras" (Jane. 1 : 154). 
34. Podemos também citar Andrés Ber­
náldez, com quem Colombo ficou ao retor­
nar de sua segunda viagem e 8 quem deu 
informações sobre as descobertas. Bemál­
dez observa o que os espanh6is viram "mais 
de um milhão e meio de cormorões" todos 
juntos no céu e Ficaram assombrados (obie­
ron por marallilla) (Jane. I : 148). Ver. da 
mesma forma, 8 "maravilhosa" cena pasto­
ral da fonle (Jane. 1 : 132). 
35. Vitoria considera a possibilidade de 
um título espanhol de posse sobre as índias 
baseado em uma "dádiva especial de Deus", 
Ele conclui que "seria ariscado dar-se cré­
dito a alguém que aCirma uma profecia 
contra a lei comum e contra 85 regras da 
Escritura, a menos que SUB doutrina seja 
confumada por milagres". Colombo sem 
dúvida proclama de maneira explícita que 
a descoberta das fndias fora profetizada 
por Isaías e outros, mas se mostra caute­
loso em falar em confinnação milagrosa. 
Vitoria não acredita que qualquer pessoa 
tenha afirmado tal coisa. "Assim sendo, 
nenhum desses [milagres] foi aduzido por 
profela. desle tipo" (Sca!!. p. xxxiv). Las 
Casas, contudo, cita Colombo dizendo, sobre 
a descoberta de Trinidad, que o "poder 
sublime de Deus me guia, e de tal maneira 
que Ele recebe muito serviço e Suas AIt"e-­
zas muito prazer, uma vez que é certo que 
a descoberta desta terra neste lugar foi um 
milagre tão grande quanto a descoberta de 
terra na primeira viagem" (Jane 2: I3n). 
36. Citado em J. V. Cunningham. Woear Wonde" Th, Emo/ional Ellec/ o, Sha· 
kespearean Tragedy (1951). Dcnver. Alan 
Swallow. 1960. p. 82. 
37 . Enéada, 1 .6 . 4, citado em Cunnin­
gham. p. 67. 
38. Halhaway, p. 66-69. A apreciação de 
Hathaway sobre Patrizi é tirada em grande 
parte de Bemard Weinberg, A History 01 
Literacy Cristicism ;11 the Ilatian Renais· 
sance. 2 vais. Chicago, University of Chica­
go Press. 1961. 
39. Todas essas posições podem ser 
encontradas em Hathaway, op. ciL 
40 . � importante perceber que este uso 
do termo "maravilhoso" não é exclusivo 
de Colombo - é antes a marca de um 
efeito emocional partilhado e de uma retó­
rica comum. Assim, por exemplo, Dr. Chan· 
ca, que acompanhou Colombo na segunda 
viagem, observa que os nativos " têm muitas 
ferramentas, como machadinhas e macha· 
dos. feitos de pedra, tão bonitos e bem 
feitos que é maravilhoso que eles sejam 
capazes de fazê-Ios sem ferro" (Jane. 1 :68). 
Até mesmo quando Chanca expressa repug­
nância pelos nativos. ele o faz no idioma 
do maravilhoso. "Esse povo", escreve ele. 
"é tão degradado (tan bestial) que não tem 
inteligência suficiente para procurar um 
lugar apropriado para viver. Quanto àque· 
les que vivem à beira d ·água. é maravi­
lhoso o quão barbaramente constroem (es 
maral/illa cuan bestialmente edificon)" 
(Jane, 1 :52). Seria fácil citar numerosos 
outros exemplos. 
4 1 . Nos anos seguintes. as duas cOlsas 
de fato aconteceram: as I'grimas de las 
Casas, de um lado. e, de outro, o riso da­
quelas histórias de índios declarando que 
o Papa era bêbado ou louco para pensar 
que podia se desfazer daquilo que não era 
seu. 
42. Citado em Cunningham, p. 77-78. 
43. Luther's Works, vol. 1 . Lectures on 
G�nesis. caps. 1-5, org. por laroslav Peli­
kan. SI. Louis, Concordia Publishing House, 
1958. p. 1 19. 
44. Ver Rudolf Schnackenburg. Baptisnr 
in lhe Though/ o, S/. Paul. Irad. por G. R. 
Beasley-Murray, New York. Herder & Her­
der, 196�, p. 20: "Dar nome a uma pessoa 
tinha o significado de ligar o batizado 
àquela pessoa, de maneira que o batizado 
lhe pertencesse. Isto é confirmado por exe· 
gese; porque a conseqüência e o efeito do 
batismo 'em nome' de Cristo podem ser 
deduzidos de uma consideração da afirma­
tiva de Paulo: 'Tu pertences a Cristo' ... 
(Devo esta referência a Michael Ragussis). 
45. Morison, AdmiraI, p. 360. 
46. Hildegard Binder Johnson. "New 
Geographical Horizons: Concepts", em 
First Images 01 America; The /mpacI 01 
lhe New World 011 tire Old, org. por Fredi 
Chiapelli, 2 vols. Berkeley, University of 
California Press, 1976, 2:619. 
47. Jane, 2:90-92. A referência às chaves 
é parafraseada da Medéia de Sêneca. 
St'ephen Greenblau é professor do Depar­
tamento de Inglês da Universidade de Ber­
keley, Califórnia e autor, entre outras obras, 
de Renaissance sell'lashioning (Chicago. 
University of Chicago Press. 1980) e Alie· 
gory and representation (Baltimore, lohns 
Hopkins University Press, 1981).

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