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1 O que as pesquisas nos dizem sobre as competências socioemocionais Inúmeras pesquisas já foram conduzidas por especialistas de diversas áreas do conhecimento para analisar a importância das competências socioemocionais para os indivíduos, em vários aspectos. Neste material, você encontrará um resumo de algumas das referências na pesquisa sobre competências socioemocionais, com foco especificamente no papel dessas competências em relação à vida escolar de crianças e jovens. Trata-se de uma seleção realizada a partir dos critérios do eduLab21 quanto aos estudos com maior potencial para orientar práticas pedagógicas e políticas educacionais, mas é claro que não esgotam todas as possibilidades de análises sobre o tema, inclusive porque o interesse de pesquisadores sobre as competências socioemocionais tem crescido e o potencial para novas descobertas ainda é grande. Antes de detalhar alguns desses estudos, é preciso ressaltar que o acúmulo de conhecimento a respeito do desenvolvimento dos estudantes tem sido desigual. Os pesquisadores do eduLab21 concluíram que a análise de aspectos cognitivos é altamente priorizada nos estudos em geral. Entre outros motivos, isso pode ser decorrência de certa dificuldade que havia em mensurar outras dimensões dos atributos humanos e, a partir disso, identificar evidências sobre seu processo de desenvolvimento e sua relação com outros indicadores da vida de um estudante ou um cidadão. Contudo, aprimoramentos recentes nas técnicas de mensuração de características individuais trouxeram novas descobertas. As evidências disponíveis se originam em grupos de pesquisadores com diferentes objetos de estudo e partem de diferentes marcos teóricos, de modo que nem sempre é possível comparar os dados ou conciliar uma única explicação coerente para todos os achados. As primeiras preocupações em torno dessa mensuração de características individuais surgiram nos anos 1960, predominantemente na Psicologia, que buscou explicar as diferenças entre os indivíduos, porém sem enfatizar as consequências de cada uma no desempenho educacional, na inserção no mercado de trabalho, na satisfação profissional, na qualidade de vida e no convívio familiar, por exemplo. Recentemente, economistas, neurocientistas, educadores e os próprios psicólogos vêm expandindo os domínios dos estudos, auxiliados pelo desenvolvimento metodológico e pela maior disponibilidade de dados. Muitos estudos voltam-se a identificar como o conjunto das competências socioemocionais (chamadas em algumas pesquisas de atributos “não cognitivos”, por indicar aquilo que não estava sendo estudado quando se media apenas questões cognitivas) pode contribuir para o êxito escolar, cuja medição geralmente é feita pelo desempenho, pelo índice de não abandono dos estudos e o de conclusão da escolaridade. Dois estudos podem ser considerados precursores das pesquisas atuais: No fim dos anos 1960, o psicólogo austro-americano Walter Mischel iniciou um estudo, que ficou conhecido como “o experimento do marshmellow”, a fim de medir a capacidade de pré-escolares de postergar recompensas. Mischel deixou as crianças (uma por vez) em uma sala com um marshmellow na frente. Quem não comesse durante a 2 ausência do pesquisador ganharia duas unidades quando ele voltasse. Uma câmera filmou os participantes e mediu o tempo transcorrido até que o doce fosse comido. Mischel acompanhou essas crianças até a vida adulta: os que comeram o marshmellow mais rápido tiveram piores resultados no Scholastic Assessment Test (SAT) – semelhante ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) –, eram mais vulneráveis ao uso de drogas, tinham menor escolaridade e os piores resultados em testes psicológicos. Ainda hoje há controvérsia sobre que atributo está efetivamente sendo medido com esse teste ou qual o mecanismo pelo qual o resultado, no final da primeira infância, pode ser traduzido em resultados na idade adulta. O economista norte-americano James Joseph Heckman e outros autores (2001, 2011) verificaram que estudantes que obtiveram o diploma da high school (equivalente, no Brasil, ao Ensino Médio) por meio do General Education Development (GED), um exame de equivalência para quem não concluiu o curso, tinham distribuição de notas no teste de Quociente Intelectual (QI) semelhante à de estudantes que se graduaram frequentando o ensino regular. Porém, quando o item comparado foi o salário, constatou-se um nítido favorecimento do segundo grupo. Ora, se os índices de QI eram parecidos, por que a diferença nos salários? Foi constatado, então, que algumas características “não cognitivas” (como a crença do indivíduo no controle que ele tem sobre o próprio destino) dos graduados pelo GED se assemelham mais às dos que abandonaram a escola antes do término da high school do que às dos que a finalizaram regularmente, sugerindo que, possivelmente, terminar a escola contribuiu para a produtividade dos indivíduos também por meio de outros canais que não apenas os classificados como cognitivos, e que isso possa ser a explicação da diferença salarial. Alguns estudos agruparam esses atributos. Entre os mais importantes, é possível destacar o dos Cinco Grandes Fatores – Big Five –, no qual o Senna e o Diálogos Socioemocionais se baseiam: Big five – Trata-se de de uma abordagem empírica, articulada com pressupostos teóricos, cujo desenvolvimento iniciou-se em meados dos anos 1930. Influenciados pela hipótese léxica do antropólogo inglês Francis Galton (1822-1911), segundo a qual as diferenças individuais mais importantes deveriam estar presentes na linguagem cotidiana, o psicólogo norte-americano Gordon Allport (1897-1967) e sua equipe buscaram nos dicionários de língua inglesa todos os adjetivos que poderiam descrever atributos humanos observáveis (irritadiço, agressivo etc.), totalizando cerca de 18 mil palavras. Após eliminar sinônimos, chegou-se a 4.500 verbetes. Um refinamento proposto pelo inglês Raymond Cattell (1905-1998), nos anos 1940, incorporou os resultados de novas pesquisas e reduziu a lista a 171 adjetivos, posteriormente agrupados por afinidade em 35 grupos. Foram construídos testes para capturar essas múltiplas dimensões até que, nos anos 1960, com amostras significativas provenientes de diversas aplicações, alguns 3 autores encontraram cinco domínios – que aqui serão chamados de macrocompetências – que poderiam explicar a maior parte da variação contida nos resultados. Após influente trabalho do psicólogo norte- americano Lewis Goldberg (1980, 1981), esses agrupamentos passaram a ser tratados pela sigla OCEAN, conforme se explica no quadro a seguir: Openess to experience (abertura a novas experiências): propensão a aceitar novas experiências estéticas, culturais ou intelectuais. Conscientiousness (autogestão): propensão a ser organizado, responsável e esforçado. Extroversion (engajamento com o outro): direcionamento de interesses e energia para o mundo externo de pessoas e coisas (ao invés do mundo interno de experiências subjetivas). Caracterizado pela afetividade e sociabilidade. Agreeableness (amabilidade): propensão a agir de modo cooperativo e não egoísta. Neuroticism (resiliência emocional)*: propensão ao desequilíbrio psicológico (neuroticismo) e imprevisibilidade e inconsistência de reações emocionais (instabilidade emocional). * Observação: na definição da nomenclatura adotada para as macrocompetências do Senna e as rubricas do Diálogos Socioemocionais, optou-se por identificá-las sempre pelo seu lado positivo. Por isso esse termo não foi mantido na sua tradução do inglês, e sim definido como “estabilidade emocional”, bem como a explicação precisa ser invertida (propensão ao equilíbrio psicológico, previsibilidade e consistência de reações emocionais).Cada macrocompetência representa uma dimensão, que é dividida em atributos mais específicos. Há outras teorias que se assemelham à dos Big Five e que, essencialmente, buscam formas alternativas de classificar e nomear os atributos ou macrocompetências. Apesar disso, todas acreditam que grande parte das diferenças de comportamento entre indivíduos deve-se às diversas maneiras pelas quais esses atributos estão relacionados e como se manifestam de acordo com o ambiente e os estímulos. Desde os anos 1990, a abordagem empírica dos Big Five vem sendo cada vez mais utilizada como base para outros estudos – foi citada em cerca de 1.600 publicações somente entre 2000 e 2004 –, auxiliando em pesquisas científicas de alta qualidade. 4 É importante destacar que, ainda hoje, existe uma ampla gama de diferentes taxonomias ou formas de classificar as competências socioemocionais - algumas propõem que é necessário separar até cem ou mais delas. Com a proposta dos Cinco Grandes Fatores, o que se busca é o maior denominador comum para descrever as diferenças observáveis entre as pessoas em vários grupos etários e culturais (De Fruyt & Van Leeuwen, 2014; McCrae & Terracciano, 2005). Esse modelo pode ser considerado empiricamente robusto e encontra evidências de replicabilidade em diversos contextos e países diferentes. Com essa estrutura, foi possível examinar casos de sobreposição entre definições que se referiam a aspectos distintos, bem como resolver disputas entre terminologias que diziam respeito à mesma coisa. Isso foi responsável por avanços consideráveis no campo da personalidade, levando a um melhor conhecimento sobre como essas diferenças individuais são melhor avaliadas e como a personalidade se desenvolve ao longo do curso da vida. Embora os Cinco Grandes Fatores tenham sido inicialmente introduzidos como uma taxonomia descritiva da personalidade, John e Srivastava (1999) descreveram cinco sistemas psicossociais amplos que ajudam a explicar por que as cinco grandes dimensões se manifestam em culturas, sociedades e ao longo do tempo. Este ângulo mais funcional das dimensões-chave da personalidade foi extremamente útil para pensar sobre uma estrutura organizativa das competências socioemocionais e sobre como conectar essas competências com a área da educação. É importante frisar que muito embora o eduLab21 proponha uma organização estrutural das competências socioemocionais nesses cinco fatores, a manifestação dessas competências difere de pessoa para pessoa considerando, também, as experiências e contextos de cada um, ou seja, cada pessoa desenvolve e manifesta essas características de modo singular e é isso que nos torna únicos, complexos e diferentes entre nós. Entretanto, respeitar essa diversidade não é incompatível com se beneficiar de inúmeros estudos da psicologia que demonstram existirem padrões mais ou menos consistentes de comportamento entre as pessoas e que são mais prováveis de serem observados na realidade e que podem auxiliar no avanço do conhecimento sobre sua relação com o alcance de realizações na vida e suas possibilidades de desenvolvimento. O modelo de Roberts-Heckman – Em 2006, Brent Roberts propôs uma unificação de abordagens, dando o primeiro passo para a elaboração de testes empíricos que estabeleceram a relevância de cada uma delas na possibilidade de explicação do comportamento humano, que resultaria de um sistema de três níveis que interagem entre si: Nível 1 – a dotação genética dos indivíduos, determinante na formação de atributos e habilidades e também fator que interfere diretamente nas situações, experiências e demais variáveis de ambiente que os agentes vivenciarão e viverão (e que, por sua vez, também influencia a formação de competências e habilidades). Nível 2 – os atributos e o ambiente, que afetam a forma como o gene se expressa, as experiências e o ambiente em que o indivíduo cresce. Em termos de causalidade, genes, atributos e ambiente resultam de um processo de determinação simultânea. 5 Nível 3 – a identidade, a reputação, a cultura e os papéis sociais. Novamente, há um processo de interferência mútua entre atributos e ambiente incidindo nas variáveis do terceiro nível e vice-versa. Aqui estão localizadas todas as manifestações observáveis do ser humano, incluindo os testes, as escalas e os inventários utilizados para medir as competências. Esse modelo ainda leva em conta uma série de evidências sobre o processo de formação e cristalização dos aspectos “não cognitivos” sobre as realizações e o bem-estar coletivo, reunidas no artigo Estimating the Technology of Cognitive and Noncognitive Skill Formation, de Flavio Cunha, James J. Heckman e Susanne M. Schennach (2010). Os autores constatam que: - existem idades sensíveis (“janelas de oportunidades”) nas quais a aprendizagem de atributos cognitivos e “não cognitivos” é favorecida; - investimentos em capital humano realizados mais cedo são mais produtivos e elevam o rendimento de investimentos realizados posteriormente; e - níveis mais altos de atributos “não cognitivos” facilitam o acúmulo de aspectos cognitivos, mas o oposto não ocorre, necessariamente. Algumas das políticas destinadas ao desenvolvimento das competências socioemocionais também já foram objeto de estudos. Um deles, que se tornou referência no campo, é o seguinte: Perry Longitudinal Study, ou High Scope/Perry Preschool Project, iniciado em Detroit, Michigan (EUA), em 1962, ofereceu Educação Infantil de alta qualidade a um grupo de crianças consideradas em risco de atraso de desenvolvimento. As principais características do programa eram: - ter um currículo inovador baseado na interatividade das crianças com os objetos estudados; - organizar uma rotina de atividades preestabelecida e previsível; - apresentar um ambiente propício ao aprendizado; - fazer um controle compartilhado entre adultos e crianças sobre a escolha das atividades, privilegiando a manifestação dos talentos e estimulando a capacidade de resolver problemas; - acompanhar o progresso das crianças por meio de indicadores de desenvolvimento; e - ter uma abordagem específica e etapas bem definidas para a resolução de situações de conflito. Cerca de 200 crianças foram divididas de forma aleatória, por um teste randomizado (quando a seleção é feita por sorteio) criado pelos 6 pesquisadores, em dois grupos: o submetido ao programa e o de controle. Até que todas completassem 40 anos, foram feitos registros da frequência escolar e da época em que concluíram os cursos; realizados testes de inteligência e visitas domiciliares; e foi feito o acompanhamento da vida profissional, do casamento e de muitos outros acontecimentos importantes à medida que os participantes se tornavam adultos. A última entrevista foi realizada em 1999. Em 2010, o economista James Heckman, com sua equipe, reavaliou os dados do programa Perry e constatou efeitos estatísticos e econômicos significativos tanto para homens quanto para mulheres. Quando comparadas às crianças do grupo de controle, aquelas que faziam parte do grupo de intervenção foram mais bem-sucedidas na escola, apresentaram menos ocorrências de casos de prisões na vida adulta e eram mais propensas a conseguir bons empregos e rendas maiores ao completarem 40 anos. Em comparação com os custos substanciais desta intervenção pré-escolar, Heckman e sua equipe, no entanto, estimaram um retorno real e importante de 6 a 10% para a sociedade sobre o investimento. Os resultados desse estudo experimental referem-se diretamente à questão da maleabilidade das competências: as crianças no grupo de intervenção adquiriram certas habilidades na escola não constatadas nos alunos do grupo de controle. Portanto, concluíram os estudiosos,há competências importantes que ajudam as crianças a obter mais de sua educação e a atingir seus objetivos de vida, que não são fixas nem inatas, mas sim aprendidas – e que podem ser ensinadas na escola. O estudo foi motivado pelo objetivo de professores, ativistas educacionais e pesquisadores nos Estados Unidos para tentar provar que a educação poderia fazer uma grande diferença para melhorar a vida de pessoas de origens desfavorecidas e em situação socialmente vulnerável. Inicialmente, os pesquisadores achavam que a intervenção funcionaria tornando as crianças "mais inteligentes" - isto é, aumentando resultados obtidos pelas crianças no grupo de intervenção em testes de QI. No entanto, no momento em que as crianças atingiram a adolescência, o grupo de intervenção não pontuou mais do que o grupo de controle em quaisquer dos testes de habilidades cognitivas. Assim, a equipe de Heckman concluiu em 2010 que os efeitos impressionantes do programa pré-escolar de Perry surgem "principalmente por impulsos em características não cognitivas". Ao longo dos anos, e especialmente mais recentemente, foram realizados e iniciados muitos estudos sobre as competências no Brasil e no mundo, reunindo equipes multidisciplinares, com diferentes enfoques e reunindo formatos variados de evidências. Durante o curso, você ainda conhecerá mais alguns deles, e poderá contribuir com a troca de informações sobre outras pesquisas a que tiver acesso.
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