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Direito Educacional e Ética Sandra da Costa Lacerda Adaptada por Louis José Pacheco de Oliveira APRESENTAÇÃO É com satisfação que a Unisa Digital oferece a você, aluno(a), esta apostila de Direito Educacional e Ética, parte integrante de um conjunto de materiais de pesquisa voltado ao aprendizado dinâmico e autônomo que a educação a distância exige. O principal objetivo desta apostila é propiciar aos(às) alunos(as) uma apresentação do conteúdo básico da disciplina. A Unisa Digital oferece outras formas de solidificar seu aprendizado, por meio de recursos multidis- ciplinares, como chats, fóruns, aulas web, material de apoio e e-mail. Para enriquecer o seu aprendizado, você ainda pode contar com a Biblioteca Virtual: www.unisa.br, a Biblioteca Central da Unisa, juntamente às bibliotecas setoriais, que fornecem acervo digital e impresso, bem como acesso a redes de informação e documentação. Nesse contexto, os recursos disponíveis e necessários para apoiá-lo(a) no seu estudo são o suple- mento que a Unisa Digital oferece, tornando seu aprendizado eficiente e prazeroso, concorrendo para uma formação completa, na qual o conteúdo aprendido influencia sua vida profissional e pessoal. A Unisa Digital é assim para você: Universidade a qualquer hora e em qualquer lugar! Unisa Digital SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 5 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 7 1 ÉTICA E MORAL ...................................................................................................................................... 9 1.1 A Perspectiva Social da Moral ..................................................................................................................................10 1.2 A Perspectiva Individual da Moral ..........................................................................................................................11 1.3 A Perspectiva Social e Individual da Moral .........................................................................................................12 1.4 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................13 1.5 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................14 2 DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA .............................................................................................................................................. 15 2.1 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................22 2.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................23 3 ÉTICA E CIDADANIA .......................................................................................................................... 25 3.1 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................28 3.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................28 4 O PAPEL DA INSTITUIÇÃO ESCOLAR NA CONSTRUÇÃO DO JUÍZO MORAL DOS EDUCANDOS ........................................................................................................... 29 4.1 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................38 4.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................39 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 41 RESPOSTAS COMENTADAS DAS ATIVIDADES PROPOSTAS ..................................... 43 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 47 Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 5 Por que em um curso de Pedagogia temos uma disciplina dedicada ao estudo do Direito Educacio- nal e da Ética? Por que os dois conceitos estão associados? Responder a tais questões remete-nos, novamente, à questão essencial acerca de qual é o papel da Educação na construção do mundo em que vivemos; remete-nos, ainda, à busca do significado das noções do Bem, do Belo e do Verdadeiro, busca que acompanha o homem desde que este se percebeu um ser com capacidade de refletir. Esta disciplina coloca-se, neste curso, como uma possibilidade de sistematização das ideias que temos discutido desde o primeiro módulo em Filosofia. Tendo tais noções como norteadoras, discutiremos as ideias de Ética e Moral e de como elas se aproximam ou se afastam; discutiremos, também, o conceito de Direito Educacional na perspectiva da construção da cidadania; a seguir, procuraremos relacionar Ética e Cidadania e encerraremos o mó- dulo problematizando o papel da instituição escola na construção do juízo moral dos educandos, voltada para uma cidadania que se guie pela ética e pelo respeito ao direito educacional. Esperamos que esse processo de sistematização permita, a todos nós, um espaço de amadureci- mento acerca das opções que profissionalmente temos que fazer a cada dia. Acreditamos que é o proces- so de reflexão filosófica que permite a passagem do mundo infantil para o mundo adulto, tendo como limiar a possibilidade de pensamento abstrato. Como afirmam Aranha e Martins (1986, p. V), “se a condi- ção do amadurecimento é a conquista da autonomia no pensar e no agir, muitos adultos permanecerão crianças caso não exercitem, desde cedo, esse olhar crítico sobre si mesmo e sobre o mundo.” É acreditando na educação como “mola propulsora” da construção desse olhar crítico que esta dis- ciplina se coloca. APRESENTAÇÃO Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 7 Caro(a) aluno(a), discutir sobre ética no mundo contemporâneo é extremamente necessário. E, se em outros setores da vida – do trabalho – esse tema se destaca, na educação ele é notadamente impres- cindível. Em nosso meio – escolar – encontramos diversas perspectivas morais, com inúmeras representa- ções de homem e de vida, e nos redescobrimos criando novas relações. E, sem que se privilegie um lado ou uma perspectiva para olhar, não é difícil perceber como não são muitos os que medem seus atos e se propõem a zelar por um homem que tenha como princípio os verdadeiros – pelo menos os que deveriam ser – fins da vida. Não há desculpas para quem escapa desse princípio. Já desculpamos demais! Somos, sempre, responsáveis por nosso atos, por nossas escolhas, por aquilo que julgamos e projetamos. Isso quer dizer que somos nós que construímos as relações, que projetamos referências, valores, uma potên- cia criadora ou que traga o fluxo denso de miséria... humana. Olhar a ética é o mesmo que se lançar criticamente sobre a moral, sobre a moral que nos cerca. Cer- tamente essa crítica é inseparável de certos elementos que balizam a noção mais primeva de ética, como metamoral e doutrina fundadora enunciando os princípios (RUSS, 1999). Assim, neste texto – elaborado pelas professoras Aida Miranda e Sandra Lacerda –, passamos por referências de grandes filósofos quepensaram a moral: Kant, Hobbes, Montesquieu, Locke, Rousseau, pelo grande educador russo Lev Vygotsky etc., procurando conceber os fundamentos da ética e, ao mes- mo tempo, responder e pensá-los agora, sobre o semblante do presente e todas as consequências que a relativização de certos valores tem provocado. Vamos ao estudo! Finalmente, desejamos que você faça um excelente módulo, que estude bastante e aprofunde seu conhecimento. Cordialmente, Prof. Louis J. P. de Oliveira INTRODUÇÃO Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 9 ÉTICA E MORAL1 Que o jovem não espere para filosofar, nem que o velho de filosofar se canse. Ninguém, com efeito, é ainda imaturo ou já está de- masiado maduro para cuidar da saúde da alma. Quem diz não ter ainda chegado sua hora de filosofar ou já ter ela passado, fala como quem diz não ter ainda chegado ou já ter passado a hora de ser feliz. Epicuro, Carta a Menequeu Estamos sempre julgando quando olhamos as pessoas e as coisas. Emitimos opiniões acerca de tudo: “Este sapato é feio! Além disso, aperta meu dedo, não dá para usar no trabalho. Não vou comprá-lo.”, “O novo corte de cabelo da professo- ra fez com que ela se parecesse com um sapo!”, “Dias ensolarados me fazem feliz.”, “O mundo se- ria melhor se todos cumpríssemos com nossas obrigações.” Pois bem, quando emitimos nossas opiniões, estabelecemos um juízo de valor. Emi- tir juízos de valor implica no reconhecimento da materialidade de algo e, concomitantemente, na percepção de que essa materialidade tem conte- údos que provocam nossa repulsa ou nossa atra- ção. A repulsa ou a atração que sentimos evoca valores que atribuímos às coisas, valores esses re- lacionados à utilidade, à bondade, à beleza. Toda vez que atribuímos um valor a algo, fazemos isso estabelecendo algum tipo de com- paração. Para existir um processo de comparação, necessitamos de parâmetros de análise. Como es- tudamos em Filosofia, nossos parâmetros de aná- lise são construídos culturalmente à medida que nos apropriamos (ou somos apropriados por?) de um sistema de significados já estabelecidos por outros. Assim, conforme atendemos ou transgredi- mos os padrões socialmente estabelecidos, nos- sos comportamentos são avaliados como bons ou maus, e, quanto mais estamos imersos em um determinado padrão de socialização, tam- bém avaliamos como bons os comportamentos alheios que se aproximam do padrão cultural que incorporamos e como maus aqueles que dele se distanciam. As pessoas emitem juízos de valor referen- tes às mais diversas áreas do existir humano; te- mos, então, valores econômicos, vitais, lógicos, éticos, estéticos, religiosos, políticos, educacio- nais, e, assim, sucessivamente, poderíamos nos alongar infinitamente. Entretanto, nosso questio- namento maior nesta disciplina é uma pequena pergunta: há valores universais, perenes, para além do aqui e agora cultural? A Ética é a parte da Filosofia que se ocupa do estudo dos fundamentos da vida moral. Nes- ses termos, embora haja autores que discordem do nosso ponto de vista, poderíamos afirmar que enquanto a Ética se pergunta o que é o bem e o mal, a Moral nos afirma o bem é... ou o mal é..., de- pendendo de onde se alicerce a análise, quer seja Você sabia que as práticas morais seguem o mo- delo de cada cultura e que, por isso, variam de lugar para lugar? CuriosidadeCuriosidade Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 10 na ordem cósmica, como afirmava Epicuro,1 na vontade de Deus, como defendia São Tomás de Aquino,2 ou em nenhuma ordem exterior à pró- 1 Epicuro vinculou de modo inédito a física atomística à ética emancipadora: sua ideia central, resumo de todas as outras, é a de que, compreendendo a ordem cósmica como efeito mecânico do entrechoque dos átomos, nos libertamos do terror supersticioso e do temor da morte. Sua lição atravessou os séculos. Nela, reconhecemos a vocação iluminista do materialismo filosófico, isto é, sua confiança na força libertária das luzes do conhecimento. Cumpre ressaltar a permanência histórica do vínculo ligando o princípio ontológico de que o substrato último de todas as coisas visíveis e invisíveis são partículas corpóreas indivisíveis e eternas – cuja junção e separação no vazio infinito constroem e desconstroem os mundos que foram, são e serão – ao princípio ético de que, exatamente por resultar do entrechoque mecânico dos átomos, o cosmos não contém nenhuma finalidade ou intenção imanente ou transcendente, natural ou divina. Para o pensador, a morte é meramente a separação dos átomos que nos compõem. Não anuncia, portanto, nem castigos, nem recompensas para os homens. Não devemos temer nem a morte e, menos ainda, as punições infernais inventadas pela ignorância e pela superstição. 2 São Tomás de Aquino, em Questões discutidas sobre a Verdade, afirma que “embora o ente, o verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que nas coisas criadas, não é necessário que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas criaturas se distingam também realmente. Isso acontece com aquelas coisas que pelo seu próprio conceito não se identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus constituam uma só coisa, nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom e o uno, pelo seu conceito se identificam. Daí que, onde quer que se encontrem concretizados, constituem realmente uma só coisa, embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram em Deus do que quando se encontram nas criaturas.” 3 Sartre, em O existencialismo é um humanismo, afirma que “o existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista. [...] O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; porque pensa que o homem decifra, ele mesmo, esse sinal como lhe aprouver. [...] Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.” pria consciência humana, de acordo com a pers- pectiva existencialista.3 Na luta humana para sobrepujar os limites impostos pela Natureza, o comportamento varia de local para local, de época para época. O antropólogo Lévi-Strauss apontou, a par- tir de seus estudos com comunidades primitivas, que a passagem do modo de vida animal para o modo de vida humano se dá por meio da introdu- ção da proibição do incesto nessas comunidades, o que cria as relações de parentesco, construin- do o primeiro patamar do mundo simbólico, da cultura. Ao lado da interdição, aparece a figura da sanção ao transgressor; seja o banimento ou a coerção física, há sempre o uso da repressão pela força. Na mesma linha, Durkheim apontava que, nas comunidades primitivas, regidas pela solida- riedade mecânica, o ato infratório tem uma puni- 1.1 A Perspectiva Social da Moral ção mais severa do que nas sociedades com ele- vada divisão do trabalho organizada por meio da solidariedade orgânica. AtençãoAtenção Assim, há uma moral constituída, exterior ao ho- mem, que orienta seu comportamento, deter- minando o que é moral ou imoral em um deter- minado tempo e espaço, para um determinado grupo de homens, que têm uma dependência mútua e que precisam acordar normas de traba- lho coletivo a fim de garantir a sobrevivência do grupo. Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 11 Cada vez que as relações de produção são alteradas, surgem modificaçõesnas exigências das normas do comportamento coletivo.4 4 Marx foi brilhante ao descrever esse processo de alteração nos quatro estágios dos modos de produção – comunismo pri- mitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo – e a moral social vigente em cada um deles. 5 Emanuel Kant nasceu em Königsberg (Prússia), em 22 de abril de 1724. Alguns autores viram certo significado no fato de seu pai ser de descendência escocesa e supuseram ser esta a causa da parcialidade com que o filósofo se ocupou, mais tarde, dos pensadores daquele país. Do nosso ponto de vista, parece mais importante a atmosfera pietista na qual o jovem Kant foi criado pelos pais – pietismo que constituía uma reação contra o protestantismo dogmático e que realçava o valor da exaltação do espírito, confiança nas boas intenções, mais do que ciência teológica – e indagar se isso não corresponde ao papel que essa religião desempenhou no pensamento do filósofo. Além disso, sua mãe parece ter exercido uma grande influência sobre ele, fazendo-o partilhar dos seus sentimentos acerca da natureza e associar esse fato com a tentativa que ele fez de combinar sua crença religiosa com sua admiração pelos fenômenos cósmicos. No entanto, dialeticamente, a interdição traz em si o germe da transgressão, quando os valores individuais contrapõem-se aos coletivos. Há, pois, uma moral individual que se contrapõe à histórica e social. A ordem social pressupõe que a moral, ao mesmo tempo que é o conjunto de regras que determina como deve ser o comportamento dos indivíduos em um grupo, deve, também, ser livre e conscientemente aceita pelos indivíduos que a ele pertencem. É em tal contradição que muitas vezes se funda a angústia individual do existir, pois faz par- te do processo de individuação o questionamen- to dos valores herdados. Nesse sentido, um ato só é propriamente moral se se fundar na aceitação pessoal da norma. Como afirmam Aranha e Martins (1986, p. 37), “à exterioridade da moral contrapõe-se a necessida- de da interioridade, da adesão mais íntima.” Kant5 afirmava que o valor do homem não reside apenas na luz da sua inteligência, mas an- tes, e acima de tudo, no sentimento, na intimida- 1.2 A Perspectiva Individual da Moral de e na profundidade da alma, onde a adesão à norma deve se processar. Para ele, o grande nor- teador seria a dignidade do homem por ser do- tado de personalidade, ou seja, a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, mais do que por uma moral circunstancializada, para Kant, o homem deve guiar-se por princípios. A verdadeira virtude só pode plantar-se em princípios, e, quanto mais universais estes, mais nobre e elevada se torna aque- la. O sentimento ético é o sentimento da beleza e da dignidade da natureza huma- na. Defendo a crença na superioridade de um princípio ético dirigente sobre todas as outras faculdades do homem. (KANT, 1764/1993, p. 81). Na encruzilhada da aceitação e da contes- tação forma-se o juízo moral. Cada um sabe, por experiência pessoal, o quanto é difícil aceitar nor- mas que se sabe serem ultrapassadas, obsoletas; entretanto, sabe, também, como é difícil promo- ver a mudança dessas mesmas normas. As contradições entre o velho e o novo são vividas quando as relações estabelecidas entre os homens exigem um novo código de conduta. No YouTube você encontra vários filósofos dis- cutindo ética. Em especial, recomendo o pro- grama gravado pela Futura Tec, com o professor da USP Renato Janine Ribeiro. MultimídiaMultimídia Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 12 Essas mesmas contradições se põem no plano pessoal, como nos apontavam os existencialis- tas. A singularidade do ato moral coloca-nos em situações únicas, em que só o indivíduo livre e responsável é capaz de decidir – são as chamadas situações limites, em que regra alguma é capaz de orientar a ação. Como exemplo, podemos citar a reflexão de Kohlberg (1991) acerca do período pós II Guerra Mundial, quando se engajou no transporte ilegal de sobreviventes do holocausto para a Palestina, então sob domínio britânico: [...] Nosso navio foi capturado pela mari- nha britânica, assim como havia sido seu antecessor, o Exodus, celebrado no livro e no filme de Leon Uris. A marinha britânica e os fuzileiros usaram gás lacrimogêneo, vapor e abriram cami- nho para a sala de direção e sala das má- quinas e pararam o navio. Vários bebês morreram, embora os ingleses tivessem tentado não usar violência desnecessária. Eu, meus companheiros e os refugiados fomos levados para um campo de con- centração em Chipre. A Hagenah ajudou- -nos a escapar para a Palestina fornecen- do-nos documentos falsos. Eu e alguns companheiros de tripulação ficamos em um kibutz ou acampamento coletivo até que fosse seguro deixarmos o país com documentos falsos e pegar outro navio da América para a Europa, e de lá para a Palestina; um navio que se tornou da marinha na guerra de independência de Israel contra os estados árabes, em 1948. Minhas experiências com imigração ile- gal em Israel levantaram todo tipo de questões morais, que eu via como ques- tões de justiça. Era certo ou justo usar a morte e a violência para um fim político? Enquanto os bebês morriam e os adultos iam para um campo de concentração, os objetivos da Hagenah eram políticos, tra- tava-se de pressões internacionais sobre os britânicos, para abandonarem a Pales- tina. Quando é permissível envolver-se com meios violentos para obter fins su- postamente justos? Esse tatear ao redor de questões de jus- tiça era mesclado por um hedonismo e relativismo adolescentes a respeito das exigências da sociedade sobre mim, seja a sociedade norte-americana, seja a isra- elense. O kibutz israelense representava ideais de justiça social que eu tinha de admirar, mas estaria eu obrigado a segui- -los, ou poderia viver de acordo com as demandas mais familiares e mais fáceis de minha terra natal, os Estados Unidos? Ao final, essas questões se tornaram questões de relativismo ético. Havia uma moralidade universal ou toda escolha moral era relativa, dependente da cultu- ra ou da escolha pessoal e emocional de cada pessoa? (KOHLBERG, 2002, p. 92-93). Como vimos, o aumento do grau de consci- ência e de liberdade e, portanto, de responsabili- dade pessoal no comportamento moral, introduz um elemento contraditório que irá, o tempo todo, angustiar o homem; o ser e o dever-ser na contra- posição social X individual. Evitando-se, por um lado, o extremado le- galismo e dogmatismo e, por outro, um exacer- bado individualismo, há que se colocar esses dois polos contraditórios em uma relação dialética, ou seja, uma relação de aproximação dos contrários de forma a abarcar a aceitação e a recusa da nor- ma constituída. 1.3 A Perspectiva Social e Individual da Moral Como alguém que se cria em um universo cultural e que, por outro lado, produz cultura, o homem só terá uma vida autêntica quando for capaz de, ante o constituído, propor uma moral constituinte, isto é, a que se faz penosamente por meio da experiência vivida. Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 13 Se não podemos negar o caráter histórico da formação da moral, também não precisamos aceitar que a História se faz em um movimento de continuísmo; é preciso abrir espaço para ruptu- ras quando estas se fizerem necessárias. Cumpre buscar o preciso distanciamento daquilo que nos circunstancializa, de modo a entender o passado que consubstanciou o presente que vivemos, para reassumi-lo ou recusá-lo. Ser um ser histórico não se limita à continuidade no tempo, mas à consci- ência ativa do futuro, por meio da elaboração de um projeto de ação que, se necessário, possa mu- dar o instituído. Resumindo a distinção que procuramostra- çar neste tema entre Ética e Moral, poderíamos afirmar que, enquanto a Ética trata dos princípios, dos imperativos categóricos,6 como afirmou Kant, do dever-ser; a Moral trata dos fatos, daquilo que é, do acontecido, ou seja, dos atos humanos que se realizam efetivamente no tempo e no espaço; a Moral trata, portanto, do ser. Assim, enquanto a Moral diz respeito ao conjunto de princípios, crenças e regras que orientam o comportamento dos indivíduos nas diversas sociedades, a Ética ocupa-se da reflexão crítica acerca da Moral. 6 Como muitos outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se em um princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este princípio de imperativo categórico. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), exprimiu-o desta forma: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal.” No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte: “Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim, e nunca apenas como um meio.” AtençãoAtenção Utilizamos a expressão ser, neste contexto, na acepção do verbo de ligação, como sinônimo de estar, ou seja, na dimensão de contextualização temporal. A palavra ser não deve, nesta discus- são, ser confundida com o ser, substantivo, cujo significado se liga à essência, tendo, portanto, a conotação de permanência atemporal. 1.4 Resumo do Capítulo Neste capítulo, problematizamos as noções de ética e moral – a ética, como a parte da Filosofia que se ocupa do estudo dos fundamentos da vida moral; e a moral, como o conjunto de princípios que orien- ta nosso comportamento. Observamos que a moral relaciona-se diretamente com a perspectiva social, ou seja, que ela varia de lugar para lugar, de cultura para cultura, e incide sobre os homens, tanto no seu aspecto individual quanto social. Assista ao filme Fora de Contro- le, do diretor Robert Mitchel. Ele conta a história de um advogado e um desempregado que, ao se encontrarem, estarão diante de grandes dilemas morais. Vale a pena! MultimídiaMultimídia Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 14 1.5 Atividades Propostas 1. Por que é tão importante refletir sobre a ética? 2. A partir da reflexão proposta por L. Kohlberg, é possível estabelecer que, em situações limites, pode ocorrer a relativização da ética? Explique. Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 15 Jamais suportaremos que todas as coisas e que todos os serviços sejam produzidos de forma automática, que não sejam senão ‘produzidos’, que nada se situe fora das leis do mercado e das regras do Estado. Teremos, sempre, necessidade de fazer com que as coisas se articulem de uma outra maneira, de fazer ‘passar’ as coisas pela dádiva. Jacques T. Godbout Compreendendo cidadania como a quali- dade de cidadão, e cidadão como o habitante da cidade, com pleno gozo de seus direitos civis e políticos, cumpre-nos discutir quais seriam esses direitos. DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA 2 A ideia de que o homem, pela sua própria natureza humana, pudesse dispor de certos di- reitos a ela inerentes e em oposição ao poder do Estado não era aceita pelos juristas e pensadores políticos da Grécia Antiga. A noção de direito in- dividual, como o entendemos nas democracias modernas, não existia nas práticas dos gregos e dos romanos. O indivíduo, na sociedade greco- -romana, afirmava e garantia a sua personalidade conforme se inseria na coletividade social, ou no aparelho estatal. Sócrates, por exemplo, preferiu aceitar a injusta condenação à morte a fugir da decisão de seus compatriotas. Foi, provavelmente, com o cristianismo que surgiu a necessidade de certas prerrogativas que limitem o poder político nas suas relações com a pessoa humana. A certeza de uma vida pós-morte, de um destino sobrenatural do homem, acabou levan- do os cristãos a duas posições aparentemente contraditórias, mas que no fundo eram comple- mentares. Por um lado, reverenciavam o poder temporal que acreditavam emanar de Deus, não reivindicando direitos políticos, e, por outro lado, resistiam até a morte às tentativas do Estado de imiscuir-se no que constituía o domínio espiritual. O castigo resultante dessa resistência era alegre- mente suportado, pois o martírio era visto como um caminho para a salvação, à imitação do com- DicionárioDicionário Direito: Um direito é uma pretensão legítima a uma coisa. Se as pessoas têm direitos morais, então é errado privá-las daquilo a que elas têm direito para benefício dos outros. Por exemplo, se as pessoas têm o direito à vida, não se pode assassinar uma pessoa para salvar outras. Os direitos impõem li- mites àquilo que é permissível fazer em nome da felicidade geral ou do bem comum. Para conhecer um pouco mais do pensamento e da moral socráticas, uma boa sugestão é o filme do diretor italiano Roberto Rossellini, Sócrates. O filme aborda o final da vida de Sócra- tes, em especial seu julgamento e sua condenação à morte. MultimídiaMultimídia Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 16 portamento de Cristo. Nesses termos, esse domínio espiritual im- penetrável pelo Estado foi a primeira manifesta- ção histórica de afirmação do homem, pelo fato de ser homem, dispor de certos direitos oponíveis à coletividade estatal em que se integrava e não aos seus semelhantes individualmente, ou seja, tratava-se da oposição entre direito privado e di- reito público. O fundamento de tal direito era afir- mado pelos cristãos na transcendência da organi- zação política histórica, a pólis, pela eternidade; a Cidade de Deus. Entretanto, essa colocação do problema não o afastava do campo jurídico, já que o jurídi- co regulamenta o político. Assim, por sua natural evolução, foi o Estado moderno que elaborou a teoria jurídica dos direitos humanos, como con- sequência de circunstâncias históricas, e não de concepções religiosas, sobretudo no princípio das chamadas leis fundamentais do reino, que ga- rantiam os privilégios de certas classes sociais, ou atividades profissionais, até mesmo contra o po- der da coroa. Não é à toa que um dos significados pos- síveis de serem atribuídos à palavra cidade é “refúgio, área urbana especialmente reservada para asilar pessoas que cometeram delitos invo- luntários; ficavam elas a salvo da perseguição dos vingadores e podiam ser julgadas por represen- tantes autorizados da sociedade.” (ENCICLOPÉDIA MIRADOR, 1981, p. 415). A plena caracterização dos direitos huma- nos, inicialmente filosófica e posteriormente jurí- dica, foi feita a partir dos escritos de John Locke, na Idade Moderna. Locke,7 Montesquieu8 e Rous- seau9 devem ser mencionados como os autores que mais contribuíram para a sistematização do pensamento sobre a doutrina dos direitos públi- cos individuais, na fase inicial da jurisprudência política. Locke considerava que apenas o pacto tor- nava legítimo o poder do Estado. Se no estado na- tural os homens eram livres, iguais e independen- tes, o que os faria abdicar desse estado para viver em sociedade, delegando poder para outrem? O autor apontava que, no estado natural, cada um era juiz de sua própria causa, fazendo com que os riscos das paixões e da parcialidade fossem muito grandes, o que poderia desestabilizar as relações entre os homens. Nesses termos e visando à se- gurança e à tranquilidade necessárias ao gozo da propriedade, as pessoas consentiram a instituição do corpo político, como regulador das relaçõesentre os homens. No entanto, os direitos naturais 7 John Locke (Wringtown, 29 de agosto de 1632 – Harlow, 28 de outubro de 1704) foi um filósofo do predecessor Iluminismo cujas noções de governo com o consentimento dos governados, e os direitos naturais do homem (vida, liberdade e propriedade) tiveram uma enorme influência nas modernas revoluções liberiais: Revolução Inglesa, Revolução Americana e na fase inicial da Revolução Francesa, oferecendo-lhes uma justificação da revolução e a forma de um novo governo. Para fins didáticos, Locke costuma ser classificado entre os “Empiristas Britânicos”, junto com David Hume e George Berkeley, principalmente por sua obra relativa a questões epistemológicas. Em ciência política, costuma ser enquadrado na escola do direito natural ou jusnaturalismo. 8 O aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bredé e Barão de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689, perto de Bordeaux, na França, e faleceu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Político, filósofo e escritor francês, filho de uma família nobre, ficou famoso pela sua teoria da separação dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições nacionais. Teve formação iluminista com padres oratorianos, de modo que cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Montesquieu escreveu várias obras, como Cartas Persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência (1734) e O Espírito das Leis (1748). Ganhou notoridade e exerceu notável influência. Contribuiu também para a Enciclopédia e foi uma das maiores figuras do Iluminismo. 9 Jean-Jacques Rousseau (28 de junho de 1712, Genebra – 2 de julho de 1778, Ermenonville, perto de Paris) foi um filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do Romantismo. Foi uma das principais inspirações ideológicas da segunda fase da Revolução Francesa – a última das revoluções modernas, e que deu início a um longo período de terror e instabilidade política, que acabaria por levar à ditadura de Napoleão. Do Contrato Social, de sua autoria, inspirou muitos dos revolucionários e regimes nacionalistas e opressivos subsequentes a esse período, por toda a Europa continental. Inspirados nas ideias de Rousseau, os revolucionários defendiam o princípio da soberania popular e da igualdade de direitos. Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 17 do homem não desaparecem em consequência desse consentimento, mas subsistem para limitar o poder do soberano, justificando, em última ins- tância, o direito à insurreição.10 Montesquieu elaborou uma teoria política, que aparece em sua obra mais famosa, O Espírito das Leis (1748), inspirada em Locke e no estudo das instituições políticas inglesas. Nela, ele discu- tiu as instituições e as leis e buscou compreender as diversas legislações existentes em diferentes lugares e épocas. A obra inspirou os redatores da Constituição Francesa de 1791 e tornou-se a fonte das doutrinas constitucionais liberais, que repou- sam na separação dos poderes legislativo, exe- cutivo e judiciário. O que Montesquieu descreve como espírito geral de uma sociedade aparece como resultante de causas físicas (o clima), causas morais (costumes, religião...) e as máximas de um governo.11 Modernamente, seria o que chamamos de uma identidade nacional que se constitui con- forme os fatores citados anteriormente. As máximas descritas dizem respeito, se- gundo o próprio autor, aos tipos e aos concei- tos que dariam conta daquilo que as causas não abrangem. Seriam o princípio e a natureza de um governo. Natureza: aquilo que faz um governo ser o que é, determinado pela quanti- dade daqueles que detêm a soberania. 10 “Não é necessário, tampouco conveniente, que o poder legislativo esteja sempre reunido; mas é absolutamente necessário que o poder executivo seja permanente, visto como nem sempre há necessidade de elaborar novas leis, mas sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas. Quando o legislativo entregou a execução das leis que fez a outras mãos, ainda tem o poder de retomá-la, se houver motivo, e de castigar por qualquer má administração contra as leis.” (LOCKE, 1979, p. 101). 11 “As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho ou do arbítrio de quem legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da história concreta própria ao povo considerado. Não existem leis justas ou injustas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou lugar.” (MONTESQUIEU, 2005). AtençãoAtenção Se os soberanos romperem com o pacto de con- fiança neles depositado, se não visarem ao bem público, perdem o direito de governar, sendo permitido aos governados retirá-los do poder e substituí-los por outros mais dignos da confiança do povo. Princípio: o que põe esse governo em movimento, o princípio motor em lin- guagem filosófica, constituído pelas paixões e necessidades dos homens. Montesquieu distingue três formas de go- verno: República, Monarquia e Despotismo. Os tipos de governos e suas máximas: República: soberania nas mãos de mui- tos (de todos = democracia; de alguns = aristocracia) – princípio é a virtude. Monarquia: soberania nas mãos de um só, segundo leis positivas – princípio é a honra. Despotismo: soberania nas mãos de um só, segundo o arbítrio deste – prin- cípio é o medo. Apesar de beber na fonte dos clássicos (no- tadamente Aristóteles), seu esquema de governo é diverso do daqueles. Montesquieu, ao conside- rar democracia e aristocracia um mesmo tipo e falar do despotismo como um tipo em si, e não a corrupção de outro (da monarquia, no caso), mostra-se mais preocupado com a forma com que será exercido o poder: se segundo leis ou não. Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 18 Para Montesquieu, a forma republicana de governo só seria viável em regiões pequenas, como as cidades gregas da Antiguidade e as ci- dades italianas da Idade Média. Para os grandes Estados, só seria possível o despotismo (absolu- tismo) e as monarquias. Ele simpatizava com a monarquia constitucional (liberal) à moda ingle- sa, e foi a partir de uma viagem à Inglaterra que elaborou a sua teoria da separação dos três po- deres. Ao procurar descobrir as relações que as leis têm com a natureza e o princípio de cada governo, Montesquieu desenvolveu uma teoria de gover- no que alimentava as ideias fecundas do constitu- cionalismo, pelo qual se busca distribuir a autori- dade por meios legais, de modo a evitar o arbítrio e a violência. Tais ideias se encaminham para a melhor definição da separação dos poderes, ain- da hoje uma das pedras angulares do exercício do poder democrático. Montesquieu admirava a constituição in- glesa, mesmo sem compreendê-la completa- mente, e descreveu cuidadosamente a separação dos poderes em Executivo, Judiciário e Legislati- vo, trabalho que influenciou os elaboradores da constituição dos Estados Unidos. O poder executivo seria exercido por um rei, com direito de veto sobre as decisões do parla- mento. O poder judiciário não era único, porque os nobres não poderiam ser julgados por tribunais populares, mas só por tribunais de nobres; por- tanto, Montesquieu não defendeu a igualdade de todos perante a lei. O poder legislativo, convocado pelo execu- tivo, deveria ser separado em duas casas: o corpo dos comuns, composto pelos representantes do povo, e o corpo dos nobres, formado por nobres, hereditário e com a faculdade de impedir (vetar) as decisões do corpo dos comuns. Essas duas ca-sas teriam assembleias e deliberações separadas, assim como interesses e opiniões independentes. Refletindo sobre o abuso do poder real, Montes- quieu conclui que “só o poder freia o poder”, daí a necessidade de cada poder manter-se autônomo e constituído por pessoas e grupos diferentes. É bem verdade que a proposta da divisão dos poderes ainda não se encontrava em Mon- tesquieu com a força que posteriormente lhe foi atribuída. Em outras passagens de sua obra, ele não defendeu uma separação tão rígida, pois o que ele pretendia, de fato, era realçar a relação de forças e a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os três poderes. Montesquieu não era um revolucionário. Sua opção social ainda era por sua classe de ori- gem, a nobreza. Ele sonhava apenas com a limi- tação do poder absoluto dos reis, pois era um conservador, que queria a restauração das monar- quias medievais e o poder do Estado nas mãos da nobreza. As convicções de Montesquieu tiveram origem na sua classe social e, portanto, aproxima- vam-no dos ideais de uma aristocracia liberal. Ou seja, ele criticava toda forma de despotismo, mas não apreciava a ideia de o povo assumir o poder. Sua crítica, no entanto, serviu para desencadear a Revolução Francesa e instaurar a república bur- guesa. Um bom filme para apresentar os modos da nobreza tradicional é O Outro Lado da Nobreza, do diretor Mi- chael Hoffman. Ambientando em 1660, o filme mostra a vida na corte de Charles II. Ao mesmo tempo, apre- senta uma Londres com seus palácios luxuosos e as suas ruas insalubres. MultimídiaMultimídia Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 19 Rousseau, por sua vez, e como seus an- tecessores Hobbes12 e Locke, desenvolveu seu pensamento a partir da hipótese do homem em estado natural e procurou resolver a questão da legitimidade do poder nascido do contrato social. Sua posição foi, contudo, inovadora, pois distin- guiu os conceitos de soberano e de governo, atri- buindo ao povo a soberania inalienável. Rousseau descrevia de forma nostálgica o estado feliz em que o homem vivia no contato direto com a Natureza e denunciava o caráter de desigualdade social introduzido pela proprieda- de privada, diferenciando rico e pobre, poderoso e fraco, senhor e escravo, até a predominância da lei do mais forte.13 Para ele, o homem que surge, então, é um homem corrompido pelo poder e es- magado pela violência; trata-se, nesse sentido, de um falso contrato social, que coloca o homem sob grilhões. O que Rousseau defendia era um verda- deiro contrato, no qual o povo estivesse reunido sob uma só vontade. Nessa medida, o contrato deveria originar- -se do consentimento, que, por sua vez, deveria ser unânime. Cada cidadão deveria abdicar de todos os seus direitos em favor da comunidade, mas, como todos abdicariam igualmente, nin- guém perderia nada, pois, [...] este ato de associação produz, em lu- gar da pessoa particular de cada contra- tante, um corpo moral coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. (ROUSSEAU, 1979b, p. 33). Nesses termos, o homem abdica de sua li- berdade pelo pacto social, mas como faz parte do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si pró- prio, sendo, consequentemente, livre. Na concep- ção do autor, o contrato social não faz o indivíduo perder sua soberania, pois não institui um Estado separado de si mesmo, já que o ato pelo qual o povo institui um go- verno não o submete a ele. Ao contrário, 12 Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 – Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679) foi um matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651). Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. No estado natural, embora alguns homens possam ser mais fortes ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima dos demais por forma a estar além do medo de que outro homem lhe possa fazer mal. Por isso, cada um de nós tem direito a tudo, e uma vez que todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos (Bellum omnia omnes). No entanto, os homens têm um desejo, que é também em interesse próprio, de acabar com a guerra, e por isso formam sociedades entrando em um contrato social. Leviatã é um monstro bíblico cruel e invencível que simboliza, para Hobbes, o poder do Estado absoluto. Seu corpo é constituído de inúmeras cabeças e ele empunha os símbolos dos dois poderes, o civil e o religioso. De acordo com Hobbes, a sociedade necessita de uma autoridade à qual todos os seus membros devem render o suficiente da sua liberdade natural, por forma a que a autoridade possa assegurar a paz interna e a defesa comum. Esse soberano benevolente, quer seja um monarca ou um estado administrativo, deveria ser o Leviatã, uma autoridade inquestionável. A teoria política do Leviatã mantém no essencial as ideias de suas duas obras anteriores, Os elementos da lei e Do cidadão (em que tratou a questão das relações entre Igreja e Estado). Thomas Hobbes defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Nesse sentido, critica a livre interpretação da Bíblia na Reforma Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca. 13 “Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar o corpo com várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudas algumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música – em uma palavra: enquanto só se dedicavam a obras que um único homem podia criar e a artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de um comércio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade de socorro de outro, desde que percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas.” (ROUSSEAU, 1979a). Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 20 não há um ‘superior’ ao povo, pois os de- positários do poder não são os senho- res do povo, mas seus oficiais, e o povo pode elegê-los e destituí-los quando lhe aprouver. Os magistrados que consti- tuem o governo apenas executam as leis, estando subordinados ao poder de deci- são do soberano. O soberano é o povo incorporado, é o corpo coletivo que expressa através da lei, a vontade geral. A soberania do povo, manifesta pelo legislativo, é inalienável, ou seja, ela não pode ser representada. A democracia rousseauniana critica o re- gime representativo, pois considera que toda lei não ratificada pelo povo em pes- soa é nula. Daí preconizar a democracia participativa ou direta. Só se mantém a soberania do povo através de assem- bléias freqüentes de todos os cidadãos. (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 257). Todas essas ideias fervilhavam no continen- te europeu no século XVIII e acabaram por dar corpo às reivindicações burguesas, que culmina- ram com a revolução Francesa em 1789. O ideário darevolução incorporou o sistema dos direitos humanos ao direito constitucional moderno. A primeira divisão dos direitos naturais pro- posta pela teoria do direito constitucional foi en- tre direitos naturais e direitos civis: Direitos naturais correspondiam à crença na existência pré-social de um estado natural do homem e procura- vam garantir as faculdades primordiais com que a Natureza caracterizara o ho- mem: liberdade pessoal, de religião, de pensamento. Direitos civis corresponderiam à evo- lução do homem do estado natural para o estado social, evoluindo-se para um conceito de liberdade civil, mais restrita que a liberdade individual, já que os seus limites coincidiam com os da liberdade de outros homens. Kant foi um dos primeiros a exprimir, em termos definitivos, essa noção de liberdade civil do indivíduo, limitada dentro do Estado pela li- berdade dos outros indivíduos, ao propor, no seu livro Crítica da Razão Prática (1788), a existência de uma lei interior a ser regida pelos imperativos categóricos. Nessa obra de importância capital, tanto pela evolução intelectual do autor como pelo lu- gar que ocupa na história do pensamento huma- no, Kant atribui à ética a finalidade de descobrir e revelar o princípio que a razão do homem prático – a razão prática – usa sem o conhecer. Essa teoria jurídica dos direitos humanos, caracterizada, a princípio, pela diferença entre di- reitos naturais e direitos civis, teve a sua primeira concretização em sentido amplo com a Declara- ção de Direitos inglesa (Bill of Rights), que, como vi- mos, influenciou o pensamento de Montesquieu já em 1689, cem anos antes da Revolução France- sa. Por essa lei, foram introduzidas, na Inglaterra, várias medidas que, mais tarde, se tornariam parte do regime democrático, tais como eleições livres para o parlamento, liberdade de debates dentro dele, supressão de penalidades cruéis, proibição de encargos fiscais sem autorização legislativa; contudo, ainda, os direitos dos indivíduos apare- ciam de forma reflexa, como decorrência dos de- veres impostos à Coroa, isto é, ao Estado. Foi somente após a independência dos Es- tados Unidos, com as constituições escritas dos Estados na nova federação, que as Declarações de Direitos, inseridas nesses documentos, adqui- riram o caráter de relação de direitos oponíveis aos do Estado e de que todos os cidadãos eram sujeitos de direitos. Como exemplo, a Constituição da Virgínia, de 1776 (Virginia’s 1776 Declaration of Rights), diz expressamente: AtençãoAtenção Na constituição da ideia de cidadania deve-se partir, pois, do princípio de que a teoria jurídica dos direitos humanos se caracteriza pela sua re- latividade em relação aos próprios homens, mas não em relação ao Estado. Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 21 [...] todos os homens são naturalmente livres e independentes e dispõem de cer- tos direitos, dos quais, quando entram em estado social, eles não podem, por nenhum título, privar os seus descen- dentes; notadamente o gozo da vida e da liberdade, a aquisição e manutenção da propriedade, e a procura de segurança e felicidade. Com esse documento legal, os direitos hu- manos adquiriam, pela primeira vez, forma posi- tiva, ficando superada a fase em que eles decor- riam implicitamente de limitações impostas ao arbítrio do Estado. Essas ideias foram ratificadas na emenda constitucional americana de 1791, que incluía na Constituição dos Estados Unidos uma Declaração de Direitos. Em resumo, tal emenda contém as seguintes disposições: “liberdade de religião, de palavra, de imprensa, de reunião e de petição, di- reito a julgamento legal e público, proibição de penalidades cruéis.” O ano de 1791 foi também o de promul- gação da Constituição Francesa pós-revolução. A Assembleia Nacional, na qual se transformara a reunião dos Estados Gerais, nomeou, em 6 de julho de 1789, uma comissão especial incumbida de preparar o projeto da Constituição. No dia 14 (data da queda da Bastilha), a Assembleia decidiu que a Constituição deveria ter uma Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (Déclaration des droits de l’homme et du citoyen), que, votada em 1789, figura como preâmbulo da Constitui- ção Francesa de 1791. Composta de 17 artigos, contém, basicamente, as seguintes disposições: princípio de isonomia (igualdade perante a lei), li- berdade pessoal, de opinião, de religião, de impren- sa, justiça fiscal, separação de poderes e direito de propriedade. A partir desses textos precursores, as decla- rações de direitos tornaram-se comuns nas cons- tituições do mundo ocidental, no decorrer do século XIX. A importância adquirida por elas foi tão grande que o direito constitucional clássico considerava que as leis fundamentais continham, essencialmente, duas partes: uma, destinada à definição dos poderes e ao seu funcionamento, e outra, destinada aos direitos e às garantias indivi- duais. No Brasil, a definição de Rui Barbosa, do sé- culo XIX, a respeito da ciência jurídica e dos direi- tos e garantias individuais, é antológica: Uma coisa são garantias constitucionais, outra coisa os direitos que essas garantias traduzem, em parte, a condição de segu- rança, política ou judicial. Os direitos são aspectos, manifestações da personalida- de humana em sua existência subjetiva, ou nas suas situações de relações com a sociedade, ou os indivíduos que a com- põem. As garantias constitucionais, stric- to sensu, são as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos de poder (1893, p. 164). Esclarecendo seu pensamento, Rui Barbosa apresentava o quadro dos direitos individuais de- finidos e das respectivas garantias asseguradas, de forma a tornar facilmente apreensível o caráter complementar da garantia em relação ao direito. Um exemplo clássico de direito individual e de sua garantia é o da liberdade pessoal e do recurso do habeas corpus. Assista ao filme Danton – O processo da Revolução, do diretor francês Adrzej Wajda. Trata-se de um belo filme sobre a Revolução Francesa, que mostra as divergências e os confrontos entre seus dois líderes, Danton e Robespierre. MultimídiaMultimídia Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 22 As transformações sociais trazidas pela evo- lução da economia e dos meios de produção fo- ram alterando, na teoria do direito constitucional, as concepções clássicas dos direitos individuais. A intervenção crescente do Estado em todos os setores da vida coletiva determinou uma série de novas regras jurídicas em que o indivíduo era me- nos visado do que o grupo, ou seja, aos direitos individuais do Estado Liberal foram sendo acres- cidos certos direitos sociais, reconhecidos pelo Estado. Uma discussão complementar a esse tema seria o estudo do papel a ser desempenhado pelo Estado14 na constituição da cidadania, pois se o ci- dadão é sujeito de direitos, ao Estado cabe a ga- rantia destes. Fica-nos, então, a questão: a quais direitos nos referimos quando falamos em direitos do cidadão brasileiro? Um bom guia para nortear a nossa reflexão pode ser a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da qual o Bra- sil é um dos países signatários. Cotejá-la à nossa Constituição Federal, de 1988, alterada pelas inú- meras Emendas Constitucionais em vigor, pode mostrar-se um exercício interessante para a refle- xão e construção do que seja (ou do que deveria ser) cidadania hoje no nosso país. A partir daí, poderíamos sonhar com uma cidadania planetária? É o que discutiremos no próximo tema. 14 Para Hegel, o Estado é uma das mais altas sínteses do espírito objetivo. “O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses contraditóriosentre os indivíduos. Assim como a família é a síntese dos interesses contraditórios entre seus membros, e a sociedade civil a síntese que supera as divergências entre as diversas famílias, o Estado representa a unidade final, a síntese mais perfeita que supera a contradição existente entre o privado e o público. Portanto, o Estado se define por não possuir nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais a todos.” (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 264). Neste capítulo, tratamos de alguns pensadores e movimentos que foram decisivos para o desenvol- vimento da noção de cidadania e, mesmo, dos direitos do homem. Inicialmente, abordamos os filósofos contratualistas: Locke, Hobbes e Rousseau. Contratualistas porque acreditavam que uma sociedade que pudesse garantir os direitos do homem deveria estar fundada em um contrato. No entanto, cada um con- cebe esse contrato de uma forma diferente, e todos eles de uma noção de homem. Em Locke, o homem é uma tábula rasa; em Hobbes, é o lobo do próprio homem; em Rousseau, nasce bom, e a sociedade o corrompe. Todos eles desejam um tipo de Estado a partir desse contrato. Um estado burguês, para Locke; um Estado autoritário, para Hobbes; e, em Rousseau, a soberania do povo. Com Montesquieu, estudamos o surgimento de um Estado a partir da teoria dos três poderes: o executivo, o legislativo e o judiciário. Em todos – em menor grau para Hobbes – se pensa no direito do cidadão. Estudamos, ainda, dois grandes movimentos, a Independência Americana (1776) e a Revolução Francesa, que vão consolidar o direito à cidadania e os Direitos do homem. 2.1 Resumo do Capítulo Conhecido como patrono da cultura nacional, Rui Barbosa (1849-1923) ainda é um dos brasileiros mais estimados e de memória mais respeitada, com uma vasta obra que sobreviveu aos ataques do Modernismo, ao contrário das da maioria de seus contemporâneos. CuriosidadeCuriosidade Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 23 1. Em que tipo de contexto nasceu a necessidade de caracterizar/construir os direitos do ho- mem? 2. Os filósofos da “era moderna” partilhavam as mesmas ideias sobre o homem? Exemplifique. 3. Por que a Constituição da Virgínia, de 1776, é tão importante para a consolidação dos direitos do homem? 2.2 Atividades Propostas Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 25 Considera a pior das iniqüidades submeter alguém o seu espírito à vergonha e, por amor à vida, perder as razões de viver. Juvenal O rei pode determinar o meu destino terreno, mas não pode forçar-me a negar minha consciência e minhas convicções íntimas. Emanuel Kant Para Kant, os seres humanos têm um valor intrínseco, isto é, dignidade, porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua condu- ta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um senti- do de dever, fazê-lo. Isso, pensava Kant, é a única coisa com valor moral. Assim, se não existissem seres racionais, a dimensão moral do mundo sim- plesmente desapareceria. Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa entre outras. Eles são os seres para quem as meras coisas têm valor e são os seres cujas ações cons- cientes têm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa. ÉTICA E CIDADANIA3 Se o seu valor está acima de qualquer preço, segue-se que os seres racionais têm de ser trata- dos sempre como um fim, e nunca apenas como um meio. Isso significa, a um nível muito super- ficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respei- tar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal e, em ge- ral, empenhar-nos, tanto quanto possível, em pro- mover a realização dos fins dos outros. No entanto, a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profun- da. Os seres de que estamos a falar são racionais, e tratá-los como fins em si significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos ob- jetivos, por melhores que esses objetivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo: suponha que você precise de dinheiro e queira um emprésti- mo, mas saiba que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promes- sa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propósito meritório – tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo como um meio. Entretanto, como seria tratar o seu amigo como um fim? Suponha que você dissesse a ver- dade, que precisava do dinheiro para certo obje- tivo, mas que não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios po- deres racionais, consultar os seus próprios valores e desejos e fazer uma escolha livre e autônoma. DicionárioDicionário Valor: Em filosofia, o termo é, em geral, considera- do em uma acepção moral, para designar o que proporciona normas à conduta. Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 26 Se decidisse, de fato, emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, escolheria fazer seu esse ob- jetivo. Dessa forma, você não usaria o seu amigo como um meio para alcançar o seu objetivo, pois seria, agora, igualmente o objetivo dele. A concepção kantiana da dignidade huma- na não é fácil de entender; precisamos encontrar uma forma de tornar a ideia mais clara. Para isso, analisaremos mais detalhadamente uma das suas aplicações mais importantes: a cidadania. As ações humanas são mediadas tanto pela percepção do real como pela capacidade de dar diferentes respostas ante um estímulo. Como já vimos, os diferentes grupos humanos criaram di- ferentes formas de responder às suas necessida- des, formas essas ligadas à sua cultura, aos valores que criaram e passaram a cultuar. Assim, a moralidade está presente em todas as culturas e ganha concretude quando analisa- mos o comportamento de cada pessoa em rela- ção a si própria e aos outros, um povo em relação às suas condicionantes internas e na relação com outros povos. É no viver em sociedade, na polis, na “cida- de”, que se configuram valores, estabelecem-se direitos, prescrevem-se normas, regras e leis, e é, também nesse espaço de cidadania, que nor- mas, regras e leis podem ser contestadas, a par- tir da proposição de novos valores. Há, portanto, um caráter histórico na definição da moralidade, como vimos nos temas anteriores. Atualmente, discutimos questões como a igualdade e a diferença entre os seres humanos, grupos culturais e classes sociais. Continuamos enfrentando situações em que se negam e des- respeitam os direitos dos seres humanos, em que dominam os preconceitos e a violência, mas, por outro lado, essas formas de discriminação têm sido veementemente denunciadas, o que abre um espaço para a discussão da tolerância. Nessa medida, o exercício da cidadania co- loca-se como a possibilidade de escolha inerente a todos os seres humanos. Escolher significa valo- rar. Poder escolher implica liberdade, o que, por sua vez, implica responsabilidade. Exercer a cidadania de uma forma ética po- deria, talvez, ser definido como o ato de se fazer livremente e de maneiraresponsável a escolha de valores de convivência que garantam que o outro seja tratado como um fim. As dimensões do ato humano trariam, nes- sa medida, a relação necessária entre querer, po- der e dever. Em todas as sociedades humanas há razões para a obediência e para a rebeldia; a responsabi- lidade implica o conhecimento dessas razões e a consideração das implicações das escolhas para aqueles a quem se dirigem nossos atos ou para aqueles com quem os compartilhamos. AtençãoAtenção Tratando de outro, de um ser humano igual em direito, Kant afirmou que “os seres racionais […] têm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que têm de poder conter em si a finalidade da ação.” AtençãoAtenção Cada uma dessas dimensões ganha sentido na articulação com as demais: não adianta querer re- alizar um gesto bom se não se pode realizá-lo; não adianta poder se não se tem consciência do que se deve fazer; não adianta saber o que se deve fazer se não se quer empenhar a vontade em fazê-lo; etc. Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 27 Apostar na escolha individual não quer di- zer, contudo, que haja uma moral individual. É dentro do contexto social, dos grupos de que faz parte, que o indivíduo desenvolve suas potencia- lidades, inclusive sua moralidade, pois a relação de responsabilidade envolve poder e interdepen- dência. Como descrito nos Parâmetros Curricula- res Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1998), [...] ela [a moralidade] remete, assim, de certo modo, à noção de cuidado. Ser res- ponsável é ter cuidado com o poder que se exerce, ao realizar escolhas e definir caminhos para a ação. É preciso ter claro, portanto, que o que se verifica é um po- sicionamento de cada pessoa frente aos valores e princípios que são criados e que têm significação no âmbito mais amplo de uma comunidade humana. A ação humana é presa do cotidiano, cer- cada pelos ditames da Moral; exercer a cidadania nesse contexto, tratando os outros como fim em si mesmos seria, na concepção kantiana, iluminar esse caminho com as luzes da Ética. Como fazê-lo? Ter clareza racional acerca do imperativo categórico de não mediatização do homem, para poder fazer uma leitura crítica da moral vigente. Ainda como afirmado nos PCNs, a ética é a reflexão crítica sobre a mora- lidade. Ela não tem um caráter norma- tivo, pois, ao fazer uma reflexão ética, pergunta-se sobre a consistência e a coerência dos valores que norteiam as ações, busca-se esclarecer e questionar os princípios que orientam essas ações, para que elas tenham significado autên- tico nas relações. Há uma multiplicidade de doutrinas morais que, pelo fato de se- rem históricas, refletem as circunstâncias em que são criadas ou em que ganham prestígio. Assim, são encontradas dou- trinas morais cujos princípios procuram fundamentar-se na natureza, na religião, na ciência, na utilidade prática. As ques- tões que se colocam a respeito das ações encontram resposta, de imediato, nas diversas doutrinas. Para a pergunta ‘por que devemos agir de determinada ma- neira?’, encontram-se respostas diversas, como: ‘porque está escrito nos Manda- mentos’, ‘porque está demonstrado pela teoria x’, ‘porque traz vantagens’ etc. A pergunta crítica colocada pela ética é de natureza diferente, pois sua intenção é problematizar exatamente os fundamen- tos. Ela indagará: ‘que valores sustentam os Mandamentos?’, ‘qual o suporte da teoria x?’, ‘para quem tal ação traz vanta- gens?’. A ética serve, portanto, para verifi- car a coerência entre práticas e princípios, e questionar, reformular ou fundamentar os valores e as normas componentes de uma moral, sem ser em si mesma norma- tiva. Entre a moral e a ética há um cons- tante movimento que vai da ação para a reflexão sobre seus sentidos e seus fun- damentos e, da reflexão retorna à ação, revigorada e transformada. Observe bem esse ponto: se a moral é cir- cunstancializada historicamente e a ética nos permite uma leitura mais profunda dessas cir- cunstâncias, as relações entre ética e cidadania colocam-se na justa medida da adesão racional a valores que permitam a todos a busca da felici- dade, pois as vivências particulares cruzam-se na construção coletiva das sociedades e culturas, e Assista ao filme Um Grito de Liberda- de, do diretor Robert Attenborough. Trata-se de uma história real sobre o jovem negro Steve Biko na luta contra o apartheid, na África do Sul. MultimídiaMultimídia Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 28 umas e outras ganham sua configuração especí- fica em função das condições particulares dos se- res humanos e dos ambientes – físico-biológicos e histórico-econômico-políticos – nos quais estes vivem. De qualquer modo, a dimensão moral das ações humanas guarda uma perspectiva de in- tencionalidade. Ao agir no mundo, construindo sua vida, na relação com os outros, o ser humano o faz com vistas à sua realização, ou seja, em bus- ca da felicidade. Na perspectiva que discutimos nesta disci- plina, a felicidade confundir-se-ia com a realiza- ção do bem comum, pois [...] ser cidadão é participar de uma so- ciedade, tendo direito a ter direitos, bem como construir novos direitos e rever os já existentes. Participar é ser parte e fazer parte – com seu fazer, sua interferência criativa na construção da sociedade, os indivíduos configuram seu ser, sua especificidade, sua marca humana. Admitir e defender direitos humanos significa reconhecer não apenas esta ou aquela propriedade de alguns sujeitos, mas que o direito de ser humano é um estatuto que todas as pessoas têm o dever moral de, consciente e voluntariamente, conceder-se umas às outras. (BRASIL, 1998). Ou, ainda, como nos ensinava Kant, [...] devo esforçar-me por promover a feli- cidade do próximo, não como se com isso favorecesse qualquer interesse meu (seja por inclinação imediata seja por qualquer satisfação diretamente obtida através da razão), mas simplesmente porque uma máxima que a excluísse não poderia ser compreendida como lei universal em uma única e mesma volição. 3.1 Resumo do Capítulo Neste capítulo, tratamos, principalmente, do pensamento kantiano. E, ao pensar o homem, ele co- meça afirmando que ele traz um valor em si, e por isso deve ser sempre tratado como fim, e não como meio. Tratá-lo como um fim é jamais observá-lo como coisa, é respeitá-lo. Observamos, também, que a moral que nos envolve é circunstancializada, e que por isso depende de nossas escolhas. E escolher im- plica valorar, julgar, colocar-se. E esse colocar-se implica, ou deveria implicar, a manifestação do indivíduo como um cidadão, um cidadão de direitos. 3.2 Atividades Propostas 1. Para o filósofo Immanuel Kant, os seres racionais têm de ser tratados sempre como um fim, e nunca apenas como um meio. O que isso significa? Para o indivíduo, a noção de fim implica certas restrições? 2. Pensando nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais – MEC/1998) e em como abordam a questão da moral (como moralidade), por que eles acabam destacando a noção de cuidado? Explique. Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 29 A criança tem em si mesma um impulso natural irresistível; a tendência ao cresci- mento. Não pode renunciar a isso para se adaptar às exigências sociais. Ela se defen- de contra tudo o que impede a sua energia de desenvolvimento, porque, a todo preço, deve crescer, sob pena de morrer. Se ela só parcialmente se adaptar, sua adaptação não aumenta o equilíbrio social, mas pro- duz unicamente um homem mal desen- volvido e enfraquecido [...] A nossa tarefa de adulto consiste, pois, em criar para a criança um ambiente apropriado, onde a cada etapa ela encontre os meiosnecessá- rios ao seu desenvolvimento. Depois só nos restará observar a criança para secundá-la o melhor que pudermos. Eis aí toda a obra do educador. Seu papel torna-se destarte mais humilde e sua autoridade se apaga ante o impulso criador da criança. Maria Montessori O PAPEL DA INSTITUIÇÃO ESCOLAR NA CONSTRUÇÃO DO JUÍZO MORAL DOS EDUCANDOS 4 Um processo educacional que pretenda for- mar para a cidadania não pode desconsiderar o processo de formação do juízo moral nas crianças e nos adolescentes. Jean Piaget15 foi um dos teóricos que pro- duziram conhecimentos que podem dar suporte à ação docente em relação a essa questão. Piaget estudou a construção da moralidade sob uma dupla perspectiva: de um lado, pesqui- sou o pensamento moral efetivo, ou experiência moral, que se constrói pouco a pouco, por meio da ação individual, isto é, por meio dos fatos e por ocasião dos conflitos com o social; por outro lado, estudou o pensamento moral teórico, ou verbaliza- do, que aparece quando o indivíduo é levado a julgar os atos de outras pessoas que lhe interes- sam diretamente ou a própria conduta passada. 15 Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, no dia 9 de agosto de 1896 e faleceu em Genebra em 17 de setembro de 1980. Estudou a evolução do pensamento até a adolescência, procurando entender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza para captar o mundo. Como epistemólogo, investigou o processo de construção do conhecimento, sendo que nos últimos anos de sua vida centrou seus estudos no pensamento lógico-matemático. Piaget foi um menino prodígio. Interessou-se por História Natural ainda em sua infância. Aos 11 anos de idade, publicou seu primeiro trabalho sobre a observação de um pardal albino. Esse breve estudo é considerado o início de sua brilhante carreira científica. Aos sábados, Piaget trabalhava gratuitamente no Museu de História Natural. Piaget frequentou a Universidade de Neuchâtel, onde estudou biologia e filosofia, e recebeu seu doutorado em biologia em 1918, aos 22 anos de idade. Após formar-se, Piaget foi para Zurich, onde trabalhou como psicólogo experimental. Lá, frequentou aulas lecionadas por Jung e trabalhou como psiquiatra em uma clínica. Essas experiências influenciaram-no em seu trabalho. Ele passou a combinar a psicologia experimental – que é um estudo formal e sistemático – com métodos informais de psicologia: entrevistas, conversas e análises de pacientes. Em 1919, Piaget mudou-se para a França, onde foi convidado a trabalhar no laboratório de Alfred Binet, um famoso psicólogo infantil que desenvolveu testes de inteligência padronizados para crianças. Piaget notou que crianças francesas da mesma faixa etária cometiam erros semelhantes nesses testes e concluiu que o pensamento se desenvolve gradualmente. O ano de 1919 foi um marco em sua vida. Piaget iniciou seus estudos experimentais sobre a mente humana e começou a pesquisar também sobre o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Seu conhecimento de biologia levou-o a enxergar o desenvolvimento cognitivo de uma criança como uma evolução gradativa. Em 1921, Piaget voltou à Suíça e tornou-se diretor de estudos do Instituto J. J. Rousseau da Universidade de Genebra. Lá, iniciou o maior trabalho de sua vida, ao observar crianças brincando e registrar meticulosamente suas palavras, suas ações e seus processos de raciocínio. Em 1923, Piaget casou-se com Valentine Châtenay, com quem teve 3 filhos: Jacqueline (1925), Lucienne (1927) e Laurent (1931). As teorias de Piaget foram, em grande parte, baseadas em estudos e observações de seus filhos que ele realizou ao lado de sua esposa. Enquanto prosseguia com suas pesquisas e publicações de trabalhos, Piaget lecionou em diversas universidades europeias. Registros revelam que ele foi o único suíço a ser convidado a lecionar na Universidade de Sorbonne (Paris, França), onde permaneceu de 1952 a 1963. Até a data de seu falecimento, Piaget fundou e dirigiu o Centro Internacional para Epistemologia Genética. Ao longo de sua brilhante carreira, Piaget escreveu mais de 75 livros e centenas de trabalhos científicos. Sandra da Costa Lacerda Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 30 O próprio Piaget considerou que os julga- mentos verbais, baseados em atos não praticados e não testemunhados, não levam a uma avaliação ideal da construção do juízo moral. Considerou que os julgamentos apoiados na narração de his- tórias estão em atraso em relação às avaliações apoiadas na experiência, pois o grau de toma- da de consciência difere em ambas as situações. Quando exerce um julgamento prático ou efetivo, a criança não projeta luz sobre noções já elabora- das, mas as constrói, em um processo complexo e demorado. Os julgamentos morais podem estar asso- ciados a dois tipos de responsabilidades: objeti- va e subjetiva. A primeira ocorre quando o indi- víduo se sente responsável por um ato proibido por uma autoridade externa, por uma ação que se choca com as normas impostas de fora; já a se- gunda acontece quando o indivíduo se sente res- ponsável por um ato censurado por ele mesmo, que vai contra as normas construídas e sanciona- das por ele, em cooperação com a sociedade. Como tais formas de julgamento são apro- priadas pelo indivíduo? AtençãoAtenção Piaget, então, estudou a construção da morali- dade sob uma dupla perspectiva: pesquisando o pensamento moral efetivo, ou a experiência mo- ral, e pesquisando o pensamento moral teórico, ou verbalizado. A criança aprende socialmente a respeitar normas e regras por meio de dois tipos de rela- ções sociais: Relações sociais coercitivas: são im- postas e baseiam-se na autoridade e no respeito do inferior ao superior, levan- do à chamada moral heterônoma. Um exemplo claro de tal situação refere-se às crianças pequenas que, não poden- do criar suas normas em colaboração com o ambiente, interiorizam as nor- mas dos pais ou da sociedade. Relações sociais cooperativas: nas- cem no interior do indivíduo como produto da comunhão de ideias e sen- timentos entre parceiros, baseando-se na igualdade e no respeito mútuo. Daí decorre a moral autônoma que obriga os indivíduos a situarem-se em relação aos outros, sem fazê-los suprimir ou abandonar seus pontos de vista parti- culares. No seu estudo com crianças pequenas, Pia- get constatou que se as regras são elaboradas pe- los adultos, torna-se difícil separar o respeito que as crianças têm por essas regras do respeito que têm pelo adulto que as elabora, ou seja, como se- parar a obediência da regra por achá-la justa da obediência à regra por amor à pessoa que a emi- te. Assista ao documentário Jean Piaget, da Cole- ção Grandes Pensadores. Apresentação do Prof. Dr. Yves de La Taille. Para guiar o professor que pretende conhecer melhor o tema, este vídeo apresenta de forma clara os principais conceitos piagetianos. MultimídiaMultimídia Direito Educacional e Ética Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 31 Tentando superar essa dificuldade na pes- quisa,16 Piaget propôs-se a trabalhar com jogos, o que facilitou o estudo de duas classes de fenôme- nos, a prática de regras e a consciência das regras, ou seja, o modo de jogar e o sentimento de vali- dade e obrigatoriedade das regras aplicadas. O estudo levou Piaget a concluir que exis- tem três tipos de regras: Motora: relativamente independente do social, confunde-se com a sequência de ações realizadas no hábito. Coercitiva: derivada do respeito uni- lateral que submete um indivíduo ao outro. Racional: originada do respeito mútuo e da cooperação entre iguais. Sendo in- terna, torna-se produto da personalida- de e, de forma circular, fator de forma- ção da própria personalidade. No transitar da regra motora à regra racional existe a intervenção do respeito unilateral e
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