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Limites da Investigação Científica em Psiquiatria. Dificuldades Conceituais. Renato José Vieira 01 de Junho de 2007 Limites da Investigação em Psiquiatria Avanços metodológicos: Técnicas de neuroimagem, incluindo neuroimagem funcional (RNMf, SPECT, PET) Avanços nas explicações neurofarmacológicas (experimentos com ligantes em animais, técnicas de biologia molecular, Espectrografia por RNM, patch-clamp, novos neurotransmissores, etc) Aprimoramento dos estudos eletrofisiológicos (EEG sub- cortical, EEG de alta definição, TMS, etc) Evolução do conhecimento da genética (refinamento dos estudos de observação populacionais, genética molecular, projeto genoma) AMPLIAÇÃO DAS FERRAMENTAS DE INVESTIGAÇÃO... QUE ESBARRAM EM DIFICULDADES CONCEITUAIS! Limites da Investigação em Psiquiatria O exemplo ideal... Ser foco de pesquisa atual, em suas diversas modalidades. Expor antigos conflitos conceituais da psiquiatria: psiquismo x somatismo constituição x interação com o meio liberdade x determinismo Ter sintomatologia ampla, que contraste nitidamente com a normalidade. Limites da Investigação em Psiquiatria Um caso clínico. Paciente de 18 anos, nos dois últimos meses encontrava-se mais introspectivo que o habitual, com muita preocupação sobre o próprio futuro. Durante viagem para o carnaval da Bahia começa a ouvir o trio-elétrico chamar seu nome e a chamá-lo de homossexual. Começou a sentir que, de alguma forma, tudo se referia a ele: a risada das pessoas, as cores das fantasias, os enredos do carnaval. Extremamente agitado, com medo dos amigos, que acreditava estarem participando de algum plano para prejudicá-lo, após quase 2 dias foi internado no hospital psiquiátrico universitário da região, permanecendo por cerca de 3 semanas. Manteve o uso da medicação após a alta, e – embora tenha recuperado boa parte do juízo de realidade, às vezes ainda pensa se, de fato, não estaria mesmo sendo enganado por alguma conspiração, mostrando-se em dúvida sobre o que acreditar. Desde então houve um importante prejuízo da riqueza afetiva. Esquizofrenia Uma Breve História. 1896: Emil Kraepelin cunha o termo Daementia Praecox (Demência Precoce), agregando entidades até então distintas (Catatonia de Kahlbaum e Hebefrenia de Hecker). • Crença na validade naturalística de sua descrição. • Diversas formas diferentes (paranóide, catatônica, simples, depressiva, etc). • Curso progressivamente degenerativo. • Irreversível. Esquizofrenia Uma Breve História. 1911: Eugen Bleuler cunha o termo “esquizofrenia”, mudando a descrição inicial de Kraepelin. • Não se trata de uma demência. • Trata-se de uma cisão do funcionamento psíquico. 4 A´s: • Possibilidade de recuperação. • Conteúdos interpretáveis (influência de Jung). 1. Associações frouxas do pensamento. 2. Ambivalência afetiva e do pensamento. 3. Autismo. 4. Afetividade perturbada. Esquizofrenia Uma Breve História. Década de 30: Kurt Schnneider restringe o diagnóstico fundado nos “sintomas de primeira ordem”. • Roubo e inserção do pensamento. • Vozes dialogando entre si. • Vozes comentando ação. • Percepção ou intuição delirante. • Vivências de influência. • Sonorização do pensamento. Esquizofrenia Uma Breve História. Década de 60 e 70: Critérios Diagnósticos, ou, o início da era dos grandes manuais (CIDs e DSMs). • Grande variação nos diagnósticos clínicos (Cooper et al., 1972). • Diagnósticos operacionais (Escola de St Louis – RDC, 1972). • Homogeneização dos diagnósticos clínicos para pesquisa e tratamento. • Uniformização da linguagem para comunicação. Esquizofrenia Uma Breve História. Esquizofrenia pelo DSM – IV: A: Pelo menos dois destes sintomas por pelo menos um mês: delírios alucinações, fala desorganizada, comportamento totalmente desorganizado ou catatônico, sintomas negativos. B: Disfunção social e ocupacional em uma ou mais áreas de funcionamento: trabalho, relações interpessoais e auto-cuidados. C: Duração de sinais contínuos persiste por pelo menos 6 meses. D: Não pode ser explicado por um transtorno de humor (TAB ou Esquizoafetivo). E: Exclusão de substâncias ou condição médica geral. F: Em caso de autismo prévio, há a necessidade de delírios e alucinações por pelo menos um mês. Esquizofrenia Uma Breve História. Esquizofrenia pela CID-10: G1: Pelo menos um sintoma do item 1 ou pelo menos dois sintomas do item 2 por pelo menos 1 mês: ITEM 1 a) Eco, inserção, bloqueio ou irradiação do pensamento. b) Delírios de controle, influência ou passividade. c) Vozes comentando ações ou discutindo entre si, continuamente. d) Delírios bizarros (culturalmente inapropriados ou impossíveis) ITEM 2 e) Alucinações de qualquer modalidade. f) Neologismos, quebra ou interpolação do pensamento, com fala incoerente. g) Catatonia, negativismo, mutismo ou esturpor. h) Apatia, escassez de fala, embotamento ou incongruência afetiva. Esquizofrenia Uma Breve História. Esquizofrenia pela CID-10: G2: Critérios de exclusão para transtorno afetivo. G3: Não deve ser atribuído a doença cerebral orgânica ou à álcool e drogas. Esquizofrenia “Psicopatologia Geral”, Karl Jaspers Divisão da Percepção: “Um pássaro chilreia no jardim. Ouço o pássaro e sei que ele chilreia, mas que é um pássaro e que chilreia são coisas tão distantes e separadas. É um abismo. Quase temia não poder bem reuni-las. Assim, como se o pássaro e o chilrear não tivessem nada um com o outro” (Fisher) Esquizofrenia “Psicopatologia Geral”, Karl Jaspers Estranheza do mundo da percepção: “É como se eu visse tudo através de um véu; como se ouvisse tudo através de um muro. As vozes dos outros parecem-me provir de longe. As coisas já não parecem como dantes. São diferentes, estranhas, parecem achatadas como relevo. Minha própria voz soa estranho para mim mesmo. Tudo se me afigura assombroso, novo, como se não o tivesse visto há muito tempo” Esquizofrenia “Psicopatologia Geral”, Karl Jaspers Alucinações auditivas: “Ouviam-se, então, discursos longos sobre mim, em sua maior parte de conteúdo injurioso, imitando-se muitas vezes a voz de pessoas conhecidas: o que se dizia, porém, continha sempre pouca verdade e, na sua maior parte, as mentiras mais vergonhosas sobre minha pessoa” (Kieser) Esquizofrenia “Psicopatologia Geral”, Karl Jaspers Auto-referência: “Mal saio de casa, alguém anda em meu redor, se fixa, procura pôr de propósito na minha frente algum ciclista (...). Os rapazes, de propósito, querem atribuir-me algo de repreensível e imoral com relação às meninas, torcer os fatos em meu desfavor. Os rapazes então falam no posto de polícia sobre mim, confraternizam-se com os trabalhadores... O abuso de fixar com os olhos e insinuações continua até o almoço” O paciente pede que a “linguagem dos olhos”, que até um juiz empregou ao interrogá-lo seja abolida Esquizofrenia “Psicopatologia Geral”, Karl Jaspers Perda do sentimento do “eu”: Uma paciente diz que não vive, que não pode se mover, que não tem inteligência nem sentimento. Ela também nunca existiu, apenas se acreditou que ela existisse. Outra paciente dizia: “O pior é que não existo!”. Investigação Científica em Esquizofrenia 1. A Neuroimagem 1. Métodos “estáticos”: * RX crâneo * Ventriculografia e Arteriografia * Tomografia Computadorizada * Ressonância Nuclear Magnética 2. Métodos Funcionais: * RNM c/ espectroscopia * RNM funcional * SPECT * PET-scan * “tension-difusion” resonance Investigação Científica em Esquizofrenia 1. A Neuroimagem Investigação Científica em Esquizofrenia 1. A Neuroimagem J Clin Invest. 2003 July 1; 112(1): 10–18. “Procedural learning”J Clin Invest. 2003 July 1; 112(1): 10–18. Investigação Científica em Esquizofrenia 2. Investigações Neuro-farmacológicas Metodologias diversas: 1. Investigações anátomo-fisiológicas em cérebro humano: ligantes de receptores; marcadores da expressão gênica; histo- patologia, etc. 2. Manipulações farmacológicas: observação do efeito de drogas (cocaína, mescalina, LSD, etc); ação das drogas terapêuticas (clorpromazina); dosagem de neurotransmissores e metabólitos (líquor ou biópsia); bloqueadores ou agonistas de receptores em modelos animais, ratos knock-out, etc. 3. Estudos eletrofisiológicos: EEG; vídeo-EEG; teste p50; EMT Investigação Científica em Esquizofrenia 2. Investigações Neuro-farmacológicas Hipótese Dopaminérgica • Aumento da atividade dopaminérgica em sistema límbico e pouca atividade frontal. • Ação dos antipsicóticos típicos bloqueando D2. • Psicose anfetamínica. Investigação Científica em Esquizofrenia 2. Investigações Neuro-farmacológicas Hipótese Serotoninérgica • Aumento da atividade serotoninérgica, globalmente, e especialmente no sistema límbico. • Ação dos antipsicóticos atípicos bloqueando 5-HT2a e 5-HT2c • Psicose lisérgica (LSD). Investigação Científica em Esquizofrenia 2. Investigações Neuro-farmacológicas Córtex Cerebral Sistema Límbico Glu GABA Dopamina NA 5-HT NMDA Hipótese Glutamatérgica • Diminuição da atividade dos receptores NMDA, impedindo ativação do neurônio gabaérgico. • Psicose induzida por inibidores NMDA (Quetamina e fenciclidina/PCP) • Consegue harmonizar hipóteses anteriores. Investigação Científica em Esquizofrenia 2. Investigações Neuro-farmacológicas Outros modelos: • Aumento da atividade da fosfolipase A2 • Diminuição da atividade da adenosina • Outros sistemas de neurotransmissão (neuro- peptídeos) Investigação Científica em Esquizofrenia 3. Investigações Genéticas Observações Populacionais: estudos de agregação familiar / estudo de gêmeos MZ e DZ / Estudos de adoção Genética Molecular RFLP e procura de seqüência gênica após identificação de proteína fisiopatológicamente importante. Investigação Científica em Esquizofrenia 3. Investigações Genéticas Riscos de recorrência para parentes de probandos esquizofrênicos Slater & Cowie (1970) Parentesco com o probando Risco de recorrência Gêmeos monozigóticos 44,3% Gêmeos dizigóticos 12,1% Prole 9,4% Irmão 7,3% Sobrinho/a 2,7% Neto 2,8% Primo em primeiro grau 1,6% Cônjuge 1,0% (incidência populacional) Investigação Científica em Esquizofrenia 3. Investigações Genéticas Característica ou doença Gêmeos MZ Gêmeos DZ alcoolismo >0,6 <0,3 diabetes mellitus 0,45-0,96 0,03-0,37 distúrbio afetivo bipolar 0,8 0,2 epilepsia 0,69 0,14 esclerose múltipla 0,3 0,03 espinha bífida 0,7 0,3 esquizofrenia 0,5 0,2 fenda labial/palatina 0,4 0,1 porcentagem de gordura corpórea 0,7 0,2 infarto do miocárdio hom/mulh. 0,39/,44 0,26/,14 QI 0,76 0,51 sarampo 0,95 0,87 Investigação Científica em Esquizofrenia 3. Investigações Genéticas Kirov, G. et al. J. Clin. Invest. 2005;115:1440-1448 Investigação Científica em Esquizofrenia 3. Investigações Genéticas Kirov, G. et al. J. Clin. Invest. 2005;115:1440-1448 Dificuldades Conceituais da Investigação 1. A Instabilidade e a Arbitrariedade Nosográfica. Kraepelin, 1896 Bleuler, 1911 Schnneider, dec. de 30 Emil Kraepelin: A evolução deteriorante Eugen Bleuler: A esquizofrenia e os sintomas fundamentais Kurt Schnneider: Nova restrição conceitual: os sintomas de primeira ordem Dificuldades Conceituais da Investigação 1. A Instabilidade e a Arbitrariedade Nosográfica. OS MANUAIS DIAGNÓSTICOS: DSM E CID-10 Dificuldades Conceituais da Investigação 1. A Instabilidade e a Arbitrariedade Nosográfica. CID-10 e DSM • Manuais diagnósticos por check-list. • Criados sem preocupações etiológicas ou explicativas. • Bastante baseados em associações de sintomas. • “Consenso diagnóstico”, inclusive cm votação de “experts”. Dificuldades Conceituais da Investigação 2. A Barreira Léxica. PSICOLOGIA BIOLOGIA Emoção Tristeza Amor e Prazer Aspirações Espirituais Paixão Substância Serotonina Dopamina Circuitos Neuronais Testosterona Dificuldades Conceituais da Investigação 2. A Barreira Léxica. “ Onde os antigos homens colocavam uma palavra, acreditavam ter feito uma descoberta. Como era diferente, na verdade! – eles haviam tocado num problema e, supondo tê-lo resolvido, haviam criado um obstáculo para a solução. – Agora, a cada conhecimento tropeçamos em palavras eternizadas, duras como pedras, e é mais fácil quebrarmos uma perna que uma palavra”. (Nietzsche - Aurora, 47) Dificuldades Conceituais da Investigação 3. A Insuficiência do Vocabulário. A mesma palavra com freqüência se refere a termos bastante diversos. Por exemplo, a Consciência do Eu: a) Consciência da Identidade b) Consciência de Número c) Consciência de Atividade d) Consciência de Oposição a) Consciência de Identidade: “Ao descrever a minha história, tenho consciência de ser apenas uma parte de meu eu atual que vivenciou tudo isso. Até 23 de Dezembro de 1901 não posso dizer que tenha o eu de hoje”. b) Consciência de Número: “Acho quase impossível explicar o que acontece comigo nesses momentos (...), como se eu tivesse duas almas, sendo que uma é despojada de meu corpo e da utilização de seus órgãos, mantendo-se em seu canto e observando a outra, a intrusa, fazendo o que bem quer”. (Padre Surin) c) Consciência de Atividade: “Sou apenas uma máquina, um automato. Não sou eu quem fala, pensa ou sente”. “Tudo o que eu faço, e o que eu falo – inclusive o que estou falando agora – é comandado por hipnose, que fazem comigo enquanto estou dormindo”. d) Consciência de Oposição: “Senti o latir do cão como um bater doloroso no meu corpo. O cão estava latindo lá e meu eu estava em dores”. “Acho que já não posso esconder nada, essa experiência, eu a fiz nos últimos anos. Todos os pensamentos são descobertos. Noto que já não posso conservar autonomamente meus pensamentos”. Dificuldades Conceituais da Investigação 4. Os ciclos “infinitos” de interação. Os sistemas neurológicos são sistemas de contínua retroalimentação. Uma falha pode se dar em qualquer parte destas vias, e suas consequências dependerão de um sistema complexo de interações recíprocas. As interações não são somente biológicas: tais ciclos se expandem interferências recíprocas biográficas e sociais. Dificuldades Conceituais da Investigação 5. A Complexa Interação com o Ambiente. DOENÇA BIOLÓGICOS PSICOLÓGICOS SOCIAIS 1. A mente, é ela “ambiente” para a própria mente? 2. O cérebro se forma a medida que experimenta. Sua estrutura é (também) função de sua história. 3. A amplitude de manifestações que se classificam de doentes extrapola a patologia orgânica. Dificuldades Conceituais da Investigação 6. A infinidade das partes (A flecha de Zenão) Dificuldades Conceituais da Investigação 7. A dificuldade em entender as relações causais Muitas vezes somente conseguimos correlatos: p.e. dosagem de metabólitos de serotonina no líquor e depressão; Aumento do ACTH e Transtorno de Ansiedade; personalidade pré-mórbida e esquizofrenia. Como estabelecer direção à causalidade?
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