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1 Título: Acidose Metabólica Hiperclorêmica Autor: Paulo Novis Rocha Instituição: Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia Titulação: Graduado em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Residência em Clínica Médica no Medical College of Pennsylvania e em Nefrologia na Duke University, título de especialista em Clínica Médica e Nefrologia pelo American Boards of Internal Medicine e em Nefrologia pela Sociedade Brasileira de Nefrologia, Doutorado em Medicina pela UFBA, Professor Adjunto do Departamento de Medicina da FMB-UFBA. Endereço para correspondência: Prof. Dr. Paulo Novis Rocha Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia Departamento de Medicina Av. Reitor Miguel Calmon, s/no, Vale do Canela Salvador – BA, Brasil, CEP: 40110-100 Tel/Fax: (71) 3283-8862/8863/8864 C-elo: paulonrocha@ufba.br 2 Acidose metabólica hiperclorêmica Objetivos • Diagnosticar um quadro de acidose metabólica. • Calcular corretamente o anion gap sérico e urinário e interpretar os resultados. • Identificar as principais causas de acidose metabólica hiperclorêmica. • Discutir as alternativas de tratamento e a necessidade do uso de bicarbonato. Caso Clínico Paciente do sexo feminino, 77 anos, branca, natural e procedente de Salvador, Bahia. História da Doença Atual Deu entrada no pronto-socorro (PS) de um hospital universitário com quadro de diarréia há duas semanas. Negava dor abdominal ou vômitos. Evoluiu com fraqueza importante e tontura, principalmente ao se levantar. Admitiu uso de antibiótico há cerca de um mês para tratamento de uma infecção de vias aéreas superiores. História médica pregressa História de hipertensão arterial sistêmica de longa duração e doença renal crônica. Vinha em acompanhamento ambulatorial e apresentava uma creatinina basal entre 2,3 e 2,5 mg/dl. 3 Exame físico No momento da admissão, no pronto socorro, observou-se: • Pressão arterial de 110 x 60 mmHg; freqüência cardíaca de 80 batimentos por minuto em decúbito dorsal. • Pressão arterial medida na posição ortostática de 90 x 40 mmHg e freqüência cardíaca de 98 batimentos por minuto. • Temperatura axilar 36 º C. • Bom estado geral, mucosas levemente descoradas e secas. • Exame da cabeça e pescoço: sem alterações. No entanto, as veias do pescoço estavam achatadas na posição inclinada de 45 º. • Tórax: Aparentava desconforto respiratório, com freqüência respiratória de 26 incursões por minuto e padrão de Kussmaul. Na ausculta pulmonar, pulmões estavam “limpos” com o murmúrio vesicular uniformemente distribuído. • Aparelho cardiovascular: Ritmo regular, em dois tempos, com hiperfonese de B2; ausência de sopros. • Abdome: sem alterações • Extremidades: Pulsos palpáveis e simétricos sem edema. Sua Opinião • Resuma os aspectos mais relevantes da história e exame físico desta paciente e faça uma lista dos problemas mais significativos. • Quais diagnósticos mais prováveis neste caso? • Quais os exames laboratoriais a serem solicitados neste momento? 4 Respostas Comentadas Trata-se de uma paciente idosa com história prévia de hipertensão arterial sistêmica e doença renal crônica que apresenta um quadro agudo de diarréia com repercussão sistêmica observada através da hipotensão postural (queda de 20 mmHg na PA sistólica ou 10 mmHg na diastólica). Além disto, apresenta taquipnéia (> 20 mpm) e respiração com padrão de Kussmaul (respiração aumenta em frequência e profundidade). A “lista de problemas” poderia ser a seguinte: • Hipertensão arterial sistêmica • Doença renal crônica • Diarréia • Hipotensão postural • Taquipnéia e respiração de Kussmaul As “hipóteses diagnósticas” para o quadro agudo que a paciente apresentou poderiam ser: • Hipovolemia • Acidose metabólica pela diarréia (perda de bicarbonato nas fezes) e/ou por piora da doença renal crônica associada a hipovolemia. 5 Continuando a apresentação do caso Exames Laboratoriais da admissão: Sódio 130 mEq/l Potássio 3,8 mEq/l Uréia 180 mg/dl Creatinina 5,2 mg/dl Cloro 110 mEq/l Albumina sérica 3,5g/dl Hemoglobina 13,0 g/dl Sua opinião • Como interpretar os resultados dos exames laboratoriais iniciais? Resposta Comentada Chamam atenção a piora importante da função renal (lembre que a creatinina basal era ± 2,5 mg/dl) e a presença de discreta hiponatremia. Considerando a história de diarréia e o achado de hipotensão postural ao exame físico, o provável mecanismo da agudização da disfunção renal é hipovolemia (“IRA pré-renal”), embora não possamos afastar uma necrose tubular aguda isquêmica. Alguns exames complementares poderiam ajudar a confirmar um diagnóstico de IRA pré-renal: um sedimento urinário limpo, osmolaridade urinária elevada e sódio urinário < 20 meq/L (ou fração de excreção de sódio < 1%) (1). Na indisponibilidade destes exames (como no caso atual), um dado prático importante é observar a resposta renal à expansão volêmica; na IRA pré-renal a 6 regra é uma melhora rápida no débito urinário e escórias nitrogenadas, o que não ocorre quando já existe necrose tubular aguda. O mecanismo mais provável da hiponatremia também é a hipovolemia (2). Com a diarréia, existe perda importante de secreções intestinais, que são hipotônicas em relação ao plasma. A tendência natural seria o desenvolvimento de hipernatremia (que representa um déficit de água livre – desidratação) (3). No entanto, se a diarréia for volumosa e o paciente ficar hipovolêmico, haverá uma diminuição na geração e excreção de água livre pelos rins, por: � Redução na taxa de filtração glomerular; � Reabsorção ávida de água ao nível do néfron proximal; � Liberação não-osmótica de hormônio anti-diurético em resposta à hipovolemia. Neste contexto, se a reposição das perdas for feita com água ou líquidos hipotônicos, o paciente desenvolverá hiponatremia. A hemoglobina de 13,0 g/dl nesta paciente pode também levantar suspeita, por se tratar de uma senhora idosa, com doença renal crônica. O esperado seria uma discreta anemia. De fato, exames laboratoriais prévios (não apresentados aqui) revelavam uma hemoglobina entre 10,0 e 11,0 g/dl. Este aumento na hemoglobina também corrobora a suspeita de hipovolemia (“hemoconcentração”). Uma queda na hemoglobina em resposta à expansão volêmica, na ausência de exteriorização de sangramento, fortaleceria esta suspeita. 7 Foi solicitada também uma gasometria arterial na admissão: Gasometria ARTERIAL (ar ambiente): pH 7,24, pCO2 24 mmHg, pO2 106 mmHg, bicarbonato 10 mEq/l Sua opinião • É necessário fazer uma gasometria arterial ou a venosa é suficiente? Respostas Comentadas A gasometria venosa se presta para avaliação do bicarbonato sérico (componente metabólico); se este for o único objetivo, então a gasometria venosa é preferida, pois evita o desconforto e risco associados à punção arterial. No entanto, se houver interesse em avaliar o componente respiratório ou em fazer uma avaliação completa do equilíbrio ácido-base, a gasometria arterial é indicada. Como a nossa paciente apresentava taquipnéia ao ser avaliada na emergência, o colega solicitou uma gasometria arterial para avaliar as trocas gasosas. A PO2 de 106 mmHg em ar ambiente está até um pouco elevada para uma senhora idosa, refletindo a hiperventilação. Portanto, a taquipnéia da paciente não pode ser explicada por umapatologia pulmonar que comprometa a oxigenação (como já era esperado pelo exame clínico normal dos pulmões); outras causas precisam ser pesquisadas. Uma possibilidade seria acidose metabólica com hiperventilação (de Kussmaul) compensatória. 8 Sua opinião Qual a proposta de tratamento inicial desta paciente? Quais as opções para administração de “soluções” parenterais de reposição. Resposta Comentada Como a paciente está hiponatrêmica e hipovolêmica, o objetivo é restaurar rapidamente a volemia com soluções cristalóides isotônicas; as soluções hipotônicas como cloreto de sódio a 0,45% ou soro glicosado a 5% devem ser evitadas. Uma boa opção para esta paciente seria o cloreto de sódio a 0,9% (154 meq de sódio por litro). Ringer Lactato é uma alternativa, embora o conteúdo de sódio seja um pouco menor (130 meq por litro). Soluções glico-fisiológicas também podem ser preparadas, acrescentando-se a quantidade correta de NaCl a 20% (3,4 meq de sódio por ml) ao soro glicosado a 5% . O objetivo deve ser atingir uma concentração de sódio próxima a 150 meq (aproximadamente 45 ml de NaCl a 20%) por litro. Nesta fase inicial de reposição volêmica rápida, o exame clínico e avaliação do débito urinário são suficientes para o acompanhamento da resposta terapêutica. A paciente foi inicialmente rapidamente expandida na sala de emergência com 2 litros de SF 0,9%, com melhora da hipotensão postural. Sua opinião • Qual o distúrbio ácido-básico presente? 9 Resposta Comentada Ao avaliar uma questão de equilíbrio ácido-básico (principalmente em livros ou provas, que freqüentemente contêm questões inventadas!), devemos sempre verificar se os números fornecidos estão corretos. Para isso, podemos utilizar a equação de Henderson- Hasselbach, que determina que: 203,0 ]3[log1,6 xPCO HCOpH − += Em nosso caso, ao inserirmos o bicarbonato (10 meq/l) e PCO2 (24 mmHg) da paciente na equação, obtemos um pH = 7,24, idêntico ao fornecido na questão. Devemos lembrar que o pH nada mais é que o logaritmo negativo da concentração de [H+]: ]log[ +−= HpH Portanto, a relação entre eles é inversa: quanto maior a concentração de ácidos, menor será o pH e vice-versa. Existem fórmulas simples para conversão de valores de pH em valores de [H+]: 1,25 por] [H a emultipliqu pH, no QUEDA de unidades 0,10 cada Para 0,8 por] [H a emultipliqu pH, no ELEVAÇÃO de unidades 0,10 cada Para nmol/l 40 de] [H 7,40 de pH + + + = Podemos então calcular os valores aproximados de [H+] para valores exatos de pH, conforme a tabela abaixo: pH [H+] nmol/l 7,60 26 (40 x 0,8 x 0,8) 7,50 32 (40 x 0,8) 7,40 40 7,30 50 (40 x 1,25) 10 7,20 63 (40 x 1,25 x 1,25) Em nosso caso, o pH = 7,24 está entre 7,20 e 7,30, portanto, a concentração de [H+] está entre 63 e 50 nmol/l. Neste intervalo de pH (7,20 a 7,30), há uma diferença de 13 nmol/l de [H+]. O pH = 7,24 equivale a 4/10 desta diferença; 4/10 de 13 nmol/l = 5,2 nmol/l. Portanto o valor de [H+] para um pH = 7,24 é 63 – 5,2 = 57,8 nmol/l. A concentração de [H+] também pode ser calculada diretamente através da equação: - 2 HCO3 PCO x H 24][ =+ Inserindo os valores de bicarbonato e PCO2 da paciente na equação acima, obtemos uma concentração de [H+] = 57,6 nmol/l, que, como vimos, era o esperado para um pH = 7,24. Primeiro Passo: Após verificarmos a veracidade dos números fornecidos, o primeiro passo na avaliação de um distúrbio ácido-básico é determinar se existe acidemia ou alcalemia. Para isso, observamos o pH sérico. O pH normal varia entre 7,35 e 7,45; valores abaixo do mínimo normal indicam acidemia, enquanto valores acima do limite máximo indicam alcalemia. A nossa paciente tem um pH = 7,24 (que, como já vimos, equivale a uma concentração de [H+] = 57,6 nmol/l) indicando a presença de acidemia. Segundo Passo: 11 Na vigência de acidemia, devemos buscar um distúrbio de acidose, que poderá ser metabólico, respiratório ou misto. Para isto, observaremos o bicarbonato, que reflete o componente metabólico e a PCO2, que reflete o componente respiratório. O bicarbonato sérico normal varia entre 22 e 28 mEq/l. Quando o componente metabólico é o primário1, valores abaixo de 22 indicam acidose e acima de 28 mEq/l indicam alcalose. A nossa paciente tem um bicarbonato sérico = 10 mEq/l, compatível com uma acidose metabólica. A PCO2 sérica normal varia entre 35 e 45 mmHg. Quando o componente respiratório é primário2, valores abaixo de 35 indicam alcalose e acima de 45 mmHg indicam acidose. A nossa paciente tem uma PCO2 = 24 mEq/l; se este fosse o distúrbio primário, seria um distúrbio de alcalose, que não é o que estávamos buscando para explicar a presença de acidemia. O mais provável, portanto, é que a PCO2 baixa esteja refletindo a resposta respiratória à acidose metabólica da paciente. Isto explica o fato de a paciente estar hiperventilando, com freqüência respiratória elevada e padrão respiratório anormal (respiração de Kussmaul), apesar de ter “pulmões limpos” ao exame físico e bons níveis de oxigenação. Terceiro Passo: 1 Lembrar que bicarbonatos séricos abaixo de 22 ou acima de 28 mEq/l podem representar respostas metabólicas adequadas a alcalose ou acidose respiratórias crônicas, respectivamente. 2 Lembrar que PCO2 séricas abaixo de 35 ou acima de 45 mmHg podem representar respostas respiratórias adequadas a acidose ou alcalose metabólicas, respectivamente. 12 O terceiro passo na avaliação de um distúrbio ácido-básico através da gasometria é a verificação da adequação da resposta secundária. Sua opinião • Na sua opinião, a resposta respiratória desta paciente está adequada? Resposta Comentada Para termos certeza de que a queda na PCO2 da paciente teve a magnitude adequada para o nível de acidose metabólica apresentado, precisamos utilizar fórmulas. A fórmula mais utilizada é a de Winter, que diz que: 28]3[5,12 ±+= −HCO x esperada PaCO Ao inserirmos o bicarbonato (10 mEq/l) da paciente nesta fórmula, obtemos um valor de PCO2 esperado = 23 ± 2 (ou seja, entre 21 e 25) mmHg. Como a PCO2 do paciente está contida neste intervalo, dizemos que a resposta secundária é adequada. Por ser adequada, não deve jamais ser chamada de “alcalose respiratória compensatória”, uma vez que o sufixo “ose” indica distúrbio. Podemos falar em hiperventilação compensatória, mas nunca em alcalose. Portanto, até então o diagnóstico é de uma acidose metabólica simples, com resposta ventilatória adequada. 13 Quarto Passo: Mas, a interpretação não se encerra aqui. O próximo passo é calcular o intervalo aniônico, ou “anion gap”. Para este cálculo, a fórmula mais utilizada é: )HCOCl- ([Na Gap Anion -- ]3[][] += + Ela representa a diferença entre os principais cátions, representados pelo sódio, e os principais ânions, representados por cloro e bicarbonato. Os valores normais do anion gap vão de 8 a 16 mEq/l, mas variam entre os autores e também sofrem influência dos métodos de dosagem dos eletrólitos envolvidos no cálculo. Ao inserirmos os valores de sódio (130 mEq/l), cloro (110 mEq/l) e bicarbonato (10 mEq/l) da paciente nesta fórmula, encontramos um anion gap = 10 mEq/l. Devemos lembrar que um componente importante do anion gap são as proteínas plasmáticas. Por isso, na vigência de hipoalbuminemia, o anion gap precisa ser corrigido. A fórmula mais utilizada para correção é: sérica)albumina - (4,0 x 2,5 mensurado gap anion corrigido GapAnion += Ao fazermos a correção para a albumina de 3,5 g/dl da paciente, encontramos um anion gap corrigido = 11,25 mEq/l, ou seja, ainda dentro dos valores normais. Portanto, chegamos à conclusão final de que a paciente tem um distúrbio ácido-básico simples, de acidose metabólica com anion gap normal (também conhecida com hiperclorêmica). 14 Quinto passo: Estabelecer o diagnóstico clínico. Quais as principais causas deste distúrbio de um modo geral? E no presente caso? Em linhas gerais, as acidoses metabólicas hiperclorêmicas podem ser causadas por um dos seguintes processos fisiopatológicos (4): � Perda de bicarbonato (ou precursores) através de líquidos corporais; � Redução na capacidade renal de excretar a sobrecarga diária de ácidos. Em relação às etiologias específicas, a Tabela 1 mostra as principais causas de acidose metabólica hiperclorêmica. INSERIR TABELA 1 AQUI Pela análise da tabela, fica claro que as causas de acidose metabólica hiperclorêmica podem ser grosseiramente divididas em: • Renais • Gastrointestinais. As renais seriam aquelas onde há perda de bicarbonato na urina (ATR tipo II, acetazolamida) ou dificuldade na excreção dos ácidos não-carbônicos gerados diariamente pelo metabolismo (ATR tipo I, ATR tipo IV, insuficiência renal). Já as gastrointestinais, seriam aquelas onde haveria perda de secreções biliares, pancreáticas ou intestinais, que são ricas em bicarbonato (5). 15 A etiologia da acidose metabólica hiperclorêmica da paciente exposta no caso acima pode deixar alguma dúvida, pois ela apresenta tanto uma disfunção renal quanto diarréia. A equipe de Nefrologia foi, inclusive, chamada para avaliar a necessidade de diálise. Ao revisar o caso com cuidado e obter informações referentes aos exames laboratoriais prévios, observou-se que, há 2 meses da admissão, a paciente apresentava uma creatinina e bicarbonato séricos de 2,5 mg/dl e 19 mEq/l, respectivamente. A impressão clínica, portanto, foi de que a diarréia causou uma piora aguda na função renal (provavelmente de etiologia pré-renal) e na acidose metabólica (por perda de bicarbonato nas fezes). Sua opinião • Qual o papel do anion gap urinário? Resposta Comentada Muitas vezes, a história clínica é capaz de apontar se a causa da acidose metabólica hiperclorêmica é renal ou extra-renal. Quando há dúvida, uma estratégia é avaliar o anion gap urinário, que pode ser calculado através da fórmula: −++ −+= UUU ClKNa Urinário Gap Anion ][ O papel do anion gap urinário é avaliar se a resposta renal à acidose metabólica está adequada. Na vigência de uma sobrecarga de ácidos no líquido extra-celular, os rins deverão aumentar a excreção urinária de ácidos para tentar manter o equilíbrio do meio interno. Para isso, os rins podem excretar ácidos sob duas formas: ácidos tituláveis e 16 amônio. Destas, a principal é a excreção de amônio (NH4+). Durante uma acidose metabólica, a geração de amônia (NH3) ao nível dos túbulos proximais pode aumentar mais de cinco vezes; esta NH3 pode então receber prótons H+ ao nível do néfron distal para ser excretado sob forma de NH4+. O cátion amônio é, então, excretado na urina combinado ao cloro (NH4Cl), sob forma de cloreto de amônio. O ânion gap urinário nada mais é do que uma forma indireta de medir a excreção renal de cloreto de amônio (através da medição do íon cloro). Quando a etiologia da acidose hiperclorêmica é extra-renal, como numa diarréia, os rins devem estar cumprindo seu papel e excretando bastante NH4Cl. Neste caso, devido à presença de grande quantidade de Cl- na urina, o resultado da subtração dos cátions urinários pelo cloro urinário resultará em um valor negativo (em geral, de – 20 a – 50 mEq/l) (6). Por outro lado, quando os rins são a causa da acidose hiperclorêmica, a baixa excreção de cloreto de amônio será evidenciada por um cloro urinário reduzido que, conseqüentemente, resultará num anion gap urinário com valor positivo (7). No caso da paciente, os valores obtidos para os eletrólitos urinários foram os seguintes: sódio urinário 20 mEq/l, cloro urinário 39 mEq/l, potássio urinário 8,5 mEq/l, resultando num anion gap urinário = - 10,5 mEq/L. Embora o resultado tenha sido negativo, não foi tão negativo quanto o esperado para uma acidose metabólica de causa puramente extra- renal (entre – 20 e – 50 mEq/L), sugerindo a presença de um componente renal. Sua opinião • Que fatores podem ter interferido na avaliação do anion gap urinário? 17 Respostas Comentadas No caso acima, dois fatores (evidentes pela avaliação clínica) podem ter conspirado para que o resultado do anion gap urinário não fosse “tão negativo” quanto esperado: � Hipovolemia: embora os eletrólitos urinários tenham sido colhidos após a administração de 2 litros de NaCl 0,9%, é possível que ainda restasse um componente de hipovolemia. O sódio urinário de 20 mEq/l, por exemplo, é bastante sugestivo de hipovolemia. Nestes casos, existe um forte estímulo para a reabsorção renal de cloro no intuito de manter o volume do líquido extracelular, o que reduz a capacidade renal de excretar cloreto de amônio. É provável que esta inibição da acidificação urinária secundária a hipovolemia contribua de forma importante para a acidose metabólica hiperclorêmica na diarréia (8). � Insuficiência renal: a paciente é portadora de insuficiência renal crônica, com uma creatinina basal de 2,5 mg/dl (o que, para uma senhora de 77 anos de 60 kg, representa uma depuração de creatinina de apenas 18 ml/min) e sofreu uma piora aguda no ritmo de filtração glomerular (creatinina subiu para 5,2 mg/dl). Isto possivelmente diminuiu a capacidade renal de excretar ácidos sob forma de cloreto de amônio em resposta a uma diarréia aguda. Sua opinião • A equipe de Nefrologia foi consultada para avaliar a necessidade de diálise aguda. Esse procedimento é necessário no presente caso? Respostas Comentadas 18 Não há indicação de diálise de urgência para esta paciente. Embora não se possa discutir a presença de azotemia importante (uréia 180 mg/dl e creatinina 5,2 mg/dl), especialmente para uma senhora de 77 anos, não havia encefalopatia ou pericardite urêmica, nem quaisquer evidências de sangramento. Não havia hipercalemia ou congestão pulmonar, ao contrário, a paciente apresentava um potássio sérico no limite inferior da normalidade a despeito da acidemia (sugerindo déficit de potássio), assim como sinais clínicos de hipovolemia. O bicarbonato sérico está realmente bastante reduzido, mas com a resposta ventilatória adequada, o pH encontra-se acima de 7,20. A primeira medida neste caso deve ser a expansão volêmica, com re-avaliação freqüente do exame físico, débito urinário e exames laboratoriais. Evolução clínica da paciente: Houve melhora progressiva da função renal com a expansão volêmica, chegando a uma uréia = 35 mg/dl e creatinina = 2,3 mg/dl no quarto dia de internamento. Sua opinião • Devemos tratar a acidose metabólica da paciente acima com bicarbonato de sódio? Resposta Comentada Nas acidoses metabólicas hiperclorêmicas, existe um déficit real de bicarbonato no LEC. Na prática, este fato tem implicações terapêuticas, pois significa que a 19 concentração sérica de bicarbonato só retornará ao normal espontaneamente se os rins forem capazes de aumentar a excreção urinária de prótons e regenerar bicarbonato. Isto pode ocorrer quando a acidose hiperclorêmica é de origem não-renal, como no caso da diarréia. Vale ressaltar, no entanto, que correção renal não se faz de forma imediata, podendo levar algunsdias. Se a acidose hiperclorêmica causada pela diarréia for severa, não há porque esperar as respostas renais, devendo-se corrigir a acidose farmacologicamente (9). Além disso, se a diarréia ocorrer em pacientes com nefropatia, ou seja, com baixa capacidade renal para reverter a acidose metabólica, o uso de bicarbonato também é recomendado. Em nossa paciente, como o déficit de bicarbonato era importante e havia insuficiência renal, foi decidido pela administração de bicarbonato de sódio. A quantidade de bicarbonato a ser administrada pode ser calculada através da fórmula: )encontrado HCO3 - desejado (HCO3 x 0,5 x peso obicarbonat de Reposição --= No caso da nossa paciente, estimamos que, para atingir um bicarbonato sérico de 20 mEq/l, seriam necessários ao menos 300 mEq de bicarbonato de sódio. Esta fórmula, no entanto, não é precisa, pois se baseia num volume de distribuição do bicarbonato fixo em 50% do peso, quando sabemos que esta distribuição sofre influência do estado ácido- básico do paciente, podendo chegar próximo a 100%% na vigência de acidoses severas. Além disso, a fórmula não leva em consideração perdas continuadas de bicarbonato, se houver manutenção da diarréia. Por isso, é necessário acompanhar a reposição com medidas diárias da reserva alcalina ou gasometria venosa. 20 Para evitar hipernatremia, bicarbonato de sódio foi administrado através de solução isotônica (concentração de sódio semelhante à do soro fisiológico, em torno de 150 meq/L). A Tabela 2 mostra algumas receitas para preparação de soluções isotônicas de bicarbonato de sódio. INSERIR TABELA 2 AQUI Inicialmente, foi optado por fazer 1 litro da solução 1, que contém maior quantidade de bicarbonato de sódio. Com a melhora no bicarbonato sérico e na diarréia, fomos reduzindo o conteúdo de bicarbonato no soro. Após quatro dias de tratamento, o bicarbonato sérico chegou a 20 mEq/l, sendo suspensa a reposição. Com a correção do bicarbonato e, conseqüentemente do pH, houve queda no potássio sérico sendo necessário repor cloreto de potássio. 21 TABELA 1: Algumas das principais causas de acidose metabólica hiperclorêmica. Perda de bicarbonato (ou precursores) Redução na excreção renal de ácidos Acidose tubular renal proximal tipo II Acidose tubular renal tipo I Fase de correção da cetoacidose diabética Acidose tubular renal tipo IV Diarréia Insuficiência renal Perda de secreções biliares ou pancreáticas Ureterosigmoidostomia 22 TABELA 2: Sugestões de soluções isotônicas de bicarbonato de sódio. 1 litro de água livrea NaHCO3 8,4%b NaCl 20%c [Na+] (mEq/L) Volume (ml) HCO3- (mEq) Na+ (mEq) Volume (ml) Na+ (mEq) Solução 1 150 150 150 0 0 150 Solução 2 110 110 110 10 34 144 Solução 3 80 80 80 20 68 148 Solução 4 50 50 50 30 102 152 Solução 5 15 15 15 40 136 151 a. Água destilada ou soro glicosado a 5%; b. A ampola de 10 ml de NaHCO3 a 8,4% contém 1 mEq NaHCO3 por ml; c. A ampola de 10 ml de NaCl a 20% contém 3,4 mEq NaCl por ml. 23 BREVE REVISÃO: O Papel do Anion Gap Urinário na Avaliação de Pacientes com Acidose Metabólica Hiperclorêmica INTRODUÇÃO Acidose metabólica hiperclorêmica é um distúrbio do equilíbrio ácido-base caracterizado por: � queda no bicarbonato sérico (fenômeno primário), acompanhada de elevação equimolar na concentração de cloro, o que mantém o ânion gap sérico inalterado; � queda no pH sérico; � hiperventilação, com conseqüente queda na PCO2 sérica, em resposta à acidemia. As causas de acidose hiperclorêmica podem ser reunidas em dois grandes grupos: � perda de bicarbonato através de líquidos corporais; � defeitos na acidificação urinária. Portanto, diante de um paciente com acidose metabólica hiperclorêmica, é possível separar as causas renais das extra-renais através da análise da capacidade de acidificação urinária. Se a causa for extra-renal, os rins deverão aumentar a excreção de ácidos para cumprir o seu papel de manter o equilíbrio ácido-base; por outro lado, se a excreção urinária de ácidos estiver diminuída em paciente com acidose sistêmica, a causa mais provável é um problema renal. 24 O principal mecanismo de acidificação urinária é através da excreção de amônio (NH4+). Na vigência de uma acidose sistêmica, aumenta a produção de amônia (NH3) ao nível dos túbulos proximais a partir do metabolismo de glutamina. Esta amônia pode então aceitar um próton ao nível do néfron distal para ser excretada sob forma de amônio (NH4+). Indivíduos normais, em equilíbrio ácido-base, excretam cerca de 20 a 40 mmol de NH4+ por litro de urina, mas diante de uma sobrecarga ácida, esta excreção pode aumentar cerca de dez vezes. Diante disso, se pudermos avaliar a excreção urinária de amônio em um paciente com acidose metabólica hiperclorêmica, poderemos saber se a resposta renal está adequada (causa extra-renal) ou inadequada (causa renal). No entanto, a maioria dos laboratórios bioquímicos não possui kits para dosagem de amônio urinário. Uma forma indireta de medir a excreção renal de amônio é através da análise do ânion gap urinário. ÂNION GAP URINÁRIO Pelo princípio da eletroneutralidade, a soma de todos os cátions urinários (mensurados + não mensurados) é igual à soma de todos os ânions urinários (mensurados + não mensurados). Como não dosamos todos os cátions e ânions urinários, fazemos o cálculo do ânion gap urinário de forma análoga ao do ânion gap sérico: mensurados ânions principaismensurados cátions rincipaisp Urinário Gap Anion −= 25 No soro, o sódio é o principal representante dos cátions enquanto cloro e bicarbonato são os principais ânions. Na urina, tanto sódio quanto potássio são excretados em quantidades significativas e precisam entrar na fórmula; como a excreção de bicarbonato na urina é irrelevante, o único ânion urinário a entrar na fórmula é o cloro. Ficamos com: −++ −+= UUU ClKNa Urinário Gap Anion ][ Para facilitar a interpretação clínica, esta fórmula pode também ser re-escrita como: mensurados não cátionsmensurados não nionsâ Urinário Gap Anion −= Isto porque a principal utilidade do ânion gap urinário é servir de medida indireta da excreção renal de amônio (NH4+), que é o principal cátion não mensurado. Portanto, quando a excreção de amônio é elevada, ela ultrapassa a excreção de ânions não- mensurados e faz com que o ânion gap urinário assuma valores negativos. Podemos chegar à mesma conclusão avaliando a fórmula tradicional: −++ −+= UUU ClKNa Urinário Gap Anion ][ Como o amônio é excretado junto ao cloro para manter a eletroneutralidade (NH4Cl, cloreto de amonio), a presença do ânion cloro na urina serve de marcador indireto da presença de amônio. Portanto, quando a excreção de cloreto de amônio é elevada, a 26 concentração urinária do ânion cloro supera a soma das concentrações dos cátions sódio e potássio, fazendo com que o ânion gap urinário assuma valores negativos. Batlle et al mostraram que indivíduos normais expostos a uma sobrecarga ácida (administração de cloreto de amônio por três dias), tinham ânion gap urinário médio de - 27 ± 9.8 meq por litro e pH urinário de 4.9 ± 0.03 (6). Os mesmos autores mostraram a utilidade do ânion gap urinário na avaliação de pacientes com acidose metabólica hiperclorêmica. Eles avaliaram 38 pacientes com acidose tubular renal e 8 com diarréia. No grupo com diarréia, o ânion gap urinário foi -20 ± 5,7 meq por litro. Em contraste, nos pacientes com causasrenais de acidose hiperclorêmica, o ânion gap urinário foi positivo: � 23 ± 4,1 meq por litro nos 11 pacientes com acidose tubular renal distal clássica; � 30 ± 4.2 meq por litro nos 12 pacientes com acidose tubular renal distal hipercalêmica; � 39 ± 4,2 meq por litro em 15 pacientes com deficiência seletiva de aldosterona. Uma simples análise do pH urinário levaria a conclusões errôneas, uma vez que o pH urinário médio dos pacientes com diarréia foi de 5,64 ± 0,14, o que poderia sugerir a presença de acidose tubular renal. Isto porque a hipocalemia decorrente da diarréia estimula a produção de amônia de forma independente do pH extra-celular (talvez devido à acidose intra-celular que ocorre quando prótons H+ entram na célula em troca da saída de K+). O aumento na quantidade de amônia no lúmen tubular reduz a concentração de prótons e aumenta o pH urinário ao desviar a equação abaixo para a direita: 27 ++ ↔+ 4NH HNH 3 Portanto, a análise do ânion gap urinário é uma forma mais completa e adequada de avaliar a adequação da acidificação urinária em pacientes com acidose hiperclorêmica que a análise do pH urinário. Basta lembrar do trocadilho utilizado por Halperin no título do seu artigo: “Renal tubular acidosis (RTA): recognize the ammonium defect and pHorget the urine pH”! (10) Precisamos reconhecer as principais limitações ao uso do ânion gap urinário: � Acidose metabólica com ânion gap elevado: a excreção do ânion não mensurado (cetoácido, lactato) na urina se opõe ao efeito do amônio e pode positivar o AG urinário mesmo na vigência de uma resposta renal apropriada. � Hipovolemia: nesta situação, existe uma forma reversível de acidose tubular renal distal, pois a redução na chegada de sódio ao néfron distal diminui a acidificação urinária. A reabsorção ávida de cloro (e sódio) dificulta o aumento na excreção de cloreto de amônio, podendo impedir que o AG urinário se torne negativo, mesmo quando a causa da acidose metabólica hiperclorêmica é extra-renal. Infelizmente, os médicos nem sempre podem contar com esta ferramenta simples, barata e útil porque muitos laboratórios brasileiros não dosam rotineiramente os eletrólitos urinários envolvidos no cálculo do ânion gap. 28 Reference List (1) Thadhani R, Pascual M, Bonventre JV. Acute renal failure. N Engl J Med 1996 May 30;334(22):1448-60. (2) Adrogue HJ, Madias NE. Hyponatremia. N Engl J Med 2000 May 25;342(21):1581-9. (3) Mange K, Matsuura D, Cizman B, Soto H, Ziyadeh FN, Goldfarb S, et al. Language guiding therapy: the case of dehydration versus volume depletion. Ann Intern Med 1997 Nov 1;127(9):848-53. (4) Halperin ML, Vasuvattakul S, Bayoumi A. A modified classification of metabolic acidosis: a pathophysiologic approach. Nephron 1992;60(2):129-33. (5) Gennari FJ, Weise WJ. Acid-base disturbances in gastrointestinal disease. Clin J Am Soc Nephrol 2008 Nov;3(6):1861-8. (6) Batlle DC, Hizon M, Cohen E, Gutterman C, Gupta R. The use of the urinary anion gap in the diagnosis of hyperchloremic metabolic acidosis. N Engl J Med 1988 Mar 10;318(10):594-9. (7) Burton D Rose. Urine anion and osmolal gaps in metabolic acidosis. UpToDate Online 8 A.D. May 15(17.1)Available from: URL: http://www.uptodateonline.com/online/content/topic.do?topicKey=fldlytes/28741 (8) Batlle DC, von RA, Schlueter W. Urinary sodium in the evaluation of hyperchloremic metabolic acidosis. N Engl J Med 1987 Jan 15;316(3):140-4. (9) Adrogue HJ, Madias NE. Management of life-threatening acid-base disorders. First of two parts. N Engl J Med 1998 Jan 1;338(1):26-34. (10) Carlisle EJ, Donnelly SM, Halperin ML. Renal tubular acidosis (RTA): recognize the ammonium defect and pHorget the urine pH. Pediatr Nephrol 1991 Mar;5(2):242-8.
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