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Caio Navarro de Toledo O Governo Goulart E o Golpe de 64 Índice Um governo no entreato golpista O "golpe branco" ou "a solução de compromisso" A crise político-institucional na versão parlamentarista Um governo no trapézio A politização da sociedade — esquerda e direita mobilizam-se O golpe político-militar Conclusões Indicações para leitura U m governo no entreato golpista O governo João Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo do golpe de Estado. Se, em agosto de 1961, o golpe militar pôde ser conjurado, em abril de 1964, no entanto, ele deixaria de se constituir no fantasma — que rondou e perseguiu permanentemente o regime liberal-democrático inaugurado em 1946 — para se tornar numa concreta realidade. No dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros resignava sem ao menos completar sete meses na Presidência da República. Na carta- renúncia — autêntica paródia e pastiche da carta-testamento de Getúlio Vargas, como observaram diversos autores —, Quadros não formulou uma única razão convincente para explicar e justificar o seu teatral gesto. Se, naquele momento, a denúncia do golpe janista soava como uma mera especulação, hoje restam poucas dúvidas a esse respeito. A rigor, a renúncia constituía-se no primeiro ato de uma trama golpista. Julgava o demissionário que os ministros militares não apenas impediriam a posse de João Goulart, como também procurariam impor, juntamente com o massivo e sonoro "clamor popular", o retorno do "grande líder". Na sua fantasia, Quadros voltaria, pois, nos "braços do povo". As ilusões do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem os ministros militares e, menos ainda, as massas populares tomaram qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros. Em várias partes do país, os setores populares e democráticos sairiam às ruas para defender, isto sim, a posse de João Goulart, ameaçada por um arbitrário veto militar, plenamente respaldado pela UDN e demais setores conservadores. As manifestações populares, associadas com as de políticos democráticos e de militares nacionalistas, conseguiram impedir o golpe militar que se configurava em agosto de 1961. Assim, com a diferença de poucos dias, duas tentativas de golpe se sucediam: a de Jânio Quadros e a dos setores militares. Três anos depois, tendo sido alcançada uma forte coesão ideológica no seio das Forças Armadas, os militares impuseram, juntamente com a significativa mobilização política das classes dominantes e de setores das classes médias, uma nova ordem político-institucional no país. Os setores populares e democráticos, a partir de então, pagariam um preço muito elevado pela resistência oferecida aos golpistas em 1961. Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios golpistas e de um golpe político-militar, plenamente vitorioso, que existiu o governo João Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigência (setembro de 1961 a março de 1964), um novo contexto político- social emergiu no país. Este novo quadro caracterizou-se por uma intensa crise econômico-financeira, freqüentes crises político- institucionais, extensa mobilização política das classes populares, ampliação e fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo, crise do sistema partidário e acirramento da luta ideológica de classes. Este período da história política brasileira é significativo ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as contradições sociais são processos constitutivos da formação social capitalista e de seus regimes políticos, então o período de 1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida política brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política e ideológica com dimensões inéditas e com características singulares. Para os que vêem nos conflitos e nos antagonismos o sinal da desagregação social, os "tempos de Goulart" só podem ser encarados como trágicos "tempos do caos e da anarquia". 1964 é, pois, um marco divisor e uma referência obrigatória em qualquer avaliação sobre o passado recente. Decorridos menos de 20 anos da queda do regime liberal-democrático, não deixam de ser ainda conflitantes as interpretações sobre o período Goulart. A nosso ver, motivações antagônicas parecem estar presentes em algumas dessas interpretações. As esquerdas — não obstante reconheçam os reais avanços sociais e políticos ocorridos no período —, buscam, fundamentalmente, investigar as razões dos limites e das impossibilidades da democracia burguesa com características "populistas". A direita, ao definir os "tempos de Goulart" como a expressão acabada de toda a perversidade social (subversão, corrupção, crise de autoridade, desordem etc), procura justificar a implantação do regime autoritário e a perpetuação do poder de Estado militarizado. O "GOLPE BRANCO" OU "A SOLUÇÃO DE COMPROMISSO" O veto militar Com a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso Nacional, reunido extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na Presidência da República, a Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara dos Deputados). Tal solução era encontrada em virtude de se encontrar ausente do país o vice-presidente da República, João Goulart. Imediatamente, os meios de comunicação do país passavam a divulgar versões — cuja veracidade seria confirmada nos dias seguintes — segundo as quais haveria, da parte de expressivos círculos militares, uma forte oposição à posse constitucional de João Goulart na Presidência da República. As notícias iam mais longe: afirmava-se que os ministros militares não apenas desaconselhavam o retorno imediato de Goulart, como estavam decididos a detê-lo no momento em que pisasse o território nacional. Ao mesmo tempo que difundiam estas informações, vários jornais da chamada grande imprensa — expressando a opinião política dos setores conservadores das classes dominantes — conclamavam as Forças Armadas a assumirem um papel decisivo na crise política que se configurava com a renúncia de Jânio Quadros. Em outras palavras, tais setores estimulavam e apoiavam o golpe militar. No dia 28 de agosto, através do presidente-interino, os três ministros militares buscaram impor ao Congresso a aprovação de uma breve nota onde — sem qualquer justificativa — era vetada a posse de Goulart. Por uma expressiva maioria, os congressistas manifestaram-se contra aquela arbitrária e ilegal exigência. No dia 30, os ministros militares voltariam à carga. Através de um manifesto à nação, agora se dignavam a explicitar as razões do veto a João Goulart. A certa altura, afirmava o documento: "Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir- se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o País mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil". Todas estas "previsões" eram feitas na base do passado político de Goulart. Na ótica dos militares e dos demais setores civis golpistas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia de "negativo" na vida política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da ordem capitalista. Seria o "diabo" tão vermelho como o pintavam? Goulart: por um capitalismo "humano" e "patriótico" Nos primeiros anos de sua rápida trajetória política, os estreitos laços de amizade mantidos com o ex-ditador — seu vizinho de estância na longínqua São Borja (RS) — transformavam Goulart em figura altamentesuspeita aos olhos dos setores antigetulistas. Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart sofreu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente ameaçado de perder o mandato parlamentar, pois raramente compa- recia à Câmara Federal. Dedicava-se às suas tarefas de presidente do Diretório Estadual do PTB e, desde então, orientava toda a sua ação política em direção ao movimento sindical. Destacando-se neste tipo de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para o cargo de ministro do Trabalho. Foi um "deus nos acuda". Como admitir, num Ministério do Estado, indagavam os setores de direita e liberais conservadores, o "chefe do peronismo brasileiro", o "demagogo sindicalista", o "corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e manipulando a classe operária e as massas populares, a partir do Ministério do Trabalho, Jango se constituiria numa peça importante para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo engendrado pelo "maquiavélico" Vargas. Como ministro do Trabalho, Goulart é diariamente acusado de insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho, afirmam ainda seus críticos, seria o de implantar no Brasil a "República sindicalista" nos moldes do justicialismo peronista. Fazendo blague, mas iradamente, um influente periódico das classes dominantes denunciava que Jango, ao invés de ser ministro do Trabalho, transformara-se num autêntico "ministro dos Trabalhadores"... Diante desta lamentação, a resposta de Goulart seria extremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com muita clareza a estratégia do Estado democrático-burguês quanto à questão sindical: "(...) essa confiança do proletariado na secretaria de Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo de tranqüilidade (para os patrões), e nunca de alarme. Pretender- se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse nos poderes constitucionais?" (grifo nosso). Como herdeiro de imensa fortuna pessoal e grande proprietário de terras ("um latifundiário com saudável instinto de propriedade privada", como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal como seus críticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No entanto, asseverava ele, sua diferença em relação a estes residia na sua aspiração a um capitalismo mais "humanizado" e "patriótico"; ou seja, Jango dizia opor-se àquilo que hoje se con- vencionou chamar de "capitalismo selvagem". "Não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. Ã frente do Ministério do Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os capitalistas que fazem de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dando sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico." Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia publicamente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam salário mínimo, Vargas, através de seu ministro da Guerra, tomava conhecimento de um documento ("Memorial dos Coronéis") assinado por 81 oficiais do Exército. Nele se advertia o Exército e a Nação dos perigos do "comunismo solerte sempre à espreita", do "clima de negociata, desfalques e malversação de verbas", da "crise de autoridade" que solapava a coesão de "classe militar" etc. Em nenhum instante o nome de Jango era citado no "Memorial", mas a conseqüência da sua divulgação pela imprensa foi a sua imediata demissão do Ministério do Trabalho. (Entre os signatários do documento, redigido pelo então ten.cel. Golbery do Couto e Silva, estavam militares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart definitivamente da vida política brasileira: Amaury Kruel, Syzeno Sarmento, Sílvio Frota, Ednardo D'Ávila, Euler Bentes, etc.) Como vice-presidente da República, durante o qüinqüênio desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, João Goulart não deixaria de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores liberais-conservadores. No manifesto de agosto de 1961, os ministros militares alinhavam algumas acusações: "No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, manifestações grevistas promovidas por conhecidos agitadores. E, ainda há pouco, como re- presentante oficial em viagem à URSS e à China Comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao regime destes países, exaltando o êxito das comunas populares". Desta forma, na ótica dos políticos e militares, comprometidos com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada adiantava Goulart reiteradamente afirmar a sua crença no capitalismo. Deixavam, pois, de reconhecer que a atuação política de Jango (seja na condição de ministro de Trabalho, seja na de vice-presi-dente) contribuía objetivamente para um melhor controle do Estado burguês sobre as atividades sindicais. Igualmente, aqueles setores deixavam de perceber que — tal como concebia e exercia suas funções políticas e administrativas — Jango era uma eficiente porta-voz, nos meios sindicais e populares, da ideologia populista do Estado protetor e "acima das classes". Obstinadamente reacionários e intransigentemente anticomunistas, não conseguiam deixar de representar Jango na figura de "perigoso agitador" e de "demagogo sindicalista". A luta pela legalidade Nem todos os setores sociais e políticos, no entanto, interpretavam nessa direção a trajetória política de João Goulart. Não viam, pois, razões para lhe negar o direito de assumir a Presidência da República. Ideologicamente, estes setores afinavam- se com o nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a esquerda revolucionária. Governadores de estados, parlamentares federais e estaduais, sindicatos de trabalhadores, entidades de empresários (CONCLAP), estudantes e alguns setores militares, se manifestavam em defesa da ordem constitucional. Dos governadores estaduais que declararam seu apoio à posse de Goulart (Carvalho Pinto, São Paulo; Ney Braga, Paraná; Mauro Borges, Goiás e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes dois últimos os que mais intensamente se empenharam na" "defesa da legalidade". Contudo, foi a partir de Porto Alegre que se unificou a oposição nacional ao golpe militar, em virtude da decidida ação política de seu governador e da adesão do III Exército, sob o comando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou amplos recursos de seu estado, chegando, inclusive, a se dispor a distribuir armas à população civil para combater eventuais ataques das forças golpistas. Através das emissões da "Rede da Legalidade", acompanhava-se o desenrolar dos acontecimentos em todo o país e articulava-se o movimento antigolpista em nível nacional. Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso por ter lançado um manifesto contra o golpe), altos-oficiais do Exército, organizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e até mesmo em Brasília, almirantes, associavam-se ao movimento contra a solução conspiratória. Apesar de proibidas e reprimidas, manifestações populares sucediam-se nos grandes centros urbanos (passeatas, comícios, panfletagem etc). Várias entidades de classe condenavam os golpistas e defendiam a posse de Goulart. Inúmeras greves políticas em diversos setores (têxtil, transportes, bancários, metalúrgicos, portuários, etc.) culminam numa greve nacional em "defesa da legalidade", deflagrada pelo Comando Geral da Greve (CGG), embrião do CGT. A UNE decretou "greve nacional";na Bahia os estudantes criavam a Frente de Resistência Democrática. A "solução de compromisso" O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos setores democráticos e populares, negava-se, no primeiro momento, a transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos conservadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da crise, a chamada "solução de compromisso": a emenda constitucional que instituía o regime parlamentarista no País. Se o golpe militar era derrotado, um golpe político, no entanto, era perpetrado contra o regime vigente, pois a carta de 1946 proibia, taxativamente, toda e qualquer reforma constitucional num clima insurrecional. Um outro significado deste "golpe branco" é que a emenda parlamentarista retirava a eleição do presidente da República do âmbito popular, transferindo-a para o espaço reduzido da Câmara Federal. Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), a emenda constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os congressistas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado uma "guerra civil" no país. Na verdade, o Congresso, através de sua maioria conservadora e liberal-democrata — com o incentivo dos militares dissidentes e com a anuência dos golpistas —, adiantou- se em oferecer tal solução, pois o avanço das forças populares passava a se constituir numa ameaça política indesejável. Para os ideólogos burgueses da Ciência Política, o Congresso Nacional, neste episódio, dava uma excelente lição daquilo que denominam de "realismo político" ou da "arte de conciliação". Alguns analistas afirmam, hoje, que o parlamentarismo não se configurava, naquela conjuntura, como uma saída política inescapável. Argumentam que o tempo corria na direção favorável à manutenção do regime presidencialista, posto que o crescimento da participação popular e a ampliação dos setores políticos e militares antigolpistas punham na defensiva e em minoria as forças reacionárias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: "Com mais alguns dias de resistência política do presidente João Goulart teria havido a solução normal, que seria a sua posse dentro do sistema presidencial". Ao contrario disso, João Goulart não apenas concordou com a emenda constitucional, como se apressou em esco- lher uma solene efeméride nacional para ser empossado. No dia 7 de setembro de 1961, João Belchior Marques Goulart recebia no Congresso Nacional a faixa presidencial, sob o manto do regime parlamentarista. De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo passava a ser exercido pelo presidente da República e por um Conselho de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a "direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a administração federal". Ao presidente competiria nomear o presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por indicação deste, os demais membros ministros de Estado. Na verdade, transformava-se o presidente da República em autêntico chefe de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar leis, orientar a política externa, elaborar propostas de orçamentos, etc. O governo se efetivava fundamentalmente através do Conselho de Ministros que, por sua vez, dependia permanentemente do voto de confiança do Congresso Nacional. A emenda constitucional nº 4, nas suas Disposições Transitórias, previa a realização de um plebiscito que viesse a decidir acerca da "manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial". Tal consulta popular devia ocorrer nove meses antes do término do período presidencial de Goulart. Sob rédeas relativamente curtas, João Goulart iniciava, assim, seu governo na versão parlamentarista. Mas, conforme confessaria a um assessor, faria ele de tudo para abreviar a vida do novo regime. Recusava-se a representar o papel de uma "Rainha Ehzabeth". Queria governar, não apenas reinar... A CRISE POLlTICO-INSTITUCIONAL NA VERSÃO PARLAMENTARISTA Na curta existência do regime parlamentarista (setembro de 1961 a janeiro de 1963), o país veria sucederem-se três Conselhos de Ministros, além de se defrontar com o agravamento de sua situação econômico-financeira e se debater ainda com novas crises político-institucionais. Administrativamente ineficiente e politicamente inviável, o parlamentarismo — sistema natimorto, como alguns o denominaram — teria os seus dias contados dentro da vida republicana brasileira. Do ponto de vista econômico, o governo parlamentarista não apenas herdava as profundas distorções da política desenvolvimentista do governo Kubitschek como também tinha de fazer face às conseqüências imediatas das medidas econômico- financeiras postas em prática pela fracassada administração Quadros. No período Kubitschek, ao se optar por um elevado nível de investimentos e ao se manter as importações de equipamentos necessários ao desenvolvimento econômico, apelou-se para um pro- gressivo endividamento externo. No período 1956/60, mostram os dados oficiais, o déficit nas transações correntes (mercadorias e serviços) alcançou a elevada cifra de 1,2 bilhões de dólares. De outro lado, "como o investimento externo fazia-se com a regalia da Instrução 113, isto é, sem cobertura cambial, o atendimento do déficit fez-se, principalmente, através de empréstimos a curto prazo e de atrasos comerciais, aumentando o endividamento externo" (Cibilis Viana, Reformas de Base e a Política Nacionalista de Desenvolvimento). A taxa inflacionária elevou-se significativamente nos últimos anos do governo Kubitschek, agravada fundamentalmente pela "deterioração das relações de troca, acúmulo de estoques invendáveis de café adquiridos pelas autoridades monetárias; crescimento insuficiente da oferta de pro- dutos agrícolas e oligopolização do comércio atacadista de gêneros alimentícios" (Idem, ibidem). No período desenvolvimentista anterior, houve um acentuado descompasso entre o crescimento do setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo o autor acima, "a produção agrícola apresentou a taxa anual média de crescimento de 4,3% inferior a de todos os demais períodos". Com o aumento da população urbana (75% entre 1952 a 1961) e um aumento do poder de compra dos assalariados em geral, houve, conseqüentemente, a expansão da demanda de alimentos. Com o insuficiente crescimento da produção agrícola para o mercado interno, passaram a ocorrer, a partir de 1961, agudas crises de abastecimento, gerando inquietações sociais e movimentos reivindicatórios de grande extensão nos campos e nas cidades. Além desses problemas, o governo que se empossava tinha de enfrentar as graves conseqüências da reforma cambial precipitadamente realizada por Quadros. Através da famigerada Instrução 204 da SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial (enganosamente denominado de "verdade cambial"). A partir de agora, as importações passavam a ser realizadas a taxas de mercado livre, ficando suprimidos os subsídios governamentais às compras de petróleo, trigo e papel. Na justificativa oficial, buscava-se alcançar o equilíbrio das transações com o exterior, altamente comprometido no governo Kubitschek. A eliminação dos subsídios teve como conseqüência uma brusca e imediata alta do custo de vida, particularmente daqueles produtos que eram fundamentais no orçamento das classes trabalhadoras. Um gabinete de "união nacional" No dia 8 de setembro de 1961, o Congresso Nacional aprovava o primeiro Conselho de Ministros; era ele presidido por Tancredo Neves, conhecidafigura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denomi- naram o gabinete de "união nacional". Uma vez mais, pois, a fórmula da "união nacional" era desenterrada do arsenal ideológico das classes dominantes a fim de encobrir a existência de conflitos e antagonismos no interior da conjuntura política. Na verdade, o primeiro gabinete representava uma nítida derrota do movimento popular que, alguns dias antes, havia empolgado o país. Como as esquerdas viriam a denunciar, tratava-se de um autêntico "gabinete de conciliação": "conciliação para evitar que fossem colhidos os frutos da vitória popular. Conciliação com os imperialistas, conciliação com os golpistas" (Paulo M. Lima, in Revista Brasiliense, nº 22). A vitória das forças politicamente conservadoras do Congresso evidenciava-se mediante a composição do Gabinete, onde 4 ministros representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da República era o presidente nacional, PTB, coube apenas uma pasta: o Ministério das Relações Exteriores, na figura de Francisco San Tiago Dantas. O importante Ministério da Fazenda teve sua respon- sabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles — ideologicamente identificado com os manuais ortodoxo-conservadores em matéria de política econômico-financeira. Procurava-se, assim, conquistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte- americanas. Em matéria de política econômica, pode-se afirmar que "o programa do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princípios conservadores enunciados nos efêmeros governos Café Filho e Jânio Quadros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagônicos ao ideário do nacionalismo desenvolvimentista" (Cibilis Viana, op. cit.). Segundo este programa, por exemplo, não se fazia nenhuma crítica à reforma cambial implementada pelo governo anterior. Não seria este, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria econômica de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias distintas). Composta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a assessoria de Goulart buscaria influir sobre a orientação conser- vadora do gabinete ao defender, por exemplo, o fortalecimento do setor estatal da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos, Goulart faria críticas ao regime de "verdade cambial" e postularia a realização das Reformas de Base. Embora majoritariamente conservador, o gabinete de Tancredo Neves, logo nos seus primeiros meses de existência, tomou duas decisões amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacio- nalistas. A rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista quase solitário na "constelação entreguista" da UDN), o Conselho de Ministros cancelava todas as autorizações feitas ao truste norte-americano Hanna Corporation (companhia de mineração que explorava jazidas em Minas Gerais). A outra decisão que repercutiu favoravelmente nos meios progressistas do país foi o restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS (rompidas no governo Dutra, em plena "guerra fria"). Dava-se, assim, continuidade à política externa independente cujos princípios básicos ("não intervenção de um Estado nos negócios internos de outro" e "autodeterminação dos povos") foram enunciados no governo do contraditório Jânio Quadros. Exatamente dois meses depois, uma prova decisiva teria de enfrentar a política externa independente do Brasil. Em Punta Del Este, Uruguai, reunia-se a Organização dos Estados Americanos (OEA) a fim de debater a situação de Cuba, após seu governo revolucionário ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Além da expulsão, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar sanções contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se opôs a qualquer forma de sanção (militar, econômica, rompimento das relações comerciais e diplomáticas) contra Cuba. No entanto, aprovou uma declaração onde se afirmava a "incompatibilidade entre um regime marxista-leninista e os princípios democráticos do sistema interamericano". Cedendo parcialmente às fortes pressões norte-americanas, o governo brasileiro se absteria na votação que propunha a expulsão de Cuba da OEA. As relações norte-americanas/brasileiras sofreriam ainda um sério abalo quando, duas semanas após o encerramento da reunião da OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, de- sapropriou os bens da Companhia Telefônica Nacional, no Rio Grande do Sul, subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT). "O Departamento do Estado protestou, energicamente, classificando o ato de Brizola como um 'passo atrás' nos planos da Aliança para o Progresso (...) E o Congresso dos EUA, diante da perspectiva de outras estatizações, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava a suspensão de qualquer ajuda aos países que desapropriassem bens americanos, sem indenização imediata, adequada e efetiva" (Moniz Bandeira, O Governo João Goulart). Diante de futuras tentativas de encampações (Carlos Lacerda, governador da Guanabara, anunciou — demagogicamente — que expropriaria empresas estrangeiras em seu estado), o governo federal apressou-se em declarar sua disposição em negociar um acordo geral com as empresas de serviços públicos de propriedade estrangeira. Procurava, assim, o governo brasileiro demonstrar sua "boa vontade" face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava limpar o terreno dos possíveis obstáculos que poderiam dificultar as conversações a serem mantidas, nas semanas seguintes, entre os presidentes do Brasil e dos EUA. Assessorado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Campos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart — no discurso pronunciado perante o Congresso norte-americano e no comunicado conjunto dos presidentes do Brasil/EUA — procura tranqüilizar a opinião pública e os homens de negócios norte-americanos quanto aos caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos próximos anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adesão de seu governo aos "princípios democráticos"; defendeu enfaticamente a participação do capital privado estrangeiro no desenvolvimento brasileiro; aprovou o princípio da "justa compensação" nos casos de desapropriações de empresas estrangeiras operando no Brasil, etc. Embora revelasse preocupações quanto às dificuldades de execução do programa reformista da Aliança para o Progresso, Goulart elogiou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revolução Cubana). Advertindo sobre os perigos que representaria o fracasso deste programa para os "povos democráticos", o presidente brasileiro fez seu o ideário reformista de Kennedy: "Aqueles que tornarem impossível a revolução pacífica, farão inevitável a revolução violenta". Apesar de todas as "juras de fidelidade e de amor" feitas por Goulart à democracia e ao capital estrangeiro, o país pouco lucraria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e México. Como observou um estudioso: "(...) o FMI e os outros principais credores do Brasil voltaram à sua atitude de esperar-para-ver dos últimos anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. Não confiavam em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar o duro programa antiinflacionário empreendido por Jânio" (Thomas Skidmore, De Getúlio a Castelo). A campanha das Reformas. Goulart X Gabinete Internamente, a viagem de Goulart aos EUA rendeu-lhe alguns proveitos; pela primeira vez, em toda a sua carreira política, a direita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, através de seu líder na Câmara, Herbert Levy, saudoua sua performance nos EUA como a de um verdadeiro estadista. Porém, muito curto seria o período de tréguas que a oposição conservadora concederia ao governo de Goulart. A partir do dia 1º de maio, a guerra novamente lhe seria declarada. Em reiteradas oportunidades, o presidente da República tinha se pronunciado acerca da urgência de o Executivo e de o Congresso aprovarem as reformas estruturais exigidas para a superação dos graves problemas econômicos, sociais e institucionais enfrentados pelo país. Não obstante se pudesse afirmar que era praticamente consensual — no Gabinete, no Congresso, nas Forças Armadas, nas associações e confederações rurais, na Igreja, nas organizações de trabalhadores rurais, etc. — o reconhecimento da necessidade da Reforma Agrária, as concepções acerca do seu sentido social e político, da sua extensão e das pré-condições legais à sua realização eram conflitantes. No seu discurso de 1º de maio, em Volta Redonda, Goulart chamou sobre si a fúria dos conservadores. Embora não explicitamente, Jango se opôs à forma moderada e conciliadora pela qual o gabinete de Tancredo Neves vinha encaminhando o debate do anteprojeto de Reforma Agrária de autoria do ministro da Agricultura, o conhecido usineiro pernambucano Armando Monteiro (PSD). Apesar de ter criado importantes assessorias técnicas (Superintendência da Reforma Agrária, SUPRA, e o Conselho Nacional de Reforma Agrária), o primeiro gabinete não chegou a enviar nenhum projeto de Reforma Agrária ao Congresso. A rigor, o que provocou a violenta reação dos setores de direita foi o apelo do presidente ao Congresso no sentido de este realizar uma reforma da Carta de 1946. A reforma constitucional reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o § 16 do Art. 141 que condicionava as desapropriações de terra à "prévia e justa indenização em dinheiro". A vigência de tal preceito constitucional, na prática, impedia — pelos altos recursos a serem despendidos pelo governo — a realização de uma Reforma Agrária que implicasse uma ampla redistribuição de terras àqueles que nela efetivamente trabalhavam. Diante da proposta do presidente da República, unem-se proprietários rurais, setores da Igreja, congressistas liberais e conservadores, imprensa etc, para denunciar a "reforma agrária radical" cogitada, segundo eles, por Goulart. Na ótica desses grupos, a "revolução agrícola" deveria se fixar na "obediência aos preceitos constitucionais aliada ao interesse prioritário pelo estímulo à produção" (Aspásia Camargo, "A Questão Agrária", in Brasil Republicano). Como observou a autora acima, o discurso de Volta Redonda pode ser considerado como um importante marco político: seja porque representou o primeiro esforço concentrado do governo em torno da realização das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o afastamento político do presidente da República face ao Conselho de Ministros e ao regime parlamentarista propriamente dito. Reconhece-se, também, nessa data, o início da intensificação da luta pela antecipação do Plebiscito. Sem o apoio do presidente da República, o Gabinete Tancredo Neves tinha os seus dias contados. Sob o pretexto de terem de cumprir a exigência legal de desincompatibilização funcional a fim de poderem concorrer às eleições de outubro de 1962, todos os membros do Gabinete Tancredo pediram demissão em junho. As crises de Gabinete A formação do 2º gabinete parlamentarista implicou uma complicada batalha política para o presidente Goulart. Os dois grandes partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas forças para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas, indicado por Jango para presidir o novo gabinete. As razões da recusa eram evidentes: San Tiago, que fazia parte da chamada "esquerda positiva", notabilizara-se, nos meses anteriores, pela condução da política externa independente. O febril anticomunismo da direita brasileira jamais poderia perdoar-lhe o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a URSS; igualmente, a sua intransigente oposição, dentro da OEA, a qualquer sanção contra Cuba socialista lhe valeria a pecha de "traidor da pátria", por parte dos setores conservadores. Além do mais, era um elemento da estrita confiança de Goulart, estando, pois, inteiramente solidário na luta que este movia contra o parlamentarismo e a favor das reformas de base. Sendo forçado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um outro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado. No entanto, esta decisão desagradou as lideranças sindicais comprometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o mês de junho, vinham defendendo a formação de um "Conselho de Ministros nacionalista e democrático". Diante da negativa face ao nome de San Tiago e da eminente aprovação do Conselho de Ministros a ser chefiado pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da Greve (CGG) decretou uma greve geral em todo o país para o dia 5 de julho. No dia anterior, porém, o senador do PSD desistia da sua indicação a primeiro-ministro. Apesar da renúncia de Moura Andrade e dos insistentes apelos de Jango, a greve foi mantida. Na Guanabara, estado onde se concentrou praticamente todo o movimento paredista, os militares do I Exército — sob o comando do general nacionalista Osvino Alves — colaboraram com os grevistas; não cederam veículos de seu uso para transporte público e também participaram das negociações para a libertação dos líderes sindicais reprimidos pela polícia do reacionário governador da Guanabara, Carlos Lacerda (S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais Brasileiras). A greve — considerada pelo líder comunista Jover Telles como a maior da história do movimento operário brasileiro — foi igualmente vitoriosa pelo fato de o presidente Goulart sancionar, uma semana depois, a lei que instituiu o 13º salário, uma das principais reivindicações da greve geral. O novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD), recebia voto de confiança no dia 13 de julho. Tratava-se de um gabinete de centro com orientação reformista. Nos seus dois curtos meses de existência, este conselho distinguiu-se basicamente por duas iniciativas políticas. A primeira consistiu num projeto de lei enviado ao Congresso visando antecipar a realização do Plebiscito; propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as eleições da renovação do Congresso e escolha de alguns gover- nadores de estado. Nova derrota de Goulart e do gabinete; nova greve geral seria decretada pelas lideranças sindicais. Embora tivesse uma extensão menor do que a anterior, a greve foi igualmente vitoriosa pois, na madrugada de 15 de setembro (data fixada para a paralisação dos trabalhadores), o Congresso aprovou um projeto conciliador dos pessedistas Gustavo Capanema e Benedito Valadares. O Plebiscito, finalmente, tinha agora seu dia definido: 6 de janeiro de 1963. No entanto, a greve não reivindicava apenas a convocação do referendum popular; exigia, também, a sanção da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso mas ainda não regulamentada pelo Executivo), a elevação dos níveis de salário mínimo na base de 100%, etc. Posto que o governo prometeu realizar estudos no sentido de atender àquelas reivindicações, o Comando Geral do Trabalhadores (CGT), recentemente criado, suspendia a greve. A segunda importante iniciativa do Gabinete Brochado da Rocha consistiu numa mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava a autorização deste paraque o Conselho de Ministros pudesse legislar, através de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa de lucros, regulamentação do direito de greve, abuso do poder econômico, etc. Expressando os interesses dos proprietários e das associações rurais, bem como da burguesia associada ao capital multinacional, a aliança PSD/UDN fechava a questão contra a "delegação de poderes" pedida pelo gabinete. Prevendo a iminente derrota no plenário do Congresso, Brochado da Rocha demitiu-se. Desta forma, o Congresso cedia quanto à convocação do Plebiscito, mas a sua maioria não abriria mão de sua condição de intransigente defensora dos interesses das classes proprietárias e dos setores politicamente conservadores e de direita. Uma vez mais, Brizola se encarregaria de expressar a insatisfação dos movimentos populares e das correntes políticas nacionalistas e de esquerda: "O povo não poderia esperar outra coisa de um Congresso constituído, em sua maioria, de latifundiários, financistas, ricos comerciantes e industriais representantes da indústria automobilística, empreiteiros e integrantes da velha oligarquia brasileira" (apud M. Victor, 5 Anos que Abalaram o Brasil). A campanha do plebiscito O terceiro e último Conselho de Ministros, presidido pelo ex- ministro do Trabalho, Hermes Lima, duraria pouco mais de 4 meses. A rigor, a partir de meados de setembro de 1962, o comando do Executivo passava praticamente para as mãos do presidente da República. Como viria a assinalar mais tarde o último premier do governo parlamentarista: "Vivia-se no país uma atmosfera mais presidencialista que parlamentarista" (Hermes Lima — apud M. Bandeira, op. cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o Gabinete provisório — oficialmente empossado dois meses depois — estava inteiramente solidário com o mais importante objetivo político perseguido por Goulart naquele momento: articular as forças políticas e sociais do país a fim de derrotar o parlamentarismo na eleição plebiscitária de 6 de janeiro. Pode-se afirmar que este gabinete esteve inteiramente envolvido com a campanha do Plebiscito. Excluída a direita mais ardorosamente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN IPES/ IBAD, imprensa conservadora, etc), poucos "moveram uma palha" em defesa do parlamentarismo. Em contrapartida, inúmeras foram as entidades e organizações que se empenharam na batalha política pelo retorno do presidencialismo. Importantes figuras po- líticas nacionais (algumas delas particularmente interessadas em se candidatar, em eleições diretas, para a sucessão presidencial de Jango) apoiaram ostensivamente a derrubada do regime parlamentarista. Entre eles se incluíam Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Cid Sampaio, Magalhães Pinto, Juraci Magalhães e Carlos Lacerda (a UDN, partido dos três últimos, defendia a manutenção do parlamentarismo). Durante a campanha do Plebiscito, importantes figuras da oficialidade militar posicionaram-se a favor da volta do presidencialismo. Poucas razões igualmente tinham os trabalhadores para apoiarem o regime parlamentarista. Nas últimas semanas de 1962, a CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) conclamava os trabalhadores brasileiros a comparecer ao referendum: "Todos, no, dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NÃO: NÃO à espoliação do país; NÃO aos exploradores do povo; NÃO à carestia e à fome. Portanto, companheiro, um NÃO grande ao parlamentarismo". A rigor, para os trabalhadores, a luta pela retomada do presidencialismo significava, simplesmente, dar um "voto de confiança" ao presidente da República que vinha defendendo publicamente a realização de reformas fundamentais na estrutura da sociedade brasileira. No dia 6 de janeiro de 1963, depois de uma intensa e dispendiosa campanha político-publicitária contra o regime parlamentarista — comandada por Goulart e financiada por setores da burguesia brasileira —, cerca de 13 milhões de eleitores compareciam às urnas. Numa proporção de 5 votos para 1, rejeitava-se o regime implantado na crise político- militar de agosto de 1961. O regime parlamentarista fracassou pois se revelou altamente ineficaz do ponto de vista administrativo, como também pelo fato de ter-se constituído numa fonte permanente de crises institucionais e políticas. O caráter híbrido e dualista do sistema — o presidente da República e o Conselho de Ministros, além de disputarem o controle do Executivo, divergiam quanto aos seus programas e prioridades de governo — dificultava a tomada de decisões que a realidade econômica e social do país urgentemente demandava. Não se sustentam, pois, aquelas interpretações que atribuem exclusivamente à "má vontade" ou ao "desinteresse" de Goulart a responsabilidade pela "triste sorte" que veio a ter o parlamentarismo no país. Ressalte-se que o gabinete presidido por Brochado da Rocha buscou agilizar as decisões no campo administrativo e econômico; mas as Reformas de Base e outras medidas que estavam previstas para serem implementadas esbarraram na intransigente oposição da aliança PSD/UDN. O Congresso que encerrava a sua legislatura em 1962, sendo majoritariamente conservador, constituiu-se, assim, num forte obstáculo ao encaminhamento de políticas de caráter reformista oriundas do Executivo (seja da Residência da República, seja do Gabinete). Na crise político-militar de agosto de 1961, os dois maiores partidos conservadores apressaram-se em instituir no país um regime que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o controle do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem- sucedidos nesse intento, pois conseguiram impor limites e barreiras à ação do Executivo reformista — reconhecidamente mais eficazes do que aqueles tradicionalmente utilizados em regime presidencialista. No entanto, o parlamentarismo — forjado a toque de clarim e em ritmo marcial — não resistiu às inúmeras crises políticas que seu funcionamento provocou e não conseguiu resolver. U m governo no trapézio No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogação da emenda parlamentarista, João Goulart reassumia os plenos poderes que a Carta de 1946 conferia ao presidente da República. Após o malogro da experiência parlamentarista, todas as indagações políticas resumiam-se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de Goulart superar a crise econômico-financeira, aliviar as tensões sociais e afastar as crises políticas que vinham continuadamente desgastando a administração pública? Não seria exagerado afirmar que — entre os diferentes setores sociais — era praticamente consensual o reconhecimento de que da solução da crise econômico- financeira dependia fundamentalmente o encaminhamento satisfatório dos demais problemas que afetavam o país. As propostas que as diversas classes sociais e grupos políticos ofereciam para resolver os problemas da inflação, do déficit da balança de pagamentos, da continuidade do desenvolvimento econômico etc, não deixavam de ter orientações diferentes e, por vezes, antagônicas. A este respeito deve-se ressaltar que os tempos de Goulart constituíram-se em anos "extremamente férteis" na medida em que neles se processaram intensos debates sobre os rumos e direções que deveriam ser trilhados pela economia e sociedade brasileiras. Como observou um economista: "Ao contrário dos anos anteriores, em que reduzidas minorias controlavam a formulação política, nestes anos novos agrupamentos passaram a fazer ouvir sua voz no processo de decisãosocial. A política econômica não foi indiferente a este contexto social mais complexo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Política Econômica) . Como tende a ocorrer em todo regime democrático-burguês, o Executivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condições de resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi denominada de "Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social: 1963-1965", tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado (ministro do Planejamento), com a colaboração de San Tiago Dantas (ministro da Fazenda). A concepção e a execução do Plano Trienal — bem como as reações dos diferentes setores sociais e políticos a ele — contribuem de forma significativa para entendermos o que foi o governo Goulart. A análise da composição do primeiro ministério presidencialista, bem como o exame crítico do Plano Trienal, anunciavam muito expressivamente o estilo conciliador que iria predominar durante o governo Goulart — autêntico "governo de trapézio", segundo o julgamento de um jornalista político. No Ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD (Antônio Balbino e Amaral Peixoto), petebistas do grupo "fisiológico" (San Tiago Dantas e José Ermírio de Moraes — um dos expoentes da chamada "burguesia nacional"), um petebista do "grupo compacto" ou "ideológico" (Almino Afonso), técnicos "apartidários" como Celso Furtado e militares "duros" como o gal. Amaury Kruel. Por outro lado, o Plano Trienal, na sua formulação teórica, julgava poder harmonizar e satisfazer interesses contraditórios — de patrões e empregados, de proprietários e trabalhadores assalariados. Quais os principais objetivos e propostas do Plano? Plano Trienal: "combater a inflação com desenvolvimento" Diante das duas mais importantes tendências do comportamento da economia brasileira no início dos anos 60 — "aceleração inflacionária" (37% em 1961 e 51% em 1962) e "desaceleração do crescimento"-(taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) —, o Plano trienal pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionário com uma política de desenvolvimento que permitisse ao país retomar as taxas de crescimento do PIB (em torno de 7%) alcançadas durante o período de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda, o Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas dominantes, pois buscava combater o processo inflacionário "sem sacrifício do desenvolvimento". Paralelamente a estes dois obje- tivos principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor distribuição dos frutos do desenvolvimento econômico, juntamente com "a redução das desigualdades regionais de níveis de vida". Enfatizava, porém, o Plano Trienal, que se o processo inflacionário não fosse reduzido a limites toleráveis, o País — com uma iminente hiperinflação (prevista em 100% para fins de 1963, caso o plano de estabilização falhasse) — teria toda a sua atividade econômica paralisada e, conseqüentemente, passaria a ser o palco de perigosas lutas sociais. Tanto a análise feita pelo Plano sobre as causas do processo inflacionário, como as soluções ali apontadas, não deixariam de ser objeto de intensas polêmicas. Do lado do setor externo, admitiam as esquerdas que era correta a afirmação segundo a qual a inflação era provocada pela drenagem de recursos de recursos para o exterior (através da "deterioração das relações de trocas") e pela transferência de renda (na forma de subsídios governamentais) para o setor exportador. Contudo, os "remédios" propostos — "refi- nanciamento da dívida externa" e "entrada de recursos externos" para a amortização de empréstimos anteriormente contraídos — eram praticamente ineficazes como medidas antiinflacionárias; além do mais, amortizar dívidas com a entrada de capitais estrangeiros agravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as esquerdas, o Plano constituía-se numa nova capitulação ao latifúndio e ao imperialismo: não se propunha a eliminação dos subsídios ao setor latifundiário-exportador nem se reconhecia o papel inflacionário representado pelas remessas ao exterior de "juros, lucros e royalties, e a entrega de enorme soma de recursos públicos às grandes companhias estrangeiras, diretamente e através de isenções de impostos e favores cambiais" (H. Hoffmann, "O Plano Trienal e a Inflação", in Estudos Sociais, nº 16). Em relação ao setor público, a estratégia adotada para reduzir a pressão inflacionária consistia num "conjunto de medidas de ação convergente". Destacava, contudo, a "redução do dispêndio público programado" como o mais importante fator responsável pela inflação no País. Contra esta perspectiva, críticos à esquerda advertiam: "(...) o nível de gastos públicos não pode ser comprimido se se quer que a economia se desenvolva" (Paul Singer, Análise Crítica do Plano Trienal). Como se verá mais adiante, a realidade não deixará de dar razão a esses críticos. Um plano antipopular e capitulacionista Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, o êxito da política econômico-financeira passava a depender da "compreensão geral das áreas oficiais e não oficiais" acerca da "dramática situação" que enfrentava o País. Era voz corrente, nos círculos oficiais, que "o País não suportaria, no momento, nem reivindicações salariais nem a pressão por maiores lucros, e as medidas que se adotam para evitar que à conjuntura desemboque num colapso financeiro devem ter a compreensão e a colaboração dos dirigentes das classes produtoras e dos sindicatos de trabalhadores" (Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964). Na perspectiva do governo, nivelavam-se, assim, as "boas vontades": de um lado, a dos empresários que deveriam moderar, provisoriamente, o apetite por lucros crescentes; de outro, a dos trabalhadores assalariados, que deveriam deixar de pressionar — adiando, pois, suas greves e reivindicações — por salários mais elevados. Ora, bem se sabia que tais reivindicações visavam, sim- plesmente, recompor para a classe trabalhadora um nível de participação menos deteriorado na renda nacional. (Como mostrou um economista, a partir de 1958, com a única exceção de 1961, houve uma acentuada deterioração do salário mínimo real.) (Francisco de Oliveira, "Crítica à Razão Dualista", in Estudos Cebrap.) Apesar da sua formulação teórica não considerar os salários como fatores inflacionários, na prática, no entanto, o Plano pedia aos traba- lhadores — como sempre o fazem os planos de "salvação nacional" — "colaboração", "paciência" e "patriotismo". Mas, acima de tudo, que (novamente) "apertassem os cintos"... O entusiasmo governamental começou a se esboçar em fevereiro e março, em virtude do apoio que o Plano recebia de associações das "classes produtoras" (a Confederação Nacional da Indústria, CNI), de governadores de estados etc; contudo, ele sofreria seus primeiros e fortes abalos com as críticas vindas de setores sindicais e das organizações políticas nacionalistas e de esquerda. Logo nos primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT revelaria que seria tormentosa a administração do presidente Gou- lart. Nesse documento combatia-se a política financeira do Plano Trienal, pois enquanto este deixava intactos os lucros fabulosos do capital estrangeiro, dos latifundiários e dos grandes grupos econômicos nacionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifícios às classes populares e trabalhadoras. Um crítico de esquerda assinalaria: "(...) o Plano Trienal visa a combater a inflação sem reduzir o crescimento econômico do país, no que se manifesta, tipicamente, a inspiraçãoda burguesia nacional. Do ponto de vista dos defensores do Plano esta seria uma razão suficiente para que os trabalhadores o apoiassem. A verdade é, porém, que esta não é uma razão suficiente, mas uma razão burguesa e, portanto, inacei- tável para os trabalhadores" (Jacob Gorender, "O Plano Trienal e o Combate à Inflação", Novos Rumos, fevereiro de 1963). As críticas avolumaram-se e se intensificaram a partir do momento em que as conseqüências da política de eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo (uma das medidas prioritárias no combate à inflação) começaram a ser sentidas pelos setores popu- lares. Em fevereiro, calculou-se que o fim da política de subsídios aumentaria o custo do transporte em 40% e o preço do trigo e do pão em 177%. Nos três primeiros meses de 1963, o índice geral dos preços subiu 16%, enquanto no mesmo período de 1962 o índice de aumento foi de 8%. A condenação ao Plano, unânime por parte dos setores sindicais e populares e das organizações políticas de esquerda (CGT, PUA, FPN, UNE, "grupo compacto" do PTB, etc), iria ter repercussões dentro do próprio Ministério, na medida em que a "diretriz de Almino Afonso no Ministério do Trabalho, ao fortalecer as direções operárias mais independentes, como o CGT, PUA, etc, colidiu com os interesses de Goulart" (Moniz Bandeira, op. cit.). Do lado dos empresários (particularmente da poderosa indústria automobilística concentrada em São Paulo) havia "queixas generalizadas de falta de crédito". Diante das "violentas críticas" destes setores — encampadas pela própria CNI — haverá, no segundo trimestre de 1963, o relaxamento da política monetária que fará os meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhões de cru- zeiros contra a expansão projetada de 74,1 bilhões, "o que afetou definitivamente o esquema do Plano Trienal" (C. Lessa, op. cit.). Os aspectos antinacionais da política econômico-financeira do governo Goulart ficariam também evidenciados quando das conversações entre Brasil e EUA acerca da negociação da assistência econômica norte-americana e refinanciamento da dívida externa. Em março de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington com um forte argumento para convencer o governo norte-americano a fornecer assistência financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a decisiva prova de que o País passava a se enquadrar dentro do receituário econômico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e pelo FMI. Mas- os EUA, além de exigirem um compromisso formal por parte do governo brasileiro de que o plano "não ficaria apenas no papel", impuseram ainda uma nova condição para a concessão do empréstimo solicitado: o governo Goulart deveria resolver com a máxima urgência a questão da desapropriação da AMFORP (American Foreign Power, subsidiária da Bond & Share). Duas cartas de Goulart foram entregues a Kennedy por intermédio de San Tiago Dan- tas: nelas o governo brasileiro comprometia-se a cumprir as duas exigências norte-ameri-canas. (Entre os políticos norte-americanos circulava a versão de que a chamada "ajuda externa" dos EUA era freqüentemente desperdiçada pela má administração aos governos latino-americanos. No caso brasileiro, deixava, pois, de ser informado que, "na verdade, o que ocorria não era uma transferência de capitais dos EUA para o Brasil e, sim, ao contrário, um escoamento de recursos do Brasil para os EUA". Entre 1947 e 1960 entraram (empréstimos e investimentos) US$ 1.814 milhões e "saíram no mesmo período.... US$ 2.459 milhões sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um saldo negativo da ordem de USS 645 milhões" que, "acrescidos de US$ 1.022 milhões, sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de lucros clandestinas, perfaziam um total de USS 1.667 milhões. Em suma, num período de 13 anos, um volume considerável de dólares foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos muito mais capitais do que recebíamos" — Moniz Bandeira, op. cit.) Para tornar ainda mais complicada a situação do governo brasileiro nas negociações de Washington, um porta-voz do Departamento de Estado — baseado nos relatórios de Mr. Gordon enviados regularmente da embaixada norte-americana no Brasil — alertava a opinião pública de seu país sobre a "perigosa atuação de comunistas" dentro da assessoria técnica de Goulart. Apesar das duas cartas do governo brasileiro (onde se garantia o acatamento às exigências norte-americanas) e de uma solene declaração oficial que negava a existência de "esquerdistas" na assessoria governamental, os EUA aprovaram um empréstimo de apenas USS 84 milhões, prometendo USS 314,5 milhões para o ano fiscal de 1964, caso as medidas de contenção inflacionária fossem efetivamente aqui aplicadas; antes, contudo, deveriam elas ser aprovadas por uma comissão do FMI, cuja visita ao Brasil estava prevista para meados de 1963. Embora os "brios nacionalistas" do governo brasileiro fossem feridos — noticiou-se que San Tiago Dantas ameaçara abandonar as negociações com os EUA —, "razões pragmáticas" fizeram com que as imposições norte-americanas fossem aceitas, conforme se verificou através do acordo Dantas/ Bell. O caso da compra da AMFORP — o "escândalo da AMFORP" como ficou conhecido na imprensa da época — transformou-se em grave problema político para a administração Goulart. Enquanto retirava os subsídios para o trigo e o petróleo e cortava alguns investimentos públicos, sob o pretexto de combater a inflação, o governo brasileiro anunciava, em fins de abril, que se ultimavam os entendimentos para a compra da AMFORP (que congregava 12 empresas de serviços públicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos (que a esquerda nacionalista ironicamente chamava de "Bob Fields", por ser ele um "refinado entreguista") tinham acertado com os representantes da empresa norte-americana o valor da transação: 188 milhões de dólares. Na mesma ocasião, um grupo de trabalho integrado por técnicos brasileiros (CONESP) — dissolvido logo a seguir por Goulart — avaliava os bens da AMFORP em torno de 57 mi- lhões de dólares. Para os setores nacionalistas, estava-se diante de uma imensa negociata, pois, além do preço extorsivo, as 12 usinas norte-americanas estavam obsoletas, constituindo-se em verdadeiro "ferro velho". Tais denúncias tiveram ampla repercussão Política. Goulart recuou, protelando a realização da compra, para desagrado do governo norte-americano. (Em outubro de 1964, demonstrando eloqüente "boa vontade" para com os empresários e governo dos EUA, o governo do mal. Castelo Branco adquiria a AMFORP.) O prestígio político de Goulart foi seriamente abalado neste episódio; inclusive os setores conservadores não lhe pouparam duras críticas, ao ser conivente com negociações que os grupos nacionalistas classificavam de autêntico "crime de lesa-pátria". O plano, antes de completar 6 meses de duração, inviabilizava-se política e economicamente. Nem os emprésários, nem os trabalhadores lhe ofereciam qualquer apoio. Em maio, o Ministério da Fazenda, diante das fortes pressões dos assalariados, tomava uma decisão inteiramente contrária às projeções do Plano, ao conceder um aumento de 70% aos funcionários civis e militares, quando estava previsto apenas 40%. De outro lado, como já foi mencionado, o governo — face às reivindicações de setores indus- triais — voltaria atrás em suas medidas de contenção do crédito. O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder ao balanço do ano de 1963: nem desaceleração da inflação, nem aceleração do crescimento foram alcançadas. Houve, sim, inflaçãosem desenvolvimento. Razão, pois, tinham os críticos de esquerda quando — denunciando a retórica progressista do Plano — advertiam para os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das medidas concretas ali propostas. As reformas: como garantir a propriedade e impedir a "convulsão social" Outra batalha política que esteve em pauta durante todo o governo Goulart foi a das Reformas de Base (Agrária, Bancária, Administrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc). Recorde-se que esta problemática fazia parte dos programas dos três gabinetes parlamentaristas e agora aparecia como um dos objetivos básicos do Plano Trienal. (Como se encarregavam de divulgar os confidentes e cronistas palacianos, Goulart queria notabilizar-se na história política do Brasil como o "presidente da Reforma Social".) Reconhece-se, no entanto, que a bandeira das Reformas passou a ser empunhada pelo governo, de forma mais enérgica, no período presidencialista, apenas a partir do instante em que se começou a perceber o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do ano, análises feitas pelas esquerdas não apenas denunciavam o "cozimento em água fria das reformas" — amplamente agitadas por Goulart durante a campanha do Plebiscito —, como também passavam a duvidar do conteúdo efetivamente transformador de que poderiam se revestir as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista Brasiliense, nº 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial acerca das Reformas de Base? Assinala um sociólogo que, na visão dos governantes, "se não houvesse Reformas de Base (...) não se criariam as novas 'condições institucionais' para o desenvolvimento de outra etapa da economia brasileira" (Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil); significava isso — conforme o reconhecimento do próprio Plano Trienal — que as Reformas de Base eram indispensáveis, ao lado do planejamento, a fim de que o capitalismo industrial brasileiro pudesse alcançar um nível de desenvolvimento superior. Afirmava o Plano, por exemplo, que as reformas fiscal e agrária eram essenciais se se pretendesse a "eliminação de entraves institucionais à utilização ótima dos fatores de produção". Razões econômicas e sociais impunham a urgente realização das reformas, dentre elas a que mais debates provocou naquele período: a Reforma Agrária. De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola (alimentos que suprissem as demandas da população urbana em crescimento; matérias-primas para a expansão industrial etc), ao mesmo tempo que se buscava criar um mercado interno mais amplo para os bens manufaturados. De outro lado, prevendo-se situações incontroláveis de tensões e distúrbios sociais, propunha-se uma melhor redistribuição da terra (em mãos de um reduzido número de latifundiários e freqüentemente mantida de forma improdutiva). É exemplar a este respeito o testemunho de um dos mais íntimos colaboradores de Goulart, acerca da concepção que este defendia de Reforma Agrária: "(...) o que Jango tentava fazer não tinha nada de muito ousado nem de radical. Ele dizia sempre que, se o número de proprietários rurais fosse elevado de 2 para 10 milhões, a propriedade seria muito melhor defendida, e simultaneamente possibilidades maiores seriam abertas a mais gente de comer mais, de se educar melhor, de viver mais dignamente. Por isso é que Jango, latifundiário, queria fazer a Reforma Agrária para defender a proprie dade e assegurar a fartura, evitando o desespero popular e a convulsão social" (Darci Ribeiro, "Governo Goulart caiu por suas qualidades, não por seus defeitos", in A História Vivida II — O ESP, grifos nossos). Apesar de não ter nenhum sentido revolucionário, correspondendo, pois, de um lado, às necessidades da consolidação do capitalismo industrial e, de outro lado, à estratégia da dominação social burguesa, a Reforma Agrária proposta por Goulart será objeto de intensa e constante oposição por parte dos proprietários rurais e seus setores políticos, de setores da Igreja Católica, etc. (Recorde-se que, no período parlamentarista, idêntica foi a reação desses grupos. A diferença estava no fato de que naquele momento Goulart não tinha ainda formulado oficialmente a sua proposta de Reforma Agrária e de Reforma Constitucional.) Tais setores não admitiam, por exemplo, a alteração dos preceitos constitucionais sob a alegação de que — caso isso viesse a ocorrer — corria-se o risco de ser invalidado o estatuto da propriedade privada no Brasil... Além do mais, conforme assinalou um historiador, as demais reformas propostas (eleitoral, educacional etc.) poderiam implicar a "alteração do equilíbrio político" e permitia até então a hegemonia das forças conservadoras e de direita, particularmente no Legislativo. A preocupação política maior das classes dominantes diante das possíveis mudanças no campo são ressaltadas por uma estudiosa: "Havia, sem dúvida, o incontrolável temor de se ver ingressar na cena política camadas sociais constituídas em 'clientelas políticas' que pudessem ser enquadradas, tal como o fora a classe operária com Getúlio Vargas. Tais temores eram, sem dúvida, realimentados pela aceleração da eclosão de conflitos rurais, que cada vez mais se orientavam para a ocupação de terras" (Aspásia Camargo, op. cit.). Enquanto setores do PSD — apesar dos fortes compromissos do partido com os proprietários rurais — chegaram, num primeiro momento, a aceitar a discussão do anteprojeto do Executivo, a UDN fechava a questão contra qualquer alteração constitucional. Mas, a posição do PSD será outra a partir da Convenção da UDN realizada em abril de 1963. (Na cronologia do golpe de 64, esta reunião da UDN teve um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido defenderam a intervenção das Forças Armadas e dos EUA a fim de porem termo ao "comunismo legal" de Goulart.) Influenciado pelas manifestações das chamadas "bases" da UDN, o PSD recuará definitivamente face às suas primeiras conversações com o governo. Tal fato mostrou-se de forma evidente na votação da "emenda Bocaiúva" (emenda constitucional, apresentada pelo PTB, que buscava tornar financeiramente viável a Reforma Agrária). Por 7 votos (PSD, UDN e PSP) contra 4 (PTB e PDC), a emenda seria rejeitada na Comissão Especial da Câmara, no mês de maio. Em Plenário, a emenda foi derrotada, em outubro, graças à aliança PSD e UDN — após intensa mobilização dos proprietários rurais, comandados principalmente pela Confederação Rural Brasileira(CRB). Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na Comissão Especial, os setores nacionalistas desencadeariam uma campanha de pressão nacional sobre o Congresso para a imediata aprovação das reformas. Através de comícios, passeatas, mani- festos, os setores nacionalistas e populares exigem "reformas já!", ao mesmo tempo que denunciam o reacionarismo do Congresso controlado pelo PSD UDN e pelo "milionário IBAD". (Brizola diria que o PSD e a UDN, ao exigirem o pagamento prévio e em dinheiro, tornavam a questão agrária em autêntico "negocio agrário".) De outro lado, após ter sido batido na Comissão Especial, Goulart — apesar das fortes críticas vindas dos grupos nacionalistas e de esquerda — volta-se novamente para o PSD. Em busca de apoio, aceita mudanças no anteprojeto de Reforma Agrária do executivo, a fim de torná-lo "menos radical" e, assim, aceitável para o conservadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a "assessoria gaúcha", vinculada politicamente a LeonelBrizola, que não concordava em fazer "concessões programáticas" no anteprojeto. Porém, serão infrutíferos os esforços do novo ministro da Justiça, Abelardo Jurema, figura de relevo do PSD, a quem foi atribuída a específica tarefa de articular a antiga aliança PSD/PTB. (Jurema sintetizaria a visão conciliadora do governo através de uma famosa frase: "O PSD sem o PTB irá para a reação; o PTB sem o PSD irá para a Revolução".) Idêntica missão foi confiada a Tancredo Neves (PSD) ao ser indicado líder da bancada do Governo na Câmara. Porém, o fosso entre o PTB e o PSD aprofundava-se na razão direta da aproximação deste com a UDN, os quais se alarmavam com a "agitação social", a "desordem" e a "comunização crescente do país" promovidas — segundo estes — por Goulart, pelo PTB e pelas "forças subversivas" (CGT, UNE, FMP, etc). De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda, criticavam Goulart pela sua indecisão e indefinição em relação a uma série de medidas concretas de caráter nacionalista e popular que poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer reforma constitucional. Entre essas medidas — algumas delas defendidas pelo próprio presidente em seus discursos — ressaltavam as seguintes: regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso, mas "engavetada" pelo Executivo); nacionalização das concessionárias de serviços públicos, moinhos, frigoríficos e indústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros alimentícios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco do Brasil; monopólio das exportações de café pelo IBC; ampliação do monopólio estatal do petróleo, etc. Administrativamente pouco se realizava, pois o governo se consumia em sucessivas crises políticas. Como assinalavam os observadores políticos, havia — do ponto de vista administrativo — "uma pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas"; da mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus períodos de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava munição aos setores de direita que alardeavam a "incompetência administrativa" do Executivo e a "crise de autoridade". O isolamento e debilidade política do governo A sucessão de crises políticas advinha das contradições em que se debatia o governo: ao mesmo tempo que agitava a bandeira do nacionalismo e das Reformas — solicitando, pois, o apoio das massas populares e dos setores políticos de esquerda — Goulart, por outro lado, protelava indefinidamente a realização de medidas populares, afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os setores independentes (não pelegos) do movimento sindical, condenava abertamente iniciativas políticas de esquerda (em abril de 1963, na cidade de Marília, SP, usou a típica linguagem de direita ao proibir um congresso "comuno-fidelista"). As concessões à reação não se reduziam a estes fatos, pois o governo reservava os cargos mais importantes da administração federal (particularmente aqueles responsáveis pelapolítica econômico-financeira) apenas para os representantes das classes dominantes, indicava também "duros" das Forças Armadas para estratégicos postos de comando e mantinha compromissos com o conservador PSD. Sob a permanente desconfiança da direita e da esquerda, o governo Goulart acabaria isolando-se politicamente. A ambigüidade e a debilidade política do governo se mostrariam de forma definitiva no episódio do Estado de Sítio. No dia 4 de outubro, o presidente da República encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a decretação do Estado de Sítio em todo o território nacional, pelo prazo de 30 dias. A justificativa do Ministério da Justiça esclarecia que o Executivo necessitava de poderes espe- ciais para impedir "grave comoção intestina com caráter de guerra civil" que punha em "perigo as instituições democráticas e a ordem política". Explicitamente eram indicadas algumas das situações in- ternas que perturbavam a ordem institucional: "manifestações coletivas de indisciplina" nas polícias militares de alguns estados; "sublevação de graduados e soldados" (Revolta dos Sargentos) que punha em risco a disciplina e hierarquia militares; as freqüentes reivindicações salariais que passavam a "ser fatores de agravamento da crise político-social" (na ocasião ocorria a greve dos bancários em São Paulo e o PUA anunciava a decretação de uma greve geral caso aquela paralisação fosse julgada ilegal por parte da justiça trabalhista) e, por fim, o fato de existirem governadores de importantes estados "conspirando contra a Nação". A ira de Goulart e de seus ministros militares voltava-se particularmente contra o governador da Guanabara que, em entrevista a um jornal norte-ameri-cano (Los Angeles Times), havia ridicularizado a autoridade do presidente da República, além de insinuar que os militares brasileiros estavam confusos e desorientados diante de uma administração inteiramente "desastrosa" para o país. Coerente com a "vocação golpista" de seu partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento de Estado a deixar de lado sua "passividade" face à grave situação em que se encontrava o Brasil, presidido por um "totalitário à moda sul- americana" e que "descambava para a esquerda". Não havia dúvida de que o Estado de Sítio objetivava, imediatamente, a intervenção na Guanabara e a conseqüente derrubada do conspirador-mor da UDN. (Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia escapado, naqueles dias, de um atentado por parte de um comando pára- quedista a mando de Goulart. Embora a denúncia fosse negada por oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de apurar a denúncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse solidariedade ao seu aliado da Guanabara, poderia "rolar a cabeça" do governador de São Paulo, Adhemar de Barros — acusado de fornecer armas (contrabandeadas da Bolívia) a grupos paramilitares ("milícias patrióticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda: quem garantiria que Miguel Arraes também não fazia parte da "lista de saneamento" elaborada pelos militares, com a inteira complacên- cia de Goulart? Idêntica pergunta faziam as lideranças sindicais e populares de todo o País acerca do destino que viriam a ter as organizações em que militavam. Embora por razões distintas, todos os grupos políticos e associações de classe — à direita e à esquerda — opuseram-se à concessão do Estado de Sítio (apenas os setores "pelegos" do movimento sindical e fração do PTB tradicionalmente fiel a Goulart tentaram o apoio inútil à medida de força). Os setores nacionalistas e de esquerda viam no Estado de Sítio uma grave ameaça às liberdades democráticas e aos movimentos progressistas. Afirmava, por exemplo, uma nota do CGT: "Somos, por princípio, contrários ao Estado de Sítio porque entendemos que a manutenção e ampliação das liberdades democráticas são meios insubstituíveis e necessários às lutas contra os inimigos do Brasil e aos interesses da povo". A direita, por seu lado, via no Estado de Sítio uma tentativa de golpe tramada por Goulart a fim de permanecer no poder, tal como o fizera Getúlio Vargas em 1937. Diferentemente da ditadura estadono-vista, estaríamos, então, face a uma "ditadura esquerdizante", proclamavam os setores de direita. Quem dará o golpe? Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Estado de Sítio — retirado pelo governo tão logo se deu conta da fragorosa derrota que sofreria no Congresso —, ressurgiria, mais
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